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MADAME DE STAËL, BENJAMIN CONSTANT E A REAVALIAÇÃO DO ARBÍTRIO APÓS O GOLPE DO 18 FRUTIDOR * * Agradeço a Fapesp pelo apoio financeiro à pesquisa de doutorado em curso de que resultou este artigo. Agradeço também os comentários e sugestões dos pareceristas da RBCS , os quais possibilitaram o aprimoramento do artigo.

MADAME DE STAËL, BENJAMIN CONSTANT AND THE REVALUATION OF ARBITRARINESS AFTER THE COUP OF 18 FRUCTIDOR

MADAME DE STAËL, BENJAMIN CONSTANT ET LA RÉÉVALUATION DE L’ARBITRAIRE APRÈS LE COUP DU 18 FRUCTIDOR

Resumos

O artigo examina o golpe do 18 Frutidor do Ano V como um teste das proposições teórico-políticas de Madame de Staël e Benjamin Constant formuladas após o 9 Termidor. Argumenta-se que os autores concebiam a erradicação absoluta do arbítrio como o principal desafio da República termidoriana, procurando equilibrar esse desafio com o princípio da soberania do povo e a proteção da República e da ordem social contra a opinião majoritária do momento. O golpe do 18 Frutidor é interpretado como um evento que pôs à prova esse projeto, obrigando Staël e Constant a buscarem uma forma de incorporar o arbítrio ao sistema institucional de forma domesticada, evitando-se sua transformação em tirania. Decorreriam dessa revisão do lugar do arbítrio a “ditadura das instituições” de Staël e o “poder neutro” de Constant. Porém, a incerteza dos autores sobre a eficácia última de suas propostas revela uma aporia da então embrionária democracia moderna.

Benjamin Constant; Madame de Staël; Arbítrio; Soberania do Povo; Revolução Francesa; República


The article examines the Coup of 18 Fructidor, Year V, as a test of the political-theoretical propositions formulated by Madame de Staël and Benjamin Constant after the 9 Thermidor. It is argued that the authors conceived the absolute eradication of arbitrariness as the main challenge to the Thermidorian Republic, seeking to balance this challenge with the principle of the sovereignty of the people and the protection of the Republic and of the social order against the majority opinion of the moment. The Coup of 18 Fructidor is interpreted as an event that put this project under exam, compelling Staël and Constant to seek out a way of incorporating arbitrariness to the institutional system in a tamed manner, so as to avoid its transformation into tyranny. Followingthis reassessment of the place of arbitrariness came Staël’s “dictatorship of institutions” and Constant’s “neutral power”. Nevertheless, the uncertainty of both authors about the ultimate efficacy of their proposals reveals an aporia of the embryonic modern democracy.

Benjamin Constant; Madame de Staël; Arbitrariness; Sovereignty of the People; French Revolution; Republic


L’article examine le coup d’État du 18 Fructidor an V comme une épreuve despropositions théorico-politiques par Madame de Staël et Benjamin Constant après le 9 Thermidor. Nous argumentons que ces auteurs concevaient l’éradication absoluede l’arbitraire comme le principal défi posé à la République thermidorienne, tout encherchant à équilibrer ce défi avec le principe de la souveraineté dupeuple et de la protection de la République et de l’ordre social contre l’opinion majoritairedu moment. Le coup du 18 Fructidor est interprété comme un évènement qui a mis ceprojet à l’épreuve, en contraignant Mme de Staël et B. Constantà chercher une manière d’incorporerl’arbitraire au système institutionnel de façon domestiquée, en évitant qu’il ne se transforme en tyrannie. Les produits théoriques de cette révision de la place de l’arbitraire seraientla « dictature des institutions » de Mme de Staël et le « pouvoir neutre » de B. Constant.Néanmoins, l’incertitude des auteurs sur l’efficacité ultime de leurs propositions révèleune aporie de la démocratie moderne, alors en état embryonnaire.

Benjamin Constant; Madame de Staël; Arbitraire; Souveraineté du Peuple; Révolution française; République


Introdução

Já é conhecida a centralidade dos escritos políticos de Madame de Staël e Benjamin Constant após o 9 Termidor para o “nascimento da cultura liberal pós-revolucionária na França”, para utilizar uma expressão de Paulo Cassimiro ( 2016aCASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. (2016a), “A impossível liberdade dos antigos: Germaine de Staël, Benjamin Constant e o nascimento da cultura liberal pós-revolucionária na França”. Estudos Políticos , 7 (1): 5-25. ). Uma bibliografia relativamente vasta tem destacado a fase “termidoriana” de Staël e Constant como o momento de articulação embrionária de uma série de elementos teóricos que fornecerão o núcleo da identidade do liberalismo político francês do século XIX, com repercussão importante para a constituição do liberalismo em geral como ideologia central da modernidade política. São esses elementos: a articulação de uma concepção de “liberdade dos modernos” centrada nos valores da autonomia individual e dos direitos civis, a qual se diferencia da “liberdade dos antigos” centrada no autogoverno coletivo e na participação direta dos cidadãos no exercício da soberania; o desenvolvimento de uma concepção da história da civilização ocidental como progresso inexorável rumo ao reino da igualdade civil, à suavização dos costumes e à difusão das luzes; a teorização da separação entre Estado e sociedade civil como a grande conquista da modernidade, a qual permite proteger a privacidade individual das invasões estatais ao mesmo tempo que funda a legitimidade do poder político sobre o império da opinião pública exercido no reino da sociedade civil; a defesa do governo representativo entendido como regime distinto da “democracia pura”, o qual, conciliando elementos democráticos e aristocráticos, 1 1 Sobre a concepção moderna de governo representativo como regime distinto da democracia, amalgamando elementos democráticos e aristocráticos, a referência central é Manin (1995) . constituía uma alternativa de centro entre a restauração monárquica pregada pelos contrarrevolucionários e a democracia radical pregada pelos herdeiros dos jacobinos e ancestrais dos socialistas. 2 2 Como exemplos dessa bibliografia que analisa Staël e/ou Constant como articuladores pioneiros desses elementos teóricos definidores do liberalismo, destacamos: Gauchet (1980) , Holmes (1984) , Manent (1987) , Jaume (1997) e Cassimiro (2016a ; 2016b ).

O presente artigo parte dos achados dessa literatura, porém lança a Staël e Constant questões diferentes das mobilizadas tradicionalmente. Não indaga quais foram as contribuições que os dois autores puderam acrescentar, no contexto termidoriano, para a gênese do que posteriormente seria conhecido como liberalismo político francês. Ao contrário, indaga quais foram as dificuldades que o contexto político particular da França termidoriana apresentou ao pensamento dessas duas personagens ansiosas por intervir nos acontecimentos políticos de sua época, bem como as tensões que essas dificuldades imprimiram inevitavelmente em suas teorizações políticas.Essas indagações têm uma razão metodológica. Em primeiro lugar, trata-se de assumir a crítica de Quentin Skinner ao que ele chamou de “mitologia da coerência” (Skinner, 2002a, p. 67) – ou seja, a crítica à ideia de que o comentador de textos políticos do passado teria como tarefa recuperar, na obra dos grandes teóricos políticos, uma suposta coerência interna de sistema que não seria evidente pela simples leitura dos escritos do teórico político em questão. Parte-se aqui da constatação de que a mitologia da coerência tem sido a orientação dominante nos estudos recentes sobre Staël e Constant. Apesar de reconhecerem que os dois autores passaram suas vidas mudando incessantemente suas posições políticas e reformulando com o mesmo ardor suas proposições teóricas, seus principais estudiosos tendem a argumentar que o interesse da teoria política moderna por suas obras não reside nessas inconstâncias relatadas em geral de modo anedótico, mas, ao contrário, no fato de que, acima dessas flutuações explicadas por razões biográficas ou de circunstância política, haveria uma teoria política coerente que lançaria as bases do liberalismo moderno, pelo menos em sua vertente francesa ( Gauchet, 1980GAUCHET, Marcel. (1980),“Benjamin Constant: l’illusion lucide du libéralisme”, in B. Constant, De la liberté chez les modernes, écrits politiques , Paris, Librairie Générale Française. ; Holmes, 1984HOLMES, Stephen. (1984), Benjamin Constant and the making of modern liberalism . New Haven (CT), Yale University Press. ; Fontana, 1991FONTANA, Biancamaria. (1991), Benjamin Constant and the post-revolutionary mind . New Haven (CT)/Londres, Yale University Press. ).

Inspirando-se na história conceitual do político proposta por Pierre Rosanvallon (assim como em aspectos metodológicos propostos por Skinner, como sua crítica da mitologia da coerência enunciada acima), este artigo contesta que as reações de Staël e Constant aos acontecimentos políticos circunstanciais de sua época, bem como as tensões intelectuais e mudanças de posição derivadas dessas reações, sejam de interesse menor se comparadas à suposta teoria política liberal coerente que pairaria acima dessas respostas às questões de conjuntura. A referência da orientação metodológica aqui adotada é o duplo objetivo da história conceitual do político de Rosanvallon:“1) fazer a história da maneira como uma época, um país ou grupos sociais buscam construir respostas ao que eles percebem mais ou menos confusamente como um problema; 2) fazer a história do trabalho operado pela interação permanente entre a realidade e sua representação, definindo campos histórico-problemáticos”(Rosanvallon, 1986, p. 100). 3 3 Todas as citações foram traduzidas por mim.

A “história do trabalho operado pela interação permanente entre a realidade e sua representação” proposta por Rosanvallon implica que o estudo de autores/atores políticos que buscavam responder a questões de sua época (como é o caso de Staël e Constant) não pode se limitar a expor as teorias que eles formularam. Essas teorias devem ser pensadas na tensão interativa com a realidade política sobre a qual eles procuravam intervir. Em seu estudo sobre Guizot, Rosanvallon propõe “não separar seus escritos de sua prática”, compreendendo sua obra como “o sistema histórico de sua interação. Uma obra é ao mesmo tempo projeto e prova” (Rosanvallon, 1985, pp. 266-267). Assim, contestando a abordagem que separava o grande historiador e teórico político da Restauração, cujo interesse seria intelectual, do ministro inflexível e conservador da Monarquia de Julho, cujo interesse seria histórico, o autor propõe pensar a atuação de Guizot durante a Monarquia de Julho como um teste de seu sistema conceitual formulado durante a Restauração, analisando a deriva intelectual e política do doutrinário com base nesse teste fornecido pela experiência, o qual gerou tensões irresolúveis em seu pensamento.

