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Atual problema do desenvolvimento brasileiro

The current problem of Brazilian development

Problème actuel du développement brésilien

Atual problema do desenvolvimento brasileiro

The current problem of Brazilian development

Problème actuel du développement brésilien

Helio Jaguaribe

RESUMO

Este estudo busca, muito condensadamente, responder a questões fundamentais a respeito das taxas de crescimento e das condições de o Brasil empreender um desenvolvimento econômico-tecnológico e sociocultural sustentável. O Brasil permaneceu estagnado, no curso dos últimos 25 anos, porque, explícita ou implicitamente, nossas equipes econômicas foram dominadas pela ideologia neoliberal, e as políticas dela decorrentes privilegiam o equilíbrio monetário em detrimento do desenvolvimento. O país necessita manter, por cerca de vinte anos, uma taxa anual mínima de crescimento da ordem de 6% para superar seu subdesenvolvimento. Não o fazendo, resvalará, a mais curto prazo, para a condição de mero segmento do mercado internacional. Para isso, necessita combinar uma ampla reforma de seu regime eleitoral e partidário com um conjunto de enérgicas medidas promotoras de um desenvolvimento nacional autônomo, inserido no quadro de uma integração sul-americana, baseada numa confiável e reciprocamente benéfica aliança argentino-brasileira.

Palavras-chave: Desenvolvimento; Neoliberalismo; Reforma política; Integração sul-americana.

ABSTRACT

This study aims at, in a very condensed way, address fundamental matters about growth rates and conditions for Brazil to undertake some sustainable economic, technological, and sociocultural development. Brazil has been stagnated in the past twenty-five years because, implicitly or explicitly, its economic teams have been dominated by the neoliberal ideology and resulting policies that have privileged monetary stability rather than development. The country needs to keep a growth rate of at least six percent for the next twenty years to overcome its underdevelopment. Not doing so will deem it to a condition of mere segment of the international market in a short term. It is necessary to combine an ample reform of its electoral and party system with a scope of energetic actions to promote autonomous national development, inserted in a framework of South American integration based onto a trustworthy and reciprocally benefic Argentinean-Brazilian alliance.

Palavras-chave: Development; Neoliberalism; Political reform; South american integration.

RÉSUMÉ

Cette étude cherche, de façon résumée, à répondre aux questions fondamentales relatives aux taux de croissance et aux conditions nécessaires pour que le Brésil entreprenne un développement économique, technologique, social et culturel durable. Le Brésil a, au cours de ces derniers 25 ans, stagné, car, explicitement ou implicitement, nos équipes économiques ont été dominées par l'idéologie néolibérale, et les politiques qui en ont découlé ont privilégié l'équilibre monétaire au détriment du développement. Le pays doit maintenir, pour environ 20 ans, un taux annuel minimum de croissance de l'ordre de 6%, en vue de surmonter son sous-développement. S'il ne l'atteint pas, il retombera, très rapidement, à la condition de simple segment du marché international. Pour cela il devra combiner une ample réforme de son régime électoral et politique à un ensemble de mesures énergiques capables de mener à un développement national autonome, inséré dans le cadre d'une intégration sud-américaine, fondée sur une alliance de confiance et réciproquement bénéfique avec l'Argentine.

Mots-clés: Développement; Neoliberalisme; Reforme politique; Intégration sud-américaine.

Introdução

O Brasil, ademais de outras condições, necessita manter, por algo como vinte anos, uma taxa anual de crescimento econômico não inferior a 6%, para atingir, com autonomia, um patamar satisfatório de desenvolvimento sustentável. Contrastando com essa necessidade, o país vem tendo taxas insignificantes de crescimento anual. Impõe-se, assim, esclarecer três questões: (1) por que se vêm mantendo taxas de crescimento extremamente baixas?; (2) por que necessita o Brasil de um crescimento econômico anual não inferior a 6%?; (3) dentro de que condições, finalmente, poderá o país acelerar seu crescimento econômico e, então, empreender de modo sustentável um vigoroso esforço de desenvolvimento econômico-tecnológico e sociocultural?

Estagnação

O Brasil está praticamente estagnado desde a década de 1980. Experimentou um acelerado desenvolvimento entre a década de 1950 e a de 1970. A partir de então, entrou em prolongada estagnação que permanece até hoje. A que se deve essa estagnação? A análise abrangente dessa questão envolveria uma gama muito ampla de problemas, de caráter multidisciplinar, indo do plano econômico ao sociopolítico e cultural e correspondentes esforços de quantificação. Neste breve estudo intentar-se-á uma abordagem simplificada da questão, a partir de uma perspectiva predominantemente histórico-sociológica.

