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GROUPNESS RACIAL E FLUTUAÇÕES ATITUDINAIS DE PARDOS ENTRE FRONTEIRAS SIMBÓLICAS E SOCIAIS

RACIAL GROUPNESS AND ATTITUDINAL FLUCTUATIONS OF PARDOS BETWEEN SOCIAL AND SYMBOLIC FRONTIERS

GROUPNESS RACIAL ET LES FLUCTUATIONS ATTITUDINALES DES METIS ENTRE LES FRONTIERES SYMBOLIQUES ET SOCIALES

Resumos

Neste artigo, examinamos a permeabilidade das fronteiras simbólicas raciais a partir da identificação e análise de atitudes referentes: (1) ao preconceito; (2) à mistura racial e (3) ao apoio às políticas de cotas. Mais especificamente, exploramos a hipótese de que as opiniões posicionais dos pardos, em virtude da sua localização intermediária no espectro de cor brasileiro, são marcadas por uma flutuação entre os padrões adotados por brancos e por pretos. Verificamos que há convergência atitudinal entre os grupos raciais, com exceção da discriminação racial, temática na qual brancos e pardos assumem padrões similares. Este resultado fortalece a visão dos indivíduos pardos como negociadores de fronteiras – seja ao se distanciar dos pretos, como no racismo, ou se aproximar deles, como no caso das cotas – em consonância com as identidades e interesses implicados em sua posição no continuum de cor.

Fronteiras raciais; Pardos; Atitudes raciais; Identidades; Interesses


In this article, we examine the permeability of racial symbolic boundaries through the identification and analysis of attitudes concerning the following aspects: (1) prejudice; (2) racial mixing, and (3) support for racial quota policies. More specifically, we explore the hypothesis that the positional opinions of pardos , due to their intermediate location in the Brazilian color spectrum, are marked by a fluctuation between the patterns adopted by whites and by blacks. We found an attitudinal convergence between racial groups, with the exception of racial discrimination, in which whites and pardos assume similar patterns. This result suggests that brown individuals are boundary negotiators – whether to distance themselves from blacks, as in the case of racism, or to approach them, as in the case of quotas – in line with the identities and interests implied by their position on the color continuum .

Racial boundaries; Pardos; Racial attitudes; Identities; Interests


Dans cet article, nous examinons la perméabilité des frontières symboliques raciales sur la base de l’identification et de l’analyse des attitudes concernant: (1) les préjugés; (2) le mélange racial et (3) le soutien aux politiques des quotas. Plus précisément, nous avons exploré l’hypothèse selon laquelle les points de vue des métis, en raison de leur situation intermédiaire dans le spectre de couleur brésilien, sont marqués par une fluctuation entre les normes adoptées par les blancs et les noirs. Nous avons vérifié qu’il existe une convergence d’attitudes entre les groupes raciaux, à l’exception de la discrimination raciale, un thème dans lequel les blancs et les métis assument des codes similaires. Ce résultat renforce l’idée des individus métis en tant que négociateurs frontaliers – soit en prenant du recul par rapport aux noirs, comme dans le racisme, soit en s’approchant d’eux, comme dans le cas des quotas – en consonance avec les identités et les intérêts impliqués selon leur position dans le continuum de couleur.

Frontières raciales; Métis; Attitudes raciales; Identités; Intérêts


Introdução

Em 18 de março de 2016, cerca de 95 mil pessoas se uniram na Avenida Paulista para apoiar o governo de Dilma Rousseff. Destas, 58% eram homens, 80% faziam parte da população economicamente ativa (PEA), 62% se autodeclararam brancas e 78% tinham ensino superior. Na semana anterior, 500 mil haviam se unido na mesma região, para protestar contra o Governo, das quais 57% eram do sexo masculino, 88% faziam parte da PEA, 77% declararam-se da cor branca, e mesma proporção tinha ensino superior. Estes dois grupos não se diferenciaram, portanto, pelos seus atributos sociodemográficos, mas sim pelo seu apoio ou reprovação ao governo de Dilma Rousseff.1 1 Pesquisas realizadas pelo Datafolha: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/03/21/manifestacao-18-03-2016.pdf e http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/03/14/manifestacao_13_03_2016.pdf Os integrantes dessas manifestações não se juntaram em um espaço público por fatores como sexo, raça ou escolaridade, mas sim por partilharem percepções, atitudes e sentimentos comuns em relação ao Governo. Este exemplo, no qual um grupo de pessoas possui uma identidade social compartilhada, um sentimento de grupo, ilustra o conceito de groupness ( Brubaker, 2002BRUBAKER, Rogers. (2002), “Ethnicity without groups”. European Journal of Sociology/Archives Européennes de Sociologie , 43 (2): 163-189. , 2009BRUBAKER, Rogers. (2009), “Ethnicity, race and nationalism”. Annual Review of Sociology , 35: 21-42. ; Campbell, 1958CAMPBELL, Donald T. (1958), “Common fate, similarity, and other indices of the status of aggregates of persons as social entities”. Behavioral Science , 3: 14-25. ).

Agrupamentos estes, cujos membros possuem um entendimento comum dos rituais e das normas sociais, e nos quais há um sentimento compartilhado sobre o propósito e a habilidade de seus membros em manter tal coesão, são grupos em que há o que se define como groupness , que dá a qualidade de grupo – minimamente coeso e solidário – a um agrupamento qualquer de indivíduos. Brubaker e Cooper (2000BRUBAKER, Rogers & COOPER, Frederick. (2000), “Beyond ‘identity’”. Theory and Society , 29 (1): 1-47. , p. 7 apudLamont et al. , 2016LOVEMAN, Mara. (1999), “Making ‘race’ and nation in the United States, South Africa and Brazil: taking ‘making’ seriously”. Theory and Society , 28 (6): 903-927. , p. 23), por exemplo, definem groupness como “um sentimento de pertença a um grupo solidário, distinto e delimitado” e com “uma uniformidade fundamental entre os membros do grupo ou categoria” (ver também Brubaker, 2002BRUBAKER, Rogers. (2002), “Ethnicity without groups”. European Journal of Sociology/Archives Européennes de Sociologie , 43 (2): 163-189. , 2009BRUBAKER, Rogers. (2009), “Ethnicity, race and nationalism”. Annual Review of Sociology , 35: 21-42. ).

Investigar o que origina, mantém e dá significado a agrupamentos sociais é importante para entender como as pessoas processam informação e formam impressões (por exemplo: preconceitos, estigmas e avaliações depreciativas) sobre as pessoas categorizadas em tais grupos. Apesar da enorme diversidade humana, é a percepção de atitudes comuns que permite às pessoas agregarem indivíduos em vulgas unidades de sentido (estereótipos), permitido assim um processamento mais eficiente da complexidade do dinâmico mundo em que vivem. Entender a constituição de grupos também é essencial para desnaturalizar entidades raciais assumidas pelo senso comum como categorias de análise. Brancos, pretos e pardos são categorias raciais que podem servir de base para a formação de grupos, mas não são necessariamente o esteio comum e condutor de aglomerações coesas em suas opiniões e atitudes. Ao se distinguir categorias de grupos, abre-se uma possiblidade investigativa para compreender como esses dois conceitos se relacionam e se condicionam mutuamente em contextos específicos. Pode-se perguntar, por exemplo, como processos políticos, sociais, culturais e psicológicos se alinham a determinadas categorias (exemplo, classe e raça), para gerar afinidade ( groupness) entre os membros que delas fazem parte ( Petersen, 1987PETERSEN, William. (1987), “Politics and the measurement of ethnicity”, in: P. Starr e W. Alonso, The politics of numbers . Nova York, Russell Sage. ; Brubaker, 2002BRUBAKER, Rogers. (2002), “Ethnicity without groups”. European Journal of Sociology/Archives Européennes de Sociologie , 43 (2): 163-189. , p. 12).

O objetivo deste artigo é investigar se a cor autodeclarada, além de delimitar grupos raciais categóricos, também é responsável pela formação de grupos com opiniões coesas ( groupness ) sobre temas diretamente atrelados à temática racial no Brasil. Investigaremos se as pessoas autodeclaradas brancas, pardas e pretas, além de constituírem categorias raciais, também constituem grupos com opiniões e ideais compartilhados. Para averiguarmos a existência de groupness entre grupos raciais – que por si sós possuem muitas dimensões –, usaremos como referência teórica o paradigma das fronteiras raciais (tanto sociais, quanto simbólicas), desenvolvido por Lamont e Molnár (2002)LAMONT, Michele & MOLNÁR, Virag. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology , 28: 167-195. . É através da permeabilidade de tais fronteiras, que grupos são formados e extintos, conforme a afinidade e similaridade de opiniões, atitudes e atributos que caracterizam estas fronteiras. Empiricamente, operacionalizaremos a fluidez dessas fronteiras, comparando o status socioeconômico (fronteira social) dos brancos, pardos e pretos e, também, a sua concordância quanto às percepções sobre racismo, miscigenação e política de cotas raciais (fronteiras simbólicas). Além de avaliar o papel da raça na delimitação de fronteiras simbólicas (tal como feito por Lamont et al. , 2016LOVEMAN, Mara. (1999), “Making ‘race’ and nation in the United States, South Africa and Brazil: taking ‘making’ seriously”. Theory and Society , 28 (6): 903-927. ), o presente trabalho investiga como as demarcações sociais (ex. a classe econômica) interagem com as raciais, para configurarem grupos com opiniões similares. A estratégia adotada revela que classes sociais são mais determinantes do que a raça, para o estabelecimento de fronteiras simbólicas, delimitadoras de grupos similares de opinião.

