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O necessário debate sobre as redes digitais

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da; BRAGA, Sérgio; PENTEADO, Cláudio. Cultura, política e ativismo nas redes digitais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014. 342

A sociedade vive em constante metamorfose. Os homens sempre estiveram em busca de novos processos, de novos encontros com o conhecimento, a interação e a cultura, que, por sua vez, possibilitaram novos modos de existir. Na contemporaneidade, não é novidade o papel que a internet e as tecnologias digitais vêm desempenhando no que tange à geração de novas formas de sociabilidade e de comportamento político e social. No entanto, temos verificado uma gradual construção do conhecimento em torno das redes digitais em comparação aos vastos trabalhos já existentes sobre o comportamento dos coletivos sociais de forma geral. Considerando tal aspecto, Cultura, política e ativismo nas redes digitais aborda de forma muito peculiar os impactos das inovações tecnológicas nas formas de sociabilidade contemporâneas, que vêm repercutindo na vida cotidiana de significativa parcela da população mundial. Assim, na obra, assumem especial destaque os coletivos sociais e suas formas de interação com as redes digitais.

O livro é fruto de um processo coletivo de reflexão, tendo sua origem nas discussões decorrentes do Seminário Temático e dos Grupos de Trabalho que funcionaram na Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), nos anos de 2010 e 2012, contando com a colaboração de grupos de pesquisa que atuam nos programas de pós-graduação da Universidade Federal do ABC (UFABC) e na Universidade Federal do Paraná (UFPR), além de abranger pesquisadores que atuam em grupos de pesquisa de outras instituições no Brasil.

Foram apresentados 45 trabalhos de pesquisadores de praticamente todos os estados brasileiros, tendo como perspectiva problemas teóricos e práticos relacionados às repercussões das novas tecnologias de comunicação nas sociedades modernas. Na obra, os autores partem do amplo debate na literatura especializada desde a última década do século passado, com repercussões teóricas e práticas nos dias atuais, postulando que há um campo específico de estudos sobre a internet nas ciências sociais contemporâneas, e que esse novo campo de reflexão tem uma natureza interdisciplinar, agregando contribuições de vários ramos do conhecimento.

O livro está dividido em três grandes blocos, de modo que cada um deles apresenta um campo de estudos sobre internet, mídias digitais e as repercussões na contemporaneidade. Na primeira parte, os textos apresentam a questão do emprego das novas tecnologias de comunicação para promover novas modalidades de ação coletiva e ampliação da cidadania, tanto do ponto de vista teórico como empírico. Assim, o primeiro ensaio, de Sérgio Amadeu da Silveira (UFABC), “Para analisar o poder tecnológico como poder político”, trata dos impactos da internet e das tecnologias digitais nas relações de poder nas sociedades contemporâneas, discutindo as novas relações e o contexto para a ação coletiva. O autor considera a sociedade informacional como uma sociedade de controle, defendendo o uso da metodologia genealógica para observar protocolos e códigos como instrumentos de poder entre agentes inseridos nas sociedades em rede. Importante passagem do texto traz a discussão sobre o fato que “o indivíduo tem medo da câmara alocada no alto da via pública, mas acredita piamente que o acesso a determinado site não pode ser acompanhado” (p. 16). O autor recorre, ainda, a Kroker e Weinstein ( Data trash: the theory of virtual class , de 1994) para abordar a consolidação do poder de classe a partir da centralidade que a comunicação adquiriu em nossa sociedade, que usa as redes para ampliar suas relações comerciais ou seu poder político, de modo que “nada que se faça nas redes foge ao controle dessas classes virtuais, capitalistas da propriedade imaterial” (p. 21).

Henrique Parra (Unifesp campus Guarulhos), em “Controle social e prática hacker: tecnopolítica e ciberpolítica em redes digitais”, analisa casos concretos relativos às possibilidades de controle e acesso à informação em situações digitais concretas, buscando pensar o ativismo e a política nas redes digitais e as dinâmicas da política ciberneticamente mediada (ciberpolítica). Percebe-se no autor uma clara preocupação sobre como os modos de apropriação desses dispositivos possibilitam novos territórios de direitos, resistência, conflitos sociais e exploração econômica. Como ressalta Parra, “observamos profundas reconfigurações nas dinâmicas sociais, econômicas e políticas que exigem uma observação empírica de processos muitas vezes ‘invisíveis’” (p. 31).

Lucas Milhomens Fonseca (Ufam), em “Ciberativismo na Amazônia: os desafios da militância digital na floresta”, destaca nas primeiras linhas de seu estudo que “morar na Amazônia há quase três anos nos dá algumas oportunidades e uma perspectiva singular” (p. 51). O autor parte de tal perspectiva para refletir sobre a apropriação e uso político das novas tecnologias por movimentos sociais da Amazônia, destacando que a internet exerceu papel fundamental na visibilidade de temas relativos ao meio ambiente e à militância ecológica na região, influenciando a vida dos habitantes locais.

