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CATECISMO DO CIDADÃO: CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA POPULAR EM GUILLAUME DE SAIGE* * Agradeço a Eunice Ostrensky, Luís Falcão, Ricardo Fabrino, Raissa Wihby Ventura e aos pareceristas anônimos pelas valiosas contribuições. Este estudo teve apoio do CNPq e da Fapesp 2017/26135-0.

CATECHISM OF CITIZENS: CONSTITUTIONALISM AND POPULAR SOVEREIGNTY IN GUILLAUME DE SAIGE

CATÉCHISME DU CITOYEN : CONSTITUTIONNALISME ET SOUVERAINETÉ POPULAIRE DÀNS GUILLAUME DE SAIGE

Resumos

Trata-se de analisar as linguagens políticas em disputa na definição da soberania – tema caro à teoria política –, no período que antecede a Revolução Francesa, mediante a obra Catecismo do cidadão (Catéchisme du Citoyen) , de Guillaume de Saige. Escrita em 1775 (reeditada em 1787) e banida pelo Parlamento, interpreta-se tal obra (ao lado de outros escritos patriotes ) como uma resposta ao problema de legitimidade aberto durante a última Sagração, em Reims, na qual parte notável foi abolida: o momento da cerimônia em que o rei demanda consentimento do povo para governar. Por anódino que possa parecer, tal alteração litúrgica revelaria a intenção de Luís XVI de recorrer à retórica convencional da monarquia, dispensando a ritualização da eleição nacional. Cabe à teoria política analisar tais panfletos e brochuras, ainda pouco conhecidos e sobre os quais há raros estudos, sem deixar de articulá-los às análises mais sistemáticas da França setecentista para o estabelecimento das “convenções linguísticas” do período, em primeiro lugar, e, em segundo, para uma disposição crítica em relação ao passado. Isto é, não se trata de reconstituir os discursos de certo período histórico por mero diletantismo, mas porque a compreensão da distância que nos separa desse período lança luz aos fundamentos das nossas próprias linguagens políticas.

Autoridade; Linguagens políticas; Século XVIII – França


This paper analyses the political languages that are in dispute over the definition of sovereign body, before the French revolution, through Guillaume de Saige’s Catéchisme du Citoyen . Written in the year of 1775 (reedited in 1787) and banished by the Parliament, this work (as pamphlets and brochures of certain “patriotes”) is interpreted as a response to the problem of political legitimacy, which became an issue during the last royal ordination, in Rheims. As trifling that a change in the liturgy of the ceremony of ordination may seem, the suppression of the moment in which the king demands the consent of the people to rule reveals the intention of Louis XVI to resort to the conventional monarchic rhetoric, dispensing with that consent of the people. It is up to political theory to analyse these pamphlets and brochures – still largely unknown and scarcely commented upon – without abstaining from articulate them with the more systematic works of the eighteenth century France, in order to, first of all, constitute the “linguistic conventions” of the period, and second, to achieve a critical disposition concerning the past. That is to say, it is not the case of a reconstruction of the discourses of a specific historical period just for the sake of dilettantism, but precisely because the comprehension of the distance that separates us from that period sheds light upon the foundation of our own political languages.

Authority; Political languages; 18th Century – France


Cet article analyse les langages politiques en conflit dans la définition de la souveraineté – un sujet cher à la théorie politique – dans la période précédant la Révolution Française, au moyen de l’œuvre Catéchisme du Citoyen , de Guillaume de Saige. Écrit en 1775 (réédité en 1787) et interdit par le Parlement, ce travail est interprété (avec d’autres écrits patriotes) comme une réponse au problème de la légitimité ouverte lors du dernier Sacre, à Reims, lorsque qu’une partie notable du rite a été abolie : le moment de la cérémonie dans laquelle le roi demande le consentement du peuple pour gouverner. Quoique cela puisse paraitre anodin, un tel changement liturgique révélerait l’intention de Louis XVI de recourir à la rhétorique conventionnelle de la monarchie, en dispensant la ritualisation de l’élection nationale. Il appartient, en premier lieu, à la théorie politique d’analyser de tels pamphlets et brochures, qui sont encore peu connus et à propos desquels ils n’existent que de rares études, tout en les articulant avec les analyses plus systématiques de la France du XVIIIe siècle pour l’établissement des « conventions linguistiques » de l’époque ; et, en second, pour une disposition critique par rapport au passé. Il ne s’agit pas, ainsi, de reconstituer les discours d’une certaine période historique par un simple dilettantisme, mais de comprendre que la distance qui nous sépare de cette période apporte une lumière à propos des fondements de nos propres langues politiques.

Autorité; Langages politiques; XVIIIe siècle – France


Cada passo agrava o mal. Escreve-se. Responde-se. […] As luzes que adquirem os povos devem, mais cedo ou mais tarde, produzir revoluções. 1 1 No original: “Chaque pas aggrave le mal. On écrit, on répondra […] Les lumières qu’acquièrent les peuples doivent un peu plus tôt, un peu plus tard, opérer des révolutions.”

Madame d’Épinay ao abade Galiani

Introdução

O dia: 11 de junho de 1775. A cerimônia de coroação de Luís XVI foi, como as demais, um longo período de festividades e de aclamação ao rei, quem, mesmo não nascendo em Reims, apenas ali, na cidade que abrigava a cerimônia, podia se tornar um monarca, colocado em uma posição intermediária entre os súditos e Deus (Cosandey e Descimon, 2002 COSANDEY , Fanny & DESCIMON , Robert . ( 2002 ), L’absolutisme en France . Paris , Seuil ., p. 85). Com efeito, o corpo político encontra na cerimônia de Reims a sua unidade representada no corpo visível do rei, seguindo um dos instrumentos retóricos mais estáveis no tempo: a encenação dos dois corpos do rei (Kantorowicz, 1981 KANTOROWICZ , Ernst . ( 1981 ), The king’s two bodies . Princeton , Princeton University Press .). Todavia, naquele 11 de junho, na última sagração do Antigo Regime, certa parte do cerimonial foi suprimida. Por anódino que isso possa parecer, tal alteração litúrgica abriu uma fenda na unidade do corpo político, mediante brochuras e panfletos nos quais se atacava o “despotismo” e se recolocava em questão a natureza e os limites da autoridade legítima. Tais escritos – que raramente figuram como objeto de investigação na área de teoria política – circularam em escala inédita na França e foram intensamente debatidos, a ponto de a censura e o exílio de seus autores serem as respostas dos defensores do governo absoluto. Amparado nessas obras de contestação, este artigo sustenta que, se a linguagem tradicional da autoridade política, baseada no direito divino, pode ser dita vencida com os processos iniciados contra o rei, em 1791, e com a condenação e morte de Luís Capeto, nos anos seguintes, os discursos políticos que erodiram as bases de tal linguagem já estavam em circulação, nas décadas anteriores, e não foram veiculados apenas na pena dos iluministas (Bignotto, 2010 BIGNOTTO , Newton . ( 2010 ), As aventuras da virtude: as ideias republicanas na França do século XVIII . São Paulo , Companhia das Letras ., p. 176). Antes, tais discursos eclodiram nesses panfletos, ditos “patriotas” ( patriotes ), precisamente na cerimônia que tentava performar a criação de um corpo sagrado que presta contas somente a Deus e pretendia reafirmar as bases de um poder absoluto. Com efeito, a contribuição esperada deste artigo é a interpretação desses escritos de circunstância como a produção e a defesa consistente de diversos princípios de legitimação da autoridade política, entre eles: a origem eletiva da monarquia, a origem popular da soberania e a irrevogabilidade das obrigações recíprocas entre os súditos e os soberanos.

De partida, é preciso observar que alguns trabalhos historiográficos abordam essa explosão de panfletos e brochuras em circulação entre os anos 1770 e 1780 como consequências diretas do exílio do Parlamento de Paris (1771) e da substituição dos antigos parlamentares pelo “novo e dócil tribunal” do chanceler Maupeou (Darnton, 2012 DARNTON , Robert . ( 2012 ), O diabo na água benta . Tradução de Carlos Afonso Malferrari . São Paulo , Companhia das Letras ., p. 171). 2 2 É preciso ressaltar, entretanto, que o objetivo deste artigo não é discutir as teses específicas acerca da circulação dos panfletos. Dito de outro modo, os panfletos são evidências de que a autoridade política portava muitos discursos, antes mesmo dos eventos disruptivos da Revolução Francesa. O historiador Robert Darnton é o representante central da tese, segundo a qual os principais opositores da ordem tradicional eram escritores de segunda ordem cujos opúsculos circulavam nas ruas (Darnton, 2012, p. 16). O estudioso Kenneth Margerison (1998 MARGERISON , ( 1998 ), Pamphlets and public opinion: the campaign for a union of orders in the early French Revolution. West Lafayette , Ind., Purdue University Press ., p. 2), por sua vez, refuta tal tese sustentando que os principais oponentes do regime eram os advogados no interior dos parlamentos. Saídas das penas de escritores obscuros ou de parlamentares, essas obras de protesto a Maupeou, base do que se convencionou chamar de “ideologia parlamentar” (Echeverria, 1985 ECHEVERRIA , Durand . ( 1985 ), The Maupeou Revolution: a study in the history of libertarianism France 1770-1774 . Baton Rouge , Louisiana State University Press ., p. 554), foram escritas e publicadas, em sua maior parte, anonimamente, pelos patriotas 3 3 Echeverria (1985) associa um vasto conjunto de autores, magistrados das cortes e advogados, ao patriotismo dos anos 1770-1780: Claude Mey, Brancas, Guillaume de Saige, Martin Morizot, Jean-Claude Marivaux, entre outros. Para o conceito de pátria, ver Kantorowicz (1951). Estamos de acordo com Echeverria sobre o fato de não caber falar em rejeição da monarquia, entre alguns patriotas – faz eco, nesse sentido, à tese de Franco Venturi (1971). No entanto, quando da defesa da soberania da nação, a Constituição monárquica será definitivamente colocada em questão. – como eram nomeados aqueles que defendiam a soberania da nação, entre eles: Claude Mey, Léon Louis Brancas, André Blonde, Guy Target, Martin Morizot, Jean-Claude Mariveaux e, de modo mais explícito, Guillaume de Saige. Todavia, os magistrados não eram apenas parlamentares, mas constituíam um grupo político que agregava magistrados das cortes a propagandistas do Terceiro Estado. Pelas origens sociais e ocupações dos integrantes, o grupo difundiu a própria obra em escala maior e nos estratos mais populares da França setecentista. Apesar de mais de quatro anos de intensas publicações, após a restauração do parlamento, o grupo se diluiu. À sombra de 1789, isto é, dos eventos considerados tanto pela historiografia clássica do tema quanto pelos revisionistas 4 4 Tal nomenclatura é usual entre os estudiosos da Revolução Francesa. Por historiografia ortodoxa (ou clássica, se quisermos evitar qualquer conotação negativa), compreende-se o conjunto de trabalhos cujas análises dos eventos da Revolução privilegiam a explicação da ação dos atores políticos, notadamente a partir do seu pertencimento e interesse de classe. Especialmente após os trabalhos apresentados por ocasião do Bicentenário da Revolução, os estudos voltaram-se à compreensão das ideias nas origens da Revolução. Trabalhos tão distintos quanto os de François Furet, Dale Van Kley, Keith Baker (mencionados ao longo deste artigo) foram abrigados na rubrica “revisionista”. Para uma discussão da nomenclatura e do desenvolvimento do debate, ao longo da história, ver Kates (2006), especialmente “The overthrow of the Marxist paradigm” e “The revisionist orthodoxy”. o ponto essencial da Revolução Francesa, é compreensível que pouca atenção tenha sido concedida à produção de tal grupo político ao conceito de autoridade e soberania por ele sustentado e que se tenha fixado o consenso de que a atuação dos patriotas na contestação da sagração não se deu senão como mera oposição ao chanceler Maupeou. Todavia, essa não é a interpretação sustentada neste artigo.