À luz da tradição literária sobre os pardos nas relações raciais brasileiras ( Degler, 1971DEGLER, Carl Neumann. (1971), Neither black nor white: slavery and race relations in Brazil and the United States . Nova York, Macmillan Publishing Company. ; Skidmore, 1993SKIDMORE, Thomas E. (1993), Black into white: race and nationality in Brazilian thought . Durham, Duke University Press. ), e de estudos recentes que mobilizam tal discussão ( Daflon et al. , 2017DAFLON, Verônica Toste; CARVALHAES, Flavio & FERES JÚNIOR, João. (2017), “Sentindo na pele: percepções da discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil”. Dados: Revista de Ciências Sociais , 60 (2): 293-330. ; Daflon, 2014DAFLON, Verônica Toste. (2014), Tão longe, tão perto: pretos e pardos e o enigma racial brasileiro . Tese de Doutorado. Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro. ; Moraes Silva e Leão, 2012MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. ), nossa hipótese é de que as atitudes dos pardos, por representarem categorias intermediárias de cor e com maior grau de mobilidade entre os dois extremos cromáticos ( Miranda, 2014MIRANDA, Victor. (2014), Measuring racial self-identification over the life course in Brazil, 1940-2013 , Filadélfia, University of Pennsylvania. Disponível em: <https://repository.upenn.edu/dissertations/AAI3623640>, consultado em 22/09/2018.
https://repository.upenn.edu/dissertatio...
; Senkevics, 2017SENKEVICS, Adriano Souza. (2017), “De brancos para negros? Uma análise longitudinal da reclassificação racial no Enem 2010-2014”. Trabalho apresentado na 38ª. Reunião Nacional da Anped, 1-5 de out., São Luís, MA. ; Silveira et al. , 2018), serão mais fluidas do que as de outros grupos raciais. Dependendo da fronteira em questão, seja social ou simbólica, investigaremos se pardos alinharão suas atitudes com brancos, pretos ou ambos; dissolvendo, assim, a fronteira racial e criando uma identidade de grupo que extrapolaria aquela da raça autodeclarada, evidenciando, desse modo, a sua fluidez. Entende-se, portanto, que as opiniões de indivíduos pardos não sejam monolíticas, e que haja diferenças atitudinais entre os autodenominados pardos - situados em classes baixas ou altas -, mais expressivas do que aquelas constatadas entre brancos, ou entre pretos de classes diferentes. Para investigar em que medida se alinham as fronteiras raciais, sociais e simbólicas, operacionalizamos o conceito de groupness por meio de variáveis padronizadas, que expressam níveis distintos de atitudes raciais. A metodologia proposta se diferencia daquela de estudos anteriores ( Bailey, 2002, 2004BAILEY, Stanley R. (2004), “Group dominance and the myth of racial democracy: antiracist attitudes in Brazil”. American Sociological Review , 69 (5): 728-747. , 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ; Bailey; Fialho e Peria, 2015BAILEY, Stanley. R.; FIALHO, Fabrício. M. & PENNER, Andrew. M. (2015), “Interrogating race: color, racial categories and class across the Americas”. American Behavioral Scientist , 1-18. ), sobretudo por investigar se o pertencimento racial autodeclarado converge com múltiplas dimensões simbólicas comparáveis em suas intensidades simultaneamente definidas.

O presente artigo está organizado em três partes. A primeira introduz o paradigma teórico das fronteiras sociais e simbólicas, para analisar a dinâmica de formação de grupos ( groupness ). Para isso, retomamos o debate sobre classe e raça no Brasil, com destaque para o entendimento dos pardos e suas atitudes. A segunda apresenta os dados, as variáveis e a metodologia utilizados para operacionalizar nossa análise. Por último, apresentamos os resultados da pesquisa, seguidos de uma discussão e breve conclusão.

Referencial teórico

Fronteiras raciais e formação de grupos

Segundo Lamont e Molnár (2002)LAMONT, Michele & MOLNÁR, Virag. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology , 28: 167-195. , fronteiras são, a rigor, formas de categorização e de hierarquização de comportamentos e práticas, a partir das quais grupos identitários se autodefinem e definem regras de constrangimento do agir social, inclusão ou exclusão. Sua utilização, como perspectivas analíticas, envolve a articulação entre condições simbólicas e materiais de delimitação do espaço de constrangimento desse agir, trazendo à baila estruturas e relações de poder construídas histórica e cotidianamente. Ao funcionarem como linhas delimitadoras, portanto, as fronteiras fazem sentido como perspectivas de análise das relações entre grupos sociais, pautadas ora pela partilha, ora pela distinção. Mas, uma vez que envolvem restrições, tanto de ordem material quanto simbólica, seria adequado assumir o conceito de fronteiras como um monólito?

Lamont e Molnár (2002)LAMONT, Michele & MOLNÁR, Virag. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology , 28: 167-195. também nos oferecem respostas a esse respeito, ao dividirem o conceito em fronteiras simbólicas e sociais. Fronteiras simbólicas seriam distinções conceituais da realidade e das relações entre grupos sociais, a partir da categorização de pessoas, objetos, práticas, do tempo e do espaço; bem como seriam importantes pistas para a compreensão sobre como diferentes grupos sociais reproduzem sistemas de categorização e prestígio. Elas são, então, critérios de distinção adotados para se ordenar pessoas em grupos, segundo sentimentos e símbolos compartilhados, incluindo-se aqui as práticas culturais e outras formas horizontais de sociabilidade inter-racial (casamento, relações de amizade e opiniões compartilhadas, por exemplo).

Fronteiras sociais , por outro lado, seriam a expressão objetiva e material desses sistemas de diferenças que se manifestam nas diferenças de acesso a recursos e oportunidades. Seriam caracterizadas por hierarquias verticais de poder socioeconômico, e verificadas por medidas de desigualdades sociais (e raciais). Resumindo: se, por um lado, as fronteiras simbólicas orientam comportamentos “normais” e “desviantes”, como também o que é digno de status e o que não o é, as fronteiras sociais são consequências materiais disso: como o acesso à universidade, à participação política etc.

A compreensão do conceito de fronteiras – sejam elas simbólicas ou sociais – é fundamental para entender a formação, a consolidação e a dissolução de grupos sociais, para além dos critérios socioeconômicos que os definem (a classificação racial sendo um deles). Isto é, para além dos aspectos puramente estatísticos e objetivos que orientam a designação de indivíduos a determinados grupos sociais, a definição de fronteiras importa para compreender a vivência em um determinado grupo, a partir desses aspectos.

Por isso, na medida em que os processos sociais, que condicionam a flutuação de fronteiras, condicionam igualmente o entendimento de como e por que grupos com identidades compartilhadas se formam, torna-se útil adotar o paradigma das fronteiras sociais e simbólicas. Para compreender a dinâmica de diferenças sociais institucionalizadas – como, por exemplo, as de classe, raça, religião, gênero, desigualdade e participação política –, é fundamental avaliar como agrupamentos são formados e dissolvidos através da construção, cruzamento e deslocamento de fronteiras constituídas a partir de ideologias, status, opiniões e valores compartilhados.

Sendo assim, a definição de fronteiras (simbólicas ou sociais) toma emprestado um construto conceitual auxiliar e intrinsecamente relacionado: o de groupness , que pressupõe o senso de pertencimento a um grupo formado por laços de solidariedade e marcas de distinção em relação a outros grupos ( Brubaker, 2002BRUBAKER, Rogers. (2002), “Ethnicity without groups”. European Journal of Sociology/Archives Européennes de Sociologie , 43 (2): 163-189. ; Loveman, 1999LOVEMAN, Mara. (1999), “Making ‘race’ and nation in the United States, South Africa and Brazil: taking ‘making’ seriously”. Theory and Society , 28 (6): 903-927. ). Na aplicação da definição de fronteiras e groupness ao estudo sobre relações raciais, é importante considerar que a forma de utilização destes conceitos depende, em grande medida, da posição que o conceito de raça ocupa no debate social e, especialmente, da maneira como se vive, na prática, a experiência da categorização racial.

A fluidez atitudinal dos pardos: da válvula de escape à permeabilidade de fronteiras

Há quase meio século, Carl Degler (1971)DEGLER, Carl Neumann. (1971), Neither black nor white: slavery and race relations in Brazil and the United States . Nova York, Macmillan Publishing Company. argumentou que a principal diferença entre os esquemas raciais americano e brasileiro estava na manutenção dos pardos ( mulattos ) como uma opção racial no Brasil. Enquanto nos Estados Unidos os que antes eram percebidos como pardos foram socialmente, politicamente, legalmente e estatisticamente assimilados como pretos ( blacks ), no Brasil, no começo do século vinte, eles continuaram ocupando um lugar à parte:

Tal lugar não é reservado àqueles considerados como miscigenados ( mixed blood ) nos Estados Unidos; uma pessoa é ou preta ( black ) ou branca ( white ) . Por isso, o mulato no Brasil representa uma válvula de escape para o Negro, por assim dizer, que não está disponível nos Estados Unidos ( Degler, 1971DEGLER, Carl Neumann. (1971), Neither black nor white: slavery and race relations in Brazil and the United States . Nova York, Macmillan Publishing Company. , p. 107, tradução nossa).

A diferença primária entre os regimes raciais brasileiro e estadunidense seria a figura do “nem preto nem branco”, cuja posição intermediária, marcada por uma fluidez classificatória peculiar, seria empregada nos momentos mais convenientes (Degler apud Guimarães, 1999). Para Degler, a válvula de escape dos mulatos, ainda que gerada de forma inconsciente e não intencional, ajudaria a explicar por que as relações raciais no Brasil seriam menos rígidas e hostis, do que no caso americano. Ao literalmente misturar as raças, os pardos concomitantemente atenuariam a linha racial entre brancos e pretos.

A tese de Degler descreve, sobretudo, como os mestiços (pardos) cruzavam fronteiras materiais e eram mais facilmente assimilados aos brancos, do que os pretos: “Historicamente, é o mulato quem ascende na sociedade brasileira, não o Negro” [...]. É o mulato que é socialmente móvel, não o Negro” (Degler, 1971, p. 107-109, tradução nossa). Entretanto, além de os pardos se moverem com maior facilidade entre as fronteiras sociais, o caminho inverso – ou seja, a ideia segundo a qual a mobilidade social permitiria o branqueamento – está igualmente presente em sua obra:

Um mulato rico é aceito pelos brancos em um grau que um mulato pobre não o é. [...] Uma vez embranquecido pelo dinheiro, um Negro torna-se mulato ou pardo , independentemente da sua cor atual ( Degler, 1971DEGLER, Carl Neumann. (1971), Neither black nor white: slavery and race relations in Brazil and the United States . Nova York, Macmillan Publishing Company. , p. 105, tradução nossa) .

