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A nova ortodoxia judaica em São Paulo

RESENHAS

A nova ortodoxia judaica em São Paulo

Gabriel Bolaffi

Marta F. Topel, Jerusalém & São Paulo: a nova ortodoxia judaica em cena. Rio de Janeiro, Topbooks, 2005. 313 páginas.

Durante a sua história milenar, o judaísmo foi sempre arejado ou sacudido por inúmeros vendavais renovadores. Para não ir longe demais, lembremos o falso messias Shabtai Zvi, no século XVII, o movimento Hassídico e seus opositores (Mitnagdim), no século XVIII, e que até hoje tem seus adeptos, ou quase. O iluminismo judeu, deslanchado por Napoleão quando emancipou os judaicos na França e nos países invadidos, o judaísmo ortodoxo, reação ao iluminismo, o Sionismo e, finalmente, o judaísmo comunista, ao qual Stalin prometera uma República Judia-Soviética, para não falar no judaísmo reformado e outros menores. Como é sabido, a maioria dessas inovações foi gerada por eventos históricos alheios aos judaicos, como as Matanças de Chemielnicky (1654), o Pogrom1 1 Pogrom, nome russo dado às perseguições em massa dos judeus durante o século XIX. de Kishinev e outras manifestações de anti-semitismo.

Felizmente, no Brasil nunca houve problemas dessa ordem ou similares. Não obstante, de um par de décadas para cá, cidadãos paulistanos e de outras cidades grandes do país, principalmente em bairros de classe média alta como Higienópolis ou Jardim Paulista, em São Paulo, estão cada vez mais curiosos e intrigados. Quem são esses senhores, senhoras e crianças pálidas vestidos de preto, os homens, trajando uma túnica, com longas barbas e longos cachos nas temporas, sempre de chapéu e mulheres muitas vezes usando perucas, que andam em grupos, geralmente ao cair da noite? Os que alguns chamam de "pinguins" em virtude da túnica preta sobre a camisa branca? É o que a antropóloga Marta F. Topel, da USP, procura explicar no seu interessante livro, recém-publicado, Jerusalém & São Paulo: a nova ortodoxia judaica em cena.

Os judeus começaram a chegar no Brasil no final do século XIX e no decorrer do século seguinte; vieram das regiões mais díspares do velho mundo. Do Marrocos, vieram para Manaus e Belém; da Europa Central e da Turquia, para as grandes e pequenas cidades do centro sul, e também, em escala menor, para Recife e Salvador. Houve colonização judia organizada para colônias no interior do Rio Grande do Sul, como, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, a imigração de judeus alemães, italianos e outros que temiam o nazismo e fugiram para cá com suas famílias. Foi, portanto, uma onda migratória complexa e variada. Os judeus que aqui aportaram não falavam a mesma língua e muitas vezes nem tinham a mesma liturgia religiosa. Muitos falavam idiche, outros apenas a língua de seus países de origem. Eram observantes, mas não particulamente praticantes. Eles foram se agrupando em diferentes comunidades de origem e sinagogas distintas, mais como forma de sociabilidade comunitária do que de religiosidade.

Em São Paulo, os oriundos da Alemanha e da Europa Ocidental tenderam a agrupar-se em torno da Congregação Israelita Paulista, melhor organizada, mais liberal e universalista, ao passo que turcos, poloneses, lituanos, húngaros etc. criaram suas próprias sinagogas. O mesmo aconteceu com os judaicos de bairros, como Pinheiros, Vila Mariana e Cambucí. Mas nenhuma delas, à exceção da sinagoga Alemã, localizada na rua da Consolação, tinha cunho ortodoxo. Isso porque a própria seleção imposta pela emigração fez com que para cá viessem aqueles, senão mais assimilados ao mundo moderno, ao menos mais influenciados pelas marcas deixadas no judaismo pelo iluminismo judeu (haskalá) do século anterior. Aliás, muitos eram politizados e filiados a diversos agrupamentos sionistas de todas as matizes. A maioria era sionista de esquerda, mas também havia os de centro. Também havia comunistas, e não eram poucos. Em 1950, existiam apenas dois pequenos núcleos religiosos, um reunido em torno do rabino Walt e outro, o do Munkacher Rebe. De lá para cá, as comunidades judias de São Paulo e do Rio de Janeiro cresceram e se tornaram mais organizadas, sempre em moldes modernos. Em São Paulo, graças à expansão da Congregação Isrelita Paulista, da fundação da Hebraica, do Hospital Alberto Einstein e de inúmeras instituições menos conspícuas.

