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Olhares cruzados nas análises de políticas públicas

Marques, Eduardo Cesar; Faria, Carlos Aurélio Pimenta de. A política pública como campo multidisciplinar. 2013. Fiocruz/Editora da Unesp, Rio de Janeiro/São Paulo: 282

No Brasil, especialmente após a redemocratização, os processos de produção de políticas públicas são cada vez mais complexos. Envolvem diversidade temática, grande número de atores estatais e não estatais em intricados padrões de interação e processos decisórios que se desenvolvem em distintas arenas, com consequências para públicos distintos. Construir modelos de análise para compreender a produção de políticas públicas, desde os processos decisórios até a implementação e a avaliação, não é uma tarefa trivial. Isso implica, no plano analítico, modelos explicativos que combinem distintas contribuições disciplinares por meio da articulação coerente de variados arsenais teóricos e metodológicos, para além de macroexplicações por vezes superficiais.

Como compreender melhor os atores, as instituições e as dinâmicas envolvidos na produção das políticas públicas senão a partir de múltiplos olhares disciplinares? A coletânea organizada por Eduardo Marques e Carlos Faria reforça essa perspectiva, trazendo um excelente panorama da contribuição de diferentes campos do saber, a partir de debates originados no fórum A Multidisciplinaridade na Análise de Políticas Públicas, realizado no VII Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), em 2010, no Recife. Ao longo do livro, que reúne ensaios inéditos elaborados por especialistas em suas áreas, somos convidados a conhecer melhor as abordagens de diferentes disciplinas sobre as políticas públicas, tanto aquelas envolvidas diretamente na sua análise – ciência política, administração pública e mesmo sociologia e relações internacionais –, como aquelas que contribuem com modelos e categorias analíticas, explicações para o comportamento de indivíduos e grupos – sociologia, antropologia, psicologia social –, ou ainda disciplinas que fornecem subsídios para o processo de produção de políticas públicas – direito e demografia. Há ainda o caso da história, que tem parte de seu arcabouço conceitual apropriado por outras disciplinas para o entendimento de políticas públicas. Evidencia-se assim a amplitude temática, conceitual e metodológica proposta por essa coletânea, que promove um necessário cruzamento de olhares analíticos sobre as políticas públicas, ainda que contribuições de outros campos disciplinares importantes, como a economia, tenham ficado de fora. Por um lado, o livro contribui para a articulação de algumas das principais matrizes analíticas e agendas de pesquisa desenvolvidas por campos disciplinares mais diretamente relacionados com a análise de políticas, como a ciência política e a administração pública. Por outro, somos surpreendidos pelas fecundas possibilidades de interpretação oriundas de campos disciplinares que não estão, necessariamente, voltados para a explicação das ações estatais, tais como antropologia e psicologia social.

A relevância do olhar interdisciplinar deriva também da constatação da evolução institucional das políticas públicas no Brasil, seja no âmbito governamental, seja no âmbito acadêmico, com a multiplicação dos cursos de graduação e pós-graduação na área. Como reconhecido pelos organizadores do livro e também nos ensaios elaborados por Carlos Pimenta e por Marta Farah, há muitas expectativas e muitos desafios colocados pela institucionalização do campo de políticas públicas no Brasil, uma vez que esses novos cursos já nascem multidisciplinares. Como alerta Marta Farah, a expansão desse campo nem sempre é acompanhada de reflexão sobre a incorporação de diferentes disciplinas nas análises de políticas públicas, considerando-se requisitos básicos de coerência teórica e metodológica. Ecoando o diagnóstico sobre o campo elaborado nos anos de 1990 por Marcus Melo (1999)MELO, M. A. (1999), “Estado, governo e políticas públicas”,in Sergio Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), São Paulo, Sumaré., Eduardo Marques e Carlos Faria reconhecem, na introdução do livro, que a multiplicação de estudos sobre políticas públicas e a crescente especialização dos debates acabou por estimular ainda mais a fragmentação do campo. Desse modo, seria uma “tarefa urgente” sistematizar esse campo dos estudos no país, lacuna muito bem preenchida por essa coletânea.

