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As muitas famílias do pensamento político brasileiro

RESENHAS

As muitas famílias do pensamento político brasileiro

Fabio Gentile

BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo, Hucitec, 2007. 220 páginas.

No debate brasileiro dos últimos anos, Linhagens do pensamento político brasileiro ocupa espaço inquestionavelmente importante. Por sua originalidade e novidade, bem como pela sofisticada construção analítica e metodológica em que se apóia, trata-se de um livro que estabelece um novo parâmetro para que se compreendam aqueles que têm pensado o Brasil.

Um de seus principais pressupostos é de que a partir dos anos de 1970 a ciência política brasileira, ao se propor a revisitar as principais etapas da história intelectual do país desde 1930, produziu boa quantidade de estudos respeitáveis, seja em termos de inovação científica, seja em termos dos resultados obtidos. Apesar disso, afirma Brandão, o problema atual da ciência política brasileira é encontrar um terreno comum de diálogo e de confronto entre essas novas interpretações, assim como o de propiciar um confronto geracional entre elas e os "clássicos" do pensamento brasileiro, com o objetivo de analisar numa perspectiva de longa duração o rápido e contraditório desenvolvimento de um país late comer do capitalismo, como o Brasil, dando atenção específica às relações criadas ao longo do tempo entre a ampla e variada produção cultural e a formação da "identidade nacional brasileira".

Posta a questão dessa maneira, Linhagens do pensamento político brasileiro mostra-se à altura do desafio. Sustentado por um profundo conhecimento da produção das principais correntes teóricas e políticas, é um livro aberto e instigante, que não se destina a formular teorias indiscutíveis em termos teóricos, nem tem soluções definitivas ou propostas de fácil leitura do pensamento político no Brasil.

Consciente de que a matéria é complexa, problemática e exige uma abordagem multidisciplinar, o pesquisador propõe uma original hipótese de investigação para articular dialeticamente as principais famílias do pensamento brasileiro e, ao mesmo tempo, traduzir - é importante sublinhar esse aspecto - a reflexão teórica numa proposta política capaz de ler criticamente as complexas transformações econômicas e sociopolíticas do Brasil contemporâneo. A inspiração, aqui, vem do marxismo de Antonio Gramsci.

Nas primeiras páginas, fica desde logo claro que o autor não se dirige exclusivamente a um público acadêmico de especialistas eruditos. Sua intenção deliberada é ser um work in progress, que, de um lado, conclui longo processo de reflexão teórica sobre o pensamento brasileiro, mas, de outro, pretende ser o ponto de partida de um projeto de investigação aberto sobretudo às novas gerações de estudiosos e sensível às exigências teóricas e metodológicas provenientes dos múltiplos campos do conhecimento filosófico, teórico-político, históricoliterário e sociológico. Pretende construir um quadro orgânico para inserir as múltiplas famílias que compõem a cultura política brasileira ao longo do tempo, sem descurar do diálogo fecundo com a cultura européia e norte-americana, o que, de resto, sempre foi um ponto de referência importante no trabalho intelectual de Brandão.

Fora de esquemas historicistas e idealistas que terminam por separar a história da filosofia e claramente distante de rígidas taxonomias sociopolitológicas, Brandão quer reviver os clássicos do pensamento brasileiro em uma perspectiva de longa duração, ressaltando afinidades e distinções entre pensadores de diferentes períodos. Nessa linha enquadra-se o pressuposto metodológico e analítico dedicado a investigar as principais famílias intelectuais brasileiras - das quais o estudioso analisa a gênese e as características principais - a partir da sugestão feita por Oliveira Viana, que identifica no caminho do pensamento brasileiro do século XX duas grandes linhas teóricas: o "idealismo orgânico" e o "idealismo constitucional".

Consciente de que o quadro fica mais articulado nos anos de 1950 com a afirmação do "marxismo de matriz comunista" e do "pensamento radical de classe média" surpreendido por Antônio Candido, Brandão se pergunta de que modo os dois conceitos desenvolvidos por Viana podem ser a base para que se compreendam em um quadro orgânico as estruturas intelectuais e as categorias teóricas "com base nas quais a realidade é percebida, a experiência prática elaborada e a ação política organizada". O núcleo do trabalho, em suma, concentra-se em mapear as "formas de pensar" que, ao longo do tempo, "se cristalizam historicamente como a priori analíticos, e ver como se articulam com a perspectiva política mobilizada" (p. 30).

Delineado o campo metodológico e analítico na introdução e no primeiro capítulo, o pesquisador dedica o segundo capítulo ao que denomina de "programa de pesquisa conservador", ou seja, a proposta política desenvolvida por Oliveira Viana em alguns textos fundamentais como Populações meridionais do Brasil (1920), O idealismo da constituição (1922), Evolução do povo brasileiro (1922), O ocaso do Império (1925) e Instituições políticas brasileiras (1949).