Para compreendermos a ocasião que propiciou discussões intensas acerca da autoridade política, é preciso voltar aos rituais de 11 de junho. Isso é feito na primeira seção deste artigo, intitulada “A coroa, o consentimento e o Catecismo do cidadão ”. Revelado o intenso debate sobre a autoridade legítima (os argumentos em sua dinâmica e não como ideias perenes) em um período tomado como um monolítico pela historiografia clássica sobre o tema e na história do pensamento político, o Antigo Regime, lançamos luz aos diversos princípios da autoridade política que circularam nos escritos patrióticos, de maneira geral e, em particular, na pena de Guillaume de Saige (1746-1804), autor do Catecismo do cidadão . Isso é feito nas segunda e terceira seções do artigo, intituladas “Os elementos do direito público francês no Catecismo do cidadão ” e “A constituição em face ao ato da vontade geral”. Com efeito, este artigo parte da análise do rito em questão para compreender que sentido de ordem política legítima se tentava afirmar, numa época que se esforçava por definir (e redefinir) noções fundamentais como a liberdade, a igualdade, a soberania (Valensise, 1986 VALENSISE , Marina . ( 1986 ), “ Le sacre du roi: stratégie symbolique et doctrine politique de la monarchie française” . Annales. Économies, Sociétés, Civilisations , 41 ( 3 ): 543 - 577 ., p. 544). Em que medida tais definições nos parecem triviais, hoje, a ponto de quase serem dispensadas investigações como essa – feitas nas franjas entre a teoria política e a história amparada em discursos políticos – é matéria tratada nas considerações de cunho metodológico, na conclusão deste artigo.

A coroa, o consentimento e o Catecismo do cidadão

De acordo com a liturgia, uma vez coroado o rei, a cerimônia deveria seguir com o pronunciamento do ungido “diante de Deus, do clero e do povo”. 5 5 De acordo com Le Goff, na sua análise do manuscrito da liturgia da sagração, da qual um exemplar (datado de 1246, grafado em latim) é guardado na Biblioteca Nacional Francesa (BnF). Porém, naquela última cerimônia de coroação, o povo permaneceu fora da catedral e foi admitido na nave desse espaço simbólico do poder apenas após a entronização. Além disso, os bispos Laon e Beauvais, os então responsáveis pela última cerimônia clássica do Antigo Regime, suprimiram todo apelo ao povo. Com efeito, é possível interpretar que, mediante a modificação da liturgia da coroação, abolia-se a ritualização da eleição do monarca – entenda-se: o consentimento popular do governo ao eleito de Deus. Afirmar a existência desses princípios de legitimidade, isto é, a eleição do rei e o consentimento do povo, pode parecer estranho quando se está convencida de que a monarquia era legítima apenas graças à linguagem jurídica 6 6 A referência para o termo “linguagem política” é o historiador John Pocock. Como se sabe, o autor discute o modo pelo qual a centralidade do papel da lei e os vocabulários e idiomas de uma atividade específica, o direito, permitiram, tal qual um verdadeiro paradigma, a articulação do pensamento político ao longo da história. Para a discussão deste ponto, ver Pocock (1995, pp. 37-50). que sustentava a sucessão dinástica. No entanto, alterações aparentemente superficiais de um ritual de legitimação da autoridade podem nos revelar muito sobre os diversos discursos do poder em determinado contexto. Se é assim, não parece correto sustentar a tese historiográfica, segundo a qual o rei faz apenas uma “simulação” de consulta ao povo (Le Goff, 1984 LE GOFF , Jacques . ( 1984 ), “Reims, ville du sacre” , in P. Nora ( org .) , Les lieux de mémoire ( Tome 1: La République ), Paris , Gallimard ., p. 134), durante a cerimônia, pois ela redunda na compreensão de que a autoridade do Antigo Regime se amparava em uma, e apenas uma, linguagem: o absolutismo monárquico. Ora, se o consentimento do povo não fosse, de fato, critério da autoridade considerada legítima, o poder de Luís XVI se justificaria apenas pelo rito, tal como foi feito. Com efeito, se não existissem outros princípios de legitimação em concorrência, a alteração da liturgia da cerimônia não alimentaria a “revolução em curso”, segundo os termos de Madame d’Épinay, de quem tomamos a epígrafe deste artigo.

É verdade que, durante a Idade Média, o rito da coroação perdeu o seu valor legal, quando a transmissão do poder foi regulada pelo direito público do reino. 7 7 Segundo Marina Valensise, foi casual o fato de, por três séculos, os capetos ( capétiens ) terem sempre um filho à disposição para associá-lo ao trono, o que teria acionado a percepção (pois ainda não era assim regulado) da dimensão hereditária do trono. Sobre a necessidade do estabelecimento urgente de um sucessor e da matéria que se abriu pelo direito público do reino, quando da morte inesperada de São Luís, em 1270, ver Valensise (1986, p. 548 ss.). A linguagem jurídica prevalece, nesse momento, sobre a da vontade (a do rei) na passagem legítima de poder (no geral, aos seus descendentes). Se o ritual da coroação perde constantemente o seu sentido jurídico, as alterações do cerimonial e a supressão às alusões do poder originário popular, na sagração de 1775, podem ser lidas como respostas aos ataques crescentes que a autoridade tradicional recebia: o rei recorre, então, à retórica convencional da monarquia (em especial, ao discurso do direito divino) como meio de tentar alterar a percepção social sobre os elementos indispensáveis para a instituição do governo. Se essa interpretação é correta, o núcleo da controvérsia do período, não diz exatamente respeito à oposição a uma reforma pontual de Maupeou, como sustenta a historiografia clássica sobre o tema, mas à emergência de um verdadeiro debate político sobre a legitimidade da autoridade.

A supressão do momento do consentimento da cerimônia permite a abertura a contestações e muitos comentários, mais ou menos sarcásticos. Até mesmo alguns dos patriotas que não se opunham, de saída, à forma monárquica, enfatizavam que o rito da sagração era o reconhecimento do princípio da eleição nacional do rei. Reconhecer tais princípios implicava, todavia, expressá-los, enunciá-los diante do povo – e não um acordo tácito. É por isso que propagandistas do que chamamos, em nossa interpretação, de uma “teoria da eleição monárquica”, amparados no princípio do poder originário popular, denunciam a ilegitimidade da supressão do juramento feito diante dos nobres, do clero e do povo. Por mais vã que seja a cerimônia, como exprime em tom de desaprovação o publicista Pidansat de Mairobert, autor do clandestino jornal Mémoires secrets (1775), o clero tirou proveito de tal supressão – ato que não passou despercebido dessa “outra parte” do corpo político, o povo, apartada do piedoso espetáculo, é verdade, todavia atenta à parcela de autoridade que lhe cabia de direito. Poderia, então, o rei dispensar o “sim” aclamado pelo povo? Assim acusa o mesmo Pidansat de Mairobert: “eu escutei um orador lhe dizer que ele recebia a sua potência de Deus e apenas de Deus, e que ele não deveria prestar contas senão a Deus”. 8 8 As traduções são de responsabilidade da autora do artigo. Notemos que a ideia de que o poder real vem exclusivamente de Deus e que apenas a Ele o rei deve prestar contas, isto é, a tentativa de restabelecer a tese de que o rei era senhor de seus próprios atos ( legibus solutus ) atiça a ira de Mairobert. Mas foi como “ato contrário à soberania do rei” que outros publicistas patriotas, Guillaume de Saige e Mariveaux, tiveram suas obras, respectivamente, o Catéchisme du citoyen e L’ami des lois , banidas por sentença parlamentar. Não restam dúvidas de que se está diante de ampla disputa em torno da legitimidade da autoridade, seus limites e fundamentos, travada em distintos discursos políticos do período.

Este artigo mostra que, entre as obras banidas, a ameaça do Catecismo do cidadão, de Saige , às pretensões dos absolutistas poderia ser lida como a mais radical entre os patriotas do período, razão pela qual recebe destaque na sequência deste artigo. Publicado em 1775, o Catecismo foi banido, em 30 de junho do mesmo ano, pelo próprio parlamento, junto com a obra de Mariveaux, como foi afirmado anteriormente. Após receber novas edições em Londres, o panfleto voltará a circular anonimamente, com uma intensidade comparável apenas às obras de Rousseau, uma década depois da publicação de sua primeira edição, com acréscimos e notas mais detalhadas da situação política do período – eis a importância de uma obra de teoria política bastante esquecida. É uma importante obra também porque, ao levarmos em conta uma testemunha do período, Pidansat de Mairobert (1775a, pp. 133-134), a linguagem do panfleto permitiu que ela fosse mais lida pelos comuns do que as passagens mais abstratas de Rousseau e Montesquieu. O trabalho aplicado entre as duas edições da obra, isto é, entre 1775 e 1788, após o capítulo XI, destinado à recapitulação dos argumentos dos capítulos anteriores, compreende a inserção de uma segunda parte intitulada “Fragments politiques”, que basicamente dobra o número de páginas da edição anterior.

Ora, um discurso com caráter fortemente constitucionalista sobre a autoridade política pode ser encontrado tanto nas Remontrances (os documentos parlamentares produzidos na grande crise entre parlamento e rei, em 1753-1754) quanto na obra de Marivaux. 9 9 L’ami des lois, ou Les vrais principes de la monarchie française , de Jacques-Claude Martin de Mariveaux, panfleto de 1775, do qual não restaram senão algumas páginas fragmentadas. Com efeito, os costumes, as leis fundamentais, o juramento do rei, as obrigações e reciprocidades são regulações e limites da autoridade pública afirmados amplamente nesses escritos parlamentares e patrióticos. Que haja, portanto, um discurso constitucionalista em circulação no período, não há dúvidas. Todavia, não é claro no interior dessas obras quem, em última análise, estaria habilitado a limitar o poder, mesmo que não possamos reduzir a linguagem política constitucionalista a um discurso centrado na mera imposição de limites à autoridade (Lee, 2016 LEE , Daniel . ( 2016 ), Popular sovereignty in early modern constitutional thought . Oxford , Oxford University Press ., p. 2). Se, em ampla medida, essa é dita uma linguagem de longa duração, a nossa interpretação está interessada em analisar também as rupturas nas linguagens da autoridade na pena de Guillaume de Saige e, mais especificamente, atenta para a articulação entre princípios antigos e modernos, em um mesmo discurso. Nesse sentido, embora o princípio da origem popular do poder já estivesse apresentado na pena dos outros panfletistas patriotas, Guillaume de Saige traz uma resposta mais refinada e mais radical 10 10 O historiador Keith Baker (1990, pp. 128-152) apresenta interpretação semelhante no que diz respeito à expressão radical do princípio de soberania nacional, no interior da obra. Para o autor, o panfleto de Saige é uma “resposta direta” à reforma de Maupeou. A sua tentativa de “exumar” (a expressão é dele) esse panfleto do terreno dos esquecidos publicistas do período pré-revolucionário faz parte de uma pesquisa mais ampla de exploração das origens ideológicas da Revolução Francesa. sobre quem pode ser designado o detentor último da autoridade, isto é, aquele que pode reclamar de volta a soberania que lhe pertence originalmente. Não se trata apenas de uma diferença de ênfase entre as obras patrióticas analisadas: Saige, de fato, apresenta um avanço em relação à linguagem constitucionalista e à origem popular do poder.