No cerne da questão encontra-se a ampla medida em que a ideologia neoliberal, a partir do pensamento anglo-saxônico, das pressões do mercado financeiro internacional e das diretrizes de Washington, exerceu a mais profunda influência na América Latina, dominando as equipes responsáveis pela condução financeira do Brasil no curso dos últimos 25 anos.

A ideologia neoliberal encontraria seu código de conduta no chamado "Consenso de Washington". Este contém um conjunto de dez prescrições macroeconômicas, sendo as cinco primeiras, creio, basicamente corretas; as outras, que se apresentam como requisito necessário para a eficácia das precedentes, são de caráter puramente ideológico. Essa íntima combinação entre "boa economia" e "pura ideologia" é a característica central do neoliberalismo. Sua enorme influência na América Latina se deve ao fato de que, nos últimos trinta anos, os bons economistas da região se formaram em universidades norte-americanas e lá receberam, com boas lições de economia, a supostamente indispensável dose de ideologia neoliberal.

Os aspectos positivos da ciência econômica ministrada nas universidades norte-americanas consistem na ênfase sobre a necessidade de se manter o equilíbrio das principais variáveis macroeconômicas, relativas à taxa de câmbio, à moeda e às finanças públicas. O conteúdo ideológico, apresentado como condição necessária para se manter tal equilíbrio, consiste em erigir a liberdade de mercado como requisito fundamental. Isso importa na não diferenciação entre mercado doméstico e mercado internacional, entre capital nacional e capital estrangeiro. Importa na total abertura do mercado doméstico ao internacional, na não regulação, pelo Estado, da atividade econômica, bem como na convicção de que o livre jogo dos agentes privados, nacional e internacionalmente, assegura o desejável equilíbrio macroeconômico e, em decorrência, o desenvolvimento econômico do país. Observe-se, à margem dessas considerações, que se entende como indispensável que o desejado equilíbrio das variáveis macroeconômicas se efetue em termos anuais. Entende-se também, conseqüentemente, que o imperativo absoluto de tal equilíbrio consiste em se manter próximo a zero e nunca acima de algo como 5% a taxa anual de inflação, bem como um elevado superávit primário, da ordem de 4% do PIB. Para tanto, dever-se-á proceder, por um lado, à mais estrita contenção da despesa pública e, por outro, a uma elevação da taxa de juros, tão desestimulante quanto o que se revele necessário para reduzir a inflação a níveis máximos da ordem de 5%. A taxa básica de juros brasileiros, que chegou a quase 20% ao ano, resultou dessa convicção.

A domesticação dos economistas brasileiros – e em geral latino-americanos, com exceção da Venezuela e, naturalmente, de Cuba – pelo Consenso de Washington corresponde aos interesses dos agentes financeiros, tanto domésticos como internacionais. A integração do mercado doméstico com o internacional dá-se plenamente no domínio financeiro. Na verdade, somente neste, porque o intercâmbio comercial entre países continua fortemente assimétrico. Essa integração financeira, ademais dos fundamentos teóricos dados pelo neoliberalismo, baseia-se no interesse do mercado financeiro doméstico de dispor do melhor acesso possível ao internacional, para obtenção de créditos e para atração de investimentos. O mercado financeiro internacional, por sua vez, favorece essa integração tendo em vista, entre outros aspectos, seu interesse em se beneficiar dos juros astronômicos obteníveis no Brasil e de preservar a livre movimentação de suas inversões.

A conjugação da orientação neoliberal da economia brasileira com a integração dos mercados financeiros, doméstico e internacional, tem por resultado a estagnação crônica de nossa economia. Para produzir essa estagnação conjugam-se três principais fatores: (1) juros astronômicos, agravados por excessiva carga tributária; (2) anualização do equilíbrio macroeconômico; e (3) desregulação estatal da economia.

Juros de quase 20% ao ano inviabilizam a utilização do crédito como fator de produção. É certo que, mais recentemente, o BNDES tem feito empréstimos de longo prazo para determinados projetos, a juros significativamente menores. Esse corretivo, ainda que bem-vindo, é nitidamente insuficiente para possibilitar que o crédito, como ocorre quando as taxas de juros são extremamente baixas, seja um fator de produção. Os juros, ademais de uma excessiva carga tributária e de um exagerado superávit primário, são o principal fator de estagnação da economia privada, cuja expansão – por esse motivo bastante modesta – depende, quase exclusivamente, da reinversão de lucros. Acrescente-se que o atrativo de juros astronômicos conduz muitos empresários a desviar, para a especulação financeira, significativa parcela de seus lucros.