A despeito dos distintos arcabouços teóricos, conceitos e abordagens em cada ensaio, o leitor percebe possíveis pontos de contato entre as abordagens disciplinares. A lógica de organização de muitos dos ensaios é similar: é apresentada, a traços largos, a evolução disciplinar daquele campo específico do saber, internacionalmente e no caso brasileiro, sendo identificados os principais temas de pesquisa e possíveis conexões com as políticas públicas, tanto de maneira direta – envolvimento profissional e/ou analítico com as questões do “Estado em ação” – quanto indireta, fornecendo possíveis subsídios para o desenvolvimento de outros olhares sobre a ação estatal. Alguns ensaios procuram, inclusive, quantificar a presença da temática das políticas públicas nas linhas de pesquisa de sua disciplina – caso dos capítulos elaborados por Soraya Côrtes (sociologia), Piero Leirner (antropologia), Marta Farah (administração pública) e Peter Spink (psicologia social).

Conforme reconhecido no título do livro e ressaltado pelos organizadores, o “estado da arte” do campo é ainda muito mais “multidisciplinar” – reunindo contribuições de mais de uma área do conhecimento sem profunda interligação entre as disciplinas – do que um diálogo com integração disciplinar, quanto mais “transdisciplinar”, no sentido da criação de uma macrodisciplina de análise de políticas públicas. Carlos Faria, em seu capítulo sobre a multidisciplinaridade, discorre sobre os sentidos desses qualificativos,1 1 Faria conceitua a multidisciplinaridade como a agregação de informações de mais de uma área do conhecimento para solução de um determinado problema, sem que haja preocupação com a interligação das disciplinas ou alteração/enriquecimento das mesmas, em um “encontro entre monólogos disciplinares” (Santos, 2007,apud Marques e Faria (orgs.), 2013, p. 15). Por sua vez, a interdisciplinaridade seria a interação entre uma ou mais disciplinas com intercâmbio e integração, sendo repensadas, conjuntamente, teorias e metodologias – em um “diálogo constituído entre disciplinas diferentes” (p. 16). Transdisciplinaridade seria uma “etapa superior da integração das disciplinas”, na qual a cooperação é tanta que não é possível separar as contribuições individuais e cria-se uma macrodisciplina (p. 16). reconhecendo a existência de algumas disciplinas que já são, de modo constitutivo, inter ou multidisciplinares, mas não transdisciplinares, tais como as relações internacionais e a demografia. O autor reconhece que, por um lado, as “fronteiras porosas” da análise de políticas públicas facilitam a interdisciplinaridade; por outro, aponta um rol de constrangimentos à sua efetivação, que vão desde problemas organizacionais, como a lógica disciplinar que ainda organiza as universidades, até problemas ligados às carreiras profissionais, passando pela socialização disciplinar precoce e por impedimentos institucionais (incentivos, financiamento, prioridades) (pp. 13-15).

Conferir coerência teórica e metodológica à multiplicidade de abordagens possíveis não é uma tarefa que possa prescindir da análise dos padrões de produção de políticas públicas. Eduardo Marques, em seu ensaio “As políticas públicas na ciên- cia política”, parte do conceito consagrado por Jobert e Muller, que compreendem as políticas públicas como o estudo do “Estado em ação”, para mostrar que a análise dos “por quês” e “como” nas ações estatais é cada vez mais complexa, envolvendo a interação entre distintos atores, para além do Estado. Em uma densa síntese analítica das principais abordagens de políticas públicas desenvolvidas no campo da ciência política, Marques identifica um processo de politização crescente das análises, passando pelos momentos fundadores do campo de análise e seus principais deslocamentos, desde a consideração dos limites à racionalidade dos policy makers, as críticas ao modelo do ciclo de políticas, até perspectivas incrementalistas das políticas públicas, mais abertas à contingência, ao papel das ideias, dos conflitose mesmo das não decisões, considerando-se de maneira mais central os momentos pós-decisórios, como a implementação e a avaliação de políticas públicas. Na feliz metáfora utilizada pelo autor, a produção de políticas públicas seria menos uma atividade de design (no sentido de adequação racional de meios a fins) e muito mais um artesanato, considerando a complexidade de atores e contextos, ideias, estratégias e conflitos (p. 44).

O reconhecimento de que a produção de políticas públicas envolve um amplo conjunto de atores em interação, para além dos estatais, é outro aspecto que justifica a incorporação de olhares disciplinares diversos sobre os produtores e os sujeitos “receptores” das políticas públicas, tais como os atores societais (ligados à sociedade civil ou ao mercado) analisados pela sociologia – cujas contribuições para a análise de políticas públicas são discutidas no capítulo de Soraya Côrtes – e as “minorias”, sobre as quais se debruça parcela importante da antropologia, abordada por Piero Leirner. Adicionalmente, a demografia, discutida nessa coletânea por José Marcos Pinto da Cunha, é imprescindível para fornecer elementos básicos de caracterização de populações, para o conhecimento das transformações demográficas pelas quais vem passando a sociedade brasileira nas últimas décadas e projeção de tendências futuras, aspectos essenciais para a produção de qualquer política pública. A partir de um panorama das principais transformações demográficas em curso no Brasil e suas possíveis implicações, Cunha ressalta a perspectiva mais instrumental de utilização da disciplina nas políticas públicas.