Na visão do autor, a mobilidade social ascendente seria capaz de alterar as linhas raciais percebidas, clareando-as. Ao cruzarem a fronteira social, pretos e pardos poderiam também cruzar as fronteiras raciais. A dinâmica descrita por Degler pressupõe, portanto, que classe e raça seriam interdependentes: pessoas percebidas como mais claras ascenderiam socialmente com maior facilidade, e tal ascensão, por sua vez, permitiria a elas permear ou “transcender” ao mundo dos brancos. A “válvula de escape” refere-se, assim, primordialmente, a um processo de mobilidade econômica, mas que seria também capaz de reconfigurar as linhas raciais percebidas. A partir dos conceitos de Lamont e Molnár (2002)LAMONT, Michele & MOLNÁR, Virag. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology , 28: 167-195. , seria então possível dizer que a “válvula de escape do mulato” catalisaria não apenas mudanças da fronteira social, mas também amenizaria tensões raciais ao alterar a fronteira racial, enquadrando-se e funcionando, assim, simultaneamente, como uma deslocadora das fronteiras simbólicas:

A válvula de escape do mulato serve como um símbolo, capaz de condensar relacionamentos e atitudes entre pretos e brancos. Ao voltarmos nossa atenção para tal símbolo, e explicarmos o seu desenvolvimento histórico, somos também capazes de explicar várias atitudes a padrões comportamentais representados e explicados por ele ( Degler, 1971DEGLER, Carl Neumann. (1971), Neither black nor white: slavery and race relations in Brazil and the United States . Nova York, Macmillan Publishing Company. , p. 225).

A categoria de cor intermediária, ao tornar incerto e complexificar o desenho do continuum racial entre os polos branco e preto, acabaria por absorver pessoas dos dois lados, mantendo-se como uma possibilidade para ambos. Talvez por isso, “a cor parda ainda hoje consta no censo brasileiro, e mais parece um ‘nenhuma das anteriores’, um grande etcetera ou um coringa da classificação” ( Schwarcz e Starling, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz & STARLING, Heloisa Maria Murgel. (2015), Brasil: uma biografia . São Paulo, Companhia das Letras. , p. 94).

Como o interesse do presente artigo reside em analisar a permeabilidade das fronteiras raciais simbólicas e sociais no Brasil, recorrer aos pardos como grupo de foco é inevitável, uma vez que eles estão espacialmente no intermédio destas fronteiras, em uma situação que lhes permite transitar entre elas, a partir de critérios que envolvem identidades raciais (pertinentes às fronteiras simbólicas) e interesses materiais (referentes às fronteiras sociais).

O paradigma da “válvula de escape”, como mecanismo orientador do emprego prático da identificação racial dos pardos, poderia ser assim complementado pela análise de como as fronteiras simbólicas e sociais permeiam as atitudes desses indivíduos, exatamente a partir da compreensão de que os pardos, pela complexidade de sua posição no continuum de cor, também apresentam traços identitários complexos, e que merecem atenção a partir de uma lógica que articule características simbólicas e de oportunidades. Ao se adotar o paradigma das fronteiras, permite-se ao pardo mover-se tanto para o lado dos pretos quanto para o dos brancos, diferentemente da perspectiva unidirecional e economicamente condicionada do branqueamento, adotada por Degler (1971)DEGLER, Carl Neumann. (1971), Neither black nor white: slavery and race relations in Brazil and the United States . Nova York, Macmillan Publishing Company. .

Nesse cenário, trabalhos como o de Daflon et al. (2017)DAFLON, Verônica Toste; CARVALHAES, Flavio & FERES JÚNIOR, João. (2017), “Sentindo na pele: percepções da discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil”. Dados: Revista de Ciências Sociais , 60 (2): 293-330. , Daflon (2014)DAFLON, Verônica Toste. (2014), Tão longe, tão perto: pretos e pardos e o enigma racial brasileiro . Tese de Doutorado. Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro. , e Moraes Silva e Leão (2012)MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. buscam – a partir da constatação de que os pardos são, frequentemente, um público ignorado pelo interesse acadêmico, por suas características identitárias – questionar o retrato dos pardos como “atípicos”, ou movidos essencialmente por interesses em sua classificação. Além de lançar luz sobre a interlocução entre a identidade parda e os polos do continuum racial, essa nova geração busca colocar em xeque definições essencialmente voluntaristas da formação e consolidação de identidades sociais ( Daflon, 2014DAFLON, Verônica Toste. (2014), Tão longe, tão perto: pretos e pardos e o enigma racial brasileiro . Tese de Doutorado. Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro. ).

Sob o pressuposto de que opiniões compartilhadas são uma forma de solidariedade e, portanto, um dos esteios da noção de groupness , a fluidez dos pardos também se manifestaria na inexistência (ou na baixa existência) de groupness racial no Brasil ( Bailey, 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ). Exemplo disso é que, quando incitados a se autoclassificarem como brancos ou pretos, 40% dos pardos se identificam com a primeira categoria ( Bailey, 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ). Na linha desse raciocínio, Muniz (2012MUNIZ, Jeronimo Oliveira. (2012), “Preto no branco? Mensuração, relevância e concordância classificatória no país da incerteza racial”. Dados , 55 (1): 251-282. , 2016MUNIZ, Jeronimo Oliveira. (2016), “Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades”. Civitas , 16 (2): 62-86. ) verificou persistentes inconsistências de categorização racial, principalmente pervasivas aos indivíduos classificados como pardos; análise também feita (mas de forma qualitativa) por Moraes Silva e Leão (2012)MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. .

Essa fluidez poderia, a princípio, ser vista como um aspecto reforçador de que a groupness racial de indivíduos pardos oscilaria entre a liberdade positiva, oriunda da facilidade de trânsito, e a dificuldade de categorização racial em termos formais. Nos Estados Unidos,2 2 Entre 1840 e 1860, a categoria “mulatto” constou no censo americano, mas o termo não foi definido aos entrevistadores. Nas duas décadas seguintes, definiu-se oficialmente “ mulattoes ” como “todas as pessoas que possuíssem algum traço perceptível de sangue africano”. Em 1890, o censo instruiu os enumeradores a registrarem a proporção exata de “sangue africano”, confiando, mais uma vez, apenas na visibilidade. Em 1900, a instrução foi para que pure Negroes fossem contados separadamente dos mulatos, definidos como “pessoas com algum resquício de sangue preto”. Em 1920, retirou-se a categoria mulatto do censo, passando a adotar-se, até os dias de hoje, a opção “preto” ( black ) para fazer referência a qualquer pessoa com alguma ancestralidade preta/ negra ( black ) ( Davis, 2001 , pp. 11-12). Esse procedimento ficou conhecido como one-drop rule. Ser classificado como “mulato”, entre 1870 e 1920, relacionava-se, portanto, ao modo como as pessoas eram percebidas pelo enumerador, e não em função de uma medida direta da sua suposta ancestralidade, e nem de como os entrevistados se autoidentificavam. Nesse realinhamento das relações raciais, os brancos perderam a sua aliança com os mulatos livres e, também, as vantagens de haver um grupo de amortecimento ( buffer group ) entre eles e os pretos não misturados. Nas palavras de Davis (2001 , p. 42), tal “realinhamento iniciou uma mudança no senso de identidade do mulato, especialmente dos mais claros, que começaram a se ver como negros, ao invés de como um grupo marginalizado de ‘quase brancos’” (tradução nossa). Essa descrição ilustra o caráter histórico, mutável e social de raça nos Estados Unidos, mesmo que, hoje, cerca um terço das pessoas do país ainda a considere como um atributo biológico ( Rockett, 2018 ). por exemplo, cerca de 9% das pessoas classificadas como Black , no censo populacional de 1870, foram reclassificadas como Mulattos , em 1880. A mesma proporção fez o caminho contrário, passando de Mulatto para Black , durante o mesmo período. Somadas, estas duas proporções corres- pondem a 18% de mudança racial classificatória. Entre 1880 e 1910/1920, o percentual de mudança racial foi ainda mais considerável, aumentando para cerca de 22% de pessoas ( Saperstein e Gullickson, 2013SAPERSTEIN, Aliya & GULLICKSON, Aaron. (2013), “A ‘Mulatto Escape Hatch’ in the United States? Examining evidence of racial and social mobility during the Jim Crow era.” Demography , 50 (5): 1921-1942. , p. 1933). Tal padrão de reclassificação racial se manteve no final do século vinte, de acordo com dados longitudinais observados entre 1979 e 2002 ( Saperstein e Penner, 2012SAPERSTEIN, Aliya & PENNER, Andrew M. (2012), “Racial fluidity and inequality in the United States.” American Journal of Sociology , 118 (3): 676-627. ). Além disso, 6,1% (cerca de 10 milhões de pessoas) dos entrevistados tiveram reportadas, no censo americano de 2010, raças distintas daquelas declaradas em 2000 (Liebler et al. , 2017). No entanto, é provável que, mesmo no caso americano, tal dificuldade de categorização seja cada vez menor, devido à possibilidade de marcação de raças múltiplas. No censo americano de 2000, por exemplo, 2,4% das pessoas se autoclassificaram como mestiças ( mixed race ) e, em 2010, 2,9% marcaram mais de uma raça. Estes percentuais, entretanto, são ainda muito pequenos, para se afirmar que a one drop rule , estabelecida em 1920, deixou de ser a norma vigente.