Considerando a outra faceta da economia – a pública – observaremos, ainda no tocante às taxas astronômicas de juros, a medida em que o forte endividamento interno da União a conduz a despender, com juros, mais de 20% de sua despesa total. Isto significa que algo em torno de R$140 bilhões da receita federal são anualmente desviados para pagamento de juros. Fossem estes 50% mais baixos, como seria razoável, ter-se-ia em poder da União um significativo montante, da ordem de R$70 bilhões por ano, para inversões prioritárias. O excessivo superávit primário, que poderia provavelmente ser fixado em 3% do PIB, em vez de maior de 4%, é outro fator da estagnação.

A anualização do equilíbrio macroeconômico é outra das causas da estagnação. Com efeito, o prazo no curso do qual se busque manter esse equilíbrio tem efeitos diferentes, conforme se trate de economias desenvolvidas ou emergentes. Naquelas, as taxas de crescimento anual alcançáveis dentro desse regime, da ordem de 2 a 3%, são satisfatórias para a preservação do nível econômico do país, já extremamente elevado. Para um país que necessita de um acelerado crescimento econômico, essas taxas são estagnadoras. Um país como o Brasil necessita substituir, urgentemente, o modelo estático de equilíbrio macroeconômico por um modelo dinâmico. A indispensabilidade do equilíbrio macroeconômico não postula, necessariamente, sua anualização. Para um país como o Brasil, com um ciclo político quadrienal, um modelo dinâmico de equilíbrio macroeconômico deve ser também quadrienal. Isto significa que, no início de cada quadriênio, se permite, dentro de estritas condições de controle, notadamente no referente ao gasto público, um criativo desequilíbrio gerador de inversões de alta prioridade, concebido de tal sorte que, no quarto ano desse regime, se restaure, num patamar econômico significativamente mais elevado, o necessário equilíbrio macroeconômico. Dessa forma, o processo poderá ser controladamente repetido no quadriênio seguinte. Essa experiência foi empreendida com êxito pelo governo Kubitschek, que logrou converter, em cinco anos, uma economia agrária no que seria a mais avançada economia industrial do Terceiro Mundo, ao preço de uma taxa média de inflação da ordem de 20%. Essa é reconhecida, por Stiglitz e outros eminentes economistas, como perfeitamente aceitável, se derivada de forte crescimento econômico.

Caberia, ainda, nesta sucinta análise das causas da estagnação brasileira, mencionar a importante quota de responsabilidade decorrente da imobilização ideológica do Estado. Diversamente do que alegam os neoliberais, nenhuma economia é possível sem regulação do Estado. Isso ocorre amplamente em todos os países desenvolvidos, mediante inúmeras modalidades. Mencione-se, apenas, a título ilustrativo, que os Estados Unidos, a maior economia do mundo, não permitem que o capital estrangeiro controle mais do que uma parcela de 30% de seu sistema produtivo. Esse mesmo país adota, por um lado, um amplíssimo programa protecionista, que abrange tanto a imposição de quotas limitativas da importação de produtos concorrentes, como a concessão de imensos subsídios agrícolas. Por outro lado, graças a contratos do Pentágono, financia e subsidia, em nome da defesa nacional, o desenvolvimento tecnológico do país, incluindo a produção de grandes aviões, em competição com os europeus.

Vale mencionar, ainda, que a indispensabilidade da regulação estatal da economia não significa sua estatização. São inúmeras, com efeito, as necessidades dessa regulação dentro de uma economia de mercado. Considerem-se, apenas, dois aspectos: o relativo a um apropriado fluxo doméstico de inversões e o que diz respeito ao capital estrangeiro. Não procede a tese liberal de que o mercado, automaticamente, assegure uma satisfatória orientação aos fluxos financeiros. São freqüentes as condições que conduzem ao excessivo encaminhamento dos recursos disponíveis para um determinado setor, gerando superproduções e decorrentes crises. Num país como o Brasil, a preferência por aplicações meramente financeiras, em face de juros astronômicos, esteriliza uma importante parcela dos recursos nacionais, em detrimento do desenvolvimento. A intervenção regulatória e corretiva do Estado é, assim, indispensável.

É igualmente indispensável a regulação estatal do capital estrangeiro. O tema é cercado de carga ideológica, tanto no sentido negativo de demonizar o capital estrangeiro, como, positivamente, de se lhe atribuir virtudes que não tem ou omitir defeitos que apresenta. Uma abordagem objetiva da matéria requer que se distingam dois aspectos: (1) o que se refere ao saldo líquido de uma inversão estrangeira e (2) o que diz respeito à relação do capital com a tecnologia.