Alicianne Gonçalves de Oliveira (UFC), em “Limites de visibilidade e participação na esfera pública (virtual): a experiência da secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no governo Dilma Rousseff”, concentra-se na experiência das informações veiculadas no website da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), apontando aspectos positivos e negativos do portal no que tange à proposta de funcionar como uma esfera pública virtual no atendimento aos interesses dos envolvidos no processo. Em suas considerações finais, a autora ressalta que “a estrutura rígida, a publicidade carente de organização e atualização, a responsividade tímida e a porosidade inexistente fazem dessa experiência da Seppir na internet uma ação limitada em relação às características de visibilidade e discutibilidade possíveis quando se pensa em esfera pública e esfera pública virtual” (p. 97).

Lívia Moreira de Alcântara (Iesp) e Carlos Frederico de Brito d’Andréa (UFV) encerram a primeira parte do livro com o texto “Redes de movimentos sociais e intervenção na esfera pública interconectada: um estudo da Campanha Pelo Limite da Terra na internet”, apresentando um estudo quantitativo sobre como as tecnologias digitais possibilitaram e deram maior visibilidade para a divulgação da Campanha Pelo Limite da Terra, uma ação coletiva articulada de maio a outubro de 2010 pelo Fórum Nacional de Reforma Agrária (FRNA). Os autores demonstram que a internet foi fundamental para o alcance do movimento, muito embora afirmem que “essa difusão rápida pode ser positiva em termos de repercussão, mas pode não ser suficiente para sustentar os processos de mudanças estruturais na sociedade” (p. 120).

Na segunda parte do livro , Ciberpolítica, os autores propõem a discussão em torno dos impactos das novas tecnologias digitais sobre o sistema político, desde as eleições e órgãos de governo até os novos espaços de deliberação e participação na esfera pública. Nesse contexto, Cláudio Luis de Camargo Penteado (UFABC), Rafael de Paulo Aguiar Araujo (PUC-SP) e Marcelo Burgos dos Santos Pimentel (UFPB), em “Sociedade civil e políticas públicas: o uso da internet pela Rede Nossa São Paulo (RNSP) na articulação política”, afirmam já no início do ensaio que “o campo das políticas públicas está ampliando seu escopo de pesquisa incluindo temas emergentes e novas agendas de investigação” (p. 125). Desse modo, a partir da experiência da RNSP, examinam os mecanismos internos de articulação e as estratégias de ação política junto aos órgãos públicos, concluindo que a atuação da RNSP tem possibilitado o estímulo à participação política, fortalecendo os espaços já existentes de atuação e possibilitando uma reflexão sobre a democracia por parte do Estado e dos partidos políticos.

Sérgio Braga e Letícia Carina Cruz (ambos da UFPR), em “As tecnologias digitais e o mandato dos representantes: um estudo sobre o uso da internet pelos deputados estaduais brasileiros da 16ª legislatura (2007-2011)” – legislatura que corresponde à 16ª na maioria das assembleias legislativas do país –, avaliam como esse segmento das elites parlamentares fazem uso dessas tecnologias.

Seguindo nessa direção, o artigo de Marcus Abílio Gomes Pereira e Ana Raquel de Campos Braga (ambos da UFMG), “O perfil dos blogueiros de política no Brasil: uma nova elite?”, analisa o perfil socioeconômico dos blogueiros responsáveis pelos 100 blogs de política mais populares do Brasil em diferentes áreas. De acordo com os autores, no “universo pesquisado a ideologia de esquerda poderia servir de contraponto aos grandes conglomerados midiáticos, que normalmente se declaram ‘neutros’ ou, em alguns casos, são assumidamente conservadores” (p. 183).

Dimas Enéas Soares Ferreira (UFMG), em “Participação e deliberação: análise do impacto dos usos das novas tecnologias digitais na dinâmica dos orçamentos participativos de Belo Horizonte e Recife”, tomam para estudo duas relevantes experiências de Orçamento Participativo (OP) digital brasileiras até o presente momento. Ambas, Belo Horizonte e Recife, durante as gestões petistas. Ferreira destaca que a análise empírica de dados coletados evidencia a ampliação da participação nos processos de deliberação e o desenvolvimento de novas formas de interação pelas ferramentas digitais, ampliando significativamente os espaços de participação dos cidadãos em comparação com as experiências de OP presencial.

Rafael Cardoso Sampaio e Camilo Aggio (ambos da UFBA), no artigo “A democracia digital do gabinete do governador: o perfil e os limites de um modelo consultivo de participação”, examinam os aspectos positivos e os que devem ser aprimorados na experiência de governo digital na gestão Tarso Genro no Rio Grande do Sul. De acordo com os autores, “a experiência já recebeu cinco prêmios como prática inovadora de gestão pública, governo eletrônico e e-democracia” (p. 215)

A terceira e última parte do livro, Cibercultura, reúne estudos que versam sobre a emergência de formas de identidades coletivas e processos de criação simbólica que repercutem na referência cultural.

