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Um debate em aberto: centralizadores e federalistas na construção do Estado-nação no Brasil

RESENHAS

Um debate em aberto: centralizadores e federalistas na construção do Estado-nação no Brasil

Gabriela Nunes Ferreira

COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil - 1823-1866. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Editora da UFMG/Iuperj, 2008. 432 páginas.

Partindo da figura do político conservador Paulino José Soares de Souza,Visconde do Uruguai, Ivo Coser se debruça sobre um debate fundamental no Brasil do século XIX: a polêmica entre centralizadores e federalistas. Fruto de uma tese de doutorado premiada pelo Iuperj, Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil - 1823-1866 aborda o tema de forma profunda e direta. De saída, Coser identifica bem o ponto crucial do debate acerca do tipo de Estado que se almejava construir: a estrutura judiciária. Tomando essa questão como eixo principal, conduz o leitor através dos embates decisivos entre centralizadores e federalistas, desde a constituinte de 1823 até meados da década de 1860. Paulino José Soares de Souza, político fluminense que iniciou a carreira na década de 1830, aparece em primeiro plano nesses vários momentos por meio de seus escritos e discursos, como presidente da província do Rio de Janeiro, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, deputado, senador, conselheiro de Estado, autor de obras de fôlego. Inspirado pela "história dos conceitos" de Koselleck, Coser demonstra preocupação em entender o sentido, o conteúdo das palavras utilizadas no debate político da época, tanto nacional como internacional.

Ao construir sua argumentação, o autor posiciona-se no debate com outras interpretações importantes sobre a querela entre centralizadores e federalistas e sobre a própria figura do Visconde do Uruguai. Desde o início, coloca-se contra as análises de Evaldo Cabral de Mello e de Raymundo Faoro. De Faoro, afasta a idéia do Estado patrimonial como opressor da sociedade e do regresso conservador como um dos momentos de maior domínio do "estamento burocrático". Igualmente rechaçada é a crítica de Evaldo Cabral de Mello à chamada "tradição saquarema" na historiografia sobre a formação do Estado brasileiro.

Segundo Mello, de fato, a unidade do Brasil seria percebida por essa tradição como fruto da ação de alguns indivíduos "dotados de grande descortínio político, que tiveram a felicidade de nascer no triângulo Rio-São Paulo-Minas e a quem a pátria ficou devendo o haverem-na salvo dos interesses provinciais, como se estes fossem por definição ilegítimos, e do gosto, digamos ibero-americano, pela turbulência e agitação estéreis, como se Eusébio, Paulino ou Rodrigues Torres não fossem representantes de reivindicações tão regionais quanto as de Pernambuco, do Rio Grande do Sul ou do Pará" (Mello, 2001, p. 16). Coser contesta a tese do autor pernambucano de que a política unitária seria, no fundo, a expressão de interesses regionais, tanto quanto as demandas dos federalistas.

Por outro lado, as interpretações de autores como José Murilo de Carvalho, Luiz Werneck Vianna e Maria Alice Rezende de Carvalho são retomadas pelo autor e incorporadas em vários aspectos. De José Murilo de Carvalho, por exemplo, Coser retoma a idéia de que o Visconde do Uruguai conceberia o Estado centralizado como "pedagogo da liberdade" e instrumento de civilização.

Na interpretação de Carvalho (1998, 2002), com efeito, o Visconde estaria situado entre os "liberais conservadores", concebendo o Estado centralizado como um instrumento para atingir seu fim último: a instituição de uma sociedade e de um Estado liberais, com a garantia generalizada dos direitos civis da população e a expansão progressiva de sua participação na vida política. Paulino de Souza seria, assim, um "autoritário instrumental", no sentido colocado por Wanderley Guilherme dos Santos (1978).

O papel civilizatório do Estado centralizado é também ressaltado por Luiz Werneck Vianna - que assina o prefácio do livro de Coser - e Maria Alice Rezende de Carvalho (2002): mesmo limitada pela dependência em relação ao poder privado e por uma ordem social patrimonialista, a ação do centro teria um caráter civilizatório, guiado pelo objetivo de impor a ordem racional-legal e a precedência do interesse público sobre os interesses particulares. A ação do centro, pode-se dizer, assumiria assim um sentido republicano.