Quanto aos efeitos finais da inversão estrangeira, o que está em jogo é a medida em que o custo cambial da inversão, decorrente da remessa de lucros e de outras transferências para o exterior, seja satisfatoriamente compensado pelos benefícios gerados pela inversão. Inversões que trazem importante contribuição tecnológica, ou seja, as que satisfazem setores da demanda doméstica previamente dependentes de importações são positivas, as que não atendem a tais requisitos, negativas. Assim ocorre, de um modo geral, com inversões em áreas de serviços, como seguros e bancos, que podem ser plenamente atendidas por capital doméstico. O fato de não haver, no Brasil, nenhuma discriminação a esse respeito responde por uma parcela de nossa estagnação econômica.

O outro aspecto a considerar, a esse respeito, refere-se à relação entre capital e tecnologia. O principal inconveniente do capital estrangeiro é o fato de que, dependendo de importantes insumos tecnológicos, deles se abasteça exclusivamente no país de sua matriz, ou outro centro estrangeiro. Essa é uma das principais razões da falta de progresso tecnológico em países como o Brasil. As universidades e outros centros produzem boa tecnologia, mas não encontram para ela mercado. Mais uma vez, como em relação ao custo cambial, uma regulação competente do capital estrangeiro – de que carece o Brasil completamente – precisa levar em conta a medida em que a inversão seja induzida ao uso de tecnologia nacional ou, por outro lado, compense, por sua contribuição à economia do país, sua dependência de tecnologia estrangeira.

Desenvolvimento

Vistas, assim, de um modo geral, as principais causas da estagnação brasileira, importa, agora, ainda que muito sucintamente, elucidar por que necessitamos de elevadas taxas anuais de crescimento econômico. A questão apresenta um aspecto óbvio. Na medida em que um país se encontra em estado de subdesenvolvimento, em relação aos países centrais, é evidente a necessidade de que se ressinta de acelerar seu crescimento para reduzir e desejavelmente eliminar a diferença.

Nas atuais condições do mundo, entretanto, a matéria apresenta um aspecto agravante. Trata-se do fato de que o processo de globalização, exacerbado pelo unilateralismo do governo norte-americano, está reduzindo, drástica e aceleradamente, o espaço de permissibilidade internacional de que ainda gozam os países subdesenvolvidos. Estes estão se tornando, economicamente, meros segmentos indiferenciados do mercado internacional e, politicamente, províncias do Império Americano. Nessas condições, um país como o Brasil dispõe de um prazo historicamente muito curto, de não mais de vinte anos, para lograr, com autonomia, atingir, de forma sustentável, um patamar de desenvolvimento satisfatório. Se não se encaminhar, rapidamente, nessa direção, perderá, bem antes do referido prazo, sua autonomia nacional.

É importante levar em conta que o Império Americano, distintamente dos impérios históricos, do romano ao britânico, não é propriamente um império e, sim, um campo gravitacional. Os impérios históricos caracterizam-se pelo aspecto formal de seu predomínio, exercido nas províncias por um procônsul ou vice-rei, com apoio de contingentes militares e burocráticos da metrópole. O Império Americano atua como um campo, em sentido análogo ao que empregamos quando falamos de campo gravitacional ou campo magnético. Os aspectos formais da soberania das províncias são mantidos: hino, bandeira, exércitos de parada e até eleições, nos países democráticos. O poder do império é exercido, indireta mas eficazmente, por intermédio de irresistíveis constrangimentos financeiros, econômico-tecnológicos, culturais, políticos e, quando necessário, militares. Tais constrangimentos compelem os dirigentes locais, queiram ou não, a seguir a linha do império, exercida pelas multinacionais, norte-americanas ou americanizadas, que controlam a economia das províncias e, na cúpula do sistema, pelas diretrizes de Washington.

Os países europeus, apesar de seu alto nível de desenvolvimento, tiveram de se agremiar na União Européia para preservar suas identidades e destinos nacionais. Países semicontinentais, como China e Índia, logram manter individualmente sua autonomia, mas, para tanto, são compelidos a sustentar altas taxas anuais de crescimento.

