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Decifra-me! A sociologia como ciência dos sonhos

Decipher me! Sociology as a science of dreams

LAHIRE, Bernard. L’interprétation sociologique des rêves. col. Laboratoire des sciences sociales. 2018. La Découverte, Paris: 487

A sociologia está interessada apenas no homem desperto, como se o homem adormecido fosse um homem morto. ( Bastide, 2003 BASTIDE , Roger . ( 2003 ), Le rêve, la transe et la folie . Paris , Seuil . , p. 44)

A cada sonho meu, há uma sociedade que se realiza. A partir desse enunciado, pode-se condensar a proposta de Bernard Lahire, que soma passado, vida presente e condições de desenvolvimento do sono como componentes de nossas atividades mentais enquanto dormimos, cuja interpretação sociológica pode dar sentido para tudo aquilo que julgamos ilógico, fantástico ou aterrorizador. Sua obra L’interprétation sociologique des rêves comporta um modelo teórico e metodológico ousado, que busca ultrapassar, de um lado, os marcos psicanalíticos fundados por Sigmund Freud e, de outro, alargar o campo de estudos da sociologia.

O livro está dividido em treze capítulos. Neles, Lahire traça um plano expositivo que começa pela contextualização de estudos, nas mais diversas áreas, anteriores e posteriores à Interpretação dos sonhos , de Freud, lançada em 1899. Em seguida, explica por que o sonho, uma realidade individual, na qual a sonhadora ou sonhador estabelece uma comunicação interna, é um fenômeno intrinsicamente social. A partir daí, abre um longo caminho de aproximação entre psicanálise e sociologia, o qual é marcado pelo questionamento das noções de inconsciente, censura, terapia e transferência psicanalíticas, resíduo diurno, conteúdo manifesto e latente, desejo reprimido, trauma infantil, operações da vida psíquica etc. Seu ponto de chegada é a síntese metodológica, na qual expõe o passo a passo de como recolher e analisar relatos de sonhos. Suas conclusões são divididas em duas partes. Na primeira, discute por que é mais importante estudar como os sonhos são fabricados do que suas funções. Na segunda, faz uma apologia da sociologia de escala individual, segundo a qual não se pode atribuir vontade nem liberdade às ações dos sujeitos. O livro ainda traz uma coda, na qual Lahire apresenta sua fórmula de interpretação das práticas sociais que ultrapassa suas proposições acerca do sonho. Trata-se de um suplemento em defesa da sociologia como campo científico autônomo, capaz de propor teorias sintéticas e gerais a respeito da sociedade, fazendo um contraponto a toda crítica dirigida às ciências humanas quando comparadas ao progresso das ciências da matéria.

L’interprétation sociologique des rêves é um extenso preâmbulo de outra obra, ainda não lançada, na qual Lahire promete trabalhar os materiais empíricos que recolheu segundo sua fórmula geral de interpretação dos sonhos. É verdade que o livro objeto desta resenha ensaia interpretações de sonhos, porém o faz a partir de materiais de segunda mão, colhidos e analisados por outros autores de diferentes áreas e de diferentes épocas. Por essa razão, estão distantes da proposta do autor, que se interessou pelos sonhos como objeto da sociologia, em sua passagem pela Universidade de Berkley, em 1997. Desde então, foram vinte anos de leituras englobando os domínios da psicanálise, psicologia, neurociências, linguística, sociologia, antropologia, história etc., até chegar ao seu modelo teórico sintético e integrador de interpretação dos sonhos.

A sociologia da interpretação dos sonhos de Lahire é, segundo ele próprio, a declinação de uma teoria geral das práticas e da expressão humanas segundo uma perspectiva disposicionalista-contextualista, que é desenvolvida desde a publicação de L’Homme pluriel: le ressorts de l’action ( 1998 LAHIRE , Bernard . ( 1998 ), L’Homme pluriel: les ressorts de l’action . Paris , Nathan . ). Para o sociólogo francês, disposição refere-se a “um passado incorporado que é estruturante, mas que se manifesta em ocasiões ou circunstâncias dadas” (p. 154). Não é um “dado”, num sentido positivista, isto é, algo que pode ser observado diretamente, mas sim deduzido a partir de um conjunto coerente de ações de uma pessoa em diferentes ocasiões. Esse passado incorporado diz respeito às experiências socializadoras sucessivas ou paralelas no âmbito da família, da escola, do trabalho, da igreja etc. O contexto é, por sua vez, o momento presente: diz respeito ao tecido social ao qual o indivíduo está vinculado, palco de suas ações. No caso dos sonhos, disposições e contexto somam-se a um quadro particular de dormência que, dadas as suas propriedades particulares, permitem sua interpretação sociológica.