No contexto brasileiro, dados longitudinais recentes sobre reclassificação racial, oriundos da Pesquisa Mensal de Emprego ( Miranda, 2014MIRANDA, Victor. (2014), Measuring racial self-identification over the life course in Brazil, 1940-2013 , Filadélfia, University of Pennsylvania. Disponível em: <https://repository.upenn.edu/dissertations/AAI3623640>, consultado em 22/09/2018.
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), do Enem ( Senkevics, 2017SENKEVICS, Adriano Souza. (2017), “De brancos para negros? Uma análise longitudinal da reclassificação racial no Enem 2010-2014”. Trabalho apresentado na 38ª. Reunião Nacional da Anped, 1-5 de out., São Luís, MA. ) e da RAIS/ MTE (Silveira et al. , 2018), mostram que a categoria racial parda ainda é, de fato, a que possui os maiores fluxos de mudança. Miranda (2014MIRANDA, Victor. (2014), Measuring racial self-identification over the life course in Brazil, 1940-2013 , Filadélfia, University of Pennsylvania. Disponível em: <https://repository.upenn.edu/dissertations/AAI3623640>, consultado em 22/09/2018.
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, p. 88) demonstra que em períodos de nove meses, observados entre 2002 e 2014, 22,9% dos respondentes mudaram de raça. Do total dos autodenominados pardos, 19,6% se reclassificaram como brancos e 8% como pretos, na segunda entrevista (72% permaneceram pardos). Dos autodenominados “pretos”, na primeira entrevista, 30,6% se reclassificaram como pardos e 7,6%, como brancos. E do total de “brancos”, 14,6% se reclassificaram como pardos e 1,4%, como pretos. Senkevics (2017)SENKEVICS, Adriano Souza. (2017), “De brancos para negros? Uma análise longitudinal da reclassificação racial no Enem 2010-2014”. Trabalho apresentado na 38ª. Reunião Nacional da Anped, 1-5 de out., São Luís, MA. também mostra que os maiores fluxos reclassificatórios ocorrem entre pardos e alguma outra categoria racial. Mais especificamente, em mais de um ano, 21,7% dos que se inscreveram no ENEM mudaram sua autoclassificação de cor, entre 2010-2014, dos quais 18,4% foram fluxos de, ou para a raça parda. Por fim, Silveira et al. (2018) constata que, entre 2008 e 2015, 11,5% foram racialmente reclassificados, sendo 10,3% das classificações de origem ou destino para a categoria dos pardos.

Essas evidências sugerem que cerca de um quinto das populações pesquisadas mudam a autodeclaração racial, ao longo do tempo, e que aproximadamente um décimo muda sua raça heteroclassificada na RAIS. Destes percentuais, mais de 85% são mudanças raciais para, ou da categoria dos pardos para alguma outra, corroborando, assim, a ideia de que os pardos são os que possuem a maior fluidez entre fronteiras raciais preestabelecidas.

O desdobramento das fronteiras raciais, em simbólicas e sociais, tem permitido conciliar as visões preconizadas pela primeira geração dos estudos raciais brasileiros, e consolidadas no paradigma da democracia racial, com os retratos feitos pelos analistas das desigualdades raciais e sociais, tributários da escola estrutural-funcionalista; sobretudo, a partir da articulação entre identidades raciais e de classe, mediadas por interesses também raciais e de classe. Daflon et al. (2017)DAFLON, Verônica Toste; CARVALHAES, Flavio & FERES JÚNIOR, João. (2017), “Sentindo na pele: percepções da discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil”. Dados: Revista de Ciências Sociais , 60 (2): 293-330. , por exemplo, ressaltam a divergência entre os efeitos da discriminação racial, na mobilidade social de indivíduos pardos, e a baixa percepção qualitativa de discriminação expressa por eles – aspecto também investigado por Moraes Silva e Leão (2012)MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. , que, entretanto, sinalizam que tal fluidez não impede os pardos de se solidarizarem e também denunciarem a intolerância racial.

O uso das fronteiras simbólicas e sociais, em franca ascensão no campo das relações raciais no Brasil, parece ser uma chave para decifrar a aparente fluidez atitudinal dos indivíduos pardos no país. Ao admitirmos a coexistência entre essas fronteiras, não como um sinal de oportunismo, mas sim como um retrato da penetração das estruturas sociais sobre estas mesmas atitudes, conciliamos as “áreas duras” e “áreas moles” das relações raciais no Brasil ( Sansone, 1996SANSONE, Lívio. (1996), “Nem somente preto ou negro: o sistema de classificação racial no Brasil que muda”. Afro-Ásia , 18: 165-187. ), ou as dimensões de assimilação horizontais e verticais ( Telles, 2003TELLES, Edward E. (2003), Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica . Rio de Janeiro, Relume Dumará. ). Sendo assim, devido à sua habilidade de fluir livremente entre as duas polaridades de cor, sem serem estigmatizados, os pardos seriam flexibilizadores primordiais de fronteiras , podendo alterá-las simbolicamente, sem cruzarem, necessariamente, as categorias raciais que os delimitam.

Ao investigar a permeabilidade das fronteiras simbólicas – clivagens que não se referem à esfera material da vida social, mas sim a espaços de ordem simbólica, tais como experiências de segregação, a formação de laços de amizade, casamento, e diferenças entre repertórios culturais ( Lamont et al. , 2016LOVEMAN, Mara. (1999), “Making ‘race’ and nation in the United States, South Africa and Brazil: taking ‘making’ seriously”. Theory and Society , 28 (6): 903-927. ; Lamont e Molnár, 2002LAMONT, Michele & MOLNÁR, Virag. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology , 28: 167-195. ; Moraes Silva e Leão, 2012MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. ; Moraes Silva e Reis, 2015MORAES SILVA, Graziella & REIS, Elisa P. (2015), “Interpretações e reações à estigmatização étnico-racial: narrativas dos negros brasileiros em perspectiva comparada”. Interseções: Revista de estudos interdisciplinares , 17 (2): 327-349. ) –, analisaremos especificamente a capacidade de os indivíduos pardos atuarem como operadores dessas fronteiras. Investigaremos a formação de fronteiras simbólicas e grupos de afinidade, por meio das opiniões compartilhadas de brancos, pretos e pardos, sobre racismo, miscigenação e apoio às cotas raciais, considerando, assim, não só os múltiplos significados que a identificação como pardo adquire para quem opta por ela; como também o reconhecimento de que a categorização racial no Brasil não descortina suficientemente o real significado do pertencimento a cada ponto no continuum de cor. Exploraremos, portanto, a diversidade da identidade parda, baseando-nos na percepção daqueles que se identificam dessa maneira, pela constatação de que “os pardos não são simplesmente menos negros” ( Moraes Silva e Leão, 2012MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. , p. 131).

A curiosidade que orienta o nosso estudo propõe a seguinte indagação: os pardos teriam um padrão de atitudes raciais diferente do padrão dos brancos e dos pretos? Nossa hipótese é a de que os indivíduos pardos, por ocuparem uma posição intermediária no espectro de cor, teriam uma identidade de grupo mais maleável, apresentando atitudes raciais ora semelhantes às dos brancos, ora semelhantes às atitudes dos pretos, ora convergentes com as de ambos.

Dados e métodos

Nosso estudo usou como fonte de informação o banco de dados Racismo Cordial, coletado e organizado pelo Instituto Datafolha, em setembro de 2008. A pesquisa entrevistou, em 213 municípios, 2982 indivíduos pertencentes a ambos os sexos, de todas as classes sociais e de todas as regiões do país (Datafolha, 2008).3 3 Consideraremos 2644 casos válidos na análise estatística. Com o objetivo de investigar e monitorar o preconceito e o racismo no Brasil, explorando como tais fatores se manifestam em atitudes cotidianas dos entrevistados, essa pesquisa quantitativa deu continuidade àquela realizada em 1995, ano no qual o Instituto Datafolha entrevistou 5081 pessoas, em 121 cidades do país.

Para investigar a volatilidade e a concordância ideológica e racial da população brasileira, adotamos o paradigma das fronteiras, sugerido por Lamont e Molnár (2002)LAMONT, Michele & MOLNÁR, Virag. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology , 28: 167-195. . Operacionalizamos as fronteiras sociais e simbólicas, a partir de variáveis dependentes ordinais, com três categorias (baixa, média e alta) definidas conforme a Tabela 1 .

Tabela 1
Descrição das Variáveis de Interesse

Tabela 2
Distribuição de Medidas de Tendência Central e Dispersão das Variáveis Utilizadas nos Modelos de Regressão

Cada uma das variáveis dependentes representa a combinação de três outras variáveis coletadas pela pesquisa e padronizadas para representarem uma escala ordinal. As medidas de fronteiras simbólicas e sociais foram construídas a partir das médias das variáveis que compõem cada uma delas. As variáveis utilizadas foram, quando necessário, categorizadas ou recodificadas para possuírem escalas equivalentes, permitindo, assim, a sua combinação através da média.4 4 Optamos por utilizar uma combinação de variáveis através da média, ao invés de análise fatorial ou de componentes principais, por duas razões. Primeiro, porque estas técnicas de redução de variabilidade não são, em geral, indicadas para variáveis categóricas, como é o nosso caso. Análises fatoriais assumem que as variáveis são contínuas e normalmente distribuídas. Em segundo lugar, optamos por empregar a média, porque mesmo quando utilizamos técnicas adequadas para a redução de variabilidade de variáveis categóricas ( polychoric estimates ), constatamos alta correlação entre os fatores gerados e a medida construída a partir da média aritmética. O coeficiente de determinação (R2) entre nossas variáveis e o seu primeiro fator dominante são: 0,79 na fronteira simbólica 1; 0,77 na fronteira simbólica 2; e 0,92 na fronteira simbólica 3. Estes resultados indicam que, tecnicamente, optar pela média ou por polychoric estimates nos conduziria a resultados semelhantes. No caso da fronteira social, por exemplo, a categoria “baixa” representa 36% dos que se encontram em posições relativamente inferiores de renda, escolaridade e posse de bens duráveis (por exemplo, o Critério Brasil). A renda captada pelo questionário é intervalar e foi recodificada em baixa, média ou alta, da seguinte forma: 40% correspondem à primeira categoria (até 2 salários mínimos); 40% correspondem àqueles que recebem entre 2 e 5 salários mínimos; e os 20% restantes correspondem aos que recebem mais de cinco salários mínimos. As variáveis de escolaridade e consumo (Critério Brasil) também foram categorizadas em três níveis, para poderem ser combinadas com a renda através da média.

O “Critério (de Classificação Econômica) Brasil” é uma medida sugerida pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (2010)ASSOCIAÇÃO Brasileira de Empresas de Pesquisa. (2010), Dados com base no Levantamento Sócio Econômico 2008 – Ibope. Disponível em: <http://www.abep.org/criterio-brasil>, consultado em 15/9/2018.
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, para estimar o poder de compra das pessoas e famílias urbanas, a partir da construção de “classes econômicas” definidas segundo a posse de bens duráveis de consumo (televisão, rádio, geladeira, automóvel, máquina de lavar e outros).5 5 O Critério Brasil atribui pontos específicos à presença dos citados itens no domicílio, os quais, somados, indicam uma classe de pertença segundo os cortes abaixo: Classe Pontos A1 42-46 A2 35-41 B1 29-34 B2 23-28 C1 18-22 C2 14-17 D 8-13 E 0-7 Para combiná-la com as categorias de renda e escolaridade, nós calculamos os seus tercis para obter categorias baixa, média e alta de consumo. O passo final para a construção da fronteira social consistiu em calcular a média das variáveis tricotômicas de renda, escolaridade e consumo, captada pelo Critério Brasil.