O Brasil encontra-se nessa mesma situação. Para preservar sua identidade nacional e seu destino histórico necessita, ademais de outras condições, manter anualmente, por algo em torno de vinte anos, um acelerado crescimento econômico, mediante o qual possa promover seu desenvolvimento geral. Segundo uma competente estimativa feita por Goldman Sachs, no "Paper nº 99" de 1-X-63, o Brasil necessita taxas de crescimento anual superiores a 6% de 2005 a 2020, podendo, no curso das décadas seguintes, crescer a taxas ligeiramente menores até alcançar, em 2025, o PIB da Itália, em 2035, o da França e, em 2040, o da Alemanha e do Reino Unido.

Altas taxas anuais de crescimento econômico são indispensáveis, embora isoladamente insuficientes, para a promoção do desenvolvimento. Permitem a formação de excedentes suficientemente significativos para o desenvolvimento econômico, social e cultural, embora dependam de conveniente gestão política e apropriada inserção internacional.

Caso se mantenha, no último qüinqüênio da presente década, a relativa estagnação brasileira, com taxas anuais de crescimento econômico inferiores a 6%, o futuro histórico do país ficará severa e, talvez, irremediavelmente ameaçado. O Brasil defronta-se com a urgente necessidade de uma "velocidade de escape", como um foguete para lançar em órbita um satélite. Prosseguir em velocidade inferior à de escape é igual a ficar parado.

Requisitos

Como já mencionado, uma elevada taxa anual de crescimento econômico é condição necessária para o desenvolvimento brasileiro, mas, isoladamente, não é suficiente. Ademais de uma taxa anual de crescimento não inferior a 6%, durante cerca de vinte anos, o Brasil precisa dar um atendimento satisfatório a outros requisitos, tanto de ordem doméstica como internacional.

Os requisitos de ordem doméstica são, no fundamental, os três seguintes: (1) ampla e profunda renovação das instituições reguladoras da vida política do país e, decorrentemente, da classe política e dos partidos políticos; (2) substituição do atual modelo econômico de equilíbrio estático por um modelo fortemente desenvolvimentista, que assegure, de modo sustentável, um crescimento anual não inferior a 6%; e (3) prioridade para a reforma social e cultural, conducente à erradicação da ignorância e da miséria, à significativa redução das diferenças sociais e à formação de um importante setor de alta competência cultural e técnica.

Os quesitos de ordem internacional referem-se à necessidade de uma importante revisão do nosso relacionamento com o mercado financeiro internacional, de um lado, à formação de um ambiente internacional favorável à emergência do Brasil, de outro, sendo essencial, ainda, a consolidação de Mercosul e da Comunidade Sul-americana de Nações, tendo por base uma sólida, confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica do Brasil com a Argentina.

Dimensão doméstica

Reforma política

Os escândalos revelados no segundo semestre de 2005, com relação à ampla rede de ilícita apropriação e utilização de recursos públicos para fins partidários e outros, por parte de dirigentes do PT e do governo Lula, vieram trazer à tona a urgente necessidade de uma profunda reforma das instituições reguladoras do sistema político brasileiro. O país já se defronta, para o exercício do regime democrático, com o fato de que aproximadamente um terço da população, em estado de total ignorância e profunda miséria, não dispõe de condições para o desempenho das funções de cidadania. Se, a essas deficiências de base, se somarem sérias deficiências no regime regulatório das eleições e da atividade partidária, chegar-se-á a situações como a que foi revelada pelos inquéritos instituídos no período referido. O resultado é a formação, no Brasil, de uma das piores classes políticas do mundo, sendo surpreendente que, em tais condições, surjam, assim mesmo, alguns poucos homens públicos de boa qualidade.

É consenso, entre os estudiosos da questão, a necessidade de se adotar o regime eleitoral distrital, puro ou misto, de se impor a mais severa disciplina na forma de financiamento das eleições, de se estabelecer uma rigorosa exigência de fidelidade partidária e de se instituir um sistema pelo qual, se nenhum partido, numa determinada legislatura, obtiver satisfatória maioria, se constitua uma coligação partidária majoritária, dotada de programa e liderança únicos, para todo o curso da legislatura.

Nada de válido se poderá fazer no Brasil se não houver uma ampla e profunda reforma política. A Constituição de 1986 instituiu uma democracia de clientela. Dela nada se pode esperar. Importa se constituir uma efetiva democracia representativa, como condição de possibilidade para que o Brasil funcione em termos minimamente satisfatórios.