Encarando Freud

Freud arrogou a si a chave da interpretação dos sonhos, desqualificando séculos de um conhecimento, nomeado pré-científico ou mítico, que compreende a atividade onírica como uma expressão generosa ou hostil de forças superiores, divinas ou demoníacas ( Freud, [1899] 1925 FREUD , Sigmund . ([ 1899 ] 1925 ), Le rêve et son interprétation . Paris , Gallimard . , p. 7). Lahire, por sua vez, reclama essa chave, afirmando que a psicanálise não dá satisfatoriamente conta do problema. Para ele, somente a sociologia, a partir de uma perspectiva integradora com outras áreas do saber, é capaz de abrir as portas do reino dos sonhos, fenômeno social por excelência. Esse embate é bem demarcado ao longo do livro. São frequentes as expressões “Freud errou”, “Freud não enxergou o problema”, “Freud tinha razão”, “Freud deixou de perceber isso”, “Freud acertou”, “Freud passou à margem da questão” etc.

O sonho tem duas funções segundo Freud. Uma delas corresponde à “descarga psíquica de um desejo em estado reprimido”. A outra função é a de “guardião do sono”, de modo a garantir a manutenção do estado de dormência ( Idem , p. 104). Ao mecanismo que permite o cumprimento dessas funções, Freud dá o nome de “trabalho do sonho”, que nada mais é do que a passagem de um conteúdo psíquico “latente”, cujas fontes são o inconsciente, para um conteúdo “manifesto”, expresso principalmente por meio de imagens obscuras, sem sentido, incoerentes ou absurdas. Da passagem de um estado ao outro, Freud sinaliza uma “relação secreta e necessária” que o trabalho de análise permite desvendar a partir de um movimento inverso, ou seja, partindo dos conteúdos manifestos do sonho para compreender seus conteúdos latentes. Nesse ponto nodal, opera a censura que deixa passar para o estado manifesto apenas o que lhe é agradável, rejeitando o restante. Esse resto caracteriza o estado de recalque que tem relação com a satisfação de um desejo sexual reprimido cujas raízes vêm da infância. Nesse processo, Freud identifica algumas operações psíquicas que ele nomeia de compressão ou condensação, dramatização, deslocamento, ordenação, simbolização etc.

Enfim, é esse quebra-cabeça freudiano que Lahire procura desmontar, renomeando as peças, tirando ou acrescentado outras e adaptando seus encaixes para remontá-lo sob a configuração de uma nova paisagem, na qual o sonho está em primeiro plano e ao fundo estão as experiências sociais do passado, do presente e as condições internas e externas que garantem o estado de dormência de alguém. Embora todo esse esforço de desconstrução constitua uma crítica contundente à psicanálise, o sociólogo destaca o que considera méritos de Freud. Segundo ele, foi Freud quem propôs o primeiro grande modelo teórico, sintético e integrador para a análise dos sonhos. O sonho, nesse sentido, pelo fato de não ser fruto do acaso e possuir um lógica própria, era objeto razoável e passível de uma interpretação cientificamente fundada. Além disso, Freud atribuía ao sonhador a tarefa de interpretar seus sonhos, papel caro a Lahire em sua proposta de interpretação sociológica.

Durante a desconstrução que faz dos fundamentos psicanalíticos, Lahire nos oferece diferentes definições do que é sonho do ponto de vista sociológico: “atividade mental universal, individual e involuntária por excelência”; “condensado de experiências sociais expressas involuntariamente pelo sonhador durante seu sono”; “forma de expressão específica situada num continuum expressivo em função das condições nas quais a atividade psíquica é levada a se desenvolver”; “forma de expressão entre outras, tornada possível pelas capacidades mnemônicas e simbólicas humanas a representar coisas ausentes ou inexistentes”; “verdade trans-histórica”; “fruto da necessidade do sonhador expressar qualquer coisa”; etc. Em resumo, nas palavras do autor: “Os sonhos são os produtos de uma capacidade própria da espécie humana de se representar mentalmente, simbolicamente as coisas, engendradas por indivíduos que dormem, em interação direta com seu ambiente e sem possibilidade de controle intencional ou voluntário de suas representações” (p. 428, tradução minha).