O pensamento de Oliveira Viana emerge da análise com nova luz intelectual. Brandão não se limita a reconhecer sua importância no campo dos estudos sociológicos brasileiros da primeira metade do século XX ou como um dos principais teóricos do "Estado Novo" de Getúlio Vargas. Seu projeto político - voltado para a construção de um Estado forte de matriz corporativa, capaz de conciliar a liberdade e a nação em um quadro autoritário - estende-se para além daquele período, já que aborda uma série de problemas com os quais ainda se dialoga no Brasil do início do século XXI: o papel do Estado como educador das massas, a crise da democracia representativa, a persistência dos setores corporativos nos processos de modernização e de burocratização.

Nessa perspectiva de análise, seria muito interessante comparar Oliveira Viana com outros pensadores que, fora do Brasil, buscaram o Estado forte como resposta para a crise da democracia liberal e para as contradições da sociedade de massas entre o século XIX e início do século XX. Pensamos em particular no jurista Alfredo Rocco, teórico do Estado fascista italiano e artífice em 1926 da lei sobre a disciplina das relações de trabalho, depois transformada na Carta del lavoro (1927), que imaginava reunir as partes sociais em corporações concebidas como órgãos do Estado dedicados a garantir a colaboração entre os diversos setores produtivos.

O terceiro capítulo volta-se para o pensamento político de Oliveiros S. Ferreira, sugestivamente apresentado como um "revolucionário da ordem". Fiel à própria proposta de comparar pensadores distintos entre si, Brandão põe em confronto o pensamento de Ferreira e de Viana, mostrando que os dois pensadores têm muitas afinidades eletivas, a começar pela idéia de que o Brasil tem uma dificuldade estrutural para afirmar uma democracia liberal e construir uma identidade nacional. São afinidades que, no entanto, precisam ser contextualizadas. Com os anos de 1950, assiste-se a um redimensionamento do idealismo orgânico, no mesmo passo em que se afirma uma nova geração de historiadores que se inspiram no liberalismo e no marxismo. Por exemplo, Formação econômica do Brasil (1954), de Celso Furtado, ou Os donos do poder (1958), de Raimundo Faoro.

Nessa perspectiva, a complexa figura intelectual de Oliveiros Ferreira torna-se um laboratório privilegiado para refletir sobre as grandes transformações culturais das décadas de 1950 e 1960. Em seu pensamento, dá-se um afastamento do positivismo evolucionista em direção ao marxismo, cujo conhecimento profundo lhe fornece os instrumentos críticos para analisar a luta de classes nos anos de 1960, o problema do subdesenvolvimento no Terceiro Mundo no contexto do neo-imperialismo, a situação da América Latina.

Por que o pensamento de Ferreira ainda é relevante? A resposta de Brandão baseia-se em dois argumentos fundamentais.

Embora tendo uma visão do mundo radicalmente distinta, Brandão compartilha com Oliveiros Ferreira "a comum atração pelo marxismo e pelo pensamento de Antonio Gramsci" (p. 109), na convicção de que nenhuma teoria política pode ser válida se não incluir uma proposta de mudança na sociedade. O segundo argumento é metodológico: "consiste na comum rejeição ao mainstream da ciência política, este que parece negar o que a tradição intelectual uspiana tinha de melhor: a recusa em tomar a política separada da história, da sociologia e da cultura, e o modo de pensar a relação entre os projetos intelectuais e a vida pública" (p. 109).

A fusão entre teoria política e construção de uma proposta de transformação da realidade é o pressuposto da segunda parte do livro. Os problemas levantados pelo autor são múltiplos: a relação entre o trabalho acadêmico e as rápidas transformações da sociedade globalizada, a individuação de estruturas não necessariamente ligadas à academia, que têm uma função de laboratório teórico-político. Quais seriam então as propostas?

A resposta já está contida nos pressupostos de Linhagens: "um debate multiforme sobre a identidade do Brasil contemporâneo, cuja sede natural pode ser o Cedec, centro propulsor deste projeto, que nasceu com uma identidade da esquerda para se ligar à questão de "porque" e do "como" pensar o Brasil" (p. 139).

No entanto, é óbvio que a comparação não se circunscreve somente ao Cedec, mas deve ser estendida a todas as forças intelectuais que há algum tempo estão questionando a relação entre democracia, capitalismo e globalização, entre democratização e desenvolvimento. Ao mesmo tempo, não pode limitar-se ao Brasil, mas deve alcançar os outros países da América Latina, na convicção de que a ciência política deve avançar em direção à internacionalização de seus próprios resultados.

Em conclusão, podemos dizer que Linhagens não propõe nenhuma panacéia para resolver os problemas do Brasil nem um modelo de classificação dos fatos sociais e políticos. No panorama politológico brasileiro, distingue-se pela novidade e pela originalidade, corroborada por uma compreensão sofisticada da literatura científica e por uma capacidade incomum de estabelecer relações entre clássicos de diferentes períodos, impulsionando uma reflexão aberta a todos aqueles que, partindo da idéia de que a democracia é uma conquista cotidiana, interrogam-se criticamente sobre as transformações da sociedade com um todo.

FABIO GENTILE é bolsista de pós-doutorado no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). E-mail: fabiogentile2003@yahoo.it

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009
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