Modelo econômico

A ampla contaminação dos economistas brasileiros – e, de um modo geral, dos latino-americanos – pelo neoliberalismo anglo-saxão levou o Brasil, explicita ou implicitamente, nos últimos 25 anos, à estagnação já discutida. Nenhuma condução séria do país se pode esperar caso não se proceda, previamente, a uma ampla e profunda reforma das instituições reguladoras de nossa vida política. Nada também se poderá esperar caso não se substitua o estagnador atual modelo econômico, pelo qual temos sido regulados nos últimos 25 anos, por um novo modelo, de caráter desenvolvimentista. Não é verdade que o objetivo supremo da economia seja o equilíbrio anual das principais macrovariáveis. Para um país emergente, como o Brasil, o objetivo supremo é alcançar, sustentavelmente, uma alta taxa anual de crescimento econômico, a partir da qual se promova um acelerado desenvolvimento. O nacional-desenvolvimentismo, proposto pelo ISEB nos anos de 1950, conduziu aos êxitos do segundo governo Vargas e ao sucesso do governo Kubitschek. Trata-se, atualmente, de ajustar o projeto desenvolvimentista às novas condições do mundo. Em última análise, ocorre que a nação, com exceção de países continentais como China e Índia, se tornou um espaço insuficiente para nela se fundar, exclusivamente, um projeto de desenvolvimento. Impõe-se, para o Brasil, um novo projeto, regional-desenvolvimentista . É a partir da consolidação de Mercosul e, com base neste, da Comunidade Sulamericana de Nações, que o Brasil poderá empreender, com os demais países da região, um grande projeto de desenvolvimento. Isto requer um novo modelo econômico, que substitua o princípio do macroequilíbrio estático para uma versão dinâmica, em que o equilíbrio macroeconômico seja alcançável quadrienalmente e não anualmente, e em que se conjuguem os esforços regionais de desenvolvimento aos puramente nacionais. Para isso é crucial a aliança estratégica do Brasil com a Argentina, em termos benéficos para ambos. Nenhum dos dois países dispõe, hoje, de condições para sustentar, por si só, seu destino histórico e sua identidade nacional. Conjugadamente, eles já constituem uma significativa força internacional e tenderão a operar como consolidadores de Mercosul e da Comunidade Sulamericana de Nações.

Prioridade para o social

Mais do que subdesenvolvido, o Brasil é um país socialmente desequilibrado, e desse desequilíbrio é que decorre seu subdesenvolvimento. O desequilíbrio social brasileiro tem origem histórica. Provém do fato de que, até recentemente – até Kubitschek – o Brasil consistiu numa grande fazenda tropical, explorada, até fins do século XIX, pelo braço escravo e, a partir de então, por um campesinato miserável, sub-remunerado e deseducado. Não se tendo promovido, oportunamente, uma grande reforma agrária, crescentes massas rurais se deslocaram, a partir da década de 1970, para as grandes metrópoles, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo, nelas se estabelecendo sem condições para o exercício de um trabalho minimamente qualificado, gerando os imensos anéis de marginalidade que cercam e asfixiam nossas metrópoles. Esse perfil social, ademais de bastante injusto, é absolutamente inviável. Ou o Brasil supera a marginalidade e a incorpora à cidadania, ou a marginalidade asfixiará o país num prazo não muito grande.

O problema do desenvolvimento brasileiro, assim, não é puramente econômico, mas consiste, em essência, na criação de um desenvolvimento econômico apto a incorporar, com a possível celeridade, as grandes massas marginais a níveis toleráveis de vida e a converter seus membros em cidadãos brasileiros.

Consiste, igualmente, num outro extremo da questão, na formação de um amplo quadro de pessoas de alta qualificação cultural e tecnológica. As universidades brasileiras foram submetidas, a partir da redemocratização do país, com a Constituição de 1986, ao crescente predomínio de um "baixo clero", que promove, em nome da "democracia", a mediocrização da cultura. Se essa tendência não for oportunamente revertida, vamos criar uma nova e pior marginalidade, a dos bacharéis incompetentes. É indispensável e urgente restabelecer o princípio de excelência na vida universitária e nela criar instituições de altos estudos e pesquisa que conduzam à formação de quadros de elevada capacidade científica e tecnológica. O mundo contemporâneo é um mundo da informação e do saber, de que ficarão excluídos os que não alcançarem um bom nível nesses domínios.

Dimensão internacional

O patamar de desenvolvimento sustentável aceitável, a ser atingido pelo Brasil no curso dos próximos vinte anos, não depende apenas de medidas domésticas, mas, igualmente, do atendimento satisfatório de alguns requisitos internacionais. Como já referido, tais requisitos são principalmente de três ordens: (1) revisão da atual modalidade de nossa inserção no mercado financeiro internacional; (2) formação de um ambiente internacional favorável ao Brasil; e (3) consolidação de Mercosul e da Comunidade Sul-americana de Nações, tendo por base uma sólida, confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica com a Argentina.