No caso das fronteiras simbólicas, a escala de três níveis de intensidade (baixa, média e alta) representa o grau de concordância com ideias relativas a racismo67, mistura racial e apoio às cotas raciais. Operacionalizamos a intensidade do groupness , a partir da diferença entre as probabilidades preditas de concordância com cada um dos níveis de intensidade das fronteiras simbólicas propostas. Assumimos que, quanto maior a diferença entre as probabilidades preditas por raça, menor será o groupness racial; e quanto menor a diferença entre as probabilidades preditas, maior será o grau de coesão interracial – ou seja, maior será o groupness . A distribuição das médias e desvios-padrão das variáveis utilizadas nos modelos encontra-se na Tabela 1 .

A tabela mostra que, em sua maioria, tanto brancos quanto pardos e pretos possuem baixa concordância com frases de cunho racista (fronteira simbólica 1); possuem baixa discordância quanto aos benefícios de ser ter uma sociedade racialmente diversa (fronteira simbólica 2); e dão “alto” apoio às cotas raciais (fronteira simbólica 3). Entretanto, para avaliar a similaridade interracial das proporções apresentadas, é necessário examinar as análises multivariadas, descritas na próxima seção.

Por fim, cabe esclarecer que a variável raça é utilizada aqui como categoria de análise; como um “conceito analítico nominalista”, mas derivado e construído a partir de um “conceito nativo”, a cor da pele ( Guimarães, 2003GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. (2003), “Como trabalhar com ‘raça’ em sociologia”. Educação e Pesquisa , 19 (1): 93-107. , p. 98, 104). Ao adotarmos a raça como uma categoria analítica, compartilhamos do difícil dilema entre empiria e construtivismo social. Por um lado, ao categorizarmos a raça, assumimos que ela tem uma dimensão objetiva e existente, que nos permite observá-la e medi-la. Mas, por outro lado, reconhecemos que os significados de raça resultam de processos sociais múltiplos, fluidos e dinâmicos. Como a raça contêm categorias socialmente construídas, o seu significado é passível de mudança tanto no tempo quanto no espaço, dependendo seja de quem o utiliza, como do propósito social ou político para o qual ele é empregado. Logo, ao mesmo tempo em que rejeitamos a visão essencialista de raça, adotamos categorias autopercebidas de cor da pele, para podermos identificar e, quiçá, iluminar alguns dos padrões reais que orientam a experiência da vida cotidiana. Com esta ressalva em mente, captamos e construímos a categoria raça a partir da declaração dos entrevistados ao questionário fechado da Pesquisa do Instituto Datafolha (2008), que utilizou a seguinte pergunta: “Considerando as seguintes categorias, qual é a sua cor?” Das doze opções reportadas, as mais prevalentes foram “Branca”, “Parda” e “Preta”, que contabilizaram, respectivamente, cerca de 37%, 36% e 15% do total de respostas. As pessoas que marcaram as opções “Mulato” (0,13%), “Moreno” (4,05%) ou “Moreno claro” (0,44%) foram incorporadas à categoria dos autodeclarados pardos; e as que marcaram “Negro” (0,10%) ou “Moreno escuro” (0,03%) foram fundidas à dos pretos. As opções “Amarela” (2,77%), “Indígena” (4,69%) e “Outras respostas” (0,20%) não foram consideradas na análise.

Metodologia

Para investigar a associação entre as quatro variáveis respostas, cor e classe social, controlando-se por covariáveis relevantes (sexo, idade, região), utilizamos regressões logísticas ordinais de chances proporcionais ( Long e Freese, 2006LONG, Scott & FREESE, Jeremy. (2006), Regression models for categorical dependent variables using Stata . 2 ed., Texas – College Station, Stata Press Corporation. ; McCullagh, 1980MCCULLAGH, Peter. (1980), “Regression models for ordinal data”. Journal of Royal Statistics Society , 42 (2): 109-142. ; Powers e Xie, 2008POWERS, Daniel A.; XIE, Yu. (2008), Statistical methods for categorical data analysis . 2. ed., San Diego, Emerald Group Publishing. ). Tal modelagem utiliza a probabilidade acumulada de Y , que recai na faixa de interesse k , ou em faixas inferiores.

Devido à correlação existente entre raça e classe social, também consideramos modelagens logísticas ordinais de dados balanceados por classe social e pelas demais covariáveis. Para isso, empregamos o método de pareamento difuso ( coarsened exact matching , CEM), sugerido por Iacus, King e Porro (2012)IACUS, Stefano M.; KING, Gary & PORRO, Giuseppe. (2012), “Causal inference without balance checking: coarsened exact matching”. Political Analysis , 20 (1): 1-24. , para a condução de inferência causal. Entretanto, os resultados obtidos a partir desta estratégia foram análogos aos aqui apresentados, que não utilizam estratégias de balanceamento. Já os resultados utilizando dados pareados podem ser requeridos aos autores.

A equação geral do modelo é representada por:

log i t P Y j k | x = ln P Y j k | x P Y j > k | x = α k - β X j (1)

No modelo ordinal de chances proporcionais, o vetor de coeficientes independe das k- ésimas categorias da variável resposta Y . Os k interceptos (ou pontos de corte) é que diferenciam as predições para cada uma das categorias de Y diante de um dado conjunto de valores de x para o indivíduo j. Pressupõe-se, portanto, que a relação entre as variáveis independentes do vetor X é a mesma em todas as categorias de Y , alterando-se apenas em função de variações em pontos de corte . Nossa estratégia analítica consiste em, a partir desses modelos, estimar e comparar, para cada uma das fronteiras utilizadas, as probabilidades de pessoas brancas, pardas e pretas figurarem em cada um dos níveis (“baixa, média ou alta”) das variáveis respostas. Se as probabilidades preditas de brancas e pardas forem estatisticamente iguais em uma dada categoria, por exemplo, haverá evidência para corroborar a semelhança entre essas duas raças em uma dada fronteira. Se elas forem diferentes, a igualdade ou afinidade atitudinal entre raças será refutada. Pressupomos que opiniões convergentes definem grupos similares. Essa conjectura permeia, portanto, nossa análise. Os coeficientes estimados para cada um dos modelos especificados encontram-se em anexo.

Resultados

A fim de tornar a interpretação dos resultados intuitiva e acessível, optamos por apresentar as probabilidades preditas para “tipos ideais” específicos, bem como para cada categoria ordinal das variáveis dependentes. Por meio desse exercício contrafactual, estimamos probabilidades que, além de comparáveis entre si, representam a influência líquida da raça autodeclarada, já que todos os demais atributos considerados nos modelos são fixados em valores específicos. Além disso, para dar uma ideia da incerteza amostral atrelada às estimativas, tais probabilidades são apresentadas com seus respectivos erros-padrão, dando assim maior realismo ao conteúdo estatístico apresentado ( King, Tomz e Wittenberg, 2000KING, Gary; TOMZ, Michael & WITTENBERG, Jason. (2000), “Making the most of statistical analyses: improving interpretation and presentation”. American Journal of Political Science , 44 (2): 347-361. ). Para exemplificar o procedimento, o quadro abaixo apresenta as probabilidades de mulheres brancas, pardas e pretas, da região Sudeste, com idade média, localizarem-se nas classes sociais baixa, média e alta.

A terceira coluna da Tabela 3 apresenta as probabilidades preditas de cada grupo racial, ceteris paribus , estar em determinada classe social. As letras apresentadas na quinta coluna denotam as probabilidades que não são estatisticamente diferentes entre si. As mulheres pretas de classe baixa, e as pretas e pardas de classe média apresentam a letra C na última coluna da tabela, indicando que a probabilidade média predita para as pretas de classe baixa não é estatisticamente distinta daquelas probabilidades preditas para as mulheres pardas e pretas de classe média, ao nível de 5% de significância. As mulheres brancas de classe baixa e alta não compartilham letras com os pardos e nem com os pretos destas mesmas classes, o que indica que a probabilidade média predita para estas mulheres brancas seja significativamente diferente daquelas preditas para os outros dois grupos ao nível de 5%.

Tabela 3
Comparação Estatística de Probabilidades Raciais Preditas Dentro da Fronteira Social

A Tabela 3 mostra, ainda, que pessoas autodeclaradas brancas possuem menor probabilidade (30%) de compor a classe baixa, do que pardas e pretas (37% e 39%, respectivamente). A última coluna da tabela indica probabilidades que são estatisticamente iguais. Em cada uma das classes sociais, pardas e pretas, por exemplo, possuem probabilidades estatisticamente iguais, já que compartilham a mesma letra. Isso indica que, tal como apontado por Silva (1978SILVA, Nelson do Valle. (1978), Black-white income differentials in Brazil . Ann Arbor, University of Michigan Press. , 1979SILVA, Nelson do Valle. (1979), “As duas faces da mobilidade”. Dados , 21: 49-67. , 1980SILVA, Nelson do Valle. (1980), “O preço da cor: diferenciais raciais na distribuição de renda no Brasil”. Pesquisa e planejamento econômico , 10 (1): 21-44. ) e Souza, Ribeiro e Carvalhaes (2010, p. 87), pretos e pardos podem ser agrupados e tratados como membros de uma mesma categoria racial, quando o critério de referência se pauta na renda, na escolaridade e na posse de bens de consumo. Ainda que as proporções raciais entre estratos sociais sejam distintas, não há diferenças significativas entre pardos e pretos dentro de cada estrato.

Sintetizando as diferenças raciais, dentro e entre cada uma das fronteiras adotadas, a Figura 1 mostra quão similares são as probabilidades raciais preditas entre pardos, brancos ou pretos, para cada uma das categorias ordinais das variáveis dependentes.

