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Identidades indígenas no ciberespaço

RESENHAS

Identidades indígenas no ciberespaço

Eliete da Silva Pereira. Ciborgues indígen@s.br: a presença nativa no ciberespaço. São Paulo, Annablume, 2012. 285 páginas.

Denise Machado Cardoso

A obra Ciborgues indígen@s.br: a presença nativa no ciberespaço apresenta uma análise sobre o uso das tecnologias comunicativas no contexto contemporâneo, enfatizando questões de identidade de indígenas brasileiros. Suas quatro partes discutem, respectivamente: as mídias nativas e a comunicação indígena no Brasil; a presença indígena no ciberespaço; as interpretações indígenas sobre a internet; e, por fim, os debates ensejados pelas três seções anteriores.

Ainda na introdução do livro, a autora aborda questões sobre interações comunicativas e as especificidades da presença indígena no ciberespaço. Nesse sentido, ela propõe, com base em sua experiência investigativa sobre o tema, explorado na sua dissertação de mestrado, analisar a dinamicidade cultural inerente às novas estratégias para tentar solucionar problemas históricos.

A problemática central se refere ao modo como indígenas brasileiros se apropriam das tecnologias comunicativas digitais e como eles interagem, proporcionando reelaborações de discursos sobre si. Contudo, a autora ressalta que essa apropriação ainda é um desafio, apesar da nova condição nativa contemporânea, em que indígenas participam como usuários e produtores de conteúdo, e das ações governamentais e não governamentais com vistas à inclusão digital. Vários são os exemplos desse esforço pela implementação de políticas de inclusão digital, mas a questão é mais complexa do que se pode supor. Independentemente das ações voltadas para essa inclusão, os grupos indígenas estão ocupando o ciberespaço com estratégias comunicativas interessantes que se refletem em novas maneiras de pressionar por ações governamentais e outras de organismos não governamentais. Desse modo, a internet contribui como ambiente de interações comunicativas que reforçam a cidadania dos indígenas em suas várias demandas.

Em termos de metodologia, a discussão sobre o fazer etnográfico enfatiza o contexto da investigação, o que levou a autora a utilizar também a etnografia do virtual, realizando a pesquisa sobre a interação comunicativa de grupos indígenas em blogs, sites e redes sociais, em parte, diretamente nesses espaços. Há um debate interessante sobre a possibilidade de a investigação antropológica ser feita no campo da virtualidade, problematizando as obras que lhe serviram de inspiração e conduziram seu trabalho.

Torna-se possível, assim, a reflexão acerca de um tema que a autora considera provocativo, que é o de as representações que ainda se fazem sobre os indígenas, notadamente aquelas relacionadas aos estudos antropológicos, nem sempre condizerem com as imagens que os indígenas constroem sobre si. Essa situação se justifica pela permanência no imaginário de que esses grupos são selvagens e de que precisam ser tutelados.

Discutir o modo de fazer pesquisa antropológica com indígenas remete à tradição do trabalho de campo e à necessidade de pesquisadores se deslocarem para realizá-lo. Consequentemente, a visão que se tinha do trabalho de campo com grupos indígenas precisa ser revista de acordo com a construção de sua autopercepção e com o uso que fazem da internet para se articularem e buscarem o atendimento de suas demandas, alterando assim sua relação com o Estado e com o restante da sociedade. Diante desse problema metodológico, a autora detalha o universo pesquisado. A fim de caracterizar a sociabilidade tecnossocial dos grupos estudados, ela fez o mapeamento de cinquenta sites de acordo com a autoidentificação indígena de etnias situadas no Brasil. Outros critérios de classificação foram os níveis de interatividade e a arquitetura de informação e conteúdo. Ao expor as estratégias empregadas, ela explica a relevância dos sites como fontes eletrônicas para análises de narrativas hipertextuais. Para refinar as interpretações dos significados da internet sob a perspectiva dos próprios indígenas, foram realizadas entrevistas com alguns deles.

Após essa introdução, os capítulos da primeira parte enfatizam a discussão sobre o fenômeno tecnológico e comunicativo presente na rede mundial de computadores. Nas partes seguintes apresentam-se os dados relativos à pesquisa empírica, isto é, à investigação teórica e de campo, e suas conclusões.