Mercado internacional

Nossa atual inserção no mercado financeiro internacional requer uma ampla revisão. Reconhecidamente, nenhuma economia de mercado pode se isolar do mercado financeiro internacional. Há, todavia, várias modalidades pelas quais essa inserção possa ocorrer. A esse respeito importa, basicamente, diferenciar o tipo da inserção internacional que convém a um país plenamente desenvolvido da que convém a um país emergente. Aos desenvolvidos convém uma inserção aberta, que assegure plena liberdade às transações entre esse país e o mercado financeiro internacional. Preconizar o mesmo regime para países emergentes, como o Brasil, significa submetê-los à lógica de um mercado significativamente mais poderoso do que o doméstico, mantendo este sob o domínio daquele. Para um país emergente, que adote uma economia social de mercado, como convém ao Brasil, sua inserção no mercado financeiro internacional tem de ser seletiva, consistentemente orientada para otimizar vantagens e minimizar custos. Isto só pode ser feito submetendo-se essa inserção ao controle do Estado nacional. Há inversões estrangeiras que interessam, outras, não. Há modalidades de ingresso de capitais que são favoráveis, outros, extremamente detrimentais. O atual regime de inserção do Brasil no mercado financeiro nos é extremamente desfavorável e constitui um dos importantes fatores de nossa estagnação.

Países como China, Índia e Malásia, para citar exemplos ilustrativos, mantêm uma inserção seletiva no mercado financeiro internacional, o que, ademais de outros fatores, lhes permite altas taxas anuais de crescimento.

A indispensável regulamentação de nossa inserção no mercado financeiro internacional requer previamente uma ampla discussão técnica da questão. Trata-se de algo que tem de ser muito bem feito. Mas também de algo que suscitará grandes resistências internacionais e domésticas. Para enfrentar essas resistências, o governo precisa estar tecnicamente bem equipado e satisfatoriamente apoiado pela opinião pública doméstica, importando, para esse efeito, sua prévia preparação.

Ambiente favorável

É essencial, para países de maior dimensão, dispor de um ambiente internacional favorável. A formação desse ambiente depende, naturalmente, de muitas condições e varia conforme, em função de tais condições, determinado país considere o outro. Tratando da questão de modo geral, sem muita elaboração, pode-se reconhecer como fundamental, para esse objetivo, lograr uma favorável imagem cultural internacional. Deve-se à cultura helênica o prestígio contemporâneo e histórico da Grécia. O mesmo se pode dizer da Itália e de quanto deve ao prestigio de seu Renascimento; à França, em função da Ilustração.

Em nossos dias, é importante reconhecer como um país latino-americano – México, por exemplo – logrou, pela inteligente divulgação de sua cultura, uma imagem internacional extremamente favorável. O Brasil, cujo acervo cultural é significativo, não tem logrado o mesmo êxito, sendo conhecido, algo depreciativamente, pelo carnaval e pelo futebol, mais do que por qualquer outra de suas características.

Contudo, um aspecto mais positivo está sendo espontaneamente alcançado pela crescente difusão da música popular brasileira. Não tem preço o benefício, para sua imagem internacional, do sucesso marcante da canção "Garota de Ipanema". Não obstante esse processo espontâneo, é preciso levar em conta que a difusão de imagens culturais positivas depende, ademais das qualidades de sua cultura, da capacidade promocional de que disponha. A esse respeito, vale lembrar a enorme verba com que conta a França para a promoção de sua cultura e, na América Latina, o México, que investe na promoção cultural cerca de dez vezes mais do que o Brasil.

É significativo, a esse respeito, o fato de que a menor verba orçamentária da União se destina ao Ministério da Cultura. Ousaria dizer que cada dólar investido na promoção cultural do Brasil vale mais do que cem dólares investidos na promoção turística. De modo complementar, a melhor propaganda turística é a cultural, desde que acompanhada de convenientes facilidades logísticas.

América do Sul

O tratado de Assunção, de 1991, representa a culminação de um exitoso esforço de integração no sul do continente. Os resultados do Mercosul foram extraordinários, conduzindo à decuplicação do intercâmbio entre os signatários – algo em torno de 15% das exportações brasileiras, 30% das argentinas e 50% das paraguaias e uruguaias se destinam à sub-região.