Este artigo tem o objetivo de examinar o golpe do 18 Frutidor do Ano V (4 de setembro de 1797) como um teste às formulações teórico-políticas iniciais de Staël e Constant, analogamente ao modo como Rosanvallon fez da Monarquia de Julho um teste do pensamento político de Guizot. Na primeira parte, serão analisadas as proposições do período entre 1795 e 1797 que serão testadas no evento crucial de 1797. Atenção especial será conferida ao modo como Staël e Constant formulam a extirpação absoluta do arbítrio como o principal desafio da República saída do 9 Termidor, argumentando-se ao mesmo tempo que essa negação do arbítrio não era um simples princípio normativo advogado pelos dois autores, mas um verdadeiro problema a ser resolvido na equação política que envolvia admissão do princípio da soberania do povo e proteção da República e da ordem social contra a opinião majoritária do momento. A segunda parte do artigo analisa e compara as respostas dos dois autores ao golpe do 18 Frutidor, procurando remeter as dificuldades encontradas por eles às tensões internas da então embrionária democracia moderna. Argumenta-se que a defesa inicial que Constant faz do golpe explicita uma contradição que os dois autores procurarão resolver em seus escritos posteriores. O modo encontrado de resolver essa contradição é incorporar à teoria o arbítrio que se queria antes extirpar, procurando-se domesticá-lo para não o transformar em tirania. Segundo este artigo, Staël incorpora e domestica o arbítrio sob a forma da “ditadura das instituições”. Constant, por outro lado, vê a proposta de sua companheira como frágil, formulando a teoria do poder neutro como uma forma alternativa e tida como mais eficaz de neutralizar o arbítrio. O artigo conclui que as incertezas dos dois autores sobre a eficácia última de suas propostas apontam para uma aporia incontornável da democracia moderna, a qual exige um espaço para o arbítrio sem fornecer uma resposta pronta à questão de como neutralizá-lo.

I

Este artigo propõe a extirpação do arbítrio da vida política como o problema central formulado por Staël e Constant nos anos de 1795 a 1797, com repercussão determinante para a teoria política desenvolvida ao longo de todo o restante de suas vidas. Para ambos os autores, a liberdade a ser construída e consolidada na República que acabava de se livrar do jugo jacobino deveria ser aquela que permitisse a cada cidadão, individualmente, não estar sujeito à vontade arbitrária de outrem – o que só seria possível se as ações exercidas no campo político fossem reguladas por leis fixas consentidas pelo conjunto da comunidade política, sem que nenhum ator pudesse transgredir essas leis fixas mediante apelo a alguma necessidade, contingência ou situação excepcional.

A definição de liberdade enunciada acima corresponde àquela proposta por autores centrais do republican revival , como Philip Pettit e Quentin Skinner, os quais definem a liberdade republicana pela fórmula “não dominação”, entendendo por isso justamente a condição que permite ao cidadão de uma República livre não estar sujeito à imposição de uma vontade arbitrária por parte de um agente mais poderoso (Pettit, 1997; Skinner, 1998SKINNER, Quentin. (1998), Liberty before liberalism . Cambridge, Cambridge University Press. ; 2002b). É verdade que atribuir essa concepção de liberdade a Staël e Constant pode parecer um contrassenso, dado que Pettit e Skinner a atribuem a uma tradição republicana que teria sido derrotada e eclipsada justamente pelo liberalismo ascendente no final do século XVIII e início do XIX, ao qual os nomes de Staël e Constant são inevitavelmente ligados. Em uma leitura tradicional da história das ideias políticas, que Pettit e Skinner contribuíram para reforçar, a oposição entre “liberdade dos antigos” e “liberdade dos modernos” desenvolvida por Staël e Constant teria exercido a função de rejeitar a “liberdade republicana”, a qual seria entendida por eles como um ideal positivo de liberdade associado ao autogoverno coletivo, e celebrar como a liberdade própria dos modernos apenas a “liberdade liberal”, entendida como um ideal negativo de não interferência. Residiria aí o fundamento da oposição entre liberdade positiva e negativa consagrada por Isaiah Berlin mais de um século depois (Berlin, 1958), a qual exerceria a função ideológica de eclipsar a possibilidade e a existência histórica de um terceiro conceito de liberdade: o conceito republicano de liberdade como não dominação.

Todavia, uma outra literatura contesta essa narrativa do “golpe” 4 4 A expressão é de Pettit (1997 , p. 50). do liberalismo contra o republicanismo, compreendendo o primeiro como fruto de uma mutação interna do segundo que conservou muitos de seus aspectos. No lugar da oposição inconciliável entre republicanismo e liberalismo que os teóricos neorrepublicanos constroem no plano analítico-normativo para depois aplicarem à história das ideias, essa literatura atenta para o fato de que, historicamente, as linguagens republicana e liberal aparecem em muitos momentos entrelaçadas nos mesmos autores. Para Andreas Kalyvas e Ira Katznelson (2008), o liberalismo nasceu do interior do espírito republicano, como um esforço para adaptá-lo às revoluções políticas, econômicas e sociais do século XVIII e início do XIX. Segundo Andrew Jainchill (2008)JAINCHILL, Andrew. (2008), Reimagining politics after the Terror: the republican origins of French liberalism . Ithaca (NY)/Londres, Cornell University Press. , o liberalismo político moderno recebe seus primeiros contornos na França dos anos de 1794 a 1804, quando o republicanismo clássico era a linguagem política dominante, de modo que esse liberalismo nascente foi profundamente influenciado por temas e questões do republicanismo clássico, permitindo-nos falar em um “republicanismo liberal” que reside na base dos principais autores do liberalismo político francês do século XIX, como Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville.

À luz de contribuições como as de Kalyvas, Katznelson e Jainchill, falar de uma concepção de liberdade como não dominação em Staël e Constant não aparece mais como um contrassenso. Longe de serem liberais ortodoxos que se encerraram dogmaticamente em uma concepção de liberdade como não interferência e recusaram qualquer compreensão de liberdade como não dominação, esses autores se encontravam em uma transição entre republicanismo clássico e liberalismo moderno na qual a concepção de liberdade como não dominação era a que se apresentava mais naturalmente. É o que se extrai da evidência textual de seus escritos políticos do período entre 1795 e 1797, quando o arbítrio é concebido como o principal obstáculo à liberdade a ser combatido.

Se tomarmos como referência o principal texto político de Staël desse período, Réflexions sur la paix intérieure (1795), encontramos a liberdade civil como o maior bem a ser garantido pela República proprietária que, na visão da autora, deveria ser fundada naquele momento de retorno à ordem constitucional cerca de um ano após a queda de Robespierre, possibilitando o encerramento da Revolução Francesa por meio de uma aliança entre monarquistas constitucionais e republicanos moderados. Para a concretização dessa aliança centrista que permitiria sustentar a nova República termidoriana, os primeiros precisariam abrir mão da realeza e os segundos precisariam abrir mão da democracia (entendida aqui como império do número, dos não proprietários).O monopólio do sufrágio pela classe proprietária aparece assim como a base social indispensável para que a República se estabilize e não pereça precocemente em meio a novas desordens e revoluções. 5 5 Staël pregava uma restrição do sufrágio muito mais profunda do que a adotada efetivamente pela Constituição de 1795, a qual se limitou a exigir o pagamento de uma contribuição direta, de modo a excluir os indigentes ( Troper, 2006 ). Se uma parte enorme da nação francesa deveria, segundo Staël, ser privada do direito de voto, qual seria a liberdade a ser gozada pela universalidade dos membros da nação, da qual a autora não excluía aqueles que ela não considerava como aptos para votar? A liberdade civil, entendida como proteção contra a dominação, contra a submissão à vontade arbitrária de outrem:

Os verdadeiros bens estão contidos nessa liberdade. [...]A liberdade política está para a liberdade civil assim como a garantia está para o objeto que ela cauciona; ela é o meio, não o objeto; e o que mais contribuiu para tornar a Revolução Francesa tão desordenada foi o deslocamento de ideias que se fez a esse respeito. Queria-se a liberdade política em detrimento da liberdade civil: o resultado era que só havia aparência de liberdade para os governantes e esperança de segurança nos poderes; ao passo que, em um estado verdadeiramente livre, é o contrário que deve ocorrer. O direito político deve ser considerado como um tributo que se paga à pátria; é montar a guarda, é exercer os deveres de cidadão; mas o fruto desses sacrifícios é a liberdade civil. O direito político importa aos ambiciosos que desejam o poder. A liberdade civil interessa aos homens pacíficos que não querem ser dominados ( Staël, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. (2009), Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution . Org. Lucia Omacini. Paris, Honoré Champion. , p. 168).

Essa eloquente passagem das Réflexions torna difícil concordar com a afirmação de Kalyvas e Katznelson segundo a qual, na fase “republicana” de Staël (isto é, antes da virada “liberal” que teria representado, segundo os autores, a publicação de Del’Allemagne , em 1810),“a liberdade individual desempenha um papel secundário e instrumental, uma garantia da liberdade política” ( Kalyvas e Katznelson, 2008KALYVAS, Andreas & KATZNELSON, Ira. (2008), Liberal beginnings: making a republic for the moderns . Cambridge, Cambridge University Press. , p. 129). A autora é explícita em considerar a liberdade política como uma garantia da liberdade civil entendida como proteção contra o arbítrio, sendo a primeira um instrumento a ser utilizado pelos mais capazes de empregá-lo segundo sua destinação (os proprietários), e a segunda, um bem universal a ser garantido para a totalidade dos cidadãos. A citação de Staël reproduzida acima ecoa uma passagem de Maquiavel sem dúvida bastante conhecida em seu meio republicano, a respeito da fonte do desejo de liberdade do povo: “alguns, mas em pequeno número, a desejam para comandar; mas todos os outros, que são bem mais numerosos, desejam ser livres apenas para viver em segurança” ( Machiavel, 1985MACHIAVEL, Nicolas. (1985), Discours sur la première décade de Tite-Live . Paris, Flammarion. , p. 76). Em outras palavras, a participação política só seria um bem verdadeiro para os ambiciosos pertencentes à elite social. O que se tratava de oferecer ao conjunto da nação francesa era a erradicação do arbítrio.