As análises do estudioso Daniel Lee (2016 LEE , Daniel . ( 2016 ), Popular sovereignty in early modern constitutional thought . Oxford , Oxford University Press ., p. 8) sobre a relação entre contestação e constitucionalismo nos indicam que, sem a designação de um núcleo de contestação ativa, o projeto constitucionalista não se completa. Com efeito, não apresentamos o Catecismo como obra exemplar do constitucionalismo moderno, supondo que o período anterior à Revolução Francesa carecesse de teorias da autoridade pública. O Antigo Regime, como temos argumentado, já apresentava princípios de regulação, mesmo que incompletos do ponto de vista da contestação da autoridade. Fato é que, a seguirmos a sugestão de Lee (2016 LEE , Daniel . ( 2016 ), Popular sovereignty in early modern constitutional thought . Oxford , Oxford University Press ., p. 120), o constitucionalismo moderno se modifica com a introdução de uma questão específica, 11 11 A afirmação de que ocorre uma mudança no constitucionalismo abarca uma tese mais fundamental acerca da existência de uma linguagem constitucionalista antes do chamado “período moderno”, a qual pode ser corroborada pelos seguintes trabalhos: McIlwain (2010) e Kritsch (2002). a saber: a quem é reputado o direito legal aos poderes de imperium e juridictio ? Guillaume de Saige teria respondido: “o povo”, amparando a sua resposta no princípio da soberania da nação. Em face dos demais defensores patriotas, ele dá um passo adiante ao articular a soberania da nação ao constitucionalismo (isso será desenvolvido na sequência do artigo). Talvez, nessa resposta, resida a ira do censor do governo e, em consequência, a razão do banimento da obra Catecismo do cidadão .

Nas seções seguintes, não nos propomos esgotar todos os elementos trazidos por Guillaume de Saige, o parlamentar de Bordeaux, nem avaliar o trabalho em relação às suas referências mencionadas nas notas do Catecismo , embora elas devam ser mencionadas: Harrington, Maquiavel, Tácito, na primeira edição da brochura; 12 12 Sendo observadas essas referências, não parece correta a afirmação de Echeverria (1985, p. 63) sobre as fontes dos patriotas, pois, tanto quanto os demais patriotas, Saige estava informado das mais importantes obras clássicas estrangeiras, como se pode observar nas próprias notas do autor. Buchanan, Hotman e Calvino, nas notas dos Fragmen[t]s, acréscimo da segunda edição da obra; 13 13 A obra aparece grafada “Fragmens”. Deste ponto em diante, empregaremos a grafia da palavra ( http://www.cnrtl.fr/etymologie/fragment ) com o acréscimo do [t]. e sua referência constante, donde extrai longas paráfrases, mas raramente as torna explícitas: Jean-Jacques Rousseau. 14 14 Segundo Echeverria (1985, p. 63), a referência a O contrato social , de Rousseau, nas obras dos opositores a Maupeou, os patriotas, era feita de forma velada, especialmente após a condenação do Emílio . Em sua leitura do panfleto, Keith Baker (1990, p. 142) enfatiza a proximidade de Saige com o seu mestre Rosseau, sem que a estrutura argumentativa d’ O contrato social seja inteiramente endossada. De fato, há possíveis aproximações e afastamentos de Saige com Rousseau. “Possíveis”, porque Saige não menciona Rousseau, muito provavelmente como estratégia para driblar a censura, a despeito de vários trechos de sua obra serem verdadeiras paráfrases d’ O contrato social . Além disso, o modo como ele identifica soberania e vontade geral parece, de fato, ecos rousseauístas. O presente artigo, por sua fundamentação em uma pesquisa em fontes primárias raramente estudadas, busca não fazer de Saige um autor à sombra de Rousseau, mas autores em diálogo. Serão expostos, na seção “Os elementos do direito público francês no Catecismo do cidadão ”, os elementos presentes na obra de Saige que nos são particularmente importantes para o argumento que pretendemos desenvolver, sejam eles: o contraste entre uma ordem política criada por um contrato e uma sociedade criada por poder divino; o discurso político que localiza o poder legítimo no corpo da nação (e seu consentimento ao rei), por vezes, o autor emprega o termo “corpo do povo” e compreende por isso a antiga assembleia dos três estados; o emprego de discursos históricos em favor da origem eletiva da monarquia, embora se diga que o pensamento político, no século XVI, havia enterrado essa via de legitimação com a defesa dos argumentos jurídicos em favor da sucessão dinástica. Como se verá nas próximas seções, o emprego de tais discursos era concomitante à versão moderna da linguagem constitucionalista, na qual se destaca uma teoria da soberania popular. Se estivermos corretas em nossa interpretação, ao final da terceira seção deste artigo, intitulada “A constituição em face ao ato da vontade geral”, será justificado que a linguagem do constitucionalismo conhece uma inflexão em conjunção com a doutrina da soberania popular, indicando que esta não é apenas um discurso de reação, mas um discurso de legitimação da autoridade política.

Os elementos do direito público francês no Catecismo do cidadão

Ainda em resposta à crise de autoridade política da França setecentista, os discursos políticos em circulação no período aceleravam o debate sobre a constituição do governo, parafraseando novamente a marquesa d’Épinay, que fornece epígrafe ao artigo. 15 15 Trata-se da correspondência entre a marquesa d’Épinay e o abade de Galiani, em abril de 1771, da qual extraímos a epígrafe. A amiga de Diderot mostra clareza sobre a questão política do período ao afirmar que o debate reabre uma questão antiga sobre a autoridade: “É certo que, desde o estabelecimento da monarquia francesa, essa discussão da autoridade, ou ainda, do poder, existe entre o rei e o parlamento. Essa indecisão mesma faz parte da constituição monárquica; pois, se é decidida em favor do rei, todas as consequências disso o tornam absolutamente um déspota. Se a questão é decidida em favor do parlamento, o rei não tem mais autoridade do que o rei da Inglaterra; de um modo ou de outro, ao decidir a questão, muda-se a constituição do Estado ” (Galiani, 1881, p. 226). A circulação se intensifica após a criação do “novo e dócil tribunal” (Darnton, 2012 DARNTON , Robert . ( 2012 ), O diabo na água benta . Tradução de Carlos Afonso Malferrari . São Paulo , Companhia das Letras . p. 171) do chanceler Maupeou, em substituição ao Parlamento de Paris, em 1771, mas também pela insidiosa alteração da cerimônia da Sagração, como já tratamos na seção anterior deste artigo. Na crise de 1753-1754, os parlamentares sustentavam que o rei não era livre das determinações das leis (ele não era legibus solutus ), mas limitado pelos termos do juramento feito diante dos nobres, do clero e do povo e pelas leis fundamentais. 16 16 Sobre a maior crise do Antigo Regime, envolvendo parlamento e rei, ver Rogister (1995). Sobre a natureza e discursos genealógicos da realeza e as disputas de cunho “histórico” que travestiam conflitos de sucessão, ver Vierhaus (1977). Além da garantia das leis, os parlamentares defendiam limitações institucionais, isto é, aquelas mediante os poderes ordinários e as funções específicas dos magistrados.

Essa é também a matriz dos argumentos de certos panfletistas patrióticos, como Morizot (autor de Inauguration de Pharamond , 1772) e Mariveaux ( L’ami des lois , 1775), os quais insistem nos princípios da lei natural e na variante moderna do dictum romano Salus populi suprema lex esto: a utilidade pública ( utilité publique ). Ambos os autores ressaltaram os termos das obrigações recíprocas e acionaram a lei divina como freio das pretensões de domínio do rei, alegando que a declaração de que o rei era legibus solutus seria pretender ocupar o lugar de Deus. Em parte, esses elementos são endossados por Guillaume de Saige ao reagir às investidas arbitrárias dos ministros do rei, do clero e ao banimento da parte consultiva da cerimônia, em um opúsculo de mais de uma centena de páginas.

O ponto de partida da obra de Saige, Catecismo do cidadão , é a exposição dos fins da sociedade política, a discussão da articulação entre a manutenção das leis e da liberdade dos súditos, mediante uma construção textual em perguntas e respostas – por isso é dito um “catecismo”. 17 17 Sobre a ampla tradição da literatura política denominada “catecismos”, por sua forma em perguntas e respostas, a qual perdurou até o século XX, no contexto da Revolução Russa, ver Buttier (2015). Desde o primeiro dos onze capítulos que constituem o Catecismo , o advogado do Parlamento de Bordeaux afirma existir um “direito público francês”, isto é, o conhecimento das leis e da constituição da sociedade política. Após esta questão de abertura, que invoca a autoridade suficiente para tratar dos temas “leis” e “constituição da sociedade”, Saige condiciona a manutenção da origem livre e independente dos homens, pressupostos de sua teoria, à constituição de uma sociedade política, mediante um construto hipotético: o estabelecimento de um contrato. O indivíduo, como unidade básica do direito, aparece apenas nesse momento da argumentação, para justamente marcar a relação entre os homens no estabelecimento do corpo político 18 18 Trata-se de uma resposta retirada na segunda edição da obra, mas que diz respeito precisamente às partes contratantes. O autor afirma que o contrato é feito com a massa dos associados, de uma parte, e cada indivíduo, de outra parte (Saige, 1775, cap. 1). . Tendo por finalidade conservar os “direitos imprescritíveis dos indivíduos” que se unem e determinam em comum a causa e o objetivo da associação, nos termos de Saige (1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 4), o contrato ocupa o espaço primordial na constituição da sociedade, de modo que qualquer violação a ele equivaleria à dissolução do corpo político ou a um atentado à vontade da Nação do qual todo poder civil é, ainda seguindo o autor, uma emanação (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 12). Saige parece repetir o enunciado d’ O Contrato Social (I, 1), no qual se coloca em questão precisamente a passagem de um estado de liberdade para um estado de submissão às leis: “o homem nasce livre, mas se vê acorrentado por toda parte”. Não há demoras, portanto, para explicar a origem livre dos homens. Trata-se de um pressuposto da obra, mas cuja complexidade se revela quando tentamos compreender a necessária saída de um estado de ausência de quaisquer garantias, bem como os meios de se legitimar o assentimento voluntário às leis. Compreender a centralidade que a linguagem da vontade aos poucos passa a adquirir é fundamental para iluminar o arranjo de um discurso que associa a vontade à soberania popular.

Em que medida a defesa de um contrato que vincule todas as partes livres do reino contrasta com outras teorias acerca da associação política? Uma, em especial, qualificada pelo autor como “supersticiosa”, nas suas notas, faz o governo civil derivado da vontade de Deus, revestindo os chefes da nação de uma autoridade celeste (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 85), pela qual eles não devem prestar contas de seus atos e aos quais devem os homens apenas obedecer. Restam poucas dúvidas de que o autor se voltava, com esse passo, às teorias de Charles Loyseau, eminente jurista do século XVI, e de Jacques Bossuet. Ambos os autores eram considerados autoridades acerca das formas legais e princípios morais que amparavam a ordem social tradicional e, portanto, eram as referências na defesa da tese real sobre a autoridade política.