Coser não aplica a idéia de "autoritarismo instrumental" ao pensamento do Visconde do Uruguai, porque acredita que o modelo político defendido por ele na teoria e na prática pressupunha uma tutela permanente sobre os cidadãos; além disso, não acusa os liberais de "idealismo utópico" em contraposição ao realismo dos conservadores, reconhecendo que não havia um desdém pelas circunstâncias por nenhuma das partes, apenas a escolha de modelos diferentes de Estado. Já a idéia da defesa, por parte dos centralizadores, de um "estado civilizador", garantidor dos interesses gerais contra os interesses provinciais e particulares, constitui o cerne da sua tese.

Desde a introdução, Ivo Coser apresenta a dicotomia fundamental que o guiará na sua análise: "A chave de leitura para entendermos o pensamento político do Visconde do Uruguai e o debate entre centralizadores e federalistas reside na maneira pela qual estas correntes pensam a questão do interesse provincial e dos interesses particulares, de um lado, e, de outro, a vontade nacional e o interesse geral" (p. 25). Essa dicotomia, conforme o próprio autor assinala, remete ao discurso do Visconde do Uruguai, que na década de 1840 contrapusera os "interesses meramente provinciais" à "vontade nacional".

Ao refazer o percurso do debate entre federalistas e centralizadores nessas quatro décadas do século XIX, Coser procura mostrar como a idéia de "interesse" sobrepujou a de "liberdade" no discurso dos federalistas. O Ato Adicional, de 1834, teria marcado nesse sentido um recuo do federalismo, ao esvaziá-lo dos princípios democráticos norteadores do Código do Processo Criminal de 1832. Se, naquela ocasião, a descentralização do aparelho judiciário privilegiara o exercício da liberdade política do cidadão ativo na esfera municipal, esse aspecto republicano teria sido extirpado na reforma constitucional de 1834. Os federalistas, a partir de então, concentrariam sua luta na defesa do interesse provincial, em detrimento da liberdade municipal. A noção tocquevilliana de "interesse bem compreendido" não corresponderia mais a suas prioridades.

O arranjo federativo proposto pelos liberais moderados, então, seria marcado pela competição entre as províncias, cada qual buscando seu interesse auto-referido. O Estado-nação seria moldado, para essa corrente, a partir da dinâmica competitiva entre interesses provinciais. Para os centralizadores, ao contrário, o interesse nacional não poderia se reduzir à soma dos interesses provinciais. O Estado-nação só poderia ser construído a partir da ação intencional de um centro comum, capaz de se sobrepor aos interesses particulares das províncias, constituindo um aparelho público capaz de assegurar a paz interna e a unidade nacional. Esse aparelho público - no qual a estrutura judiciária era um ponto crucial - exerceria um papel civilizador, garantindo os direitos civis da população contra o poder dos grandes proprietários e levando a ordem às classes subalternas. O Visconde do Uruguai seria um dos principais representantes dessa corrente que vinculava a centralização do Estado à garantia dos direitos dos cidadãos, tomando como instrumento uma estrutura judiciária composta em boa parte por funcionários vinculados ao Estado central, imunes à influência das facções locais e portadores do "princípio da impessoalidade".

Coser parece ter feito, desde o início de seu livro, uma escolha metodológica que consiste em tomar como categorias analíticas de seu trabalho as categorias construídas pelo seu próprio objeto. Ao reconstruir o debate entre centralizadores e federalistas, baseia sua análise nos argumentos e conceitos utilizados pelos contendores - em especial o Visconde do Uruguai. Essa escolha traz consigo vantagens e desvantagens. De um lado, permite-lhe conduzir o leitor para dentro do debate em suas várias fases, com um notável cuidado conceitual. A posição assumida por Uruguai, como autor e agente político, sobre cada um dos pontos polêmicos - especialmente as sucessivas reformas da estrutura judiciária - é minuciosamente acompanhada. O capítulo sobre o binômio conceitual civilização/sertão, mobilizado na discussão sobre a heterogeneidade social brasileira, é especialmente interessante desse ponto de vista. Essa estratégia tem o mérito, além disso, de minimizar o risco de anacronismos na análise do debate.