No entanto, foi Constant quem fez da crítica impiedosa do arbítrio a marca registrada de seus escritos políticos, desde os primeiros panfletos publicados pouco após sua chegada a Paris em 1795, na companhia de Staël, assim como da erradicação absoluta do arbítrio a condição fundamental para o término da Revolução Francesa e a consolidação da República. A conclusão de De la force du gouvernement actuel de la France et de la nécessité de s’yrallier , o panfleto de 1796 que tornou Constant conhecido, constitui uma exortação para que o governo republicano abandone todas as possíveis fontes de poder arbitrário e as substitua por mecanismos legais. O “arbitrário”, categoria central em todo o pensamento de Constant, é definido em oposição ao “legal”, e caberia prioritariamente ao governo a tarefa de substituir o primeiro pelo segundo, com vistas não apenas à garantia da liberdade entendida como não dominação, mas também à consolidação da força do próprio governo republicano, já que apenas os mecanismos legais confeririam uma força regular e durável: “Em tudo o que a salvação pública exige, há duas maneiras de proceder, uma legal, a outra arbitrária. No longo prazo, é sempre com a primeira, mesmo sendo ela mais lenta, que o governo se encontra melhor. Apenas ela pode lhe dar uma dignidade e uma força duráveis” (Constant, 1998, pp. 377-378).

Em Des réactions politiques , publicado em abril de 1797, Constant aprofunda sua crítica do arbítrio. “Prevenir contra o arbítrio” e “ligar aos princípios” ( Idem , p. 505) aparecem como objetivos dessa obra que tem como título de um de seus capítulos mais importantes “De l’arbitraire”. A justificação do arbítrio por circunstâncias excepcionais é severamente criticada, retomando-se o argumento de De la force du gouvernement segundo o qual “Se não se presta atenção, haverá sempre circunstâncias a invocar contra os princípios” ( Idem , p. 377). Nenhuma circunstância poderia justificar o arbítrio na medida em que todo ato arbitrário prepararia outro de mesma natureza, de modo que mesmo o arbítrio utilizado para combater um mal não faria mais do que empurrar para um futuro distante o doce império da lei.

Pode-se argumentar, é verdade, que a condenação implacável do arbítrio e sua oposição ao império das leis e dos princípios não era uma particularidade de Constant, mas um topos comum na elite política termidoriana, a qual mobilizava esse topos principalmente para se diferenciar do Terror jacobino vigente até pouco tempo antes. Pierre-Louis Roederer, jornalista ativo e influente ao longo de toda a Revolução Francesa, já havia tratado o arbítrio de modo próximo a Constant em um celebrado discurso sobre o Terror lido por Tallien à Convenção em 1795 ( Roederer, 1854ROEDERER, Pierre-Louis. (1854), Œuvres du Comte P. L. Roederer . Paris, Firmin-Didot, t. III . , pp. 57-65). O mesmo Roederer elogiou o capítulo “De l’arbitraire” de Des réactions politiques , após haver criticado severamente o restante do livro de Constant em resenha publicada no Journal d’Économie Publique, de Morale et de Politique ( Roederer, 1797ROEDERER, Pierre-Louis. (1797), “Des Réactions Politiques, par Benjamin Constant”. Journal d’Économie Publique, de Morale et de Politique , 3: 301-311. , p. 310), demonstrando que a crítica do arbítrio era de certa forma o aspecto menos controverso das posições apresentadas pelo jovem autor suíço.

Entretanto, a oposição de Constant ao arbítrio assumia contornos mais radicais do que os apresentados em seu meio político. Embora esse maior radicalismo se apresentasse de modo sutil, ele engendrava tensões que se explicitaram após o golpe do 18 Frutidor, como se procurará demonstrar. Ilustrativa dessa particularidade de Constant no modo de se opor ao arbítrio foi sua controvérsia com Adrien de Lezay-Marnésia sobre o Terror. Este publica em 1797 Des causes de la Révolution et de ses résultats , um livro que apresenta o Terror como uma fase necessária da Revolução Francesa, justificando-o pelo momento que a Revolução atravessava e pelas dificuldades que era preciso superar. Não que Lezay fosse simpático aos jacobinos. Próximo de Roederer, em cujos jornais ele colaborou ativamente, o autor de Des causes de la Révolution era partidário de uma República governada por proprietários e sustentada pelo desejo dominante de ordem e repouso – um ideal não muito distante do de Constant, e principalmente do de Staël. Ocorre que, em sua interpretação da Revolução Francesa, o desejo de ordem e repouso só poderia ter se tornado a paixão dominante no final da Revolução, no momento pós-termidoriano em que ele inscrevia. Em 1793, a Revolução já não seria mais sustentada pelo fervor do povo e não poderia ainda o ser por sua lassidão, pois esta ainda não haveria se tornado o estado predominante da nação. Assim, o único recurso disponível para sustentar a Revolução e salvá-la de seus perigos teria sido, naquele momento, o Terror ( Lezay-Marnésia, 1797LEZAY-MARNÉSIA, Adrien. (1797), Des causes de la Révolution et de ses résultats . Paris, Mathey-Desenne-Maret. , p. 28).

Em resposta, Constant escreve em maio-junho de 1797 Des effets de laTerreur , argumentando, contra Lezay, que as medidas arbitrárias que caracterizaram o Terror não eram necessárias para salvar a Revolução e a República dos perigos que elas enfrentavam. Esses perigos teriam sido combatidos de modo muito mais eficaz por meios puramente legais, e as medidas arbitrárias do Terror não teriam feito mais do que criar novos perigos e obstáculos para a Revolução, muitos dos quais perduravam no momento em que Constant escrevia(Constant, 1998, pp. 515-529).

Como entender a controvérsia entre Constant e Lezay sobre o Terror (precursora, em muitos sentidos, de toda a disputa intelectual e política sobre a Revolução Francesa nos dois séculos seguintes), já que ambos não pertenciam a campos políticos imediatamente antagônicos, não sendo nenhum dos dois nem jacobino nem contrarrevolucionário? Até o momento, nenhum dos poucos autores que se debruçaram sobre esse debate termidoriano pareceu fornecer uma resposta completamente satisfatória a essa questão ( Furet, 1983FURET, François. (1983),“Une polémique thermidorienne sur la Terreur: autour de Benjamin Constant”. Passé Présent , 2: 44-55. , 1989FURET, François. (1989),“La Terreur sous le Directoire”, in F. Furet e M. Ozouf (orgs.), The French Revolution and the creation of modern political culture. Vol. 3: The transformation of political culture 1789-1848, Oxford/Nova York, Pergamon. ; Raynaud, 1988RAYNAUD, Philippe. (1988), “Préface”, in B. Constant, De la force du gouvernement actuel de la France et de la nécessité de s’y rallier; Des réactions politiques; Des effets de la Terreur, Paris, Flammarion. ; Gauchet, 1989GAUCHET, Marcel. (1989),“Constant, Staël et la Révolution française”, in F. Furet e M. Ozouf (orgs.), The French Revolution and the creation of modern political culture. Vol. 3: The transformation of political culture 1789-1848, Oxford/Nova York, Pergamon. ; Barberis, 1998BARBERIS, Mauro. (1998), “Introduction”, in B. Constant, Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1795), Tübingen, Max Niemeyer. , pp. 509-512; Florenzano, 2001FLORENZANO, Modesto. (2001),“Da força sempre atual do pensamento de Benjamin Constant e da necessidade de reconhecê-lo”. Revista de História , 145: 167-179. ). Segundo a hipótese aqui desenvolvida, a polêmica se devia menos a uma divergência normativa sobre a questão do arbítrio do que a interpretações diferentes da Revolução Francesa e do momento em que os autores escreviam. Em poucas palavras, Constant não podia concordar com o diagnóstico de Lezay segundo o qual o 9 Termidor havia marcado a entrada em uma etapa completamente nova da Revolução, em que o desejo de repouso havia se tornado a paixão dominante. Na interpretação de Lezay sobre as três fases da Revolução (a primeira, marcada pelo fervor do povo; a segunda, pelo esfacelamento desse fervor e pela inexistência ainda de um estado de lassidão geral; a terceira, pela lassidão e pelo desejo geral de ordem e repouso), o arbítrio podia ser justificado para a segunda fase da Revolução sem que essa justificação tivesse consequência negativas para a terceira fase (ou seja, para o momento pós-termidoriano em que os autores se encontravam). Embora o Terror fosse um passado ainda recente, ele é interpretado por Lezay como fruto de um momento histórico qualitativamente diferente, no qual as paixões dominantes não eram as mesmas. É justamente essa interpretação de um tempo histórico qualitativamente diferente que Constant contesta. Embora seu desejo também fosse terminar a Revolução Francesa, ele não era tão otimista quanto Lezay a ponto de declarar, como este,que após o 9 Termidor ela já estava terminada, podendo ser sustentada no anseio geral de ordem e repouso. No lugar dessa interpretação, o autor suíço desenvolve, em Des réactions politiques , a teoria das reações políticas, argumentando que, quando as revoluções ultrapassam seu objetivo histórico (a obtenção de um acordo entre as instituições e as ideias de uma época), como havia sido o caso da Revolução Francesa a partir de 1793, elas são seguidas de reações, ou seja, de movimentos retrógrados que, aproveitando-se dos abusos cometidos pelos revolucionários quando eles vão além de sua missão específica, buscam restabelecer as instituições derrubadas nos primeiros momentos da Revolução e utilizar o arbítrio para perseguir os homens comprometidos com os ideais revolucionários ( Constant, 1998CONSTANT, Benjamin. (1998), Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1799).Tübingen, Max Niemeyer. , pp. 457-460). Constant caracteriza o momento em que escreve como marcado pelo espírito de reação. Em outras palavras, o Terror jacobino não teria produzido um anseio geral por ordem e repouso, como na leitura otimista de Lezay, mas uma ânsia por se reapropriar do arbítrio utilizado pelos jacobinos agora com finalidades contrarrevolucionárias, para restabelecer os privilégios do Antigo Regime e perseguir os republicanos. É essa interpretação do momento termidoriano que opõe Constant à dupla Roederer-Lezay. Roederer expressou bem essa divergência em sua resenha de Des réactions politiques , procurando demonstrar que, segundo a própria teoria de Constant que afirma a necessidade de que as ideias e as instituições de uma época entrem em acordo, as reações políticas são uma impossibilidade lógica: “[...] se o acordo entre as ideias e as instituições assegura a permanência destas, este acordo se encontra na abolição dos privilégios e no respeito das propriedades. Quando as propriedades foram atacadas, foi necessária uma reação contra as leis e os homens devastadores. Foi o que aconteceu no 9 Termidor. Então, as ideias precisaram entrar em acordo com as instituições, portanto, não deve mais haver reação” ( Roederer, 1797ROEDERER, Pierre-Louis. (1797), “Des Réactions Politiques, par Benjamin Constant”. Journal d’Économie Publique, de Morale et de Politique , 3: 301-311. , p. 302).

