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As origens e consequências da judicialização da política

RESENHAS

As origens e consequências da judicialização da política

Maria Rita Loureiro

Ran Hirschl. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitucionalism. Cambridge, MA, Harvard University Press, 2007. 296 páginas.

Em momento como o que vivemos hoje no Brasil, quando importantes questões políticas são decididas por juízes do Supremo Tribunal Federal, o livro de Ran Hirschl, professor de ciência política e de direito da Universidade de Toronto, é de enorme interesse e atualidade.

Analisando a transferência de poder das instituições representativas para as judiciárias, o autor indica que o fenômeno que ele denomina "juristocracia" é tendência hoje crescente no mundo globalizado, estendendo-se do Leste Europeu à América Latina e incluindo sistemas de clara tradição institucional fundada na soberania parlamentar, ou no chamado modelo de Westminister, como Canadá, Israel, Nova Zelândia e África do Sul.

A expansão do modelo norte-americano, que atribui a juízes de cortes constitucionais o poder de decidir conflitos políticos e assuntos públicos, fundamenta-se na hoje quase sagrada crença na legitimidade de se garantir direitos pela via judicial, mesmo contrapondo-se ao poder político emanado dos parlamentos. Nesse modelo constitucional, a democracia não significa regra da maioria, nem se funda no princípio da soberania parlamentar; ao contrário, dá às minorias proteção legal na forma de

uma constituição escrita que não pode ser mudada nem mesmo por uma assembleia eleita. Ou seja, um conjunto de direitos básicos e de liberdades civis é parte da lei fundamental, e juízes protegidos contra pressões da política partidária são os responsáveis por sua garantia.

Embora a garantia constitucional de direitos básicos e a proteção de minorias sejam princípios normativos desejáveis de uma ordem democrática, o trabalho do professor Ran Hirschl é inovador porque mostra outra face desse processo político. Criticando o paroquialismo dos estudiosos norte-americanos (que supõem a excelência do modelo de democracia constitucional desenhado nos Estados Unidos no século XVIII) e lamentando a ausência de pesquisas empíricas que examinem, para além da retórica, as origens e as consequências do processo crescente de judicialização da política, o autor se propõe a analisar experiências concretas em quatro países que nas últimas décadas realizaram o que ele chama "revolução constitucional": Canadá, Nova Zelândia, Israel e África do Sul.

Em 1982, o Canadá promulgou o Constitucional Act, incluindo uma Carta de Direitos e Liberdades e estabelecendo restrições formais ao poder Legislativo do parlamento. Em 1992, a democracia da Nova Zelândia, considerada, até os anos de 1980, o mais perfeito exemplo do modelo de Westminster, foi modificada com a introdução da Carta de Direitos que marcou uma abrupta mudança no equilíbrio entre os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Também neste mesmo ano, a burguesia secular Ashkenazi, de Israel, que sempre rejeitou a constitucionalização de direitos enquanto dominava a política do país, acabou mudando de atitude com relação à revisão judicial e acolheu a constitucionalização de duas leis de direitos civis e liberdades e uma emenda à Lei Básica reguladora do governo. Por fim, a África do Sul promulgou em 1996 uma Constituição que apresentava traços inéditos na história constitucional do país, estabelecendo supremacia constitucional e uma Carta de Direitos soberana, ou seja, tornando inválidos os atos do Legislativo ou do Executivo que forem considerados violadores dos direitos humanos fundamentais.

Diante desse quadro, o autor se propõe a responder a três perguntas. Quais as origens da constitucionalização dos direitos e do estabelecimento da revisão judicial, ou seja, esse processo representa um genuíno avanço democrático ou é um meio de solucionar disputas políticas já existentes? Qual é seu real impacto sobre as noções de justiça distributiva? Quais as consequências políticas de se dar poder a juízes através da constitucionalização e quais são suas implicações para os governos democráticos do século XXI?

Para explicar as origens da substituição do modelo de democracia fundado na soberania parlamentar pelo modelo constitucional, Hirschl desenvolve a tese da preservação de hegemonia por parte das elites políticas dominantes. Assim, ele mostra que nos quatro países analisados esse processo ocorreu quando as elites então dominantes sentiram que o controle que exerciam sobre as arenas parlamentares estava ameaçado pela emergência de novos partidos representando novas forças políticas. Mudanças na ordem econômica também ajudam a explicar a transferência intencional de poder para o Judiciário por parte de elites políticas ameaçadas, mas ainda dominantes: esse processo tem sido amplamente apoiado por grupos econômicos liberais que veem na constitucionalização de direitos um meio de impulsionar a desregulamentação da economia, além de, obviamente, promover os próprios membros das altas cortes que vislumbram aí a possibilidade de aumentar sua influência e prestígio internacional.