O capítulo "Mídias nativas" debate os significados da comunicação indígena, embasando-se em obras sobre o modo como os grupos indígenas se apropriam das tecnologias comunicacionais presentes desde o processo de colonização do continente americano. Nesses termos, a autora indica que a difusão de mídias foi instrumentalizada com vistas à consagração da hegemonia cultural dos colonizadores sobre as culturas indígenas. Contudo, revela que essa mesma hegemonia também foi apropriada em diversos momentos como instrumento de "multiplicação de visões de mundo". A mídia como elemento da mediação cultural proposta por Martín-Barbero (2001) e as reflexões críticas de Hall (2003) acerca do modelo linear de comunicação emissor/receptor são considerações exemplares sobre as apropriações por grupos não hegemônicos. O protagonismo de grupos até então subalternos foi alcançado por essa apropriação da mídia, entre outros fatores. Assim, a mídia nativa se refere às potencialidades de experimentações multimidiáticas em/da rede por grupos indígenas e de periferia.

A autora então argumenta que a expressividade corporal é a instância primeira da comunicação, remetendo-se às pesquisas de Viveiros de Castro (2002). A semiótica do corpo indígena (mas não exclusivamente desses grupos humanos) implica sua articulação recíproca com o ambiente. O corpo não separado de sua essência (alma ou espírito) em muito difere da concepção de grupos não indígenas, e isso marca a maneira como veem a si próprios, o mundo e a relação com outros humanos e não humanos.

No que se refere à mídia nativa radiofônica, há indicações sobre os usos em termos de rádio comunitária e as implicações legais e instrumentais relacionadas à causa indígena. Notadamente, sua relevância nas aldeias tem demandas específicas tanto para serviços de saúde e abastecimento de materiais, por exemplo, como para reforçar a luta pela causa indígena. Em relação à mídia nativa audiovisual, a autora retoma a ideia apresentada nas reflexões anteriores por considerar que, como a oralidade, a visualidade também é relevante. O vídeo é, segundo ela, aquilo que os indígenas mais absorvem e incorporam como importante ferramenta de mediação cultural: por meio dele, deixam de ser espectadores para se tornarem produtores. Experiências como o projeto pioneiro Vídeo nas Aldeias, da década de 1980, possibilitaram o que a autora chama, com base na denominação de Vincent Carelli, de "consciência aguda do processo de transformação", ou seja, autoconsciência coletiva da diversidade e mudanças nas culturas indígenas.

Em sua análise da mídia nativa escrita, ela ressalta que a passagem da oralidade para escrita é um processo complexo diante das características expostas anteriormente. Essa transição ganhou destaque a ponto de inúmeros trabalhos terem sido realizados com o intuito de explicar questões de alfabetização e escrita, notadamente a partir das propostas de educação escolar bilíngue. O debate acerca dessa questão não se encerra na educação escolar e se amplia para as reflexões sobre a literatura indígena e, atualmente, sobre o papel da escrita digital.

O capítulo que inicia a segunda parte do livro discute brevemente as novas práticas comunicativas, com a internet e a presença indígena no ciberespaço. Também discorre sobre aspectos históricos da cultura digital, desde a Arpanet, na década de 1960, até a disseminação do uso da rede mundial de computadores no fim do século XX. A autora faz referência a obras de cientistas renomados, como Castells (2003), Eco (1970), Santaella (2003), entre outros. Os capítulos seguintes avançam para a questão da nova sociabilidade tecnossocial proporcionada pelo ciberespaço. O espaço de comunicação se torna fecundo na medida em que se cria um novo ecossistema tecnossocial, ou seja, na medida em que a interatividade da cibercultura proporciona novas formas de sociabilidades. No caso indígena, a internet possibilita a integração de múltiplos pontos de vista.