Também o Estado é abordado de maneira cada vez mais complexa e contraditória – modelos analíticos oriundos de distintas matrizes disciplinares reconhecem que é necessário abrir essa “caixa preta” e considerar os interesses, as ideias, as estratégias e os conflitos dos atores que podem ser classificados no âmbito estatal. Nesse sentido, a politização das análises, que ocorre não somente no campo da ciência política, como notado por Marques, mas também nos campos da administração pública e das relações internacionais – discutidos, respectivamente, por Marta Farah e Maria Regina Soares de Lima –, contribui para a consideração dessas dinâmicas internas ao Estado. Tanto no caso da administração pública quanto no caso das relações internacionais, temos campos disciplinares que, na sua origem, estiveram muito próximos do campo da ciência política, mas que adquiriram especialização temática e contornos próprios, voltando, recentemente, a buscar novos pontos de contato com processos analisados pela ciên- cia política.

Sintetizando a evolução do campo de administração pública a partir da tensão constitutiva entre administração e política, Marta Farah identifica como deslocamentos analíticos importantes a crítica dessa separação, o reconhecimento do administrador como umpolicy maker e a introdução recente de perspectivas pós-positivistas. Entretanto, a autora reconhece que o mainstream da análise de políticas públicas na administração pública reintroduziu a separação entre política e administração, mantendo o “sonho positivista da objetividade e da racionalidade” (p. 105). No contexto de reforma do Estado, Farah identifica uma ampliação do conceito de “público” e do campo de estudo de políticas públicas a partir do reconhecimento de que as políticas públicas dependem de redes de atores que vão para além do Estado, incluindo também organizações não governamentais, setor privado, entre outros. Nesse sentido, as contribuições próprias da administração pública estariam, segundo Farah, nas análises desenvolvidas em torno dos conceitos de cooperação, rede e governança (p. 104). As fragilidades observadas por Farah no âmbito da administração pública (pp. 121-123) certamente não se restringem a esse campo disciplinar e servem de alerta para todo o conjunto de análises de políticas públicas, ainda ecoando o diagnóstico de Melo (1999)MELO, M. A. (1999), “Estado, governo e políticas públicas”,in Sergio Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), São Paulo, Sumaré. mesmo com a maior maturidade do campo: produção de viés normativo, voltado para questões práticas; desconsideração de esforços anteriores, baixo acúmulo de conhecimento; incorporação de temas da agenda governamental com baixa sistematização e grande dispersão temática; incorporação acrítica de modelos criados em outros contextos; problemas de consistência teórica e metodológica, dificultando o acúmulo e a densidade do conhecimento produzido.

Por sua vez, Maria Regina Lima apresenta, na trajetória dos estudos desenvolvidos no campo das relações internacionais, elementos que contribuíram para o tratamento da política externa como política pública, superando argumentos tecnocráticos da “excepcionalidade” dessa política, seja no debate internacional, seja no debate brasileiro. Também nesse campo disciplinar as análises e as teorias sobre o Estado tornam-se mais multidimensionais. Lima discute em seu ensaio como as análises partiram do modelo do “Estado unitário” e chegaram a interpretações mais complexas, considerando dinâmicas internas ao Estado e também o seu entorno, incluindo atores estatais e não estatais. Nesse processo, foram incorporados olhares, abordagens e conceitos desenvolvidos em outros campos disciplinares, tais como: incorporação do neoinstitucionalismo, de análises de processos decisórios e as interações estratégicas entre os diversos atores; incorporação de entendimento sociológico de instituições e agentes; reconhecimento da relevância de normas e instituições. A abertura para o diálogo com outras disciplinas marcou a evolução do campo, com importantes pontos de aproximação com outras disciplinas, como ciência política e sociologia. Nos termos de Lima, as relações internacionais poderiam ser caracterizadas como uma “subárea aberta e eclética” (p. 143).