Assim, para Roederer e Lezay, o 9 Termidor marca a entrada em um tempo histórico qualitativamente diferente do precedente, no qual as ideias e as instituições já se puseram definitivamente em acordo, o povo deseja ordem e repouso e, portanto, a Revolução já terminou. Para Constant, ao contrário, o tempo histórico não é tão diferente assim do precedente, pois o acordo definitivo entre ideias e instituições é mais difícil de alcançar. A Revolução não estaria terminada, mas diante de um novo perigo, talvez mais temível do que os precedentes: o espírito de reação. Esse espírito traz novamente à tona, em sua visão, o problema do arbítrio, dessa vez em uma dupla perspectiva: de um lado, a ameaça mais evidente de que as forças da reação utilizem o arbítrio para perseguir os republicanos; de outro lado, o perigo de que o próprio governo republicano se sinta impelido a utilizar o arbítrio para combater a reação. É esse segundo perigo que leva Constant a alertar o governo republicano para o perigo das medidas arbitrárias. E é também esse segundo perigo que o leva a criticar a justificação do Terror jacobino por parte de Lezay. Para este, justificar o emprego do arbítrio naquele momento da Revolução não teria implicações negativas em um novo contexto marcado por um tempo histórico qualitativamente diferente. Constant via a questão de outro modo: se o arbítrio jacobino pudesse ser justificado pelas dificuldades que a Revolução atravessava naquele momento, o governo atual poderia justificar do mesmo modo o recurso ao arbítrio, já que a Revolução continuava enfrentando dificuldades e se via agora perante o desafio de lidar com espírito de reação.

Vê-se, assim, que a extirpação do arbítrio não era para Constant um simples princípio normativo, mas um verdadeiro problema político. Esse problema se manifestava na difícil equação que envolvia equilibrar ao mesmo tempo a admissão do princípio da soberania do povo e a proteção da República contra a opinião majoritária do momento, tomada pelo espírito de reação. O princípio da soberania do povo era encarado por Constant como parte integrante do republicanismo ao qual ele adere fervorosamente durante todo o período do Diretório e do Consulado. Como Staël, o autor não concebia a República como uma simples forma de governo, mas como um conjunto de princípios (a palavra lhe era cara) a serem aplicados à política. Entre esses princípios, aquele segundo o qual ninguém pode ser submetido a leis de cuja elaboração não participou. A única particularidade da aplicação desse princípio às sociedades modernas seria que essa aplicação exigiria um princípio intermediário, o da representação política ( Constant, 1998CONSTANT, Benjamin. (1998), Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1799).Tübingen, Max Niemeyer. , p. 492).Contudo, Constant, diferentemente de Rousseau, não via a representação como uma negação do princípio da soberania do povo, mas como um modo de aplicá-lo a uma sociedade numerosa e complexa.

O desafio era equilibrar o princípio da soberania do povo com a contenção da vontade imediata expressa pela maioria do povo em um dado mo- mento. Esse problema já havia sido enfrentado por Staël em sua justificação da exclusão dos não proprietários da participação política, nas Réflexions . Ela percebe que essa exclusão poderia ser vista como uma negação do princípio da soberania do povo, o qual ela admite tanto quanto seu companheiro como fundamento da República: “Mas, dirão, os não proprietários são a maioria da nação, e é para essa maioria que o governo deve ser constituído” ( Staël, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. (2009), Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution . Org. Lucia Omacini. Paris, Honoré Champion. , p. 167). A autora estabelece então uma distinção entre a maioria do momento e a maioria durável da nação. A maioria do momento apresentaria sempre o interesse de revolucionar a ordem social existente, por estar insatisfeita com sua posição atual. Para revolucionar a ordem social, essa maioria do momento começaria pela abolição da propriedade. Por outro lado, o interesse da maioria durável da nação seria a conservação da propriedade, por ser ela o fundamento da ordem social ( Idem , p. 167). Para que o governo republicano atendesse, assim, à vontade e aos interesses da maioria durável da nação, ele deveria ser independente de sua maioria momentânea.

Constant desenvolve um raciocínio análogo ao de Staël, mas, em conformidade com sua estratégia de “perseguir ‘pela esquerda’ a política deunião à República que sua companheira conduzia ‘pela direita’” ( Barberis, 1998BARBERIS, Mauro. (1998), “Introduction”, in B. Constant, Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1795), Tübingen, Max Niemeyer. , p. 293), seu foco principal (ao menos nos escritos do Diretório) não é a independência da ordem social em relação à vontade dos não proprietários, mas a independência do regime republicano em relação à opinião pública realista. Sua linha de argumentação é completamente derivada de seu diagnóstico, examinado acima, do momento termidoriano como marcado pelo espírito de reação, em resposta aos excessos do jacobinismo. A fim de que esse espírito de reação não comprometesse o regime republicano, o autor de De la force du gouvernement se insurge contra os que, oportunisticamente, derivam do princípio da soberania do povo a necessidade de que o governo republicano faça “um recenseamento perpétuo das vozes, por ou contra a República” ( Constant, 1998CONSTANT, Benjamin. (1998), Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1799).Tübingen, Max Niemeyer. , p. 341).Constant ironiza os que reivindicam que o governo seja imparcial, recenseando constantemente quais são as opiniões majoritárias do povo. Distinguindo justiça e imparcialidade, o autor afirma que a República só pode ser dirigida por quem seja parcial em favor das instituições republicanas ( Idem , p. 341). Os cidadãos que ainda não são partidários convictos da República não deveriam ser perseguidos por isso, mas Constant os considera impróprios para dirigir as instituições republicanas. Assim, a alma da República não deve ser a vontade do povo expressa a cada momento, mas as convicções específicas do partido republicano, aquele que já adotou e defende com paixão a República.

O texto De la faiblesse d’un gouvernement qui commence, et de la nécessité où il est de se rallier à la majorité nationale , publicado por Lezayem 1796, é comumente apresentado como uma crítica a essa posição assumida por Constant em De la force du gouvernement . 6 6 No entanto, Roederer escreve em seu Journal de Paris que “as duas obras não têm nada de relativo uma à outra” ( Roederer, 1857 , p. 87), atribuindo a Louvet a tese equivocada de que um livro seria uma refutação do outro. Os comentadores costumam entender essa divergência entre Constant e Lezay como a que ocorre entre um republicano radical e um monarquista moderado – o primeiro desejando manter a República mesmo contra a opinião dominante, o segundo aproveitando a inclinação direitista da opinião pública para pregar uma restauração da monarquia constitucional ( Barberis, 1998BARBERIS, Mauro. (1998), “Introduction”, in B. Constant, Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1795), Tübingen, Max Niemeyer. , p. 450; Florenzano, 2001FLORENZANO, Modesto. (2001),“Da força sempre atual do pensamento de Benjamin Constant e da necessidade de reconhecê-lo”. Revista de História , 145: 167-179. , p. 175). Este artigo diverge dessa linha de interpretação – até porque não há nenhum trecho do texto de Lezay que permita classificá-lo como monarquista, mesmo constitucional –, entendendo essa divergência entre Constant e Lezay à luz da mesma questão que os opõe, de modo ainda mais explícito, sobre a avaliação do Terror no ano seguinte: a interpretação da Revolução Francesa e do momento termidoriano. Se Lezay prega que o governo se una à maioria nacional, é porque interpreta essa maioria nacional como dominada, desde o 9 Termidor, pelo desejo de ordem e repouso ( Lezay-Marnésia, 1796LEZAY-MARNÉSIA, Adrien. (1796), De la faiblesse d’un gouvernement qui commence, et de la nécessité où il est de se rallier à la majorité nationale . Paris, Mathey-Desenne-Maret. , pp. 12-13). Se Constant prega a independência do governo em relação à maioria nacional, é porque interpreta, ao contrário, que os excessos do jacobinismo não incutiram na maioria nacional o desejo de ordem e repouso, mas antes o espírito de reação.

As eleições legislativas de 1797, nas quais a direita contrarrevolucionária foi a grande vitoriosa, acabaram mostrando o diagnóstico de Constant como mais realista. Isso não diminui em nada a tensão interna ao projeto político elaborado pelo jovem autor suíço entre 1795 e 1797 – tensão análoga à do projeto político elaborado por Staël no mesmo período. A tensão era justamente entre a admissão do princípio da soberania do povo e a preocupação de proteger o regime republicano contra a opinião majoritária do momento. A crítica radical de Constant ao arbítrio adquire sua verdadeira dimensão no interior dessa tensão sentida por ele próprio. Era justamente porque o governo republicano precisava se manter independente da opinião dominante que Constant promove uma crítica tão implacável do arbítrio – incluindo aí o arbítrio do Terror que até Lezay foi capaz de justificar. Ele sabia que um governo oriundo da soberania do povo e confrontado com uma opinião pública agitada pelo espírito de reação se sentiria tentado a se proteger por meio de medidas arbitrárias. Portanto, criticar qualquer forma de arbítrio, inclusive aquele utilizado pelos jacobinos quando a Revolução parecia ameaçada, era uma forma de alertar o governo para não se deixar levar pela tentação apresentada naturalmente devido a sua situação. A questão que se colocava implicitamente era se seria possível manter o governo independente da opinião dominante, em um regime que admitia o princípio da soberania do povo, sem se recorrer a medidas arbitrárias. Até setembro de 1797, Staël e Constant responderam a essa questão de modo positivo, sem nuances. Mas essa resposta é colocada à prova pelo golpe do 18 Frutidor.