De acordo com Bossuet (1707 BOSSUET , Jacques . ( 1707 ), Politique tirée des propres paroles de l’Écriture sainte . Paris , ( s.n .). [ BnF E*-2795 ]., L III, art.1), a autoridade real é paterna, sagrada, absoluta e subordinada à razão. Na versão histórico-religiosa de Bossuet, defende-se que a perenidade da aliança entre Deus e os homens permitiria aos reis por Ele escolhidos arbitrar com independência as regras do justo e do verdadeiro. Com efeito, a variante religiosa do contrato, apresentada pelo bispo de Meaux, nega que a autoridade real esteja submetida ao consentimento das Assembleias, ao afirmar que basta a autoridade dos príncipes, guardiões do interesse público, para a imposição das leis (“não se quer dizer com isso que a autoridade das leis dependa do consentimento e aquiescência dos povos: mas apenas que o príncipe, aliás, por seu caráter, não tem outro interesse senão aquele do público”). E ampara a sua explicação em excertos bíblicos, nos quais se afirma que, assim como Deus reuniu o povo por mediação do príncipe Moisés, quem transmitiu as leis verdadeiras ao povo, assim também os reis franceses seriam os depositários da confiança do povo francês (Bossuet, 1707, L III, art. 4, prop. VI, pp. 32-33).

A primeira das propriedades da analogia com o poder paterno, apresentadas no livro 3 do Politique tirée des propres paroles de l’Écriture sainte , é refutada por Saige, pois a autoridade de um homem sobre outro só poderia existir enquanto um deles não pudesse dispor de sua própria razão – o que se passaria legitimamente nos núcleos familiares, mas certamente não nas associações políticas. Nas palavras do advogado de Bordeaux: “A opinião que enxerga o poder paterno como a fonte do governo civil é inteiramente destituída de fundamento; a autoridade dos pais é puramente limitada ao tempo da infância” (Saige, 1775, p. 85). Após certa idade e com o desenvolvimento das próprias faculdades, o indivíduo (o termo é dele) adquire o direito de ser o seu próprio senhor e árbitro da sua conduta. Além disso, é um equívoco quanto aos desígnios de Deus, prossegue o autor, afirmar que o Ser Supremo possa agir no mundo moral do mesmo modo como o faz na ordem física. Desse modo, ele se dirige contra outra das propriedades fundamentais da instituição monárquica: a sacralidade – contestação fundamental para que, nas décadas seguintes, o rei fujão, 19 19 Referência à noite de Varennes, em 21 junho de 1791, quando Luís XVI e sua família fugiram do Palácio das Tulherias e foram flagrados em delito de fuga no povoado de Varennes. Sobre a fuga e as consequências políticas desse evento, ocorridos entre 21 de junho e 14 de julho (respectivamente, o dia seguinte à fuga a Varennes e o dia da entrega dos relatórios dos comitês da Assembleia), ver o capítulo 5, “A autoridade política à sombra de dois corpos” de Soromenho Nicolete (2017). Para mais informações sobre a noite de Varennes, ver os primorosos trabalhos de Ozouf (2009) e Tackett (2003). Luís XVI, fosse submetido a julgamento como cidadão comum. O engano dos “sistemas supersticiosos”, como nomeia Saige (1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 85), é que, ao fazer intervir a vontade de Deus no estabelecimento das sociedades, revestem “os chefes das nações de uma autoridade celeste e transformam a Magistratura em uma espécie de sacerdócio”. Nada mais longe disso do que uma teoria que sinaliza para uma ordem justificada nas convenções estabelecidas entre seres iguais, isto é, “dotados dos mesmos poderes físicos e morais” (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 86). Em outros termos, em oposição a uma ordem natural e absoluta, Saige alega que apenas uma ordem convencional é legítima.

De fato, afirmar que o poder civil é a emanação da vontade da nação equivale, também no Catecismo de Saige, a minar a crença na operação exclusiva da “reta razão”, como a base das leis civis, como defendeu o autor de Politique tirée... (Bossuet, 1707 BOSSUET , Jacques . ( 1707 ), Politique tirée des propres paroles de l’Écriture sainte . Paris , ( s.n .). [ BnF E*-2795 ]., pp. 31-32). Quando discorre sobre o caráter da liberdade dos homens, Saige sustenta que cada indivíduo da espécie humana é livre e independente por sua natureza e conclui que o seu estado apenas pode ser modificado por sua vontade mediante um consentimento. O contrato, portanto, é necessário para determinar a causa e o propósito ( la cause et le but ) da associação, isto é, a conservação e o bem-estar dos membros. Diversos elementos são fornecidos como causa do reconhecimento da necessidade de associação: “A fraqueza dos indivíduos, a necessidade que eles têm uns dos outros, a opressão dos fracos pelos fortes [...]” (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., pp. 4-5). Com efeito, o autor não destina uma parte de suas análises para tratar das condições hipotéticas de um estado primitivo, como nas chamadas teorias contratualistas, mas discorre fundamentalmente sobre os meios de estabelecimento desse contrato. O intento nos parece trivial hoje, mas Saige estava tentando vincular essencialmente a “força” que dirige a “máquina política” (o termo é do autor), isto é, a autoridade soberana, a uma vontade. Força, nesse contexto, não é uma espécie de ameaça, mas conota a direção e o movimento da sociedade política. Vontade que, por sua vez, não deve nunca se afastar do interesse público. Mas se a vontade pode se desviar de seu objetivo inicial, conclui o autor: “a segurança seria nula para os membros da associação, porque o estado deles seria incerto” (Saige, 1775, pp. 5-6). E um estado civil que traz insegurança e incerteza em relação à vida, à liberdade e aos bens é tomado por um estado ilegítimo e “contrário à constituição do homem” (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 6).

Como o autor, então, consegue articular a permanência da vontade que dirige a associação – vontade que não deve se desviar nunca do propósito de promover o bem público – com o seu caráter inevitavelmente contingente (porque se trata de uma vontade) e a necessária segurança que indivíduos devem ter em qualquer associação legítima? Como uma teoria assim radical da soberania popular se articula com uma linguagem constitucional e de preservação das leis fundamentais? A solução para tal impasse 20 20 É preciso lembrar que as teorias constitucionalistas contemporâneas sustentam que a soberania popular é, em ampla medida, uma doutrina negativa ou de contestação a um poder arbitrário. Tal constatação emerge de um “paradoxo do constitucionalismo”, como nomeiam os estudiosos, que diz respeito à indeterminação de “povo”, conforme Loughlin e Walker (2007). A teoria da soberania popular é ainda desacreditada por aqueles que a tomam como incompatível com a “ rule of law ” por ser intrinsecamente absolutista (Eleftheriadis, 2010, p. 538). A nossa argumentação, mesmo que o trabalho não se justifique pelo diálogo com teorias contemporâneas, segue outra tese e busca sustentar que tal impasse é ilusório; a soberania popular exerce a função de um princípio que é formador e agregativo – e não resposta a uma força. Enquanto tal, trata-se de uma teoria constitutiva da autoridade política (Lee, 2016). parece, de fato, estar fundada no retorno à distinção rousseauísta entre autoridade executiva e legislativa (cf. Baker, 1990 BAKER , Keith . ( 1990 ), Inventing the French Revolution . Cambridge , Cambridge University Press ( Ideas in context )., p. 144). Saige demonstra convicção bem maior do que os demais patriotes quando localiza no “corpo do povo” e, especificamente, nas assembleias gerais o poder legislativo legítimo – esforço que, para o pensamento político, pode ser lido como o de fundamentar a soberania popular. Com efeito, se atingida a autoridade legislativa que pertence à nação (como os golpes do chanceler Maupeou o fizeram, por exemplo), deve-se admitir explicitamente a revogabilidade de tal ordem e o retorno ao estado originário.

A motivação dos indivíduos para a instituição do corpo político e consequente saída de uma situação de insegurança, no raciocínio de Saige, é de interesse próprio, isto é, para a preservação da vida, da liberdade e propriedade de todos os associados. Além disso, é a natureza que concede a cada um o poder absoluto para dispor da própria vida. 21 21 Para sustentar que o povo não pode jamais alienar um direito que é inerente a ele, Saige teria uma tradição medieval francesa à sua disposição (sem com isso afirmarmos a manutenção da linguagem sem alterações decorrentes das determinações do tempo específico): a tradição conciliarista desenvolvida por Jean Gerson, na Grande Cisma, e reapropriada de modo mais radical pelos sorbonistas John Mair e Jacques Almain, no início do século XVI. Sobre o conciliarismo como um fundamento do constitucionalismo moderno, ver Skinner (1996, cap. 13). Dale Van Kley (1979) apresenta o “jansenismo-gallico” como parte fundamental do constitucionalismo francês. Assim como o era para Rousseau, nos seus princípios do direito político, reunidos n’ O contrato social (1762), também para Saige, a vontade geral tem por objeto o interesse público, portanto, as leis nela amparadas são generalizáveis a todo o corpo político:

De onde deriva a tendência necessária da vontade geral à felicidade de todos? Do amor de si, desse sentimento que a natureza imprime em cada indivíduo da espécie humana e pelo qual ele tende necessariamente à própria felicidade; no estado civil, a vontade dos associados, reunidos por contrato primitivo, forma a vontade pública (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 7).

Com efeito, há um ato de consentimento e de criação de uma sociedade política legítima, a partir de um estado de mera agregação original, onde os homens eram independentes, mas viviam em certo estado de insegurança. O consentimento, portanto, é a chave dessa passagem de um estado agregativo a um estado político. A ligação constante e essencial da sociedade política criada com o bem público está na vontade geral, vontade que não é arbitrária porque se trata do “desejo comum de todos os membros da sociedade, manifesto claramente e relativo a um objeto de interesse público” (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 7). Portanto, a vontade geral não é uma suposição individual anterior à instituição da própria sociedade política, mas a vontade de um corpo específico: o corpo da nação. A vontade geral tampouco é uma transformação da vontade particular, mas ela é certa disposição da vontade dos associados. 22 22 É preciso assinalar que a tradição escolástica, de acordo com Skinner (1996, cap. 14), já havia seguido essa matriz explicativa amparada no conceito de consentimento para a composição da sociedade política, mas não da forma acabada como a vemos nos séculos XVI e XVII. Disso decorre que a autoridade soberana não é ligada permanentemente ao interesse geral por nenhuma razão inerente à natureza humana, mas tão-somente porque o estado que precede o consentimento é precário, monstruoso, absurdo, desumano até, nos termos empregados pelo autor, e coloca em perigo cada um dos associados (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 7).

Seria preciso indagar por que Saige precisou inserir, na segunda edição do seu Catecismo , uma conclusão bastante direta acerca da autoridade soberana, no passo argumentativo que articula o consentimento dos indivíduos e a instituição de uma vontade geral – diferente da versão do texto de 1775. No excerto da segunda edição, às vésperas da Revolução, o advogado sustenta que a autoridade soberana não pode residir legitimamente senão no “corpo do povo” ( corps du peuple ) (Saige, 1788, p. 10). 23 23 Nas notas, a referência do autor neste ponto é o inglês J. Harrington, de cuja obra Oceana Saige extrai diversos excertos.