Figura 1
Diferenças Interraciais das Probabilidades Intrafronteiras Sociais e Simbólicas

Diferenças de probabilidades próximas de zero indicam maior semelhança entre as raças, para uma dada categoria da variável dependente. No caso da fronteira social (figura do canto superior esquerdo), a evidência encontrada sugere que pardos e pretos são estatisticamente iguais em todas as classes sociais consideradas, já que os intervalos de confiança para a diferença entre probabilidades incluem o zero em todas as comparações realizadas. Por outro lado, brancos e pardos não dividem as mesmas fronteiras sociais. A probabilidade de os brancos pertencerem à classe social média ou alta, por exemplo, é cerca de cinco pontos percentuais maior do que a dos pardos. Já a probabilidade dos pardos pertencerem à classe social baixa é aproximadamente sete pontos percentuais maior do que a dos brancos.

Os demais gráficos mostram que: brancos e pardos possuem o mesmo grau de con(dis)cordância com frases racistas (fronteira simbólica 1); brancos, pretos e pardos são igualmente favoráveis à mistura racial (fronteira simbólica 2) e às cotas raciais (fronteira simbólica 3), ainda que, neste último caso, a probabilidade de “alto” apoio às cotas dos pardos seja ligeiramente maior do que a dos brancos. Este último resultado, referente ao apoio às cotas, alinha-se àquele reportado por Bailey, Fialho e Peria (2015BAILEY, Stanley R.; FIALHO, Fabrício & PERIA, Michelle. (2015), “Support for race-targeted affirmative action in Brazil”. Ethnicities , 0 (0): 1-34. , p. 18), a partir da análise dos dados do America’s Barometer , de 2010. Em termos de coesão de fronteiras, conclui-se, portanto, que os pardos são socialmente iguais aos pretos, mas simbolicamente iguais aos brancos ou iguais a ambos, dependendo do assunto em questão.

A Figura 2 ilustra os impactos da raça e da classe nas atitudes dos brasileiros, no que se refere ao apoio às cotas raciais. Os efeitos da classe são mais fortes do que os da raça, e o mesmo se verifica em relação à mistura racial e à concordância com frases racistas. Os coeficientes de raça, como esperado da análise acima, sequer apresentam significância estatística (ver modelos completos, em anexo).

Figura 2
Probabilidades de Concordância com as Cotas Raciais, por Raça e Classe Social

A Figura 2 evidencia que, para uma mesma classe social, não há diferenças entre os grupos raciais, no que se refere ao apoio às cotas. Brancos, pardos e pretos ricos, por exemplo, possuem probabilidades estatisticamente iguais de apoiar as cotas raciais. Entretanto, estas probabilidades variam consideravelmente, em função da classe social a que os grupos raciais pertencem. As pessoas ricas, por exemplo, independentemente da raça, possuem maior probabilidade (cerca de 45%) de dar baixo apoio às cotas raciais, do que aquelas consideradas pobres (cerca de 15%). Já a probabilidade de alto apoio às cotas é muito maior entre os pobres (cerca de 60%), do que entre os ricos (cerca de 20%). Esses resultados mostram que o efeito da classe social sobre as atitudes prevalece ao da raça, e que tal efeito é percebido em todas as raças de forma similar, refutando, assim, a presença de um efeito diferencial de classe sobre a atitude dos pardos. A falta de significância estatística dos termos interativos entre raça e classe, inseridos nos modelos completos, também corrobora a mesma conclusão, que é igualmente válida para as demais atitudes ou fronteiras simbólicas consideradas.8 8 As razões de chance das regressões categóricas ordinais, assim como os gráficos derivados por raça e classe para as demais fronteiras, simbólicas e sociais, encontram-se em anexo.

Entretanto, nossos resultados se baseiam em associações contemporâneas que, devido à falta de ordem temporal dos eventos, são incapazes de desembaraçar a interrelação endógena entre raça e classe e isolar o impacto causal do status socioeconômico sobre a raça, juntando-se, assim, a outras evidências transversais sugestivas e sujeitas a argumentos de causalidade reversa ( Bailey, Fialho, Peria, 2015BAILEY, Stanley R.; FIALHO, Fabrício & PERIA, Michelle. (2015), “Support for race-targeted affirmative action in Brazil”. Ethnicities , 0 (0): 1-34. ; Marteleto, 2012MARTELETO, Leticia J. (2012). “Educational inequality by race in Brazil, 1982-2007: structural changes and shifts in racial classification” . Demography , 49 (1): 337–58. ; Schwartzman, 2007; Telles e Paschel, 2014TELLES, Edward; PASCHEL, Tianna. (2014), “Who is black, white, or mixed race? How skin color, status, and nation shape racial classification in Latin America”. American Journal of Sociology , 120 (3): 864-907. ).

Discussão

Os primeiros escritos das Ciências Sociais brasileiras sobre as relações raciais no país, consoante o paradigma vigente da democracia racial, preconizaram a diferenciação social no país como tributária da estrutura social, e não necessariamente da identificação racial (Buarque de Holanda, 1995HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1995), Raízes do Brasil . 26 ed., São Paulo, Companhia das Letras. ; Freyre, 1973FREYRE, Gilberto. (1973), Casa-Grande e Senzala . Rio de Janeiro, José Olympio. ; Harris, 1964HARRIS, Marvin. (1964), Patterns of race in the Americas . Nova York, Walker and Company. ; Pierson, 1945PIERSON, Donald. (1945), Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial . São Paulo, Companhia Editora Nacional. ; Wagley, 1952WAGLEY, Charles (org.). (1952), Race and class in rural Brazil . Paris, Unesco. ). Para os autores desse período, o campo da distinção na estrutura social seria estamental, e não necessariamente racial. As interpretações da época concluíram que a dissolução das fronteiras raciais no Brasil – isto é, das demarcações fenotípicas, culturais e sociais – ocorreria devido à mestiçagem, que atuaria como uma mitigadora dessas diferenças.

Por outro lado, interpretações posteriores reconheceram que o sistema de estratificação social poderia estar atrelado à cor da pele, mas também sugeriram que a influência da raça desapareceria com o tempo, não só através da miscigenação, mas também como uma decorrência natural da modernização e da industrialização. Nesse cenário, uma sociedade de classes se imporia gradativamente sobre a questão racial, como descreveram Cardoso (2000CARDOSO, Fernando Henrique. (2000), Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas . Florianópolis, Insular. , 2003CARDOSO, Fernando Henrique. (2003), Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. ), Cardoso e Ianni (1960)CARDOSO, Fernando Henrique & IANNI, Octavio. (1960), Cor e mobilidade social em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil meridional . São Paulo, Companhia Editora Nacional. e Ianni (1962IANNI, Octavio. (1962), As metamorfoses do escravo . São Paulo, Difusão Europeia do Livro. , 1987IANNI, Octavio. (1987), Raças e classes sociais no Brasil . 3 ed., São Paulo, Brasiliense. ). Segundo essas interpretações, hierarquias sociais seriam baseadas explicitamente na classe, e implicitamente na raça. Fronteiras sociais seriam mais importantes do que categorias raciais, na definição de desigualdades. De acordo com essas referências, a consequente fluidez das fronteiras raciais e da própria groupness racial no país seria um produto da primazia da classe sobre a raça, como variável de classificação social.

Somente ao final dos anos de 1970, com o advento dos estudos quantitativos aplicados às ciências sociais no Brasil, a questão racial ganha saliência no debate sobre desigualdades sociais. Estudos, como o de Hasenbalg (2005)HASENBALG, Carlos. (2005), Discriminação e desigualdades raciais no Brasil . 2 ed., Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Editora UFMG/Iuperj. , Hasenbalg e Silva (1988)HASENBALG, Carlos & SILVA, Nelson do Valle (orgs.). (1988), Estrutura social, mobilidade e raça . Rio de Janeiro, Iuperj/Vértice. e Silva (1978SILVA, Nelson do Valle. (1978), Black-white income differentials in Brazil . Ann Arbor, University of Michigan Press. , 1979SILVA, Nelson do Valle. (1979), “As duas faces da mobilidade”. Dados , 21: 49-67. , 1980SILVA, Nelson do Valle. (1980), “O preço da cor: diferenciais raciais na distribuição de renda no Brasil”. Pesquisa e planejamento econômico , 10 (1): 21-44. ), constataram a relevância da discriminação racial na fabricação de fronteiras sociais pungentes, como as desigualdades raciais de oportunidades e recursos, para além de seus efeitos na produção de fronteiras simbólicas (preconceito racial, intolerância, entre outros).

Nossos resultados mostram que o padrão de fluidez das atitudes dos pardos converge com o das demais categorias raciais, e que o fator definidor das atitudes raciais dos brasileiros não é a raça, e sim a classe. Os estudos de Nogueira (1942) e Bicudo (1945), pioneiros na captação de atitudes e percepções sobre as atitudes raciais no Brasil, já haviam constatado que os preconceitos de cor e de classe ocupariam lugares próprios na sociedade brasileira dos anos de 1940 – o que, de certa forma, sugeriria que estas duas fronteiras, a racial e a social, seriam independentes. Seus estudos concluíram, ainda, que o preconceito de cor – que mais tarde seria chamado, por Nogueira (1998), de preconceito de marca – independeria do preconceito de classe, já que atingia também pessoas das chamadas “classes superiores”. A ascensão social dos negros não implicava em maior assimilação pela classe média branca, evidenciando, assim, o viés da cor em nossa sociedade (Bicudo, 1945). É importante frisar, portanto, que nossos resultados não sugerem que a cor da pele seja uma variável irrelevante, mas demonstram que as opiniões e atitudes referentes às dimensões captadas variam mais de acordo com a classe, do que segundo a cor da pele autodeclarada das pessoas entrevistadas (note-se, por exemplo, que a concordância com frases racistas, ilustrada na Figura 4 Figura 5 Probabilidades Preditas de Desejabilidade da Mistura Racial, por Raça e Classe Social Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008). do anexo, varia mais entre, do que intra classes sociais). Além disso, chama atenção a fragilidade da subjetividade de grupo (e não só dos pardos) – o que caracteriza bem as tênues fronteiras simbólicas entre os grupos raciais no Brasil, fenômeno que já tem recebido atenção da literatura ( Bailey, 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ; Lamont et al., 2016; Moraes Silva e Leão, 2012MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. ; Moraes Silva e Reis, 2015MORAES SILVA, Graziella & REIS, Elisa P. (2015), “Interpretações e reações à estigmatização étnico-racial: narrativas dos negros brasileiros em perspectiva comparada”. Interseções: Revista de estudos interdisciplinares , 17 (2): 327-349. ).