II

O golpe do 18 Frutidor foi uma resposta da maioria republicana do Diretório à vitória da direita contrarrevolucionária nas eleições legislativas de abril de 1797. Desde 1796, os realistas haviam abandonado a estratégia de levantes armados contra a República e passado a enfocar a possibilidade de derrotar os republicanos na arena eleitoral ( Brown, 2006BROWN, Howard. (2006), Ending the French Revolution: violence, justice and repression from the Terror to Napoleon . Charlottesville/Londres, University of Virginia Press. , p. 38). A nova estratégia colheu seus frutos na renovação de um terço dos Conselhos em 1797, quando se tornou evidente o que muitos já intuíam: a legitimidade republicana continuava longe de ser consolidada em uma França organizada socialmente em comunidades locais centradas na Igreja e ainda não integradas a uma República vista como imposta pela força ( Idem , pp. 29-30). Os novos deputados de tendência realista conseguiram não só colocar o Diretório republicano sob pressão, ameaçando cortar os recursos do governo e processar os diretores, mas também emplacar dois realistas (Carnot e Barthélemy) na composição do Poder Executivo, tornando-o dividido e ameaçando compor a maioria governamental em um breve futuro. Os três diretores republicanos que ainda formavam maioria (Reubell, La Révellière-Lépeaux e Barras) organizaram então, com o apoio do exército, o golpe do 18 Frutidor, mandando prender um grande número de deputados acusados de participar de uma conspiração realista. No dia seguinte, os dois Conselhos votaram sob pressão a invalidação da eleição de 154 deputados e a deportação para a Guiana, sem julgamento, dos dois diretores realistas, de 53 deputados, vários ministros e dezenas de jornalistas ( Gueniffey, 2011GUENIFFEY, Patrice. (2011), Histoires de la Révolution et de l’Empire . Paris, Perrin. , p. 372). Para alguns historiadores, tratava-se de uma guinada autoritária da República termidoriana mais decisiva do que a proporcionada pelo golpe do 18 Brumário dois anos depois ( Brown, 2006BROWN, Howard. (2006), Ending the French Revolution: violence, justice and repression from the Terror to Napoleon . Charlottesville/Londres, University of Virginia Press. , p. 120). O exército foi mobilizado em escala nacional, comissões militares foram formadas após o golpe para reprimir inimigos do regime, naquilo que ficou conhecido como “Terror frutidoriano” ( Idem , pp. 152-153), e a imprensa foi colocada sob a vigilância da polícia, com diversos jornais de oposição fechados.

Não se sabe ao certo o grau de envolvimento que Constant e Staël tiveram na preparação e na execução desse golpe contra os realistas. O que se sabe é que ambos pertenciam ao grupo político que deu o golpe. Constant havia sido um dos fundadores, em junho de 1797, do “Cercle constitutionnel”, uma organização que tinha o objetivo de agrupar os deputados fiéis ao Diretório republicano e se opor ao clube realista de Clichy. Muitos dos membros dessa organização se reuniam no salão de Staël.

Porém, independentemente do grau de participação direta de Staël e Constant nesse evento, o que importa para este artigo é pensar o golpe do 18 Frutidor como um acontecimento que colocou à prova a proposição que eles defendiam até então: a de que era desejável manter o governo republicano independente da opinião majoritária do momento e de que era possível fazer isso sem negar o princípio da soberania do povo nem adotar medidas arbitrárias. O golpe colocou essa aposta inicial de Staël e Constant à prova, já que a maioria republicana do Diretório entendeu que não era possível conter a contrarrevolução dentro do quadro puramente legal e em respeito ao resultado das eleições, tendo apelado à excepcionalidade das circunstâncias para justificar medidas arbitrárias contra seus adversários políticos que desrespeitavam a legalidade existente – justamente aquilo que Constant apelava para que não se fizesse em hipótese alguma. Como Staël e Constant respondem a essa resposta dramática do Diretório às circunstâncias?

A primeira resposta de Constant é ditada pela necessidade de defender o grupo político a que pertencia, mesmo que essa posição parecesse contraditória com os princípios defendidos até então. Doze dias após o 18 Frutidor, o autor defendeu o golpe em um eloquente discurso pronunciado no “Cercle constitutionnel” ( Discours prononcé au Cercle constitutionnel, pour la plantation de l’Arbre de la Liberté, le 30 fructidoran V ), o qual o Diretório se apressou em imprimir e fazer circular. Nesse discurso, Constant retoma alguns dos temas e argumentos desenvolvidos nos escritos anteriores, a fim de defender o golpe dos republicanos contra a ameaça realista. No centro do argumento, é retomada a distinção entre justiça e imparcialidade, para frisar que a República só pode ser levada adiante por cidadãos parciais em favor do regime republicano e da liberdade. A conclusão é a necessidade de uma centralização total do poder nas mãos dos republicanos convictos (Constant, 1998, pp. 554-555). Em suma, é levada ao auge a primazia do partido republicano como alma da República, em detrimento das formas republicanas. Estas poderiam ser legitimamente subvertidas pelos republicanos quando sua hegemonia estivesse ameaçada por outros grupos políticos contrários à República.

Ao mesmo tempo, entretanto, Constant tenta evitar conferir a seu discurso uma aparência de radicalismo, começando por celebrar o fato de que o golpe do 18 Frutidor não resultou em condenações à morte, ao contrário do que ocorria durante o Terror jacobino ( Idem , p. 552). Nesse contexto, é retomada até mesmo sua crítica do arbítrio: “Mas não é suficiente haver excluído a morte dos meios da República; é preciso ainda excluir desses meios o arbítrio; o arbítrio, incompatível com a existência de todo governo, destruidor de tudo o que ele atinge, vício corruptor de toda instituição, eterno inimigo, por sua essência, de toda dignidade, de toda duração, de toda força real” ( Ibidem ).

No discurso, Constant não explica como ele podia continuar condenando o arbítrio como incompatível com a existência de todo governo e ao mesmo tempo defender um ato arbitrário como o golpe do 18 Frutidor. Evidentemente, exigir uma coerência perfeita de um discurso político pronunciado no contexto turbulento (e autoritário) de então seria um contrassenso. De todo modo, a contradição de Constant nesse momento histórico crucial contribuiu para manchar a biografia do autor, para lamento de autores posteriores que admiravam suas ideias. É o caso de Tocqueville, que comenta a crítica ao arbítrio e à violação das formas legais pelos homens de bem, enunciada em De la force du gouvernement , nas notas do segundo volume de O Antigo Regime e a Revolução: “Que isso é verdadeiro e mesmo profundo e, além do mais, bem dito! [...] O que é digno de observação é que B. Constant, que escrevia essas linhas em 1796, aplaudia em 1797 ao 18 Frutidor, alinhando-se assim de maneira prática ao lado daqueles canalhas menos perigosos que, ao violar as leis, tiveram ao menos o cuidado de não as violar a não ser contra as pessoas honestas!” ( Tocqueville, 2004TOCQUEVILLE, Alexis de. (2004), Œuvres . Paris, La Pléiade/Gallimard, t. III. , p. 676).

Evidentemente, não se trata aqui de julgar o caráter de Constant. Nunca é demais lembrar que a participação no mundo político (ainda mais em épocas de guerras, revoluções, golpes etc.) envolve quase sempre a execução e a defesa de atos guiados por uma lógica completamente diferente da das teorias políticas. Assim, o mesmo Tocqueville que condena tão severamente a atitude de Constant poderia ser condenado com a mesma severidade por algumas de suas atitudes como ministro das Relações Exteriores durante a Segunda República Francesa – por exemplo, a repressão à República Romana –, sem que, obviamente, sua contribuição seminal à teoria política possa ser desqualificada por causa disso.

O que interessa aqui é destacar que a contradição do discurso de Constant em defesa do golpe foi percebida e sentida como um problema por ele próprio, assim como por sua companheira Staël, e que ambos se esforçam em seus escritos posteriores justamente para resolver essa contradição. Em suma, o golpe do 18 Frutidor é sentido por ambos os autores como uma prova que os obriga a repensar a questão da extirpação do arbítrio da vida política. O que o evento demonstrou aos dois de modo traumático é que há circunstâncias em que um governo oriundo da soberania do povo não consegue se manter independente da opinião dominante sem recorrer a medidas arbitrárias – e que mesmo um autor comprometido com a erradicação do arbítrio, como Constant, pode se ver levado, nessas circunstâncias, a defender o arbítrio. A hipótese aqui defendida é que, a partir desse momento, Staël e Constant não conseguem mais pensar em termos de erradicação absoluta do arbítrio, mas, antes, em termos de incorporação e domesticação do arbítrio no interior do sistema institucional. Embora essas reflexões tenham se desenvolvido em textos não publicados em vida, elas são fundamentais para a formação do pensamento maduro dos dois autores.

No caso de Staël, essa reflexão se apresenta em Des circonstances actuelles qui peuvent terminer la Révolution et des principes qui doivent fonder la République en France (1798). Em contraste com a exaltação aos vencedores realizada no discurso de Constant, o texto de Staël revela inquietação e desconforto com o fato de a República ter precisado recorrer a meios arbitrários para se salvar. A autora começa a perceber que, com as recorrentes intervenções arbitrárias e casuísticas dos republicanos no jogo político – em 1798, a renovação de um terço dos Conselhos resultou em outro golpe de força, dessa vez contra os neojacobinos –, era o próprio sistema representativo que começava a ser desacreditado ( Staël, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. (2009), Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution . Org. Lucia Omacini. Paris, Honoré Champion. , p. 374). Ao mesmo tempo, ela teme tanto quanto Constant a subversão interior do regime republicano pela ascensão eleitoral das forças contrarrevolucionárias, ou mesmo neojacobinas e protossocialistas, afirmando como seu companheiro que “é preciso que o poder não saia do partido republicano”, já que “a República não pode avançar a não ser pelo partido republicano” ( Idem , p. 357). Como impedir que o poder saia do controle do partido republicano sem recorrer a medidas arbitrárias que desrespeitem os resultados das eleições, como aquelas empregadas no 18 Frutidor? Eis o problema que Staël se sente impelida aresolver, centrando sua proposta em uma reforma da Constituição de 1795.