Freud diz que chegou a suas conclusões sobre o sonho por meio de um método chamado “psicanálise”, o qual utilizava para o tratamento das angústias, obsessões, ideias delirantes e outros conflitos do sujeito. Tal método, segundo ele, permitiria “descobrir as vias inconscientes por onde as ideias mórbidas de um indivíduo reencontra o restante de seu conteúdo psíquico para que o sintoma neurótico seja resolvido e que a ideia mórbida torne-se perfeitamente rejeitada” ( Freud, [1899] 1925 FREUD , Sigmund . ([ 1899 ] 1925 ), Le rêve et son interprétation . Paris , Gallimard . , p. 12, tradução minha). Segundo Lahire, esse método aproxima-se de sua perspectiva sociológica disposicionalista-contextualista: “Não por uma coincidência ou efeito da ‘cultura’ […] mas como sinal de que as estruturas do mundo real são descobertas pouco a pouco… [e porque]“os diferentes elementos que permitem compreender a ação, as representações e as sensações dos homens em sociedade são elementos que têm uma base empírica […] É portanto a estrutura do real que se dá a vislumbrar na similitude (relativa) dessas diferentes abordagens” (p. 118, tradução minha).

Se Freud coloca sonhos, angústia, obsessões, ideias delirantes e neuroses numa mesma cadeia de inteligibilidade, Lahire o faz em outros termos. Sociologicamente, o sonho faz parte de um conjunto de formas expressivas humanas, tal como a música, o teatro, a pintura, a literatura, os textos científicos etc. Enfim, segundo ele, sonhamos, pois simbolizamos o mundo incessantemente. Tal como a linguagem, o sonho presta-se a múltiplas representações. Não tem uma única função, tampouco pode ser reduzido a um meio de satisfazer desejos eróticos forjados na infância, ou a uma espécie de guardião do sono.

Os sonhos vistos do lado de fora

No Brasil, o sonho não é um objeto estranho de interpretação, seja sociológica ou popularmente. Neste caso, é impossível ignorar nossa tradição, presente em todas as camadas sociais, de cifrar os sonhos para jogar no “bicho”: vaca, cavalo, burro, jacaré etc. viram números da sorte em sistemas de aposta ilegal no país. Naquele outro, podemos traçar suas raízes a partir da passagem de Roger Bastide por São Paulo, a quem o jogo do bicho não ficou despercebido, da influência que ele exerceu sobre seu aluno Florestan Fernandes, que tratou superficialmente do tema e, finalmente, de um trabalho exclusivamente dedicado ao assunto, conduzido por José de Souza Martins. 1 Lahire refere-se ao trabalho de Bastide, anunciando seu caráter geral e sua imprecisão teórico metodológica ao lidar com as categorias de sonho e cultura, incorporando acriticamente aos seus esquemas de análise noções emprestadas da psicanálise, tais como inconsciente, censura, conteúdo manifesto e latente.

Além de Bastide, Lahire lista uma série de trabalhos produzidos antes e depois da Interpretação dos sonhos , apontando seus alcances e limites. Utilizo aqui os trabalhos de Fernandes e Martins, os quais poderiam ser tomados como exemplos das pesquisas as quais Lahire chama de “ecológicas”, isto é, que tratam do entorno do sonho, dos seus usos sociais e das suas formas populares de circulação e interpretação. Nesse sentido, vale citar Martins (1996, p. 15), para quem os sonhos são “documentos sobre o estado do relacionamento social entre nós e nós mesmos; entre nós e a alteridade que mediatiza a nossa transformação em ser social”. Essa noção do sonho como documento, presente em muitas pesquisas da antropologia, sociologia e história, por exemplo, não é capaz de entrar na lógica de fabricação dos sonhos. Lahire, enfim, procura sintetizar essa lógica e as formas de interpretação dos sonhos, num só modelo teórico, em busca de uma ciência da produção onírica que una o que está dentro e fora dos sonhos.

A fórmula de interpretação dos sonhos

Para interpretar os sonhos sociologicamente, é preciso articular o passado e o presente a um estado de dormência, ou seja, vincular toda uma experiência social a um estado subjetivo do sujeito. Assim, Lahire reduz suas proposições a esquemas que auxiliam compreender o processo de fabricação onírica de acordo com sua teoria disposicionalista-contextualista. São ao todo oito diagramas lógicos que dividem, em planos explicativos, cada uma das fases da fabricação dos sonhos. As três principais compreendem: 1) o estado de vigília que antecede o sono; 2) o período dos sonhos; 3) o estado de vigília após o sono. Todas essas fases são compostas por três elementos que sofrem influências mútuas. A primeira compõe-se de “problemática existencial”, “contexto que antecede o sono” e “disposições”. Como tais, são estocadas na memória e manejadas na fase seguinte, na qual se encontram os “estímulos internos”, o “ quadro ou contexto do sono” e as “disposições”. Na última fase, que é aquela na qual acordamos, também passando pelo trabalho da memória, encontram-se “as lembranças do sonho”, o “contexto pós-sono” e as “disposições”. É a partir da concretização dessa última fase que podemos obter os relatos de sonho.