O quarto capítulo apresenta um estudo de caso do movimento zapatista. Esse estudo subsidia questões de capítulos posteriores, notadamente aquelas que analisam as ações e impressões dos indígenas sobre os usos da internet. No capítulo que trata do percurso do mapeamento dos sites indígenas, há uma breve caracterização das modalidades de interatividade e arquitetura de informação – portais, blogs, redes sociais digitais e sites – a partir da qual a autora passa a discutir a presença indígena no ciberespaço. Esta ocorre especificamente nos diversos blogs e sites de diferentes etnias e de organizações nacionais, regionais e locais. A autora então verifica a potencialidade do ciberespaço para a promoção do protagonismo indígena no Brasil, como ocorreu em outras realidades. Com base no movimento zapatista (apesar de não ser um movimento genuinamente indígena) tece considerações sobre o ambiente informacional – o ciberespaço – como espaço de ativismo político.

A contribuição desses capítulos para a compreensão do ativismo político indígena no ciberespaço é significativa e inovadora, pois por meio deles se podem perceber as demandas e ações indígenas em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Em sua descrição, há uma série de possibilidades a ponderar, como as ações políticas em rede, os movimentos indígenas de mulheres, de professores, de jovens etc. As temáticas são diversas e revelam a complexidade e a amplitude desses sujeitos políticos no ciberespaço. O modo como rearticulam o discurso étnico a favor de suas especificidades estimula novos olhares e reflexões.

A terceira parte do livro revela as interpretações indígenas sobre a internet, somando as entrevistas e os relatos às discussões sobre o diálogo na produção antropológica e reforçando a percepção de que houve avanços consideráveis. Exemplos como o projeto Índios Online e o Arco Digital dão conta de que a internet é um recurso essencial para o movimento, pois possibilita maior visibilidade, contato com pessoas e apoiadores da questão indígena, reforço da presença e da expressão de um pertencimento étnico indígena. No que se refere à produção antropológica, enfatizam a concepção de que há um estilo próprio de fazer ciência a partir da etnografia. Desse modo, os questionamentos e ponderações sobre a pesquisa de campo são retomados com referências às obras do antropólogo Crapanzano (1988) e do filósofo Gadamer (1986). Em seguida, a autora discute a proteção dos conhecimentos tradicionais, o fortalecimento cultural, a globalização indígena e a divulgação da literatura indígena.

Na quarta parte, os capítulos dez e onze encerram o debate com o que chamam de "ciborgue indígena" – uma metáfora de mistura (hibridismo) das conexões entre as mídias e os seres humanos – sustentando sua critica à visão dualista entre seres humanos e técnicas marcantes nos ideais platônicos. Assim, a autora propõe a superação da perspectiva de análise sustentada na dicotomia entre humanos e tecnologia e indica, ao mesmo tempo, que essa visão se aplique também na relação entre humanos e natureza. Desse modo, indígenas deixariam de ser associados apenas ao polo da natureza, potencializando a esses povos uma nova representação e novos papéis diante das dinâmicas socioculturais no ciberespaço.

Por fim, o livro retoma as reflexões desenvolvidas por Martin Heidegger acerca da essência da técnica, pois para esse pensador o Ser, antes de substantivo, é verbo. O ser humano provoca e é provocado pela técnica, e ela não pode ser reduzida ao instrumento. Consequentemente, o Ser significa o encontro entre terra, deuses, coisas e mortais. No ciberespaço, ou seja, na comunicação mediada por computadores, a informação é um modo de ser.

A crítica à oposição entre natureza e cultura é reforçada por Donna Haraway – ao associar essa visão ao seu caráter ideológico – e exemplifica com a denúncia de que tal dicotomia alija determinados grupos sociais do âmbito da cultura, tal como ocorre com as mulheres e se aplica aos grupos indígenas. Assim, pensar de modo dicotômico pode levar a raciocínios falhos na medida em que exclui a possibilidade de analisar o ciberespaço como um meio híbrido de inteligências e saberes. Em síntese, o livro emprega a ideia de "ciborgue indígena" na tentativa de explicar a resignificação das experiências indígenas e suas identidades no ciberespaço.

BIBLIOGRAFIA

Denise Machado Cardoso

é antropóloga, doutora em desenvolvimento socioambiental e docente de ciências sociais da Universidade Federal do Pará.

E-mail: denise@ufba.br.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2015
  • Data do Fascículo
    Out 2014
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