Eis que, como nos relata Marta Topel, a partir dos anos de 1960, rabinos ortodoxos provenientes de Israel e dos Estados Unidos iniciam uma campanha de proselitismo e conversão para a obsoleta ortodoxia judia. "Em 1966 começa a funcionar, em Petrópolis a yeshivá (seminário) Machané Israel, com vinte alunos, em sistema de internato". Essa iniciativa não contou com o menor apoio das instituições judias locais e provavelmente só prosperou graças aos pingues recursos com que contou. O próprio rabino Binjamini, diretor do seminário, reconheceu à autora que a recusa das famílias judias em enviar seus filhos ao seminário decorreu do receio de que o judaísmo otodoxo constituísse uma ameaça à unidade familiar e a certos valores do mundo moderno. Ainda assim, ao longo de mais de quatro décadas de atuação, centenas de meninos e adolescentes fizeram uma passagem pelo seminário, e alguns ali permaneceram até os 22 anos. Em meados dos anos de 1970, formaram-se três novos rabinos ortodoxos. Na mesma época, em São Paulo, outros rabinos, de outras filiações ortodoxas, realizaram proselitismo análogo. Atualmente há também um seminário em Cotia.

Como antropóloga, Marta Topel decidiu reconstruir essa trajetória, ancorada em uma pesquisa exaustiva, com absoluto distanciamento e isenção, o que nem sempre se poderia esperar diante de um objeto tão controvertido. A ortodoxia judaica, como aliás a maioria dos fundamentalismos, é completamente incompatível com a vida contemporânea, o que se evidencia pelos breves trechos que a autora dedica às pequenas situações de judeus convertidos ao rigor rabínico, em seu livro. É por isso mesmo que não tenho receio que tal fenômeno possa se expandir consideravelmente. Sempre haverá mecenas, como o Sr. Safra e outros, dispostos a fazer doações vultuosas para estimular a ortodoxia. Conforme a autora, o Sr. Safra costumava fazer uma contribuição anual às escolas judias leigas, na condição de que elas mantivessem na instituição um professor ortodoxo. O Sr. Safra é um judeu muito observante, mas não creio que seja ortodoxo. Provavelmente, seu mecenato decorre da crença de que a presença de judeus ortodoxos pode contribuir para a preservação do judaísmo brasileiro como um todo, fortemente ameaçado pela assimilação, por casamentos mistos e pelo caldeamento (melting pot) que caracterizam nossa cultura. Essa visão predominou nos Estados Unidos até o final da década de 1950, quando o judaísmo organizado se tornou mais e mais retrógrado. O melting pot significaria o fim inexorável do judaísmo! Passou-se, então, a se defender a tese de uma sociedade pluralista, na qual cada grupo etno-cultural teria seu lugar assegurado.

Os capítulos 5, "Jugo dos mandamentos (Mitzvot)", e 6, "Múltiplos desafios enfrentados pelas judias convertidas à ortodoxia", merecem atenção especial. O jugo dos mandamentos é pesado, e seu aprendizado, terrível. É preciso praticar 613 preceitos, dos quais 365 (como os dias do ano) são negativos e 248 (correspondentes à noção que um rabino do passado tinha das partes do corpo humano), positivos. Some-se a isso o que os judeus chamam de "muralhas adicionais" (gader), isto é, normas para garantir que nenhum dos mandamentos básicos seja infringido. É regra pra ninguém botar defeito! Quanto às mulheres convertidas, além de uma interessante discussão sobre o papel subalterno da mulher no judaísmo, aliás como em todas as demais religiões, Marta Topel fornece um quadro comovente sobre como a feminilidade consegue se expressar, às vezes até com alguma faceirice em circunstâncias tão plúmbeas.

Pessoalmente acho que os judeus ortodoxos são nocivos à sociedade, entre outras razões, por que não trabalham. Dedicam todo o seu tempo ao estudo das escrituras e de suas interpretações. Alguns, com com um pouco de neurônios a mais, reinterpretam velhas interpretações já interpretadas. São sustentados por doações de judeus pouco religiosos que talvez esperem obter alguma indulgência à moda do Papa Julio 2º. Quando essas doações não bastam, os prosélitos são despachados para Israel, onde viverão às custas do Estado.

De um tema complexo, controvertido e muito atual, Marta Topel produziu uma uma bela obra.

Notas

GABRIEL BOLAFFI é sociólogo, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

  • 1
    Pogrom, nome russo dado às perseguições em massa dos judeus durante o século XIX.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2006
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