Essa escolha metodológica, entretanto, não deixa de ter seus limites. Ao tomar como categoria central de sua análise a dicotomia - construída pelos próprios defensores da centralização - entre interesses provinciais e interesses particulares de um lado, e vontade nacional e interesse geral, de outro, o autor acaba por deixar pouco espaço para uma visão mais distanciada do debate acerca da organização do Estado. Mesmo que ele recuse, na introdução do trabalho, a idéia de que o federalismo deva ser tomado como antinacional, a própria abordagem metodológica do autor conduz quase naturalmente a essa direção. No entanto, parece pouco justo associar os defensores do federalismo, em seus vários matizes, à defesa de interesses "meramente provinciais" como se isto, por definição, excluísse a consideração, da parte deles, do interesse geral ou nacional em termos mais substantivos.

Desde a introdução, o autor explicita sua própria posição no debate entre centralizadores e federalistas. Contrapondo-se à abordagem de Raymundo Faoro, afirma: "na nossa perspectiva, o pensamento conservador buscou implementar um aparelho judiciário capaz de assegurar a paz interna, fato que implicava submeter os cargos do judiciário ao princípio da impessoalidade e ao vínculo para com o Estado e não aos grupos locais, envolvidos na luta política. Expandir a capacidade reguladora do Estado implicava garantir direitos e deveres do cidadão"(p. 25).

Mesmo que não se concorde com a argumentação de Evaldo Cabral de Mello, com o grande peso dado por ele aos fatores regionais, seu ponto de vista chama a atenção para "quem" é o Estado, qual o seu enraizamento social e, mais particularmente, quais seriam os interesses concretos engajados no fortalecimento do poder central. A perspectiva adotada por Coser, muito colada à argumentação dos centralizadores, não dá recur-sos para responder a essa questão. Tampouco permite o recuo necessário para um questionamento dos conceitos e argumentos usados pelos defensores da centralização, de certa forma naturalizando a oposição entre um Estado movido pelo "princípio da impessoalidade" e os interesses locais "envolvidos na luta política" - operação que, no limite, desloca o Estado da esfera da política. No fundo, pode-se questionar até que ponto o autor não reproduz, com o sinal invertido, o mesmo pressuposto que ele atribui a Faoro: a cisão entre Estado e sociedade.

De qualquer modo, Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil é uma referência importante para quem quiser fazer um mergulho profundo nesse debate fundamental do século XIX no Brasil, envolvendo centralizadores e federalistas: um debate, ainda em aberto, sobre a própria formação do Estado-nação brasileiro.

Bibliografia

GABRIELA NUNES FERREIRA é professora de Ciência Política do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo - Campus Guarulhos e pesquisadora do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). Email: gabinf@uol.com.br.

  • CARVALHO, José Murilo de. (1998), "Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento, in ______, Pontos e bordados: escritos de história e política, Belo Horizonte, Editora da UFMG.
  • ______. (2002), "Entre a autoridade e a liberdade, in ______ (org.), Visconde do Uruguai, São Paulo, Editora 34.
  • FAORO, Raymundo. (2001), Os donos do poder: formação do patronato político brasileiroSão Paulo, Globo.
  • MELLO, Evaldo Cabral de. (2001), "Frei Caneca ou a outra independência", in ______ (org.), Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, São Paulo, Editora 34.
  • SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1978), Ordem burguesa e liberalismo político São Paulo, Duas Cidades.
  • VIANNA, Luiz Werneck & CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (2002). "República e civilização brasileira", in Newton Bignotto (org.), Pensar a República, Belo Horizonte, Editora da UFMG.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009
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