Isso não significa que não exista uma dimensão propriamente racial nas atitudes dos pardos, embora ela seja – em nossa linha de interpretação – mais vinculada à lógica dos interesses, do que à da afirmação de identidade. Tanto as atitudes que retratam preconceito racial, como aquelas que se referem a políticas de cotas são ambas formadas em contextos sociais bem específicos. O racismo é um tipo de fenômeno que estimula o pardo a se diferenciar dos pretos e a se livrar da “sorte” comum. Ou seja, o pardo não tem nenhum incentivo para se sentir “negro”, quando o que está em questão são os estereótipos e ofensas aos pretos. Nesse aspecto, pela sua condição de híbrido, os mulatos se integrariam mais facilmente aos brancos. O contrário é esperado quando seus interesses convergem com o dos pretos, como no caso da política de cotas. A flutuação atitudinal dos pardos parece assim advir, tal como evidenciado por Schwarztman (2009), não de uma motivação única e coesa – como a afirmação de uma identidade ou o cálculo racional para conseguir benefícios9 9 Há evidência sugerindo que a raça percebida possa ser manipulada para tirar vantagem de situações econômicas e sociais. Francis e Tannuri-Pianto (2012 , 2013 ) e Francis-Tan e Tannuri-Pianto (2015) , por exemplo, mostram que a adoção de políticas de ação afirmativa na Universidade de Brasília provocou um aumento do número de pessoas que se reportaram como negras. Processo similar também ocorreu nos Estados Unidos ( Antman e Duncan, 2015 ) e na Índia ( Cassan, 2015 ), em resposta a políticas de distribuição de terras específicas por casta. –, mas sim de múltiplos “projetos raciais” e ideologias, que são adotados e combinados seletivamente para dar sentido a situações específicas. Contextos distintos poderiam implicar, assim, mesmo na vida cotidiana, em variações da rotulação racial, de acordo com a natureza e o propósito da interação.

Os aspectos cognitivos da variabilidade racial, quando apresentados como mecanismos explicativos da variabilidade racial, são denominados de ‘esquemas raciais’ ( racial schemas ) ( Roth, 2012ROTH, Wendy D. (2012), Race migrations: latinos and the cultural transformation of race . Stanford, Califórnia, Stanford University Press. ), que incluem ‘associações estereotípicas’ ( Frederickson, 2002FREDERICKSON, George M. (2002), Racism: a short history . Princeton, N.J., Princeton University Press. , Saperstein e Penner, 2012SAPERSTEIN, Aliya & PENNER, Andrew M. (2012), “Racial fluidity and inequality in the United States.” American Journal of Sociology , 118 (3): 676-627. ) e a noção de ‘elasticidade de cor’ ( Telles e Paschel, 2014TELLES, Edward; PASCHEL, Tianna. (2014), “Who is black, white, or mixed race? How skin color, status, and nation shape racial classification in Latin America”. American Journal of Sociology , 120 (3): 864-907. ), as quais sugerem que, em diferentes contextos, a cor da pele se traduz, de diferentes formas, em categorias raciais. Quando se permite que as pessoas entrevistadas reflitam sobre suas escolhas raciais categóricas, por meio de entrevistas em profundidade, suas opiniões conflitantes tornam-se evidentes. E quando são motivadas a refletir sobre suas autopercepções raciais, resgatando, assim, suas trajetórias e memórias de eventos pertinentes, para em seguida traduzi-los em crenças que condicionam suas respostas, os paradoxos raciais marcados por opiniões conflitantes emergem. Uma das entrevistadas por Moraes Silva e Leão (2012)MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. , por exemplo, quando perguntada sobre o significado de ser parda, respondeu:

Uma mistura de morena com branca. Entendeu? Porque a cor, ela não é nem branca nem morena. Ela fica na meia estação. Por quê? Porque a parda te facilita. Você pode ficar branca, como eu ‘to agora, e quando você for na praia pegar um bronze você fica moreninha. Essa é a facilidade da parda. [...] Mas eu graças a Deus eu nunca tive problema com relação à discriminação, desrespeito. Nada disso. [digitadora, 43 anos] ( Moraes Silva e Leão, 2012MORAES SILVA, Graziella & LEÃO, Luciana T. de Souza. (2012), “O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 27 (80): 117-133. , p. 129).

Este depoimento sugere, assim, ser plenamente possível que as pessoas, sobretudo pardas, manifestem suas identidades raciais, em função das possibilidades e oportunidades de cada contexto de socialização. Isso significa que as fronteiras simbólicas não reproduzem, necessariamente, as fronteiras sociais ( Moraes Silva e Reis, 2015MORAES SILVA, Graziella & REIS, Elisa P. (2015), “Interpretações e reações à estigmatização étnico-racial: narrativas dos negros brasileiros em perspectiva comparada”. Interseções: Revista de estudos interdisciplinares , 17 (2): 327-349. ). Embora os pardos se situem próximos aos pretos, no que diz respeito às fronteiras sociais, eles redesenham, eventualmente, essas fronteiras no território simbólico e podem até se alinhar com os brancos, como no caso do preconceito racial. Ainda que, em nosso estudo, essa redefinição de fronteira no campo simbólico só tenha se revelado no caso do racismo, é possível que ela esteja captando um fenômeno mais amplo. Como observou Carlos Hasenbalg, em entrevista dada a Antônio Sérgio Guimarães, em 2006:

Cabe agregar que quando estudamos essas desigualdades, opondo brancos/não-brancos (pretos e pardos), nos referimos estritamente a processos de estratificação socioeconômica. Quando examinamos outras dimensões da vida social envolvendo a sociabilidade dos indivíduos (por exemplo, o casamento e a amizade), esse padrão não se verifica, os pardos se diferenciando dos pretos e se aproximando mais dos brancos (Hasenbalg apud Guimarães, 2006GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. (2006), “Entrevista com Carlos Hasenbalg”. Tempo Social , 18 (2): 259-268. , p. 263).

Temos também de considerar a natureza das variáveis que medem atitudes raciais, pois sabemos que princípios abstratos, tais como a ideia da mistura das raças, estimulam atitudes positivas (Sniderman, Brody e Tetlock, 1991). No caso brasileiro, isso é ainda mais reforçado, devido à ideologia da democracia racial que, mesmo não se concretizando plenamente no cotidiano, atua como princípio norteador do comportamento político ( Bailey, 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ).

Atitudes que se referem a princípios abstratos – como a mistura das raças –, ou a políticas que ainda não geraram consequências mais incisivas na (re)distribuição de recursos escassos – como a política de cotas –, tendem a endossar a tese de que a ausência de groupness racial é uma marca da sociedade brasileira. O que acentua ainda mais a complexidade da análise é a propensão a respostas socialmente desejáveis a perguntas que visam medir atitudes raciais – o que, naturalmente, aproxima os pontos de vista dos diferentes grupos raciais.

Ainda assim, em um contexto de forte identidade racial, esses fatores não seriam tão decisivos, pois prevaleceria a afirmação dos valores, crenças e visão do grupo racial. Esse é o caso dos Estados Unidos, onde as dramáticas fronteiras raciais não deixam espaço para ambiguidade. Nesse mundo sem regiões cinzentas, “pretos e brancos parecem ver o mundo de diferentes perspectivas; enquanto os brancos culpam os pretos por suas próprias desvantagens, os pretos culpam a discriminação” ( Bailey, 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. , p. 311, tradução nossa).

Considerações finais

Os resultados desse trabalho sinalizam que as atitudes dos pardos se alinham com a dos brancos, no que se refere ao racismo e ao princípio da mistura racial. Os pardos também se alinham aos pretos, em suas fronteiras sociais e nas suas opiniões sobre políticas de ação afirmativa. No entanto, a classe social da qual fazem parte aparece como um fator mais importante para induzir ao alinhamento de preferências, do que a cor autodeclarada. Isso é constatado, ao notarmos que a opinião sobre o apoio às cotas varia mais por classe, do que por cor da pele. Para uma mesma classe social, as opiniões de brancos, pardos e pretos sobre as cotas raciais são muito parecidas, alinhando-se, assim, aos resultados encontrados anteriormente, a partir de outros bancos de dados nacionalmente representativos ( Bailey, 2004BAILEY, Stanley R. (2004), “Group dominance and the myth of racial democracy: antiracist attitudes in Brazil”. American Sociological Review , 69 (5): 728-747. , 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ; Bailey, Fialho e Peria, 2015BAILEY, Stanley R.; FIALHO, Fabrício & PERIA, Michelle. (2015), “Support for race-targeted affirmative action in Brazil”. Ethnicities , 0 (0): 1-34. ).

Uma vez que tanto a maioria dos brancos, quanto a dos pardos e pretos apoiam as cotas raciais, concluímos, ainda, que não há evidência para a ideologia sugerida por Bonilla-Silva (2013)BONILLA-SILVA, Eduardo. (2013), Racism without Racists . Lanham, MD, Rowman & Littlefield. , de que o Brasil seria ‘daltônico ao racismo’ ( color-blind racism ). Se este fosse o caso, o percentual de apoio dos brancos às cotas raciais seria bem menor do que aquele dos pretos, tal como constatado pelo autor, no caso americano. Como explicação alternativa, sugerimos, assim como Bailey, Fialho e Peria (2015BAILEY, Stanley R.; FIALHO, Fabrício & PERIA, Michelle. (2015), “Support for race-targeted affirmative action in Brazil”. Ethnicities , 0 (0): 1-34. , p. 26), que o apoio racial consensual às cotas seja um reflexo da crescente conscientização em relação ao racismo. Uma vez que a maioria reconhece a presença de desvantagens estruturais raciais, ela passa igualmente a apoiar as ações afirmativas.