Refletir sobre a complexidade das análises e dos padrões de interação entre atores diversos e o Estado nos termos da discussão da antropologia da política, apresentada por Piero Leirner, implica o reconhecimento de “muitos mundos do Estado” e também do “Estado no interior de muitos mundos sociais” (p. 79), sendo importante considerar o Estado como “nativo”, como um objeto de análise, e não como uma figura transcendente. Em sua reflexão sobre as políticas públicas e a antropologia, o autor reconhece que essas relações não são nem óbvias nem diretas. Ainda que seja uma área minoritária e permeada por questionamentos éticos e por complexos padrões de relações entre os antropólogos e o Estado, o autor ressalta que a antropologia do Estado e da política que se faz no Brasil é das melhores, mencionando a peculiaridade da nossa antropologia, que nasce política, tanto pela incorporação de teorias antropológicas estrangeiras quanto pelas relações de alteridade dos antropólogos com seus objetos. Leirner identifica duas formas de analisar a política, tomando o Estado como “nativo”, a partir dos anos de 1990: 1) análise de processos políticos, eleições, como consequências de obrigações, dádivas e trocas; 2) análises da burocracia e do funcionamento da máquina estatal. O autor ressalta ainda que conceitos necessariamente estão associados a “paisagens etnográficas” (p. 73), a contextos específicos, sendo essencial considerar a relevância das “categorias nativas”. Na minha leitura, essas considerações são muito pertinentes para refletir sobre a tão comum incorporação acrítica de modelos explicativos, inclusive no campo das análises de políticas públicas.

Outra forma de abordagem da complexidade necessária às análises é encontrada no texto “Psicologia social e políticas públicas: linguagens e ação na era dos direitos”, elaborado por Peter Spink. Segundo o autor, no caso brasileiro a psicologia tende a se afastar das ciências sociais, sendo as relações entre a psicologia e as políticas públicas uma história de conexões parciais e perdidas, com promessas de reconexão mais durável (p. 161). Em uma abordagem pós-positivista bastante centrada na dimensão discursiva – os pressupostos epistemológicos são considerados pelo autor como “línguas” –, Spink ressalta a “polissemia do agir público”, as diferentes linguagens de ação, renegociação de processos de governança, possibilidades de negociação da linguagem da política e da linguagem dos direitos, bem como as diferentes maneiras de “performar” o político – sendo a política pública uma das linguagens possíveis (p. 179). Nessa perspectiva, a ação pública é pensada em diferentes arranjos possíveis das relações entre governo e sociedade. Em sua análise acerca das quatro abordagens mais promissoras da psicologia social para as análises de políticas públicas – realismo, perspectivismo, construcionismo e performatividade –, o autor ressalta um importante argumento na busca da multidisciplinaridade no campo das análises de políticas públicas: “a proposta multidisciplinar presume – antes de tudo – uma competência conversacional” (p. 161).

Ainda que não assumam como objeto central as políticas públicas, as contribuições teóricas dos campos da antropologia e da psicologia social podem fornecer importantes arcabouços teóricos e conceituais para sua compreensão. De maneira similar, uma perspectiva de coerência teórica para a multiplicidade de análises pode vir da sociologia. Nos termos da discussão apresentada por Soraya Côrtes, a disciplina pode ser uma importante fonte teórica para a construção de modelos analíticos para as políticas públicas, ainda que não predominem, no caso brasileiro, as análises específicas sobre políticas públicas (p. 68). Essas contribuições advêm especialmente da longa tradição de análise das relações entre Estado e sociedade e também sobre as relações entre estrutura e agência. A autora apresenta um panorama das análises sociológicas sobre esses binômios desde os trabalhos clássicos de Durkheim, Marx e Weber até autores contemporâneos. Nessa trajetória, mostra distintas ênfases e deslocamentos analíticos que dialogam, direta ou indiretamente, com temas caros às análises de políticas públicas: identidades, atores e grupos sociais; relações entre atores societais e estatais; luta pelo reconhecimento; novos grupos sociais; estudos sobre comunidades de políticas e redes diversas; o papel estruturador das normas sociais e sua relação com as redes sociais; a relevância crescente das instituições – entendidas como organizações ou como normas. Desse modo, modelos sociológicos diversos são fontes para compreensão da ação de indivíduos e grupos, considerando atores societais e estatais, as relações entre estrutura e agência, o papel das normas sociais, as motivações e os interesses por trás das decisões políticas. Na síntese de Côrtes: “Independentemente de sua aplicabilidade para a formulação e implementação de políticas públicas, a disciplina vem se tornando cada vez menos abstrata e mais orientada para ‘problemas’ da sociedade, seguindo uma proposição básica de um dos ‘pais fundadores’ da área, Harold Lasswell” (p. 63).