Com relação aos impactos efetivos da constitucionalização de direitos e da revisão judicial sobre a noção e as práticas de justiça, o livro traz os resultados de uma extensa investigação empírica, comparando, nos quatro países analisados, decisões das cortes constitucionais no período anterior e posterior à chamada "revolução constitucional". As conclusões apontam que seus efeitos têm sido muito pouco significativos para garantir os direitos positivos e coletivos, ou seja, aqueles cuja realização efetiva depende de maior ação estatal para contornar falhas de mercado no reino da justiça distributiva, tais como direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia digna etc. As revisões judiciais tiveram maior efetividade quando se referiam aos chamados direitos negativos, ou seja, aos que impõem restrições à ação do Estado, impedindo-o de interferir nas atividades econômicas e na vida privada, tais como o direito de expressão, ao devido processo criminal, à igualdade formal em matéria de preferência sexual etc.

Alguns números trazidos pela pesquisa bastam para ilustrar a análise. Eles indicam ser enorme, em números absolutos, a diferença entre as taxas de sucesso dos processos judiciais relativos aos direitos negativos e as dos processos relativos aos direitos positivos: entre 1982 e 2002, a Suprema Corte do Canadá deu ganho de causa para 137 casos que envolviam direitos negativos e vitória para apenas vinte casos que envolviam direitos positivos. Na África do Sul, essa relação foi de quarenta para nove, na Nova Zelândia, de 114 para sete, e em Israel, de 131 para oito (p. 108). Em suma, a chamada "revolução constitucional", ao contrário do que se tem reiteradamente afirmado, teve pouco ou nenhum impacto na redução das diferenças socioeconômicas entre pobres e ricos nos países estudados. Isso porque, como é comprovado no trabalho, o processo de transferência de poder para juízes – assim como para outros corpos burocráticos semiautônomos, como os bancos centrais – ocorre concomitantemente à expansão de políticas de cunho neoliberal e ao desmonte de programas de bem-estar social, permitindo entender a razão pela qual a constitucionalização dos direitos (definidos predominantemente como liberdades negativas) não foi capaz de frear o crescimento das desigualdades sociais naqueles países. Os números são bastante expressivos: em Israel, o índice de Gini que, em 1982, era de 0,222 passou para 0,356 em 2000, transformando esse país no terceiro mais desigual entre as nações desenvolvidas, só perdendo para os Estados Unidos e a Nova Zelândia. Com relação à África do Sul, os anos 2000 não produziram alteração em seu status de país mais desigual do mundo, posto que, infelizmente, disputa com o Brasil. O próprio Canadá, nação com índice elevado de bem-estar social, viu sua estrutura social intensificar as diferenças entre ricos e pobres: em 2000, a parcela mais rica de sua população recebia 44,5% de toda a riqueza nacional, enquanto em 1981, um ano antes da adoção da carta constitucional, essa parcela representava 41,7%. O quinto mais pobre continuou recebendo em 2000 apenas 4,5% da riqueza nacional, como em 1981, ou seja, a constitucionalização dos direitos que já havia ocorrido há quase duas décadas nada melhorou para os mais pobres.

Hirschl deixa claro ainda que a transferência de poder para juízes das cortes constitucionais, permitindo-lhes intervir em questões morais e controvérsias políticas cruciais de cada país, não poderia ocorrer sem o apoio das elites políticas mais poderosas. Estas decidem delegar poder decisório para as cortes, mesmo sabendo que a constitucionalização é difícil de ser revertida e que sempre há o risco de que elas julguem em desacordo com as preferências ideológicas e os interesses políticos dos que lhes delegaram poder, o que, na verdade, não parece constituir grande desafio, já que a pesquisa sobre as decisões judiciais de importantes questões políticas nos diferentes países revelou que elas não têm contrariado os valores nem tampouco os interesses aí dominantes.

Em suma, Hirschl conclui que a constitucionalização e a revisão judicial se tornaram hoje "globais": tudo é passível de ser judicializado, ou seja, juízes não eleitos e sem responsabilização política estão se constituindo em principal corpo decisório no mundo contemporâneo, o que certamente põe em questão a ordem democrática.

Tais reflexões são sumamente importantes para nós no Brasil de hoje, que vivemos os dilemas criados pela Constituição de 1988. Se, de um lado, ela procurou garantir direitos básicos em uma sociedade historicamente elitista e excludente, de outro, criou um Supremo Tribunal como uma das cortes com mais poderes institucionais do mundo (sendo, ao mesmo tempo, corte constitucional, revisional e penal). Vem transformando seus juízes em árbitros supremos em questões centrais da vida coletiva e das disputas políticas e incentivando partidos de oposição a buscar na corte constitucional alternativa para afirmar interesses que não conseguem pela via eleitoral ou parlamentar.

Maria Rita Loureiro é professora titular da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. E-mail: <marita.loureiro@gmail.com>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2014
  • Data do Fascículo
    Fev 2014
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