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Relacionamentos inter-raciais: entre a razão e o desejo

RESENHAS

Relacionamentos inter-raciais: entre a razão e o desejo

Márcia Lima

Laura Moutinho, Razão, "cor" e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivos-sexuais "inter-raciais" no Brasil e na África do Sul. São Paulo, Editora da Unesp, 2004. 452 páginas.

O Brasil é um país de mestiços. Frase clássica para simplificar o Brasil nos quatro cantos do mundo. Entretanto, nossa mestiçagem está longe de ser simples. Pelo contrário, tem sido motivo de muitos debates acerca de seu significado e suas conseqüências sociais e políticas para o entendimento da sociedade brasileira.

Mas como surgem os mestiços? Qual a representação construída na sociedade brasileira acerca do processo da mestiçagem? Como esse processo está articulado a diversos outros aspectos normativos e afetivos. Qual a especificidade do caso brasileiro?

A tese de que o entendimento das relações raciais no Brasil se dá a partir de contextos específicos tem se tornado cada vez mais difundida entre os estudiosos. Nesse sentido, o mercado afetivo é reconhecidamente um dos espaços mais preconceituosos das relações raciais brasileiras. Como um país que canta em verso e prosa sua mestiçagem é rígido em relação às relações inter-raciais? Qual a representação na historiografia, na literatura e na sociologia clássica brasileiras acerca do processo de miscigenação e do casal miscigenador? Como se vêem e se pensam os casais inter-raciais nos dias de hoje? Como que uma sociedade que se constitui pela oposição legal à miscigenação, como a África do Sul, nos ajuda a entender melhor o Brasil? Essas são algumas das múltiplas indagações que construíram a tese de doutorado de Laura Moutinho e que precisavam ser aprofundadas no debate sobre o tema.

O problema proposto pela autora não é dos menores, e para tanto foi fundamental seu trabalho hercúleo. Logo na "Introdução" é possível ao leitor perceber a magnitude de seu esforço intelectual e de pesquisa. A autora debruça-se em dados estatísticos, nas peças teatrais, na literatura e em textos acadêmicos, procurando apreender e reconstituir a forma como a mestiçagem tem sido sintetizada no Brasil. No decorrer do texto, o leitor é constantemente surpreendido com diversas desconstruções que informam o imaginário social acerca da mestiçagem.

O primeiro impacto advém dos dados estatísticos, que mostram que o Brasil se organiza de forma homogâmica em relação a diversos aspectos, inclusive à cor (capítulo 1). Além de ter uma endogamia racial significativa, o padrão mais comum das uniões inter-raciais é de homens mais escuros com mulheres mais claras. Portanto, a representação clássica de mestiçagem construída em torno da mulher negra ou mulata não se baseia em dados. A autora é cuidadosa na leitura dos trabalhos estatísticos de Nelson do Valle Silva, Elza Berquó e Celi Scalon, procurando a partir deles elaborar um série de questões que serão aprofundadas no decorrer do texto. A forma como esse primeiro problema é construído, tendo por base uma pesquisa quantitativa, acena para o diálogo muito profícuo nas ciências sociais que diz respeito à análise desses diferentes níveis de observação para o entendimento das relações raciais.

Nos três capítulos seguintes Laura Moutinho nos conduz a uma viagem pelas mais diversas representações acerca da mestiçagem. Mobilizando fontes variadas, ela traz a questão discutida no primeiro capítulo à luz de outros problemas, elaborados a partir de distintas fontes. O ponto fundamental que perpassa esses capítulos, mesmo que, em cada um deles, seja apresentado de forma diferenciada, é o erotismo. Quando discute os clássicos da historiografia brasileira (capítulo 2), o erotismo encontra-se na natureza, na lubricidade do casal miscigenador. Neste caso, observa-se certa articulação importante entre raça e gênero, isto é, seja na mestiçagem positiva (a que viabiliza a nação), seja na negativa (a que corrompe o caráter nacional), o casal misicigenador é constituído pelo branco português com a mulata, a negra ou a indígena. Não existe possibilidade do homem negro ocupar esta esfera – seu lugar é o mundo do trabalho. A mulher branca, desqualificada do ponto de visto erótico e estético, somente tem lugar no parentesco formal.