Para essa reforma constitucional, a autora mobiliza algumas das propostas institucionais e argumentos já apresentados nas Réflexions . Particularmente, ela volta a insistir na importância do bicameralismo e da independência do Poder Executivo – dois traços essenciais para uma Constituição livre e estável, cuja importância teria sido ignorada pelos redatores da Constituição de 1795. 7 7 A Constituição de 1795 dividiu o Poder Legislativo em dois conselhos, mas eles pareciam mais duas seções de uma única câmara do que duas assembleias distintas ( Fontana, 2016 , pp. 125-126), já que eles eram eleitos do mesmo modo e para a mesma duração. Não obstante, o teste do 18 Frutidor a leva a radicalizar algumas de suas propostas iniciais, de modo que o Executivo e principalmente a Câmara Alta passam a ser compreendidos em uma chave mais elevada: se, em 1795, Staël os pensava como instâncias que deveriam moderar e esclarecer a vontade impetuosa do povo manifestada na Câmara Baixa, eles se tornam, em seu projeto constitucional de 1798, verdadeiros guardiões da República e da Constituição, na chave de uma ditadura das instituições: “Vocês precisam escolher entre a ditadura das instituições e a das perseguições, e eu prefiro fortemente a primeira” ( Ibidem ).

A pedra de toque dessa ditadura das instituições seria a transformação do já existente Conselho dos Anciões em um corpo conservador – palavra que significava, na época em que escreveu a autora, mantenedor das instituições republicanas, como lembra Baczko (2009BACZKO, Bronislaw. (2009), “Introduction: opinions des vainqueurs, sentiments des vaincus”, in A.-L.-G. de Staël, Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution / Org. Lucia Omacini,Paris, Honoré Champion. , p. 227, nota 94). Para isso, ele deveria ser composto por homens sabidamente comprometidos com os ideais revolucionários e republicanos, os quais não precisariam se submeter a eleições e ficariam em seus cargos vitaliciamente; apenas esses homens poderiam ser escolhidos para compor o Diretório; além da prerrogativa já existente do Conselho dos Anciões de aprovar ou rejeitar as leis propostas pelo Conselho dos Quinhentos, esse novo corpo conservador teria um direito de proposição; e, para coroar o edifício, seus membros deveriam ser contemplados com uma renda considerável que “lhes assegurasse não somente a independência, mas a consideração atrelada à riqueza” ( Staël, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. (2009), Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution . Org. Lucia Omacini. Paris, Honoré Champion. , p. 378).

A inspiração da proposta de Staël, evocada explicitamente no texto, é o júri constitucional proposto por Emmanuel-Joseph Sieyès em 1795 à Convenção e rejeitado por unanimidade. 8 8 Todo o debate da Convenção sobre o projeto da Constituição de 1795 – no qual foi apresentada e discutida a proposta de júri constitucional de Sieyès – encontra-se transcrito em Troper (2006 , pp. 277-698). A função mais importante dessa instituição concebida por Sieyès seria o julgamento de queixas contra atos dos poderes Legislativo ou Executivo acusados de violar a Constituição – função esta que faria do júri constitucional, nas palavras de Sieyès, “um conservador, um guardião da Constituição” (Sieyès, apudTroper, 2006TROPER, Michel. (2006), Terminer la Révolution: la Constitution de 1795 . Paris, Fayard. , p. 414). Entretanto, Staël radicaliza a proposta de Sieyès. Se a Convenção havia rejeitado o júri constitucional com o argumento de que ele poderia se tornar um poder não controlado que dominaria os outros poderes e desequilibraria a República, Staël considera, ao contrário, o poder concebido por Sieyès como fraco demais para proteger a República dos perigos que a rondavam. Isso porque ele só se reuniria intermitentemente para julgar queixas contra atos dos demais poderes, além de ser dependente demais da opinião majoritária do momento, por ser eleito como os demais poderes – quando o que se precisava era justamente de um guardião da Constituição independente da opinião majoritária momentânea, portanto não eleito ( Staël, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. (2009), Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution . Org. Lucia Omacini. Paris, Honoré Champion. , pp. 375-376).

Em suma, a prova do 18 Frutidor leva Staël a retomar a ideia de Sieyès segundo a qual a Constituição precisa de um guardião, pensando, porém, esse guardião em outro quadro de referências. Ao passo que Sieyès concebe em 1795 seu júri constitucional no interior de “um modelo judiciário do funcionamento político” ( Gauchet, 1995GAUCHET, Marcel. (1995), La Révolution des pouvoirs: la souveraineté, le peuple et la représentation . Paris, Gallimard. , p. 166), o qual “erige a forma-tribunal em defesa enfim encontrada contra o arbítrio” ( Idem , p. 167), Staël pensa seu corpo conservador pelo modelo da ditadura .

Legado político da República Romana, a ditadura já havia sido defendida por autores centrais da tradição republicana, como Maquiavel e Rousseau. Em seu sentido original legado pela Roma republicana, o ditador era nomeado por um curto período para superar algum obstáculo que colocava a República em perigo, estando, durante esse breve intervalo, liberado das interdições normalmente impostas pelas leis. Carl Schmitt (2014)SCHMITT, Carl. (2014), Dictatorship: from the beginning of the modern concept of sovereignty to the proletarian class struggle . Cambridge, Polity Press. , em seu livro clássico de 1921 sobre a ditadura, identifica na época da Revolução Francesa uma mutação funda- mental no sentido do conceito: se, até então, a ditadura era entendida como uma comissão subordi- nada à Constituição, regulada por ela e tendo por única finalidade sua conservação (conceito cunhado por Schmitt de “ditadura comissarial”), a Revolução Francesa traz à tona o conceito de “ditadura soberana”. Apelando para a ideia de Poder Constituinte, esta última não é limitada ou regulada por nenhuma ordem constitucional existente, na medida em que se apresenta como o fundamento de uma ordem constitucional ainda não instituída. Desse modo, ela pode querer arbitrariamente e sem limites, estando autorizada a revogar a Constituição estabelecida e erigir novas leis. Utilizando-se essa distinção proposta por Schmitt, pode-se entender a ditadura das instituições proposta por Staël como a meio caminho entre a ditadura comissarial e a ditadura soberana. No espírito do conceito clássico de ditadura comissarial, caro à tradição republicana, a ditadura proposta por Staël tem por finalidade a conservação da Constituição estabelecida, constituindo uma exceção temporária à vida republicana normal justificada pela situação de perigo. Porém, contrariando o modo clássico de conceber a ditadura comissarial, Staël aloca seus ditadores republicanos no interior do Poder Legislativo, fazendo eles participarem da elaboração das leis – algo inconcebível na ditadura romana, tal como caracterizada, por exemplo, por Rousseau, para quem o ditador “pode fazer tudo, exceto leis” (Rousseau, 1964, p. 456). Na visão da autora, essa ditadura alocada nas instituições ofereceria a vantagem de proteger a República da ameaça contrarrevolucionária ou neojacobina, sem a necessidade das perseguições violentas possivelmente associadas ao conceito clássico de ditadura e efetivamente adotadas após o 18 Frutidor: “[...] se há a necessidade de uma ditadura, ou seja, de uma suspensão do exercício da vontade de todos, como não a buscar em instituições legais, em vez de a abandonar a violências arbitrárias?” ( Staël, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. (2009), Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution . Org. Lucia Omacini. Paris, Honoré Champion. , p. 384).

Segundo a hipótese aqui defendida, Staël adota o vocabulário da ditadura como uma resposta ao teste do 18 Frutidor, o qual lhe demonstra a impossibilidade de manter um governo oriundo da soberania do povo independente da opinião dominante sem se recorrer a nenhuma forma de arbítrio, como ela e Constant haviam apostado antes do golpe. Todavia, a resposta inicial de Constant – defender o golpe pela necessidade de manter o partido republicano no poder a qualquer custo, alertando, porém, para os inconvenientes do arbítrio – parece-lhe contraditória demais e, portanto, insustentável. O que a autora procura articular nas Circonstances é uma forma inovadora de incorporar provisoriamente o arbítrio no interior do sistema institucional, de modo a domesticá-lo e torná-lo não violento.O arbítrio é incorporado na medida em que um corpo conservador não eleito e vitalício passaria a ter o poder de rejeitar a lei oriunda do processo representativo regular sem que essa rejeição precisasse se basear em uma inconformidade da lei em questão com a Constituição (como no modelo judiciário de Sieyès e no atual controle de constitucionalidade), mas apenas em considerações discricionárias desse corpo conservador a respeito do que é bom ou não para a República. O arbítrio é ao mesmo tempo domesticado porque, em primeiro lugar, ele não se aplicaria mais a pessoas particulares, prendendo-as, deportando-as etc.; em segundo lugar, porque os resultados das eleições passariam a ser rigorosamente respeitados – mesmo que a influência desses resultados sobre a marcha dos negócios públicos se encontrasse significativamente reduzida (ou antes, precisamente porque a influência das eleições sobre os negócios públicos seria reduzida que elas poderiam passar a ser respeitadas sem risco para a República).

Na chave do conceito schmittiano de ditadura comissarial, a ditadura das instituições proposta por Staël é apresentada como provisória, ainda que sua duração não seja delimitada de antemão, como ocorria na ditadura romana. “Vocês poderão democratizar a Constituição à medida que o espírito público fizer progressos” ( Idem , p. 374).Por trás dessa proposta, há o diagnóstico, repetido em diversas passagens do texto, de que a República teria sido instituída na França antes da propagação das luzes necessárias para sustentá-la. Assim, a despeito da importância atribuída pela autora à reforma constitucional, as instituições propostas por ela não seriam mais do que meios de proteger o povo de si mesmo enquanto ele ainda não estivesse totalmente esclarecido e preparado para a liberdade política plena. Imbuída da crença iluminista na inevitabilidade do progresso, Staël não duvidava de que chegaria um dia o momento em que o povo não precisaria mais desses resquícios de instituições aristocráticas, podendo sustentar sua liberdade inteiramente nas luzes e nos costumes.