Nos últimos anos, todavia, nota-se um significativo declínio da importância do Mercosul. Isto se deve, predominantemente, à mentalidade neoliberal que contaminou a região e conduziu o Mercosul a operar, sobretudo, como um sistema de intercâmbio de mercadorias e serviços, mais do que como um instrumento de desenvolvimento sub-regional.

Reduzido a um sistema de intercâmbio, o Mercosul sofre dos efeitos da assimetria econômica existente entre seus membros. Daí a crescente demanda de salvaguardas restritivas desse intercâmbio, notadamente por parte da Argentina, em relação ao Brasil, e de Paraguai e Uruguai, em relação a seus dois maiores vizinhos. O Mercosul não tem futuro se não voltar a ser concebido como um sistema de otimização econômica para todos os partícipes. A chave disto consiste num programa comum de industrialização.

Caso o Mercosul se consolide, haverá, sem dúvida, uma tendência à consolidação da Comunidade Sul-americana de Nações. Desta depende a formação, na América do Sul, de um sistema econômico, com seus correlatos políticos, apto a enfrentar, no curso deste incipiente século XXI, os desafios da globalização. A chave do êxito do Mercosul e da Comunidade Sul-americana de Nações é a instituição de uma sólida, confiável e reciprocamente benéfica aliança argentino-brasileira.

Constitui, atualmente, matéria de consenso verbal, entre os setores competentes do Brasil e da Argentina, a necessidade dessa aliança. Na prática, todavia, está ainda muito distante. E na medida em que isso não ocorre, os inevitáveis conflitos microeconômicos entre países que se interagem minam, seriamente, o projeto integracionista.

Nada é mais urgente para o Brasil, no plano integracional, do que passar do âmbito declaratório para o operatório a aliança argentino-brasileira. Em última análise, isto requer duas distintas ordens de providência. Por um lado, é urgente que se estabeleça, operacionalmente, um programa industrial comum. O Brasil precisa participar, ativamente, da reindustrialização da Argentina e estabelecer um programa industrial comum, com apropriada articulação das cadeias produtivas.

Por outro lado, a questão envolve uma complexa dimensão psicológica, sem o reconhecimento da qual nada se poderá fazer. Trata-se, do lado brasileiro, de reconhecer a inadequação de todas as iniciativas de auto-assumir lideranças na região. Lideranças só são possíveis por delegação deliberada dos parceiros, na medida em que reconheçam que elas lhes convenham. Lideranças auto-assumidas, como vem fazendo o Brasil, são simplesmente catastróficas. Uma ilustração disso é a pretensão brasileira a um posto permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Assumida unilateralmente, esse pretensão suscita uma inevitável oposição da Argentina. Num caso como esse, o que importa fazer é algo completamente diferente. Consiste em convidar, efetivamente, a Argentina a participar da possibilidade de ocupar esse posto e trazer o assunto para votação no âmbito da América do Sul, com a indicação de que o país, entre os dois, que vier a ser preferido, representará efetivamente o outro.

Do lado argentino, é necessário que se tome consciência de que o ressentimento, em relação ao Brasil, é algo de negativo para todos. Tal sentimento não pode subsistir, uma vez que o Brasil se submeta a um regime de consultas mútuas e opere de forma não isolada, mas por delegação de seus parceiros.

O conveniente atendimento dos requisitos operacionais de que depende a consolidação da aliança argentino-brasileira é condição sine qua non do êxito histórico de ambos os países. Essa aliança é necessária e possível. Deve-se, então, adotar as medidas adequadas para sua promoção e consolidação. Com ela ambos os países e a região como um todo poderão vislumbrar um grande destino. Sem ela, serão convertidos, a prazo relativamente curto, em povos historicamente irrelevantes.

Artigo recebido em outubro/2005

Aprovado em dezembro/2005

Helio Jaguaribe é decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes). Diplomado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), recebeu doutorados honoris causa das universidades de Mainz, RFA, de Buenos Aires e Federal da Paraíba (UFPB), por sua contribuição às ciências sociais. Foi professor visitante das universidades de Harvard, Stanford, e do M.I.T. Autor de ampla obra, publicada em diversas línguas, destacam-se, entre seusúltimos livros, Brasil, homem e mundo: reflexão na virada do século (Rio de Janeiro, Topbooks, 2000), Um estudo crítico da história (São Paulo, Paz e Terra, 2001, 2 vols.) e Brasil: alternativas e saída (São Paulo, Paz e Terra, 2002). Eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2005. E-mail: guallu@uol.com.br.

* Conferência proferida durante o 29º Encontro Anual da ANPOCS, em Caxambu-MG, em outubro de 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Fev 2006
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