O erotismo ganha uma outra roupagem – desta vez extremamente dramática – nos romances literários e na peças teatrais, analisados no capítulo 3. Interessante como as representações sociais ausentes da historiografia aparecem de forma contundente na literatura clássica – o casal, homem negro e mulher branca, aparece pela primeira vez erotizado. Contudo, de um lado, o homem é acusado de querer ascender socialmente e, de outro, a mulher nesta situação deveria estar certamente desqualificada no mercado matrimonial. A marca de tragédia perpassa a maior parte das relações inter-raciais analisadas (com mortes, assassinatos e suicídios), assim como o fato de a mestiçagem, o casamento e o sexo inter-racial serem tematizados sem que haja menção à procriação. Na literatura, para os casais inter-raciais que estabelecem relações sexuais, formais ou não, a possibilidade de ter filhos não se realiza: os filhos não são mencionados, são abortados (de modo natural ou induzido), revelam uma relação platônica, ou então, quando existem, são assassinados pela mãe.

No capítulo 4, o erotismo contrapõe-se à razão, sintetizados nas noções de classe, status, prestígio e ascensão – objetos tradicionais da análise sociológica. Analisando alguns autores clássicos, como Donald Pierson, Florestan Fernandes, Carl Degler, Roger Bastide, a autora discute como as noções de raça e gênero são representações organizadas com base em certas estruturas de prestígio e status, que dão sentido às idéias de mestiçagem, racismo e nação veiculada por esses autores, ainda que apareçam de forma diferenciada em cada uma delas.

No capítulo 5, Moutinho vai a campo e fornece ao leitor o relato de pessoas que vivem relacionamentos afetivos-sexuais inter-raciais. Este capítulo contribui para a compreensão de questões bastante desafiadoras nos estudos das relações raciais no Brasil. Entre outras, gostaria de destacar a complexidade da classificação racial entre os casais estudados e as "zonas de sombra e silêncio" que os estudiosos do tema no Brasil precisam enfrentar. Ao cruzar cor, afeto e prazer, a articulação entre raça e status torna-se mais complexa, combinando distinções sutis e diversas. A autora mostra narrativas em que sobressai o tema do retraimento, do constrangimento e até mesmo da auto-exclusão, talvez uma das formas mais perversas de atuação do racismo. Das falas das entrevistadas infere-se a opacidade do homem branco no campo do erotismo. Para a autora isto mostra, em parte, a força de seu lugar de poder e dominação na esfera cotidiana e normativa, que, entretanto, se modifica quando o eixo é deslocado para a esfera do erotismo. Destaca-se, entretanto, que essas duas esferas não são distintas e sem correlação. É justamente a partir da presença do erotismo no homem negro aliada às mudanças nos padrões de sexo e casamento das últimas décadas (que possibilitaram às mulheres um papel ativo nesse campo) que essas esferas aparecem nas análises estatísticas. Ou seja, o destaque na esfera do erotismo tem correlação com o processo de miscigenação brasileiro, observado não somente pela relação do homem branco com a mulata, mas, como mostram os dados estatísticos, pelo homem negro com a mulher branca.

No último capítulo, a experiência sul-africana coroa o trabalho ao propiciar ao leitor o contato com uma realidade pouco estudada no Brasil e ao demonstrar como processos a princípio "opostos" possuem aproximações possíveis, mais difíceis de ocorrer, de fato, na trajetória da relação inter-racial nos Estados Unidos. A comparação ilumina o processo em ambos os países. Brasil e África do Sul, não obstante as diferenças mais evidentes, têm em comum o reconhecimento da existência do mestiço e o fato de operarem com a idéia de aparência, origem e convívio de modo (às vezes surpreendentemente) similar. É interessante como o erotismo também aparece em lugar de destaque na África do Sul. Também neste caso o desejo sexual "inter-racial" funda a nação, mas diferentemente do Brasil, que o faz de modo afirmativo (na relação homem branco e mulher negra, mestiça ou indígena), ao contrário da África do Sul, onde esse desejo aparece pela sua negação.

A abrangência da análise empreendida em Razão, "cor" e desejo e a discussão aqui resumida fazem jus ao prêmio recebido pela obra na edição de 2003 do Concurso Edusc-Anpocs. De toda maneira, creio que foi o leitor quem mais ganhou com esta publicação.

MÁRCIA LIMA é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Fev 2006
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