Outro ponto transversal a alguns ensaios é a grande influência da agenda pública e dos temas do debate corrente nas análises realizadas pelas mais diversas disciplinas. Faria afirma que essa proximidade contribui para o crescimento da multidisciplinaridade, uma vez que diversas questões da agenda pública demandam tratamento interdisciplinar; entretanto, o autor reconhece os riscos dessa proximidade. Podemos considerar que esta é uma dimensão constitutiva do campo das análises de políticas públicas: a tensão entre proximidade e distância em relação à agenda governamental e a necessidade de certo distanciamento para que seja possível decantar teoricamente alguns conceitos, para além de estudos de caso e análises setoriais. Nesse ponto, seguir as lições da antropologia e defender “alguma distância” em relação ao objeto de estudo – no caso, o Estado tomado como “nativo”, como o “outro” a ser analisado – parece um caminho promissor. A própria reflexão sobre essas relações diretas e indiretas com o Estado, como realizada em muitos dos ensaios dessa coletânea, contribui para a consolidação do campo de análises.

Alguns campos disciplinares são mais diretamente afetados por essas relações tensas entre a agenda de pesquisas e a agenda de políticas. Além de áreas como a administração pública, cuja agenda de pesquisa ainda é magnetizada pela proximidade com o Estado e caracterizada pela normatividade, como bem observado por Marta Farah, há dinâmicas similares no caso do direito, em particular no direito administrativo. No ensaio “O direito nas políticas públicas”, Diogo Coutinho caracteriza a “relação ambígua” dos juristas com as políticas públicas, uma vez que eles são chamados a opinar sobre problemas relacionados a suas diversas “fases”, mas refletem pouco sobre as políticas públicas em sua formação ou mesmo academicamente. A despeito das diferentes ordens de dificuldade que identifica na interação entre direito e políticas públicas – conceituais, semânticas, metodológicas, teóricas e práticas –, o autor acredita que estudar as funções desempenhadas pelo direito pode ajudar a aperfeiçoar as políticas públicas (objetivo normativo), uma vez que é possível desdobrá-las em normas, processos e arranjos institucionais mediados pelo direito. O papel que o direito assume nas políticas públicas, segundo Coutinho, é de coordenador e articulador, para além de seu papel indutor (normas e sanções). Defende um direito administrativo mais analítico e flexível, que possa servir como “tecnologia de implementação de políticas públicas”, para além do foco no “pode/não pode” e em direção ao “como pode” ser feito, de modo a permitir experimentações, revisões e incorporação de aprendizados no campo das políticas públicas (p. 188).

Por fim, abordando as possíveis contribuições da história – que no Brasil não tem analisado sistematicamente as políticas públicas – e também os desafios das ciências sociais em tratar as políticas públicas “no tempo”, Gilberto Hochman traz reflexões importantes que “transbordam” as fronteiras desse campo disciplinar e possibilitam pensar diálogos inter/trans/multidisciplinares nas análises de políticas públicas. O autor reconhece que, a despeito da incorporação crescente de um vocabulário ligado à história por parte das ciências sociais em geral – e da ciência política em particular –, a história tem sido incorporada mais como adjetivo do que substantivamente, como disciplina e arsenal metodológico para a análise de políticas públicas. Identifica, inclusive, mais possibilidades de competição do que interdisciplinaridade entre análises que incorporam o “tempo” e a “história”. O autor reforça um alerta, muitas vezes ignorado: “‘pensar no tempo’ não é necessariamente pensar historicamente” (p. 234). Em contraponto, Hochman argumenta que a história importa também como disciplina, e não só como tempo. O autor identifica análises históricas de políticas públicas em certos setores – com destaque para a saúde pública – e ressalta que a sensibilidade histórica permite a abertura de “caixas pretas” (p. 237), especialmente quando se leva a sério que o passado deve ser tomado “como país estrangeiro” (p. 239). Mesmo com os avanços setoriais, na avaliação de Hochman permanecem obstáculos conceituais e normativos na relação da história com as políticas.