Se Des circonstances pode, assim, ser interpretado como uma resposta de Staël ao teste do 18 Frutidor resultante de sua insatisfação com a resposta de Constant, o livro que este escreve durante o Consulado – Fragments d’un ouvrage abandonné sur la possibilité d’une constitution républicaine dans un grand pays (1800-1803) – pode ser interpretado como uma segunda resposta, muito mais meditada, aos desafios postos pelo evento. Nela, tanto sua primeira resposta como a de Staël aparecem como insatisfatórias. 9 9 Des circonstances não foi publicado em vida dos autores (como também não foram os Fragments ), mas há evidências de que Constant leu o manuscrito. O autor chega a se autocensurar por seu apoio apressado ao golpe, argumentando em seguida que, uma vez violada a Constituição de 1795 em 18 Frutidor, ela deveria ter sido substituída, pois já não inspirava mais confiança ao povo nem segurança ao governo, tendo se tornado incapaz de encerrar o império do arbítrio ( Constant, 1991CONSTANT, Benjamin. (1991), Fragments d’un ouvrage abandonné sur la possibilité d’une constitution républicaine dans un grand pays . Paris, Aubier. , pp. 424-425). Assim, Constant dá razão à tese de Staël de que o golpe do 18 Frutidor deveria ter sido seguido por uma reforma constitucional. A reforma proposta pelo autor suíço é, contudo, diferente da de sua companheira – embora se inscreva na mesma linha de reformar a Constituição de 1795 à luz dos acontecimentos de Frutidor, praticamente ignorando o fato de que o golpe do 18 Brumário já havia inserido a França definitivamente em outra lógica constitucional ( Gauchet, 1995GAUCHET, Marcel. (1995), La Révolution des pouvoirs: la souveraineté, le peuple et la représentation . Paris, Gallimard. , p. 240).

A grande novidade trazida por Constant em relação à reforma constitucional proposta por Staël é a proposição de um poder neutro ou preservador, distinto tanto do Poder Legislativo como do Executivo (o Judiciário não é considerado como um poder político, em conformidade com o entendimento predominante na França da época), e encarregado de zelar pela boa relação entre eles – em suma, garantir “os poderes constituídos um contra o outro, quando eles se dividem”, e “os cidadãos contra esses poderes, se eles se unem” (Constant, 1991, p. 371). A principal atribuição desse poder neutro seria “a faculdade de dissolver as assembleias legislativas e a de destituir os depositários do Poder Executivo” ( Idem , p. 387) – considerando-se essa faculdade de dissolução ou destituição como o principal meio de romper uma eventual coalizão dos poderes para oprimir os cidadãos ou uma divisão entre os poderes que ponha em risco a República. Ora, seria justamente um poder com essa atribuição constitucional de dissolver ou destituir os outros poderes que, na interpretação de Constant, teria faltado na Constituição de 1795, obrigando os atores políticos a resolver as crises por meio de golpes arbitrários como o 18 Frutidor: “[...] é preciso, com toda a necessidade, um meio constitucional de frear os desvios das assembleias. Se esse meio não se encontra na Constituição, os eventos o situarão fora da Constituição, e a Constituição será rompida” ( Idem , p. 279). 10 10 Mais adiante, Constant afirma que um poder neutro na Constituição de 1791 teria evitado o 10 de Agosto (de 1792), e que um poder análogo na Constituição de 1795 teria evitado o 18 Frutidor e o 18 Brumário ( Constant, 1991 , p. 453).

Como no caso de Staël, não se trata mais de simplesmente negar a possibilidade do arbítrio, como nos escritos anteriores ao teste do 18 Frutidor, mas de incorporar o arbítrio no interior do sistema institucional, de modo a domesticá-lo. Constant é enfático na caracterização do poder neutro como uma “autoridade discricionária” ( Idem , p. 381) – razão pela qual ele não deveria ser incorporado ao Poder Judiciário, entendido como “uma autoridade sujeita a formas” ( Ibidem ). A sujeição a formas entravaria a missão do poder neutro de salvar rapidamente a República em momentos de grande crise. Embora ele seja considerado como “o Poder Judiciário dos outros poderes” ( Idem , p. 390), sua operação não poderia ser por instruções e processos sujeitos a formas e à lentidão, mas por atos discricionários de dissolução das assembleias ou destituição dos membros do Executivo. Esse poder arbitrário exercido sobre os outros poderes não colocaria os indivíduos sob o jugo do arbítrio, pois o poder neutro se exerceria apenas sobre os poderes e não sobre os indivíduos: estes (mesmo os deputados ou governantes destituídos pelo poder neutro) só poderiam ser processados e condenados por um Poder Judiciário sujeito a formas ( Idem , p. 391).

É verdade que Constant prefere caracterizar o poder neutro pela palavra discrétionnaire e não arbitraire , insinuando que a faculdade do poder neutro de decidir sem sujeição a formas (ou seja, discricionariamente) não rompe a Constituição e os princípios, portanto não institui o arbítrio tal como entendido desde seus primeiros escritos, isto é, como “a ausência de regras, de limites, de definições, em uma palavra, de tudo o que é preciso” ( Constant, 1998CONSTANT, Benjamin. (1998), Œuvres complètes . Vol. I: Écrits de jeunesse (1774-1799).Tübingen, Max Niemeyer. , p. 496). Todavia, o poder discricionário deve ser entendido como uma forma domesticada e neutralizada do arbitrário . Uma passagem de Des suites de la contre-révolution de 1660 en Angleterre (1799) demonstra que os dois termos podiam ser utilizados de modo mais ou menos intercambiável por Constant: o autor transcreve uma passagem de History of England de David Hume na qual o filósofo e historiador escocês utiliza o termo inglês arbitrary , ao passo que, na paráfrase quase literal feita em francês, Constant traduz o termo pela palavra discrétionnaire ( Idem , p. 660).

Embora Constant siga o movimento de Staël de, em resposta ao teste do 18 Frutidor, incorporar e domesticar o arbítrio no interior das instituições, ele critica o meio encontrado por sua companheira (embora sem citá-la diretamente), propondo uma alternativa. Em sua visão, alocar o poder preservador em uma segunda câmara que participaria da confecção da lei desnaturaria sua neutralidade. “Tornado parte do Poder Legislativo, ele ganharia com as invasões e extensões da autoridade legislativa” ( Idem , p. 386). Além disso, uma câmara inamovível, mas sem o prestígio antigo da hereditariedade, seria fraca demais para resistir à vontade de uma assembleia eleita ( Ibidem ). No fundo, Constant está criticando o modelo da ditadura reivindicado por Staël como forma de incorporar e domesticar o arbítrio no interior do sistema institucional. Mesmo fiéis aos ideais republicanos, os “ditadores” alocados no corpo conservador staëliano seriam levados por sua posição a perseguir interesses próprios, os quais consistiriam basicamente no aumento indevido do poder do Legislativo do qual eles fariam parte. Sua aparente força revestiria na verdade uma fraqueza, pois, não tendo sido eleitos, esses “ditadores” não encontrariam respeito quando tentassem tutelar a confecção da lei. Para Constant, não se tratava de instaurar uma ditadura provisória dos amigos da República, mas de encontrar uma posição estrutural em que o arbítrio pudesse ser exercido de modo controlado. 11 11 Diverge-se, assim, da leitura de Kalyvas e Katznelson (2008 , p. 158) do poder neutro como “dotado de poderes extraordinários, quase ditatoriais”. O arbítrio é incorporado e neutralizado em um modelo diferente do da ditadura. Seria essa posição estrutural, e não a fidelidade ideológica à República, que criaria um interesse neutro capaz de fazer intervenções discricionárias no jogo político sem submeter todo o sistema a uma vontade arbitrária. A posição estrutural criadora do interesse neutro, Constant a encontra em duas variáveis: por um lado, a vitaliciedade, que distinguiria os membros do poder neutro da massa do povo e os faria desejar a estabilidade da Constituição que os destaca; por outro lado, a inelegibilidade a qualquer outro cargo, que faria os membros do poder neutro não participarem da classe dos governantes e temerem tanto quanto o povo suas usurpações ( Idem , pp. 383-384). Um poder neutro assim constituído, e que se mantivesse afastado das funções legislativas, executivas e judiciárias, poderia fazer da incorporação e domesticação do arbítrio um traço permanente da Constituição, não um aspecto de uma ditadura legitimada por seu caráter provisório e pelo estágio ainda não avançado de difusão das luzes. Em suma, no momento em que a República já desnaturada caminhava para o despotismo mais arbitrário, Constant acreditava ter enfim encontrado, à luz das reflexões promovidas pelo 18 Frutidor, o bom equilíbrio entre leis e arbítrio que permitiria sustentar a República no longo prazo.

Conclusão

Em La Révolution des pouvoirs , Marcel Gauchet considera o poder neutro formulado nos Fragments de Constant como uma espécie de epílogo à busca que os revolucionários franceses vinham fazendo desde 1789 por um terceiro poder capaz de manter o Legislativo e o Executivo em seus limites constitucionais. No plano da história factual, o responsável pelo encerramento dessa busca teria sido o descrédito em que caiu o Senado conservador adotado pela Constituição do Ano VIII (1799-1800). No plano intelectual, entretanto, teria sido Constant que, nos Fragments , teria levado a busca por um poder intermediário fundada em um axioma da garantia ao esgotamento, terminando por cair em uma aporia quanto à eficácia última de seu sistema. Diante da dúvida de Constant sobre se o poder neutro poderia abusar de suas prerrogativas e de sua aposta no fato de que esse poder não poderia nada contra os indivíduos, Gauchet pergunta provocativamente: “Problema resolvido ou problema em suspenso? Problema solúvel ou problema insolúvel?” (Gauchet, 1995, p. 249).