O autor associa, desde a primeira versão, o poder soberano à autoridade legislativa; na segunda edição, ele antecipa tal argumento, associando diretamente o poder legislativo ao corpo do povo e, portanto, à reunião dos estados gerais (nos quais se localiza a autoridade legislativa). Pode parecer sutil essa introdução, mas ela é, de fato, uma ênfase deliberada buscada pelo autor. A exposição dos princípios da autoridade é marcada, de saída, por uma tese radical da soberania popular. Apenas nessa assembleia legislativa da nação podem ser aprovadas as leis e taxas ( in generali populi conventu ) e a mais importante prerrogativa: a alteração da Constituição. Não é, então, nem o rei, tampouco o parlamento, quem deve convocar tal reunião, mas a própria assembleia:

[...] por uma consequência natural, a autoridade soberana pertence necessariamente à única vontade que não pode jamais se afastar de seu propósito social, isto é, a vontade da nação. Desse modo, por razões igualmente aplicáveis a todos os corpos políticos, a nação francesa detém o direito mais incontestável ao poder legislativo (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., pp. 16-17).

Na segunda edição do Catecismo , o autor insere a questão sobre a instituição da autoridade soberana, indagando se o poder absoluto conferido a cada um pela natureza deve ser transmitido ou apenas confiado ao soberano. Na longa resposta desenvolvida, o parlamentar de Bordeaux afirma que a alienação, seja passageira ou permanente, é contrária aos direitos do homem e à natureza do corpo político (Saige, 1788, pp. 12-16). Se fosse transferido o poder, o corpo político perderia a sua orientação fundamental, que é aquela da vontade geral. Além disso, em tal situação, cada indivíduo perderia o seu direito natural e sagrado de autoconservação (Saige, 1788, p. 11). Ora, se a alienação é, segundo Saige, ato contrário aos direitos do homem e à natureza do corpo político e se a autoridade soberana não pode ser submetida a uma força qualquer (pois a força deforma a soberania), disso se segue que a soberania cabe apenas ao próprio corpo do povo. Mesmo quando a autoridade legislativa concede poderes aos magistrados, trata-se de um poder derivado do povo e, por isso, eles estão subordinados à vontade pública (Saige, 1788, p. 115, nota 6).

O argumento não é simples, pois o autor pretende rejeitar a ideia de uma transferência parcial do poder individual ao soberano e ao mesmo tempo manter a origem popular da soberania. Com efeito, mediante a introdução da afirmação, segundo a qual a autoridade soberana reside no corpo da nação, Saige associa a teoria da soberania popular à linguagem constitucionalista, tornando-a uma doutrina de legitimação da autoridade política. Todavia, o constitucionalismo defendido não se apresenta nos mesmos moldes com que os parlamentares, por exemplo, defenderam a sua autoridade nas Remontrances. Isso porque, quando Saige afirma que a vontade geral é absoluta, a Constituição também é contingente 24 24 Para pensar a contingência, a nossa referência é John Pocock: trata-se de uma dimensão do tempo secular, no qual se estabelece que uma ação depende do curso de outras ações no tempo, de modo que é sempre uma ação particular. A contingência é o plano histórico que acolhe o imprevisto e o inesperado; é, propriamente dizendo, o terreno da instabilidade (Pocock, 1975, p. 268). A nossa outra referência para pensar a contingência, em outra matriz do pensamento, mas ainda em franca oposição às teorias que supõem as ações como “resultados” previamente calculados e limitados, é Hannah Arendt (2005, 2014). e, portanto, dependente dos atos dessa vontade.

É verdade que no Inauguration de Pharamond , o patriota Morizot afirma que apenas a nação pode mudar as “condições do contrato”, como bem lembra Echeverria (1985 ECHEVERRIA , Durand . ( 1985 ), The Maupeou Revolution: a study in the history of libertarianism France 1770-1774 . Baton Rouge , Louisiana State University Press ., p. 78). Entretanto, à diferença de Saige, Morizot não acentua o caráter absoluto do direito político. Essa nos parece ser a razão pela qual Saige é muito enfático, na segunda edição da obra, ao afirmar que a sociedade eleva um cidadão à magistratura não sob convenções apenas, mas sob verdadeiras “ordens”. 25 25 É importante ressaltar que, a despeito de mostrar todas as práticas políticas historicamente constituídas, submetidas aos atos da vontade geral, isso não significa que Saige desprezasse o parlamento enquanto instituição. Era necessário mostrar que a autoridade legislativa da nação estava sendo usurpada. Baker (1990, p. 145) chama a atenção para o fato de que o parlamento continuava a exercer um papel político e jurídico, na partilha da autoridade executiva. Sobre essa dependência do soberano em relação à vontade da nação, Saige (1788, p. 39) sustenta nos Fragments: “Sem poder discutir sob quais condições, cabe a ele cumprir o seu dever de súdito aceitando as funções que lhe são destinadas, exercendo-as de maneira que lhe é prescrita pela vontade geral. Ele deve tudo à nação”. “Ele deve tudo à nação” é a síntese do autor para uma longa disputa que visa impedir o rei de atuar com independência ou de se sentir obrigado a prestar contas de seus atos políticos apenas a Deus.

A constituição em face ao ato da vontade geral

Bastariam tais raciocínios sobre o estabelecimento do contrato, via única e convencional que permite tirar os homens do estado de insegurança, e a caracterização da instituição de um corpo político cuja legitimidade está na vontade da nação, para evidenciar a legitimidade da ação dos depositários da ação legislativa (nação) e executiva (magistrados)?

É especial o modo como Saige articula em seus argumentos a história e o vocabulário moderno dos direitos, implodindo o esquema binário que apresenta, de um lado, a história como elemento justificador do constitucionalismo antigo (e apenas dele) e, de outro, os direitos adquiridos pelo contrato como a ruptura total com esse mundo regido por códigos antigos. De fato, ele deixa sobrepostos elementos de distintas linguagens: são mobilizados os discursos do direito natural (cada indivíduo é portador de um direito absoluto conferido pela natureza à conservação de sua pessoa) ao lado de discursos históricos como “provas da constituição da autoridade” em certos moldes (a exemplo do exercício do poder legislativo sob as “três raças reais”, enfatizando as narrativas das primeiras assembleias). Nos capítulos seguintes à exposição dos princípios do direito público, Saige (1775, p. 17) destaca os elementos constitucionalistas na própria história da nação para dar provas irrefutáveis dos princípios por ele defendidos:

A essas provas gerais e da razão, juntam-se as provas positivas que nós temos em nossas constituições primitivas, nas leis subsequentes, na história de nossos ancestrais, na tradição e na crença política dos primeiros séculos de nossa monarquia.

Com efeito, para bem fundamentar o que compreende por “nação francesa”, Saige volta-se para a formação do povo a partir da linhagem germânica. Quando essa linhagem é mencionada, a intenção é realçar a tradição na qual o poder legislativo reside no corpo dos cidadãos, mediante uma assembleia que reúne rei e estados. 26 26 Não ignoramos que seja essa uma contenda aberta entre os historiadores acerca das origens da monarquia francesa. A diferença repousa no contraste entre a versão romanista e a germanista do parlamento. Como nosso objetivo é a compreensão das linguagens políticas da história, não faz sentido aprofundar tal oposição. Apenas a título de exemplo, a obra Traité historique de la souveraineté du roi et des droits... (1754), do jurista François de Paule de La Garde, constitui a rejeição do direito do parlamento de deliberar sobre as leis. Esta é a tese do romanista La Garde, ecoando o padre Daniel e o abade Dubos, o qual sustenta a origem medieval das assembleias gerais, como simples “corte de justiça”. A consequência direta dessa posição é que ela afasta do parlamento qualquer pretensão de deliberar sobre questões fundamentais – opondo-se à versão germanista das assembleias. Sobre esses debates genealógicos que se faziam “históricos”, em verdadeira batalha ideológica, ver Fumaroli e Grell (2006). O modelo são os atos legislativos, sob os carolíngios, os capitulaires , nos quais as leis são propostas nas assembleias públicas. Apenas se houver consentimento, são aprovadas as leis ( lex fit consensu populi et constitutione Regis ), em oposição à intransigência e aos atos absolutos da autoridade amparada no poder divino. E o autor acrescenta que, sendo a nação a parte mais interessada, ela deve predominar sobre qualquer outra vontade. A consequência radical desse raciocínio é que haverá situações em que os estados podem agir sem o consentimento do rei (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 17).

De acordo com Guillaume de Saige, após o reinado de Carlos Magno, quem recolocou o povo em posse do seu direito legislativo, foram fixados os limites do poder real dentro dos quais a ação do monarca era considerada legítima e, a partir de então, vinculada a atividade legislativa à reunião de assembleias nacionais: “Sua atividade legítima, então, foi fixada pelo consentimento da nação” (Saige, 1775, p. 30). Todavia, após a morte desse grande legislador, a nobreza retomou o controle do Poder Legislativo durante todo o período dito feudal até o momento da emergência das comunas e da restauração dos Estados Gerais. Esse é o paradigma da constituição francesa (não escrita, mas inscrita nos hábitos) e, em razão disso, a essa época seria preciso remontar para conceber a extensão da vontade geral na constituição. De fato, nenhuma decisão saída da vontade geral teria aumentado ou diminuído os limites dessa autoridade legítima, parafraseando o autor (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 30). Com efeito, a partir do recurso à história, o autor faz a passagem para o elemento político, segundo o qual a autoridade se justifica: a “vontade”. Notemos o movimento argumentativo do autor, ao recobrar a história do reino e a autoridade dos antigos reis: “O poder real deve permanecer continuamente fixado nos limites que lhe foram assinados sob Carlos Magno, porque essa limitação se fez por um ato da vontade geral” (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 31). O argumento se ancora, portanto, nos monumentos históricos da constituição francesa, para neles destacar o ato – absoluto, é verdade – da vontade. Nesse caso, a história não figura senão para ser testemunha dos atos da vontade geral. 27 27 Como lembra Baker, a vontade geral tem força para revogar qualquer ordem: “a inviolabilidade constitucional dos parlamentos depende, de acordo com Saige, não da historicidade deles, em si mesmo, mas do sustentado ato da vontade geral do qual a historicidade deles é apenas testemunho” (Baker, 1990, p. 145).

Essa consideração do ato da vontade geral sobre o constituído aponta para outra contestação importante feita por Saige contra as doutrinas absolutistas de Bossuet. Ainda no livro IV, quando o autor trata da natureza da autoridade política e, em particular, da régia, ele não apenas lança a teoria de que o poder é absoluto, como indica quais deveriam ser os deveres dos súditos para com os magistrados, dada essa natureza. Seguindo a injunção de São Paulo, a teoria da obediência de Bossuet indica que, uma vez que o poder tem por fonte a autoridade divina, todos os homens devem a ele se submeter, sem desobediência. Qualquer desobediência, mesmo ao mau príncipe, poderia ser equivalente, nesses termos, a uma resistência ao próprio Deus. O contraste entre os princípios defendidos na obra de Saige e a teoria absolutista de Bossuet torna-se cada vez mais evidente: não apenas a origem da autoridade política é conferida ao povo, como, em decorrência do direito que é mantido com a nação, mesmo após a instituição da autoridade, esta pode legitimamente contestar a ordem instituída. O parlamentar de Bordeaux afirma: “desse modo, a nação pode criar, destruir e mudar todas as magistraturas do estado, modificar ou anulá-las para formar uma nova [...]” (Saige, 1775, p. 12).

Em pelo menos dois momentos do Catecismo , o autor sustenta que é necessário recusar obediência aos tiranos (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 12; 1788, p. 21) ou negar submissão aos magistrados que falam em nome da vontade geral, mas agem sem autoridade (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 41).