Para Lahire, o que caracteriza a fase pré sono são os eventos, gestos e palavras registrados de forma não consciente. Compõem assim uma problemática existencial que se liga a experiências do passado, longínquas ou recentes, infantis, adolescentes ou adultas, e funcionam como disparadores de uma das partes dos esquemas incorporados ou, dito de outra forma, das disposições do sonhador ou sonhadora. Tais disposições, presentes em todas as três principais fases do processo, dizem respeito a um passado incorporado estruturante, moldado pelas nossas experiências paralelas ou sucessivas em diferentes âmbitos da vida social (família, bairro, escola, trabalho, igreja etc.). Forma-se, dessa maneira, um repertório de fontes que passam a operar na fase seguinte que é o quadro ou contexto do sono. Este é caracterizado por redução ou ausência de interações externas, percepções sutis do ambiente durante o sono, perda do controle reflexivo e enfraquecimento da vigilância que organiza a narrativa onírica, uma linguagem interior implícita de si para si, enfraquecimento das censuras formais e morais e, finalmente, esquemas mentais de visualização, exagero, dramatização, simbolização, metaforização e condensação. Por último, quando acordados, nos restam as lembranças do sonho que podem ser transmitidas por relato oral a outrem ou registradas por escrito pelo próprio sujeito.

Eis, portanto, a fórmula geral de interpretação dos sonhos, cujo detalhamento começa no segundo capítulo do livro e estende-se até o décimo terceiro. Impossível tratar de cada um desses elementos nesta resenha mesmo que brevemente. Contudo, como marca para futuras leituras, destaco o fato de que as principais contribuições de Lahire dizem respeito à determinação dos marcos sociais, disposicionais e contextuais, como elementos do sonho, e a sua insistência no cruzamento do estado de vigília com o estado de dormência num encadeamento de atividades mentais incessantes de caráter simbólico. Porém, quando o autor entra no espaço destas últimas, a fim de caracterizar o quadro do sono, distancia-se da firmeza argumentativa sociológica na compreensão dos jogos entre o passado e o presente na fabricação dos sonhos. Refiro-me principalmente a sua noção de comunicação de si para si, a qual justificaria um relaxamento das censuras formais e morais, que revestiriam o sonho de seu caráter ilógico, e também ao conjunto de operações mentais, de substrato biológico, que caracterizam o que o autor chama de formas elementares da vida psíquica.

Registro e interpretação dos sonhos

Para que os sonhos sejam analisados, é preciso, antes de tudo, que sejam registrados, seja pela sonhadora ou sonhador, seja por outrem. Aqui reside a principal barreira para a empreitada. Além da memória onírica ser evanescente, ela está sujeita ao conjunto de disposições de quem sonha, não só as suas capacidades mnemônicas, mas também as suas competências expressivas e linguísticas derivadas de uma série de determinantes sociais, tais como idade, sexo, profissão, escolaridade etc.

Ciente desse obstáculo, Lahire propõe um guia de como registrar o sonho, o qual é submetido posteriormente a uma metodologia que combina associações livres e biografia sociológica. Resumidamente, segundo ele, a primeira coisa a ser feita é tomar nota dos sonhos assim que se acorda. Durante o registro, deve-se anotar o que vem à cabeça sem se preocupar com a coerência narrativa nem com os possíveis constrangimentos morais. Em seguida, no que ele chama “fora do sonho”, é preciso anotar os sentimentos associados às imagens oníricas (pessoas, objetos, lugares), se negativos, positivos ou neutros. Além disso, procurar associar ao sonho eventos ligados ao dia precedente ou a preocupações de ordem geral do período. Se for o caso, ir mais além e procurar descrevê-los em função das experiência de vida, tal como “sonhei com uma casa que eu sabia que era da minha avó, mas muito diferente da real”.

A partir do relato, a socióloga ou sociólogo entrevista quem sonhou, indagando acerca das situações registradas e sua ligação com as circunstâncias de vida. Nesse processo, a partir das associações feitas, indagam-se sentimentos, imagens, lembranças e seus pontos de ligação com detalhes biográficos, os quais podem ser aprofundados em um ou mais momentos. Lahire termina dizendo que é raro encontrar um material empírico completo por meio do qual todos os pontos do problema, tal qual ele formulou, permitam sistematicamente uma demonstração global e completa da teoria que propõe. Apesar disso, ele trabalhará com materiais recolhidos de acordo com sua proposta sintética e integradora para a interpretação dos sonhos em seu próximo livro, a fim de demonstrar a eficácia de seu método.