Gauchet interpreta a aporia em que cai Constant como resultado de seu modo de abordar a organização dos poderes “exclusivamente sob o ângulo dos abusos que eles são suscetíveis de cometer e das garantias que é possível lhes opor” ( Idem , p. 243). As incertezas resultantes dessa abordagem teriam esgotado intelectualmente a busca pelo terceiro poder fornecendo como lição final “que a ordem política não se deixa reduzir à posição de puro instrumento dos indivíduos. Há necessidades da coisa política e da marcha dos poderes das quais a dedução dos direitos não dá conta” ( Idem , p. 251).

Este artigo propõe outra interpretação do poder neutro de Constant 12 12 A interpretação aqui desenvolvida contrasta também com a de Holmes (1984 , p. 145), que vê no poder neutro de Constant um símbolo da neutralidade do Estado liberal, ignorando seu caráter discricionário. e das razões da aporia em que termina o primeiro texto em que o autor desenvolve essa ideia (os Fragments ) – uma aporia análoga, vale dizer, àquela presente na proposta de Staël de uma “ditadura das instituições”, com a diferença de que a autora havia contornado os problemas do arbítrio inerente a sua instituição tutelar apelan- do para o caráter provisório da ditadura. Segundo o caminho percorrido por este artigo, o poder neutro não é “puramente deduzido de uma construção axiomática da garantia”, como sugere Gauchet ( Idem , p. 245), sendo antes uma forma encontrada por Constant de incorporar e domesticar no interior do sistema institucional o arbítrio que se tratava antes de banir completamente, mas que passa a ser considerado, após o teste do 18 Frutidor, como um traço necessário do político, diante do imperativo de respeitar a soberania do povo mantendo-se a orientação republicana do governo independente da opinião majoritária expressa nas eleições.

Assim, ao passo que a abordagem convencional consiste em apresentar Staël e Constant como formuladores pioneiros de uma teoria política liberal coerente, este artigo procurou apresentar o arbítrio como um ponto de tensão que os eventos históricos imprimiram em seus pensamentos. O exame da reavaliação do problema do arbítrio pelos autores após o golpe do 18 Frutidor atesta o interesse do procedimento metodológico de não considerar as tomadas práticas de posição dos autores clássicos nos eventos políticos de seu tempo como exteriores a sua teoria ou como inteligíveis à luz de uma teoria supostamente coerente e estável, mas antes como provas pelas quais passam as teorias, obrigando-as a se tornar mais complexas. No que diz respeito ao golpe do 18 Frutidor, a orientação predominante é considerar o apoio inicial de Constant como um desvio explicável por razões de política circunstancial, ou então, como Holmes (1984HOLMES, Stephen. (1984), Benjamin Constant and the making of modern liberalism . New Haven (CT), Yale University Press. , p. 11), reportá-lo a uma teoria política coerente que teria sido a mesma durante toda a carreira do autor, segundo a qual seria necessário primeiro estabelecer firmemente o governo saído da Revolução Francesa, para somente após começar a limitá-lo. Na perspectiva deste artigo, o apoio inicial de Constant ao golpe não deve ser considerado nem um simples desvio nem uma atitude derivada diretamente de sua teoria, mas uma contradição que, apontando dificuldades no projeto inicial de erradicação absoluta do arbítrio, impele o autor e sua companheira Staël a reavaliarem o problema do arbítrio e buscarem formas de incorporá-lo ao sistema institucional de modo domesticado. Resulta dessa reavaliação dois teóricos que, afastando-se de uma perspectiva puramente normativa de supressão do arbítrio pelo império da lei, buscaram regrar o equilíbrio tenso entre o domínio das leis, dos princípios e das formas fixas, de um lado, e o do arbítrio e das decisões discricionárias, de outro. Trata-se de uma dimensão de Staël e Constant à qual os autores liberais que reivindicam seu legado foram em geral pouco atentos, mas que não deixou de receber a atenção de Carl Schmitt, que, em seu livro Der Hüter der Verfassung ([ O guardião da Constituição ], 1931), invoca a teoria do poder neutro de Constant para criticar a defesa de Hans Kelsen de um controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e argumentar que o guardião da Constituição deve ser uma autoridade discricionária, não sujeita às limitações das formas legais ( Vinx, 2015VINX, Lars. (2015), The guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the limits of constitutional law . Cambridge, Cambridge University Press. ).

Embora Staël e Constant certamente não aderissem ao ideal potencialmente autoritário de um Carl Schmitt, o 18 Frutidor os convenceu de que o regime republicano moderno exige um lugar controlado para o arbítrio. A interação entre seus escritos e sua prática política pode servir de via de acesso a uma das aporias fundamentais da democracia moderna, então em estágio embrionário. Deixada a sua lógica pura, a democracia pode suprimir a si mesma se a vontade majoritária do momento for contrária ao regime democrático – razão que leva Staël a afirmar que “não se destrói a democracia de outra forma que não pelos princípios da democracia” (Staël, 2009, p. 376). É possível ao regime democrático se opor a eventuais maiorias contrárias à democracia sem recorrer a medidas arbitrárias? Staël e Constant apostaram inicialmente que sim, mas, após o teste do 18 Frutidor, passaram a buscar um modo de incorporar e domesticar o arbítrio no interior do sistema institucional. As incertezas sobre a eficácia última de suas propostas revelam um dos impasses sobre os quais se assenta a democracia: se ela parece por vezes invocar um espaço de decisão discricionária, ela não produz nenhuma instância que possa ocupar esse espaço sem perigo.

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  • VINX, Lars. (2015), The guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the limits of constitutional law . Cambridge, Cambridge University Press.
  • 1
    Sobre a concepção moderna de governo representativo como regime distinto da democracia, amalgamando elementos democráticos e aristocráticos, a referência central é Manin (1995)MANIN, Bernard. (1995), Principes du Gouvernement Représentatif . Paris, Calmann-Lévy. .
  • 2
    Como exemplos dessa bibliografia que analisa Staël e/ou Constant como articuladores pioneiros desses elementos teóricos definidores do liberalismo, destacamos: Gauchet (1980)GAUCHET, Marcel. (1980),“Benjamin Constant: l’illusion lucide du libéralisme”, in B. Constant, De la liberté chez les modernes, écrits politiques , Paris, Librairie Générale Française. , Holmes (1984)HOLMES, Stephen. (1984), Benjamin Constant and the making of modern liberalism . New Haven (CT), Yale University Press. , Manent (1987)MANENT, Pierre. (1987), Histoire intellectuelle du libéralisme: dix leçons . Paris, Hachette. , Jaume (1997)JAUME, Lucien. (1997), L’individu effacé, ou le paradoxe du libéralisme français . Paris, Fayard. e Cassimiro (2016aCASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. (2016a), “A impossível liberdade dos antigos: Germaine de Staël, Benjamin Constant e o nascimento da cultura liberal pós-revolucionária na França”. Estudos Políticos , 7 (1): 5-25. ; 2016bCASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. (2016b),“O liberalismo político e a república dos modernos: a crítica de Benjamin Constant ao conceito rousseauniano de soberania popular”. Revista Brasileira de Ciência Política , 20: 249-286. ).
  • 3
    Todas as citações foram traduzidas por mim.
  • 4
    A expressão é de Pettit (1997PETTIT, Philip. (1997), Republicanism: a theory of freedom and government . Oxford, Oxford, University Press. , p. 50).
  • 5
    Staël pregava uma restrição do sufrágio muito mais profunda do que a adotada efetivamente pela Constituição de 1795, a qual se limitou a exigir o pagamento de uma contribuição direta, de modo a excluir os indigentes ( Troper, 2006TROPER, Michel. (2006), Terminer la Révolution: la Constitution de 1795 . Paris, Fayard. ).
  • 6
    No entanto, Roederer escreve em seu Journal de Paris que “as duas obras não têm nada de relativo uma à outra” ( Roederer, 1857ROEDERER, Pierre-Louis. (1857), Œuvres du Comte P. L. Roederer . Paris, Firmin-Dido, t. V. , p. 87), atribuindo a Louvet a tese equivocada de que um livro seria uma refutação do outro.
  • 7
    A Constituição de 1795 dividiu o Poder Legislativo em dois conselhos, mas eles pareciam mais duas seções de uma única câmara do que duas assembleias distintas ( Fontana, 2016FONTANA, Biancamaria. (2016), Germaine de Staël: a political portrait. Princeton (NJ)/Oxford, Princeton University Press. , pp. 125-126), já que eles eram eleitos do mesmo modo e para a mesma duração.
  • 8
    Todo o debate da Convenção sobre o projeto da Constituição de 1795 – no qual foi apresentada e discutida a proposta de júri constitucional de Sieyès – encontra-se transcrito em Troper (2006TROPER, Michel. (2006), Terminer la Révolution: la Constitution de 1795 . Paris, Fayard. , pp. 277-698).
  • 9
    Des circonstances não foi publicado em vida dos autores (como também não foram os Fragments ), mas há evidências de que Constant leu o manuscrito.
  • 10
    Mais adiante, Constant afirma que um poder neutro na Constituição de 1791 teria evitado o 10 de Agosto (de 1792), e que um poder análogo na Constituição de 1795 teria evitado o 18 Frutidor e o 18 Brumário ( Constant, 1991CONSTANT, Benjamin. (1991), Fragments d’un ouvrage abandonné sur la possibilité d’une constitution républicaine dans un grand pays . Paris, Aubier. , p. 453).
  • 11
    Diverge-se, assim, da leitura de Kalyvas e Katznelson (2008KALYVAS, Andreas & KATZNELSON, Ira. (2008), Liberal beginnings: making a republic for the moderns . Cambridge, Cambridge University Press. , p. 158) do poder neutro como “dotado de poderes extraordinários, quase ditatoriais”. O arbítrio é incorporado e neutralizado em um modelo diferente do da ditadura.
  • 12
    A interpretação aqui desenvolvida contrasta também com a de Holmes (1984HOLMES, Stephen. (1984), Benjamin Constant and the making of modern liberalism . New Haven (CT), Yale University Press. , p. 145), que vê no poder neutro de Constant um símbolo da neutralidade do Estado liberal, ignorando seu caráter discricionário.
  • *
    Agradeço a Fapesp pelo apoio financeiro à pesquisa de doutorado em curso de que resultou este artigo. Agradeço também os comentários e sugestões dos pareceristas da RBCS , os quais possibilitaram o aprimoramento do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2017
  • Aceito
    30 Ago 2018
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