Por essa via de resposta, seu argumento parece retomar um debate, já antigo em solo francês, acerca do poder que cabe aos homens, após a instituição da sociedade política. Com tal afirmação, não estamos desenvolvendo nenhuma linha de continuidade que atravessaria ao menos dois séculos da história do pensamento político. Estamos apenas sugerindo que havia um repertório especificamente desenvolvido na história constitucional francesa, mediante o qual Saige poderia ter sustentado a ideia da origem popular do poder. O povo pode muito bem delegar a sua soberania original, mas permanece da mesma forma o seu detentor ou o supremo locus da autoridade. Essa ideia foi bastante desenvolvida na retomada do direito romano, 28 28 Sobre a centralidade do direito romano no desenvolvimento das teorias da soberania, ver Lee (2016, especialmente, cap. 4, “Popular resistance and popular sovereignty: roman law and the monarchomach doctrine of popular sovereignty”, pp. 120-157). Há uma diferença entre os especialistas, que não está no escopo deste artigo discutir, mas cabe mencioná-la. Tanto Daniel Lee quanto Quentin Skinner afirmam que a matriz desse argumento é o direito privado romano associado ao constitucionalismo. Mas existe uma diferença nos argumentos. Para Lee, o emprego do direito romano, durante a Idade Média ou no período pré-moderno, teria enfatizado a tradição do dominium , a partir do direito privado, enquanto Skinner afirma o discurso da lei pública, na tradição do imperium . na esteira das interpretações humanistas pré-modernas da lex Regia , no século XVI (Skinner, 1996 SKINNER , Quentin . ( 1996 ), As fundações do pensamento político moderno . Revisão técnica de Renato Janine Ribeiro . São Paulo , Companhia das Letras ., pp. 403 ss.; Lee, 2016 LEE , Daniel . ( 2016 ), Popular sovereignty in early modern constitutional thought . Oxford , Oxford University Press ., pp. 24 ss.). Entretanto, é comum ser lembrado apenas que o direito romano ajudou a fundamentar as pretensões de direito absoluto da autoridade do imperador, que não era limitado pelas leis ( legibus solutus ). Ora, é a mesma matriz de discurso (ao afirmar que a autoridade imperial ( imperium ) do príncipe remontava ao povo, isto é, pertencia originalmente a ele) que também fundamentou uma doutrina da soberania popular no interior do constitucionalismo pré-moderno.

O débito intelectual ou o recurso à tradição, que conferiria autoridade às suas afirmações, parece ficar claro, no segundo Fragment , quando Saige nomeia os três defensores da liberdade, Calvino, Buchanan e Hotman, os melhores escritores seiscentistas, nos termos dele. De acordo com o autor do Catecismo , eles teriam sustentado que é em função do contrato que se estabelece a igualdade entre magistrados e povo, além de um equilíbrio de interesses, ações e poder. É por essa razão que o contrato é defendido pelos partidários da liberdade: “essa opinião fora em todas as monarquias o nec plus ultrà do espírito da liberdade. Desenvolvida e disseminada pelos melhores escritores do século XVI, ela pode ter servido de base à conduta dos patriotas e dos chefes populares que se ocuparam [...] de colocar limites à autoridade dos reis” (Saige, 1788, p. 37). A referência a George Buchanan, o mais radical entre os revolucionários calvinistas (Skinner, 1996 SKINNER , Quentin . ( 1996 ), As fundações do pensamento político moderno . Revisão técnica de Renato Janine Ribeiro . São Paulo , Companhia das Letras ., p. 655, nota 27), não parece acidental: ambos buscam afirmar que o povo (não os indivíduos, mas o membro do corpo social) teria direito a destronar um príncipe legítimo – questão emergente após as reformas na Escócia protestante, em 1560, então sob reinado de uma católica, Mary Stuart. Buchanan não era apenas o ilustre calvinista escocês, autor de O direito entre os escoceses (de 1579), mas também fora professor de latim, em Bordeaux. A cidade herdeira intelectual do pensamento radical escolástico de Buchanan foi a mesma em que Saige ocupou assento no parlamento. A coincidência geográfica nada comprova se não soubéssemos que Saige e Buchanan concordavam tanto no que diz respeito à origem não divina das sociedades políticas quanto no que diz respeito às implicações dessa formação da sociedade política para a possibilidade de limitação e, sobretudo, de contestação da ordem vigente. Além de Buchanan, Saige associa o argumento a uma tradição reconhecida pelos teóricos da revolução huguenote: François Hotman. Uma parte de seus argumentos que pode ser associada a esses autores (e, de fato, Saige os nomeia em seu texto) é a defesa da origem eletiva da monarquia , fazendo lembrar que os juramentos do rei feitos ao povo têm poder de coação ou os juramentos impõem restrições à vontade do rei. Mas as implicações mais radicais do pensamento de Saige parecem estar no argumento em favor da autoridade na assembleia dos três estados, pois é nesse momento que é desenvolvida uma teoria da soberania popular . Como o era em Hotman, o direito de eleição não é um ato único de soberania (Skinner, 1996 SKINNER , Quentin . ( 1996 ), As fundações do pensamento político moderno . Revisão técnica de Renato Janine Ribeiro . São Paulo , Companhia das Letras ., p. 582), mas um poder que implica a possibilidade de recuperar o poder, destituindo o rei, se preciso for. Esse é o núcleo do que chamamos, no começo, de um núcleo de contestação ativa presente no constitucionalismo moderno.

Com efeito, não surpreende que, mediante referências a autoridades teóricas, a exemplo de Hotman e Buchanan, o recolhimento de casos na história da monarquia – provas de “antiguidade e solidez de nossos direitos” (Saige, 1788, p. vii) e a postulação da contingência das constituições, Saige instigue a reação da parte da nação, a substituição da constituição, destituída dos seus direitos fundamentais por não poder concorrer na composição da autoridade. Ideia radical e por isso banida à época da publicação pelos Parlamentos de Paris e Bordeaux, quando todos pareciam escutar ou os argumentos constitucionalistas tradicionais (a tese do parlamento, de modo geral) ou a voz de Bossuet, porta-voz do poder absoluto real, de acordo com a qual o rei não está submetido às leis pela aliança estabelecida, mas porque a sua pessoa era sagrada (Bossuet, 1707, L III, p. 84). Seguir Bossuet (1707 BOSSUET , Jacques . ( 1707 ), Politique tirée des propres paroles de l’Écriture sainte . Paris , ( s.n .). [ BnF E*-2795 ]., p. 263) era insistir na trilha da obediência (mesmo ao mau príncipe): “obedeceis a vossos senhores, não apenas quando eles são bons e moderados, mas ainda quando eles são severos e deploráveis”, e censurar a oposição à sua autoridade como “sacrilégio”. Enquanto isso, Saige (1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 109) sugere a resistência: “em uma monarquia na qual o poder do Príncipe pesa continuamente sobre a liberdade do povo, é preciso opor a essa força terrível uma contraforça operante”.

Conclusão

Desde a primeira versão do Catecismo , Saige (1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., p. 30) insistia que o rei, longe de uma natureza elevada distinta, era um comissário do povo. Ao afirmar ser o rei “a primeira pessoa do Estado” e não uma autoridade independente, as notas radicais de Saige foram banidas. Entretanto, os argumentos dele não poderiam mais ser abafados, quando se enterrou de vez a crença segundo a qual o rei estaria acima das leis e governaria sem prestar contas a ninguém dos seus atos ( legibus solutus ). Nesse sentido, os argumentos do Catecismo ganharam destaque quando o discurso da vontade da nação já estava suficientemente disseminado como o único meio de revogar a ordem estabelecida e defender a autoridade soberana no corpo do povo 29 29 Estamos de acordo com Echeverria (1985, p. 73) sobre o fato de não caber falar em rejeição da monarquia, nesse contexto, mas da soberania da nação. Esta é, aliás, a razão pela qual se utiliza o termo “patriotas” para designar os panfletistas do período. e, em consequência, alterar a forma de governo. Isso ocorria não porque a hipótese de uma vontade absoluta tenha sido substituída nos discursos políticos que concorriam na legitimação da autoridade, mas porque o corpo da nação se tornava independente e parecia ganhar a disputa, armada no campo simbólico, com o corpo do rei. Melhor seria dizer, é a vontade desse corpo, a vontade da nação, que se apresenta como potência para a aprovação de leis e impostos, da sucessão do trono e, se fosse preciso, da alteração da sua própria Constituição, como Saige não deixava de afirmar.

Podemos sumarizar, em conclusão, os argumentos centrais deste artigo, bem como tecer breves considerações acerca do método interpretativo empregado. Tratamos o tema da legitimidade da autoridade ladeado pelo pacto ou momento político da fundação. O fato é que a ação original na criação do poder “constituinte”, derivada da vontade do povo, pode ser razoavelmente interpretada como uma ação que não conhece limites e, portanto, tão arbitrária quanto certos atos do rei. Como afirmamos, tal compreensão tem sido apresentada nas teorias constitucionalistas contemporâneas como um impasse ou um paradoxo (ver nota 19). Segundo esses autores, uma teoria que pretende definir um governo de leis (para impedir o arbítrio de um homem) não poderia considerar legítimos os atos absolutos. A nossa interpretação é a de que o autor do Catecismo do cidadão oferece razões para se pensar a limitação da autoridade, mediante a articulação do princípio da eleição nacional com o discurso histórico das leis fundamentais. Leituras como esta têm sido deixadas de lado pelos teóricos constitucionalistas mencionados, uma vez que eles interpretam a linguagem da soberania popular como mera resistência ao exercício do poder arbitrário. Os desenvolvimentos aqui apresentados, todavia, nos indicam que as condições do exercício da autoridade não se restringem ao conjunto das instituições que impõem limites ao poder. Com efeito, os costumes, as leis fundamentais, o juramento do rei ao povo, o consentimento e as reciprocidades podem ser interpretados como regulações e limites da autoridade pública. O avanço de Saige, como tentamos demonstrar, é que ele foi o mais claro dos autores ao tratar a soberania popular em consonância com o constitucionalismo como uma linguagem de legitimação da autoridade.

Com tal argumentação, sustentamos uma tese adicional, no campo da teoria política, segundo a qual a soberania popular, antes de se desenvolver como uma doutrina de oposição ao absolutismo, pode ser interpretada como uma teoria de legitimação da autoridade. Se isso é ainda insuficiente para dissolver a sombra do impasse que o caráter ilimitado da vontade e do direito apresentam na obra Catecismo do cidadão , o êxito do argumento aqui defendido está em ter lançado luz sobre elementos que constituem a legitimidade da autoridade, mas que, pela conceito atual estar tão longe desse sentido e estar fortemente implicado na ideia de força, sequer compreendemos a coerência de elementos que estavam no cerne da discussão no contexto específico analisado: o juramento, um sistema de obrigações recíprocas, o firmamento de pactos, entre outros elementos que compõem a legitimidade da autoridade. 30 30 Não estamos acusando essa transformação como algo negativo. O fato é que nem poderia ser diferente, porque o registro epistêmico muda com o tempo e estamos necessariamente vinculadas ao nosso vocabulário normativo. O que talvez tenha de ser evitado é a sanha de mostrar essas tradições como inacabadas, incoerentes ou imperfeitas simplesmente porque não são vigentes. Nesse aspecto, seguimos Freeden (2008, p. 198). Com efeito, a via histórica na qual nos amparamos nos leva a recusar certo tipo de dogmatismo, segundo o qual apenas os conceitos “os mais evoluídos” do presente seriam coerentes.