Para finalizar, sonhos meus

A hipótese de Lahire é que os sonhos são o espaço de tratamento dos problemas em curso não resolvidos, mas que fazem eco a situações problemáticas do passado: preocupações, conflitos ou tensões intrapsíquicas ou interpessoais. Aposta não muito diferente das de Bastide (2003) BASTIDE , Roger . ( 2003 ), Le rêve, la transe et la folie . Paris , Seuil . , Fernandes (1961) FERNANDES , Florestan . ( 1961 ), Folclore e mudança social na cidade de São Paulo . São Paulo , Anhambi . ou de Martins (1996) MARTINS , José de Souza . ( 1996 ), (Des)figurações: a vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole . São Paulo , Hucitec . , sociólogos de nossa tradição intelectual. Mas ele nos oferece um caminho original que liga os pontos entre o passado e o presente de quem sonha. Mais do que negar a ruptura entre um estado de vigília e dormência, Lahire estende os domínios da sociologia a fim de desenvolver uma teoria geral das práticas sociais numa perspectiva disposicionalista-contextualista que é a marca de sua contribuição científica.

Fruto do acaso, como sói na vida, o livro de Lahire chegou-me às mãos numa despretensiosa visita à livraria, depois de eu ter me mudado para Strasbourg, França, a fim de fazer meu pós-doutorado. Durante a mudança, ainda no Brasil, ao empacotar meus livros, folheei por um bom tempo a obra de Martins (1996) MARTINS , José de Souza . ( 1996 ), (Des)figurações: a vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole . São Paulo , Hucitec . que lá ficou. Na mala, trouxe alguns dos meus cadernos de anotações, num dos quais encontrei uma série de sonhos que ora sim ora não tenho o hábito de registrar. Não resisti ao destino e passei a ler meus sonhos segundo a indicações de Lahire. Revelo que foi uma experiência fascinante, um verdadeiro exercício de imaginação sociológica, no sentido dado por Mills (1965 MILLS , Charles Wright . ( 1965 ), A imaginação sociológica . Rio de Janeiro , Zahar . , p. 11), que me permitiu colocar um aspecto tão íntimo de minha vida num cenário histórico e social mais amplo. Que seja mais um incentivo para futuros leitores de L’interprétation sociologique des rêves , que não precisarão reler as obras anteriores de Lahire – nem as de Freud, este, o monumento cujo brilho o sociólogo francês procura, ao seu modo, irradiar.

BIBLIOGRAFIA

  • BASTIDE , Roger . ( 2003 ), Le rêve, la transe et la folie . Paris , Seuil .
  • FERNANDES , Florestan . ( 1961 ), Folclore e mudança social na cidade de São Paulo . São Paulo , Anhambi .
  • FREUD , Sigmund . ([ 1899 ] 1925 ), Le rêve et son interprétation . Paris , Gallimard .
  • FREDU , Sigmund . ([ 1899 ] 2010 ), L’interprétation du rêve . Paris , Seuil .
  • LAHIRE , Bernard . ( 1998 ), L’Homme pluriel: les ressorts de l’action . Paris , Nathan .
  • MARTINS , José de Souza . ( 1996 ), (Des)figurações: a vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole . São Paulo , Hucitec .
  • MILLS , Charles Wright . ( 1965 ), A imaginação sociológica . Rio de Janeiro , Zahar .
  • 1
    Roger Bastide realizou uma pesquisa de campo sobre as relações de negros e brancos, a partir de relatos de sonhos de negros de classe média e baixa do município de São Paulo, publicada em 1950 e depois intitulada “Rêve de noirs”, que aparece como capítulo de seu livro Le rêve, la transe et la foli e, lançado primeiramente em 1972, como resultado da compilação de uma série de artigos redigidos entre 1930 e 1970. Florestan Fernandes, por sua vez, abordou a questão em 1944, no artigo “Aspectos mágicos do folclore paulistano”, para a revista Sociologia , tornado capítulo de seu Folclore e mudança social na cidade de São Paulo em 1961. José de Souza Martins, em 1995, com a ajuda de alunos, reuniu 180 relatos de sonhos, de homens e mulheres, de diferentes idades, que viviam na região metropolitana de São Paulo, dando origem a (Des)figurações: a vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole , de 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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