Ao longo desse bem-vindo conjunto de análises, ficamos convencidos da importância da interdisciplinaridade para dar conta de um processo de produção de políticas que, para ser entendido, precisa ir muito além da visão racionalizadora, etapista e simplista do “ciclo de políticas públicas”, ainda que este modelo tenha valor heurístico, como defendido por Marques. Como aprendemos, por exemplo, a partir do arsenal teórico da sociologia, são cada vez mais complexas as formas de interação entre atores estatais e não estatais nos processos de produção de políticas públicas. Nos termos da discussão da antropologia da política, essa complexidade encontra-se no reconhecimento de “muitos mundos do Estado”, sendo necessário reconhecer a “polissemia do agir público”, como lembra Peter Spink em sua análise a respeito das contribuições da psicologia social. Por meio de estilos distintos, somos convidados a explorar mundos analíticos por vezes pouco conhecidos nesses tempos de excessiva especialização temática, compreendendo, de fato, os sentidos possíveis de “complexidade” e “interdisciplinaridade”.

Entretanto, cumpre notar que esse “passeio disciplinar” não é desprovido de dificuldades: os referenciais teóricos, conceituais e analíticos mobilizados pelos autores na coletânea nem sempre são acessíveis a leitores não iniciados naquela área específica; há debates complexos e multifacetados. Fica o convite ao aprofundamento em cada uma dessas possibilidades de análise, em busca de novos pontos de contato.

Para além do otimismo gerado pelas múltiplas possibilidades de olhares cruzados nas análises das políticas públicas contemporâneas, os ensaios contidos nessa coletânea trazem importantes alertas: não sejamos nem incautos, nem ingênuos nesse percurso disciplinar. Como lembra Spink, a “proposta multidisciplinar presume – antes de tudo – competência conversacional” (p. 161). Hochman indaga: como se dá essa incorporação de olhares? Cria-se, de fato, uma abordagem integradora ou há uma incorporação instrumental e predatória de certos conceitos e abordagens? Faria, em outro texto (2003), percebe ainda uma “Babel de abordagens” nas análises contemporâneas sobre políticas públicas. Nessa coletânea, Marques e Faria esperam que o debate multidisciplinar promovido possa provocar um debate transdisciplinar, “em que sejam ultrapassadas as fronteiras das disciplinas de forma profícua para a produção do conhecimento” (p. 9).

Discorrendo sobre as relações entre as ciências sociais e a história, Gilberto Hochman menciona um risco que pode ser generalizado para as possíveis interações entre outros campos do saber: a associação perversa entre “monólogos disciplinares” com “baixa capacidade auditiva” por parte de outras disciplinas. (p. 227). Dando ressonância a preocupações presentes em Faria, Hochman também nos alerta para os riscos de incorporação simplesmente instrumental de disciplinas, sem levar a sério os contextos de produção de certos conceitos e o conjunto da disciplina, conformando “diálogos predatórios” (p. 241). Tomando emprestado o diagnóstico de Hochman para a análise de políticas públicas como um todo, eu diria que o avanço da multidisciplinaridade no campo dos estudos de políticas públicas depende das possibilidades e dos limites de um “diálogo incomum, perene, não predatório e interdisciplinar”, para além dos “monólogos disciplinares” que ainda marcam o campo atual, muito mais “multidisciplinar” do que “interdisciplinar”, quanto mais “transdisciplinar”.

Por tudo o que foi exposto, essa coletânea representa um ponto de partida importante e bem fundamentado para a transição dos “monólogos disciplinares” em direção a uma maior “competência conversacional” entre diversos campos do saber que podem contribuir para o entendimento mais completo de nossas políticas públicas.

BIBLIOGRAFIA

  • FARIA, C. A. P. (2003), “Ideias, conhecimento e políticas públicas: um inventário sucinto das principais vertentes analíticas recentes”.Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18 (51): 21-30.
  • MELO, M. A. (1999), “Estado, governo e políticas públicas”,in Sergio Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), São Paulo, Sumaré.
  • 1
    Faria conceitua a multidisciplinaridade como a agregação de informações de mais de uma área do conhecimento para solução de um determinado problema, sem que haja preocupação com a interligação das disciplinas ou alteração/enriquecimento das mesmas, em um “encontro entre monólogos disciplinares” (Santos, 2007,apud Marques e Faria (orgs.), 2013, p. 15). Por sua vez, a interdisciplinaridade seria a interação entre uma ou mais disciplinas com intercâmbio e integração, sendo repensadas, conjuntamente, teorias e metodologias – em um “diálogo constituído entre disciplinas diferentes” (p. 16). Transdisciplinaridade seria uma “etapa superior da integração das disciplinas”, na qual a cooperação é tanta que não é possível separar as contribuições individuais e cria-se uma macrodisciplina (p. 16).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2015
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