Além disso, o artigo tentou evidenciar uma metamorfose na própria analogia do corpo político e da ordem política que deixa de apresentar o seu conteúdo pré-moderno: o corpo do rei – como pessoa sagrada – não representa mais o que é público (Manent, 2001 MANENT , Pierre . ( 2001 ), “Le corps et l’ordre politique” , in P. Manent , Cours familier de philosophie politique , Paris , Fayard ., p. 224). A analogia permite ainda pensar o corpo do rei dando continuidade à monarquia (pela geração de descendentes) e a cabeça do rei integrando todos os membros. Cada vez mais, os argumentos empregados nos panfletos apontarão uma origem independente num estado natural originário, no qual, por convenção, tem origem o corpo político. A vontade desse corpo é representada desencarnada, fora do corpo do rei, e é Saige quem vai apontá-la encarnada no corpo legislativo da Assembleia. Melhor dizendo, o princípio de unidade conservado em um corpo visível inclina-se à ideia de representação (de uma vontade geral, que guarda o interesse público e conserva o poder). Durante os debates constitucionais de 1791 e, sobretudo, no momento em que a família real é condenada à morte, declara-se a completa independência desse “corpo da nação” em relação ao monarca. Será hora, então, de propor a alteração do regime monárquico. Será o momento, então, do ensaio republicano, o regime defendido por Guillaume de Saige em seus textos de juventude. 31 31 Não está no escopo deste artigo lidar com a obra Caton. Ou Entretien sur la liberté et les vertus politiques , de 1770, na qual a alternativa constitucional de Saige é deliberadamente republicana.

Por fim, a apreciação do vocabulário político geral da época (bem como das convenções linguísticas e das questões então apresentadas) não é uma contribuição deste artigo para resoluções das questões políticas da sociedade do presente – aliás, tampouco afirmamos que a história do pensamento político é relevante somente se algum efeito tiver sobre a política contemporânea. Os textos são elementos de um discurso mais amplo, de acordo com as contingências e as possibilidades de uma época. Se eles podem nos dizer algo, ensinam que: (1) existem questões acerca da vida coletiva muito diversas das nossas; o fato de reconhecer essa distância não é assinalar com condescendência a alteridade, mas é lançar a possibilidade de tomar essa distância como conhecimento do nosso próprio contexto, do próprio tempo; (2) as questões do panfleto analisado (e as demais brochuras do contexto) não atravessam o “tempo”, isto é, são questões de um contexto específico – e não as nossas –, para as quais homens situados nessas sociedades igualmente determinadas e variadas forneceram respostas (Spitz, 2014 SPITZ , Jean-Fabien . ( 2014 ), “ Quentin Skinner” . Revue Française d’Histoire des Idées Politiques , 2 ( 40 ): 347 - 377 ., p. 373). Lido nesse sentido, este texto mostra quanto os historiadores das ideias estão presos ao presente, mesmo que as suas referências estejam em um passado muito longínquo. Os críticos desses historiadores poderiam ler nisso a contradição do método contextualista, tal como defendido por Skinner e Pocock. Além disso, esses críticos continuariam a afirmar que o esforço dos historiadores das ideias de reunir o conjunto de produções do pensamento político do passado não revela senão o caráter “antiquarista acadêmico” de uma tal abordagem, isto é, o métier do homem inutilmente debruçado nos domínios das linguagens do passado. Todavia, olhando de outro modo, os ditos historiadores de Cambridge estariam certos por terem afirmado que o interesse genuíno no passado não os torna simples diletantes. Enquanto a política ainda nos colocar questões – ainda que a questão nunca possa ser a mesma do passado –, o ofício que se faz no cruzamento da teoria política e da história jamais poderá ser reduzido a mera curadoria na galeria dos textos do passado.