O ensaio de Rafael de Almeida Evangelista e Vanessa Oliveira Fagundes (ambos da Unicamp), “Nova ciência, novos cientistas: interação, participação e reputação em blogs de divulgação científica”, discorre sobre a participação nesse tipo de blogs , examinando as principais características do fenômeno. Destacam que “ela [a internet] deve ser vista como um meio, e não como uma solução, já que pode servir tanto a ideais libertários como opressores – assim como a muitos outros – simultaneamente” (p. 247). Lucia Mury Scalco (UFRGS), em “O desafio da conectividade e do acesso à internet pelas classes populares em perspectiva etnográfica”, reflete sobre a inclusão digital das classes populares. Para isso, descreve o impacto da informática na vida cotidiana de moradores dos bairros periféricos e demonstra, por meio da pesquisa, que as periferias urbanas são espaços mediados por uma complexa trama de política local. Jair de Souza Ramos (UFF), no artigo “Toma que o aborto é teu: a circulação de eventos críticos entre mídias em momentos de luta política”, discorre sobre o papel da internet na circulação de notícias em torno do aborto na última campanha presidencial brasileira. Ramos busca “entender o modo como as disputas políticas em torno da ocupação do Estado e da direção de políticas públicas ocorrem no ciberespaço em relação direta com seus desdobramentos off-line” (p. 295).

Encerrando o livro, o estudo de Glória Maria Diógenes (UFC), “A pichação e os signos urbanos juvenis: ‘metendo nomes’ no ciberespaço”, propõe a reflexão em torno das manifestações culturais dos pichadores em redes de relacionamento tais como o Orkut e Facebook. Conforme a autora, “para o pichador, destacar-se na multidão implica também afetar, simultaneamente, instâncias na esfera do ciberespaço, carregando a própria sujeira que permeia os espaços concretos das cidades para as redes sociais” (p. 337). Um importante aspecto presente no artigo diz respeito à possibilidade (re)construção da identidade e da subjetividade dos envolvidos, além da demarcação do território pelo usuário de uma rede social digital, na medida em que o sujeito pode selecionar os seus “amigos” e, assim, compartilhar com eles os seus feitos, anseios e particularidades.

Para concluir, podemos vislumbrar nos textos que compõem a obra uma preocupação dos autores em enfatizar o papel de destaque assumido pela internet, em especial na última década. Nesse sentido, convém destacar que as redes possibilitadas pela internet, ao gerarem novas formas de participação política, de entretenimento, de contato social, entre outros, pressupõem a sua necessária (e ainda incipiente) discussão nos ambientes formais de ensino, sobretudo pela extrema influência dessas ferramentas nos atuais acontecimentos políticos e históricos da sociedade. Nunca, em nenhum outro momento histórico, as informações puderam ser disseminadas de forma tão rápida a um quantitativo inimaginável de pessoas no globo terrestre.

Uma problematização sugerida por Castells (1999)CASTELLS, M. (1999), A sociedade em rede . São Paulo, Paz e Terra. , a ser realizada com cautela após a leitura da obra, que de forma geral considerou os aspectos positivos das redes digitais, é a de que a habilidade ou não que uma sociedade possui de dominar a tecnologia remodela os rumos societários em ritmo acelerado, traçando o destino social das populações, sendo importante enfatizar que tais transformações ocorrem de forma desigual, conforme a conjuntura política, a singularidade dos territórios e seus aspectos culturais. Baumgarten et al. (2007)BAUMGARTEN, M. et al. (2007), “Sociedade e conhecimento: novas tecnologias e desafios para a produção de conhecimento nas ciências sociais”. Sociedade e Estado , Brasília, 22 (2): 401-433. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269922007000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 out. 2016.
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consideram de suma relevância, nesse sentido, estarmos atentos às oscilações entre os atalhos “facilitadores” oferecidos pelo determinismo tecnológico e o “embotamento” promovido pelo pensamento conservador, que vê na tecnologia um inimigo.

Para além da obra, fica a sugestão ao leitor da presente resenha de que a leitura do livro seja acompanhada da reflexão em torno do alcance da mídia na disputa pela hegemonia na sociedade brasileira e das lacunas ainda a serem preenchidas por novos estudos que relacionem os aspectos políticos e culturais intrínsecos às redes digitais, tendo em vista a influência do meio digital no redimensionamento da concepção de autonomia dos sujeitos e os novos sentidos atribuídos ao tempo, espaço, consumo e ao processo de ensino e aprendizagem.

BIBLIOGRAFIA

  • BAUMGARTEN, M. et al. (2007), “Sociedade e conhecimento: novas tecnologias e desafios para a produção de conhecimento nas ciências sociais”. Sociedade e Estado , Brasília, 22 (2): 401-433. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269922007000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 out. 2016.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269922007000200007&lng=en&nrm=iso
  • CASTELLS, M. (1999), A sociedade em rede . São Paulo, Paz e Terra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017
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