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  • 1
    No original: “Chaque pas aggrave le mal. On écrit, on répondra […] Les lumières qu’acquièrent les peuples doivent un peu plus tôt, un peu plus tard, opérer des révolutions.”
  • 2
    É preciso ressaltar, entretanto, que o objetivo deste artigo não é discutir as teses específicas acerca da circulação dos panfletos. Dito de outro modo, os panfletos são evidências de que a autoridade política portava muitos discursos, antes mesmo dos eventos disruptivos da Revolução Francesa.
  • 3
    Echeverria (1985) ECHEVERRIA , Durand . ( 1985 ), The Maupeou Revolution: a study in the history of libertarianism France 1770-1774 . Baton Rouge , Louisiana State University Press . associa um vasto conjunto de autores, magistrados das cortes e advogados, ao patriotismo dos anos 1770-1780: Claude Mey, Brancas, Guillaume de Saige, Martin Morizot, Jean-Claude Marivaux, entre outros. Para o conceito de pátria, ver Kantorowicz (1951) KANTOROWICZ , Ernst . ( 1951 ), “ Pro patria mor in medieval political thought ”. American Historical Review , 56 : 472 - 492 .. Estamos de acordo com Echeverria sobre o fato de não caber falar em rejeição da monarquia, entre alguns patriotas – faz eco, nesse sentido, à tese de Franco Venturi (1971) VENTURI , Franco . ( 1971 ), Europe des lumières: recherches sur le 18e siècle . Paris , Éditions de l’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales .. No entanto, quando da defesa da soberania da nação, a Constituição monárquica será definitivamente colocada em questão.
  • 4
    Tal nomenclatura é usual entre os estudiosos da Revolução Francesa. Por historiografia ortodoxa (ou clássica, se quisermos evitar qualquer conotação negativa), compreende-se o conjunto de trabalhos cujas análises dos eventos da Revolução privilegiam a explicação da ação dos atores políticos, notadamente a partir do seu pertencimento e interesse de classe. Especialmente após os trabalhos apresentados por ocasião do Bicentenário da Revolução, os estudos voltaram-se à compreensão das ideias nas origens da Revolução. Trabalhos tão distintos quanto os de François Furet, Dale Van Kley, Keith Baker (mencionados ao longo deste artigo) foram abrigados na rubrica “revisionista”. Para uma discussão da nomenclatura e do desenvolvimento do debate, ao longo da história, ver Kates (2006) KATES , Gary ( ed .) . ( 2006 ), French Revolution: recent debates and new controversies . 2 . ed. New York/Abingdon , Routledge ., especialmente “The overthrow of the Marxist paradigm” e “The revisionist orthodoxy”.
  • 5
    De acordo com Le Goff, na sua análise do manuscrito da liturgia da sagração, da qual um exemplar (datado de 1246, grafado em latim) é guardado na Biblioteca Nacional Francesa (BnF).
  • 6
    A referência para o termo “linguagem política” é o historiador John Pocock. Como se sabe, o autor discute o modo pelo qual a centralidade do papel da lei e os vocabulários e idiomas de uma atividade específica, o direito, permitiram, tal qual um verdadeiro paradigma, a articulação do pensamento político ao longo da história. Para a discussão deste ponto, ver Pocock (1995, pp. 37-50).
  • 7
    Segundo Marina Valensise, foi casual o fato de, por três séculos, os capetos ( capétiens ) terem sempre um filho à disposição para associá-lo ao trono, o que teria acionado a percepção (pois ainda não era assim regulado) da dimensão hereditária do trono. Sobre a necessidade do estabelecimento urgente de um sucessor e da matéria que se abriu pelo direito público do reino, quando da morte inesperada de São Luís, em 1270, ver Valensise (1986 VALENSISE , Marina . ( 1986 ), “ Le sacre du roi: stratégie symbolique et doctrine politique de la monarchie française” . Annales. Économies, Sociétés, Civilisations , 41 ( 3 ): 543 - 577 ., p. 548 ss.).
  • 8
    As traduções são de responsabilidade da autora do artigo.
  • 9
    L’ami des lois, ou Les vrais principes de la monarchie française , de Jacques-Claude Martin de Mariveaux, panfleto de 1775, do qual não restaram senão algumas páginas fragmentadas.
  • 10
    O historiador Keith Baker (1990 BAKER , Keith . ( 1990 ), Inventing the French Revolution . Cambridge , Cambridge University Press ( Ideas in context )., pp. 128-152) apresenta interpretação semelhante no que diz respeito à expressão radical do princípio de soberania nacional, no interior da obra. Para o autor, o panfleto de Saige é uma “resposta direta” à reforma de Maupeou. A sua tentativa de “exumar” (a expressão é dele) esse panfleto do terreno dos esquecidos publicistas do período pré-revolucionário faz parte de uma pesquisa mais ampla de exploração das origens ideológicas da Revolução Francesa.
  • 11
    A afirmação de que ocorre uma mudança no constitucionalismo abarca uma tese mais fundamental acerca da existência de uma linguagem constitucionalista antes do chamado “período moderno”, a qual pode ser corroborada pelos seguintes trabalhos: McIlwain (2010) MCILWAIN , Charles Howard . ( 2010 ), Constitutionalism: ancient and modern . Ithaca, NY , Cornell University Press . e Kritsch (2002) KRITSCH , Raquel . ( 2002 ), Soberania: a construção de um conceito . São Paulo , Humanitas/Imprensa Oficial do Estado ..
  • 12
    Sendo observadas essas referências, não parece correta a afirmação de Echeverria (1985 ECHEVERRIA , Durand . ( 1985 ), The Maupeou Revolution: a study in the history of libertarianism France 1770-1774 . Baton Rouge , Louisiana State University Press ., p. 63) sobre as fontes dos patriotas, pois, tanto quanto os demais patriotas, Saige estava informado das mais importantes obras clássicas estrangeiras, como se pode observar nas próprias notas do autor.
  • 13
    A obra aparece grafada “Fragmens”. Deste ponto em diante, empregaremos a grafia da palavra ( http://www.cnrtl.fr/etymologie/fragment ) com o acréscimo do [t].
  • 14
    Segundo Echeverria (1985 ECHEVERRIA , Durand . ( 1985 ), The Maupeou Revolution: a study in the history of libertarianism France 1770-1774 . Baton Rouge , Louisiana State University Press ., p. 63), a referência a O contrato social , de Rousseau, nas obras dos opositores a Maupeou, os patriotas, era feita de forma velada, especialmente após a condenação do Emílio . Em sua leitura do panfleto, Keith Baker (1990 BAKER , Keith . ( 1990 ), Inventing the French Revolution . Cambridge , Cambridge University Press ( Ideas in context )., p. 142) enfatiza a proximidade de Saige com o seu mestre Rosseau, sem que a estrutura argumentativa d’ O contrato social seja inteiramente endossada. De fato, há possíveis aproximações e afastamentos de Saige com Rousseau. “Possíveis”, porque Saige não menciona Rousseau, muito provavelmente como estratégia para driblar a censura, a despeito de vários trechos de sua obra serem verdadeiras paráfrases d’ O contrato social . Além disso, o modo como ele identifica soberania e vontade geral parece, de fato, ecos rousseauístas. O presente artigo, por sua fundamentação em uma pesquisa em fontes primárias raramente estudadas, busca não fazer de Saige um autor à sombra de Rousseau, mas autores em diálogo.
  • 15
    Trata-se da correspondência entre a marquesa d’Épinay e o abade de Galiani, em abril de 1771, da qual extraímos a epígrafe. A amiga de Diderot mostra clareza sobre a questão política do período ao afirmar que o debate reabre uma questão antiga sobre a autoridade: “É certo que, desde o estabelecimento da monarquia francesa, essa discussão da autoridade, ou ainda, do poder, existe entre o rei e o parlamento. Essa indecisão mesma faz parte da constituição monárquica; pois, se é decidida em favor do rei, todas as consequências disso o tornam absolutamente um déspota. Se a questão é decidida em favor do parlamento, o rei não tem mais autoridade do que o rei da Inglaterra; de um modo ou de outro, ao decidir a questão, muda-se a constituição do Estado (Galiani, 1881 GALIANI , Ferdinando . ( 1881 ), Lettres de l’abbé Galiani... Tomo 1 . Paris , G. Charpentier ., p. 226).
  • 16
    Sobre a maior crise do Antigo Regime, envolvendo parlamento e rei, ver Rogister (1995) ROGISTER , John . ( 1995 ), Louis XV and the Parlement of Paris, 1737-1755 . Cambridge , Cambridge University Press .. Sobre a natureza e discursos genealógicos da realeza e as disputas de cunho “histórico” que travestiam conflitos de sucessão, ver Vierhaus (1977) VIERHAUS , Rudolf ( ed .) . ( 1977 ), Herrschaftvörtrage. Wahlkapitulationen, fundamentale Gesetze . Göttingen , Vandenhoeck & Ruprecht..
  • 17
    Sobre a ampla tradição da literatura política denominada “catecismos”, por sua forma em perguntas e respostas, a qual perdurou até o século XX, no contexto da Revolução Russa, ver Buttier (2015) BUTTIER , Jean-Charles . ( 2015 ), “Les catéchismes politiques français (1789-1914) ”. La Révolution française [ online ], 9 . Disponível em: < http://journals.openedition.org/lrf/1441> . Acesso em: 6 jun. 2019 .
    http://journals.openedition.org/lrf/1441...
    .
  • 18
    Trata-se de uma resposta retirada na segunda edição da obra, mas que diz respeito precisamente às partes contratantes. O autor afirma que o contrato é feito com a massa dos associados, de uma parte, e cada indivíduo, de outra parte (Saige, 1775 SAIGE , Guillaume Joseph . ( 1775 ), Catéchisme du citoyen, ou Éléments du droit public français, par demandes et par réponses . Genève , [ s.n. ]., cap. 1).
  • 19
    Referência à noite de Varennes, em 21 junho de 1791, quando Luís XVI e sua família fugiram do Palácio das Tulherias e foram flagrados em delito de fuga no povoado de Varennes. Sobre a fuga e as consequências políticas desse evento, ocorridos entre 21 de junho e 14 de julho (respectivamente, o dia seguinte à fuga a Varennes e o dia da entrega dos relatórios dos comitês da Assembleia), ver o capítulo 5, “A autoridade política à sombra de dois corpos” de Soromenho Nicolete (2017) SOROMENHO NICOLETE , Roberta K . ( 2017 ), De Reims a Varennes: as linguagens da autoridade política na França revolucionária . Tese de doutorado em Ciência Política . São Paulo , FFLCH-USP .. Para mais informações sobre a noite de Varennes, ver os primorosos trabalhos de Ozouf (2009) OZOUF , Mona . ( 2009 ), Varennes: a morte da realeza . Tradução de Rosa Freire D’Aguiar ). São Paulo , Companhia das Letras . e Tackett (2003) TACKETT , Timothy . ( 2003 ), When the king took flight . Cambridge , Harvard University Press ..
  • 20
    É preciso lembrar que as teorias constitucionalistas contemporâneas sustentam que a soberania popular é, em ampla medida, uma doutrina negativa ou de contestação a um poder arbitrário. Tal constatação emerge de um “paradoxo do constitucionalismo”, como nomeiam os estudiosos, que diz respeito à indeterminação de “povo”, conforme Loughlin e Walker (2007) LOUGHLIN , Martin & WALKER , Neil . ( 2007 ), The paradox of constitutionalism: constituent power and constitutional form . Oxford , Oxford University Press .. A teoria da soberania popular é ainda desacreditada por aqueles que a tomam como incompatível com a “ rule of law ” por ser intrinsecamente absolutista (Eleftheriadis, 2010 ELEFTHERIADIS , Pavlos . ( 2010 ), “ Law and sovereignty” . Law and Philosophy , 29 : 535 - 569 ., p. 538). A nossa argumentação, mesmo que o trabalho não se justifique pelo diálogo com teorias contemporâneas, segue outra tese e busca sustentar que tal impasse é ilusório; a soberania popular exerce a função de um princípio que é formador e agregativo – e não resposta a uma força. Enquanto tal, trata-se de uma teoria constitutiva da autoridade política (Lee, 2016 LEE , Daniel . ( 2016 ), Popular sovereignty in early modern constitutional thought . Oxford , Oxford University Press .).
  • 21
    Para sustentar que o povo não pode jamais alienar um direito que é inerente a ele, Saige teria uma tradição medieval francesa à sua disposição (sem com isso afirmarmos a manutenção da linguagem sem alterações decorrentes das determinações do tempo específico): a tradição conciliarista desenvolvida por Jean Gerson, na Grande Cisma, e reapropriada de modo mais radical pelos sorbonistas John Mair e Jacques Almain, no início do século XVI. Sobre o conciliarismo como um fundamento do constitucionalismo moderno, ver Skinner (1996 SKINNER , Quentin . ( 1996 ), As fundações do pensamento político moderno . Revisão técnica de Renato Janine Ribeiro . São Paulo , Companhia das Letras ., cap. 13). Dale Van Kley (1979) VAN KLEY , Dale . ( 1979 ), “ Church, State, and the ideological origins of the French Revolution: the debate over the General Assembly of the Gallican Clergy in 1765” . The Journal of Modern History , 51 ( 4 ): 629 - 666 . apresenta o “jansenismo-gallico” como parte fundamental do constitucionalismo francês.
  • 22
    É preciso assinalar que a tradição escolástica, de acordo com Skinner (1996 SKINNER , Quentin . ( 1996 ), As fundações do pensamento político moderno . Revisão técnica de Renato Janine Ribeiro . São Paulo , Companhia das Letras ., cap. 14), já havia seguido essa matriz explicativa amparada no conceito de consentimento para a composição da sociedade política, mas não da forma acabada como a vemos nos séculos XVI e XVII.
  • 23
    Nas notas, a referência do autor neste ponto é o inglês J. Harrington, de cuja obra Oceana Saige extrai diversos excertos.
  • 24
    Para pensar a contingência, a nossa referência é John Pocock: trata-se de uma dimensão do tempo secular, no qual se estabelece que uma ação depende do curso de outras ações no tempo, de modo que é sempre uma ação particular. A contingência é o plano histórico que acolhe o imprevisto e o inesperado; é, propriamente dizendo, o terreno da instabilidade (Pocock, 1975, p. 268). A nossa outra referência para pensar a contingência, em outra matriz do pensamento, mas ainda em franca oposição às teorias que supõem as ações como “resultados” previamente calculados e limitados, é Hannah Arendt (2005 ARENDT , Hannah . ( 2005 ), Entre o passado e o futuro . Tradução de Mauro Barbosa . São Paulo , Perspectiva ., 2014 ARENDT , Hannah . ( 2014 ), Qu’est-ce que la politique? Tradução de Carole Widmaier . Paris , Seuil .).
  • 25
    É importante ressaltar que, a despeito de mostrar todas as práticas políticas historicamente constituídas, submetidas aos atos da vontade geral, isso não significa que Saige desprezasse o parlamento enquanto instituição. Era necessário mostrar que a autoridade legislativa da nação estava sendo usurpada. Baker (1990 BAKER , Keith . ( 1990 ), Inventing the French Revolution . Cambridge , Cambridge University Press ( Ideas in context )., p. 145) chama a atenção para o fato de que o parlamento continuava a exercer um papel político e jurídico, na partilha da autoridade executiva.
  • 26
    Não ignoramos que seja essa uma contenda aberta entre os historiadores acerca das origens da monarquia francesa. A diferença repousa no contraste entre a versão romanista e a germanista do parlamento. Como nosso objetivo é a compreensão das linguagens políticas da história, não faz sentido aprofundar tal oposição. Apenas a título de exemplo, a obra Traité historique de la souveraineté du roi et des droits... (1754), do jurista François de Paule de La Garde, constitui a rejeição do direito do parlamento de deliberar sobre as leis. Esta é a tese do romanista La Garde, ecoando o padre Daniel e o abade Dubos, o qual sustenta a origem medieval das assembleias gerais, como simples “corte de justiça”. A consequência direta dessa posição é que ela afasta do parlamento qualquer pretensão de deliberar sobre questões fundamentais – opondo-se à versão germanista das assembleias. Sobre esses debates genealógicos que se faziam “históricos”, em verdadeira batalha ideológica, ver Fumaroli e Grell (2006) FUMAROLI , Marc & GRELL , Chantal . ( 2006 ), Historiographie de la France et mémoire du royaume au XVIIIE siècle . Paris , Champion (Bibliothèque d’histoire moderne et contemporaine,18) ..
  • 27
    Como lembra Baker, a vontade geral tem força para revogar qualquer ordem: “a inviolabilidade constitucional dos parlamentos depende, de acordo com Saige, não da historicidade deles, em si mesmo, mas do sustentado ato da vontade geral do qual a historicidade deles é apenas testemunho” (Baker, 1990, p. 145).
  • 28
    Sobre a centralidade do direito romano no desenvolvimento das teorias da soberania, ver Lee (2016 LEE , Daniel . ( 2016 ), Popular sovereignty in early modern constitutional thought . Oxford , Oxford University Press ., especialmente, cap. 4, “Popular resistance and popular sovereignty: roman law and the monarchomach doctrine of popular sovereignty”, pp. 120-157). Há uma diferença entre os especialistas, que não está no escopo deste artigo discutir, mas cabe mencioná-la. Tanto Daniel Lee quanto Quentin Skinner afirmam que a matriz desse argumento é o direito privado romano associado ao constitucionalismo. Mas existe uma diferença nos argumentos. Para Lee, o emprego do direito romano, durante a Idade Média ou no período pré-moderno, teria enfatizado a tradição do dominium , a partir do direito privado, enquanto Skinner afirma o discurso da lei pública, na tradição do imperium .
  • 29
    Estamos de acordo com Echeverria (1985 ECHEVERRIA , Durand . ( 1985 ), The Maupeou Revolution: a study in the history of libertarianism France 1770-1774 . Baton Rouge , Louisiana State University Press ., p. 73) sobre o fato de não caber falar em rejeição da monarquia, nesse contexto, mas da soberania da nação. Esta é, aliás, a razão pela qual se utiliza o termo “patriotas” para designar os panfletistas do período.
  • 30
    Não estamos acusando essa transformação como algo negativo. O fato é que nem poderia ser diferente, porque o registro epistêmico muda com o tempo e estamos necessariamente vinculadas ao nosso vocabulário normativo. O que talvez tenha de ser evitado é a sanha de mostrar essas tradições como inacabadas, incoerentes ou imperfeitas simplesmente porque não são vigentes. Nesse aspecto, seguimos Freeden (2008 FREEDEN , Michael . ( 2008 ), “Thinking politically and thinking about politics: language, interpretation, and ideology” , in D. Leopold and M. Stears , Political theory methods and approaches , New York , Oxford University Press ., p. 198).
  • 31
    Não está no escopo deste artigo lidar com a obra Caton. Ou Entretien sur la liberté et les vertus politiques , de 1770, na qual a alternativa constitucional de Saige é deliberadamente republicana.
  • *
    Agradeço a Eunice Ostrensky, Luís Falcão, Ricardo Fabrino, Raissa Wihby Ventura e aos pareceristas anônimos pelas valiosas contribuições. Este estudo teve apoio do CNPq e da Fapesp 2017/26135-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2018
  • Aceito
    08 Mar 2019
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