Nosso trabalho aponta a fragilidade da subjetividade de grupo racial no Brasil. Isso porque, além da tendência à convergência atitudinal entre os grupos raciais, a classe é a principal preditora das atitudes raciais dos brasileiros, aqui consideradas. Nossos resultados se contrapõem ao “senso comum popular” de inexistência de clivagens ideológicas, justamente por mostrar que tais clivagens acontecem entre os grupos raciais, em duas das três fronteiras simbólicas analisadas: pardos e pretos possuem níveis distintos de concordância com frases de cunho racista, e pardos são marginalmente mais propensos a dar alto apoio às cotas raciais, do que brancos (vide Figura 1 ). Esses resultados são sociologicamente relevantes e fornecem, também, uma perspectiva crítico-acadêmica, ao mapear e quantificar a permeabilidade de certas fronteiras simbólicas, vulgarmente entendidas como racialmente sobrepostas. Das 18 possibilidades consideradas (6 dimensões para cada uma das três fronteiras simbólicas em questão), há forte sobreposição em 12 delas. Para as outras seis (pardos versus pretos, na fronteira simbólica 1, e brancos versus pardos, na fronteira simbólica 3), tal sobreposição não é evidente.

Contudo, os resultados apresentados devem ser interpretados com cautela, não apenas devido à natureza das atitudes examinadas e ao contexto em que se inserem, mas também em função de os pardos apresentarem atitudes tão racistas quanto os brancos – o que deixa aberta a possibilidade de que novos estudos revelem padrões atitudinais diferentes dos que encontramos aqui.

É claro, também, que o tipo de análise que apresentamos aqui não cobre a dimensão propriamente comportamental. Não chega a ser surpresa o fato de os pretos, no Brasil, relatarem sofrer discriminação racial (36%) com maior frequência do que os pardos (18%) ( Bailey, 2009BAILEY, Stanley R. (2009), Legacies of race: identities, attitudes and politics in Brazil , Stanford, Stanford University Press. ; Moraes Silva e Reis, 2015MORAES SILVA, Graziella & REIS, Elisa P. (2015), “Interpretações e reações à estigmatização étnico-racial: narrativas dos negros brasileiros em perspectiva comparada”. Interseções: Revista de estudos interdisciplinares , 17 (2): 327-349. ). Além disso, “[p]esquisas de opinião e entrevistas demonstram que os pardos muitas vezes não são vistos como um grupo discriminado” ( Almeida, Schroeder e Cheibub, 2002ALMEIDA, Alberto Carlos; SCHROEDER, Andréia & CHEIBUB, Zairo (orgs.). (2002), PESB: Pesquisa social brasileira , São Paulo, Consórcio de Informações Sociais. ; Schwartzman, 2009SCHWARTZMAN, Luiza Farah. (2009), “Seeing like citizens: unofficial understandings of official racial categories in a Brazilian university”. Journal of Latin American Studies , 41 (2): 221-250. ), ou que “apresentam índices de percepção da discriminação significativamente mais baixos do que os indivíduos que se autoclassificam como pretos” ( Datafolha, 1995DATAFOLHA, Instituto de Pesquisas. (1995), “Racismo Cordial”. São Paulo, Consórcio de Informações Sociais. , 2008; DataUFF, 2002DATAUFF. (2002), PESB – Pesquisa Social Brasileira . Niterói, Datauff. ; Fundação Perseu Abramo, 2003FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. (2003), Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil , São Paulo, Fundação Perseu Abramo. ; Rennó et al. , 2011) ( apudDaflon et al., 2017DAFLON, Verônica Toste; CARVALHAES, Flavio & FERES JÚNIOR, João. (2017), “Sentindo na pele: percepções da discriminação cotidiana de pretos e pardos no Brasil”. Dados: Revista de Ciências Sociais , 60 (2): 293-330. , pp. 293-294). Entretanto, sem dados longitudinais, é impossível dizer se a percepção da discriminação induz ao “empardecimento”, ou se os pardos, uma vez assumidos como pertencentes a fronteiras raciais estáveis, vivenciam, de fato, processos discriminatórios com menor intensidade.

Por fim, em relação à política de cotas raciais, é possível que as recentes políticas públicas direcionadas a grupos raciais tenham um efeito, a médio prazo, sobre a constituição de grupos raciais mais coesos no Brasil, aproximando pardos e pretos, e isolando os brancos. É também possível que, ao contrário, as linhas de cor sejam redesenhadas e os pardos sejam excluídos da “negritude”.10 10 Agradecemos a um dos revisores do artigo por levantar esta alternativa. Porém, essas análises só poderão ser feitas no futuro, a partir da disponibilidade de séries temporais mais extensas.

A variável “Critério Brasil”, disponível no banco de dados da Pesquisa Racismo Cordial 2008 do Datafolha, baseia-se na questão P.69 do questionário, e tem média 18,59 com desvio-padrão igual a 6,85.

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  • WAGLEY, Charles (org.). (1952), Race and class in rural Brazil . Paris, Unesco.

Notas

  • 1
  • 2
    Entre 1840 e 1860, a categoria “mulatto” constou no censo americano, mas o termo não foi definido aos entrevistadores. Nas duas décadas seguintes, definiu-se oficialmente mulattoes como “todas as pessoas que possuíssem algum traço perceptível de sangue africano”. Em 1890, o censo instruiu os enumeradores a registrarem a proporção exata de “sangue africano”, confiando, mais uma vez, apenas na visibilidade. Em 1900, a instrução foi para que pure Negroes fossem contados separadamente dos mulatos, definidos como “pessoas com algum resquício de sangue preto”. Em 1920, retirou-se a categoria mulatto do censo, passando a adotar-se, até os dias de hoje, a opção “preto” ( black ) para fazer referência a qualquer pessoa com alguma ancestralidade preta/ negra ( black ) ( Davis, 2001DAVIS, F. James. (2001), Who is black? One nation’s definition , Tenth anniversary edition, Pensilvânia, The Pennsylvania State University Press. , pp. 11-12). Esse procedimento ficou conhecido como one-drop rule. Ser classificado como “mulato”, entre 1870 e 1920, relacionava-se, portanto, ao modo como as pessoas eram percebidas pelo enumerador, e não em função de uma medida direta da sua suposta ancestralidade, e nem de como os entrevistados se autoidentificavam. Nesse realinhamento das relações raciais, os brancos perderam a sua aliança com os mulatos livres e, também, as vantagens de haver um grupo de amortecimento ( buffer group ) entre eles e os pretos não misturados. Nas palavras de Davis (2001DAVIS, F. James. (2001), Who is black? One nation’s definition , Tenth anniversary edition, Pensilvânia, The Pennsylvania State University Press. , p. 42), tal “realinhamento iniciou uma mudança no senso de identidade do mulato, especialmente dos mais claros, que começaram a se ver como negros, ao invés de como um grupo marginalizado de ‘quase brancos’” (tradução nossa). Essa descrição ilustra o caráter histórico, mutável e social de raça nos Estados Unidos, mesmo que, hoje, cerca um terço das pessoas do país ainda a considere como um atributo biológico ( Rockett, 2018ROCKETT, Darcel. (2018), “Skin color vs. identity: how Americans view race ‘a huge surprise’”. Chicago Tribune , 17 de setembro. Disponível em: <https://www.chicagotribune.com/lifestyles/sc-fam-race-genetics-study-0925-story.html>. Consultado em 24/1/2019.
    https://www.chicagotribune.com/lifestyle...
    ).
  • 3
    Consideraremos 2644 casos válidos na análise estatística.
  • 4
    Optamos por utilizar uma combinação de variáveis através da média, ao invés de análise fatorial ou de componentes principais, por duas razões. Primeiro, porque estas técnicas de redução de variabilidade não são, em geral, indicadas para variáveis categóricas, como é o nosso caso. Análises fatoriais assumem que as variáveis são contínuas e normalmente distribuídas. Em segundo lugar, optamos por empregar a média, porque mesmo quando utilizamos técnicas adequadas para a redução de variabilidade de variáveis categóricas ( polychoric estimates ), constatamos alta correlação entre os fatores gerados e a medida construída a partir da média aritmética. O coeficiente de determinação (R2) entre nossas variáveis e o seu primeiro fator dominante são: 0,79 na fronteira simbólica 1; 0,77 na fronteira simbólica 2; e 0,92 na fronteira simbólica 3. Estes resultados indicam que, tecnicamente, optar pela média ou por polychoric estimates nos conduziria a resultados semelhantes.
  • 5
    O Critério Brasil atribui pontos específicos à presença dos citados itens no domicílio, os quais, somados, indicam uma classe de pertença segundo os cortes abaixo:
    Classe Pontos A1 42-46 A2 35-41 B1 29-34 B2 23-28 C1 18-22 C2 14-17 D 8-13 E 0-7
  • 6
    As três frases que compõem a fronteira simbólica 1 foram teoricamente selecionadas por: (a) serem essencialmente e inequivocamente racistas; mas (b), ao mesmo tempo, fazerem parte do imaginário simbólico, ao representarem infames ditos populares. Assumimos que estas duas características confeririam maior variabilidade à escala construída, mesmo tratando-se de um comportamento socialmente indesejável. E, de fato, o diferencial entre as probabilidades preditas na Figura 4 Figura 5 Probabilidades Preditas de Desejabilidade da Mistura Racial, por Raça e Classe Social Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008). mostra que tal variabilidade foi alcançada, tanto por raça quanto por classe.
  • 7
    As perguntas utilizadas para captar a concordância com frases de cunho racista são claramente incapazes de contornar o viés do politicamente indesejável e “aferir racismo”. Somente as pessoas declaradamente racistas concordariam com as frases apresentadas aos entrevistados. Medir a discriminação, no entanto, não é o propósito deste artigo. Nosso interesse está em medir a diferença de opiniões entre brancos e pardos, e entre pardos e pretos, com relação às frases apresentadas; por isso, a qualidade das perguntas é menos importante do que a semelhança entre as concordâncias raciais encontradas. Todos os grupos discordam fortemente das frases apresentadas, mas, em média, a proporção de pardos que discorda é mais parecida com a de brancos, do que com a proporção de pretos. Esse é o resultado-chave da análise referente à fronteira simbólica 1.
  • 8
    As razões de chance das regressões categóricas ordinais, assim como os gráficos derivados por raça e classe para as demais fronteiras, simbólicas e sociais, encontram-se em anexo.
  • 9
    Há evidência sugerindo que a raça percebida possa ser manipulada para tirar vantagem de situações econômicas e sociais. Francis e Tannuri-Pianto (2012FRANCIS, Andrew M. & TANNURI-PIANTO, Maria Eduarda (2012), “Using Brazil’s racial continuum to examine the short-term effects of affirmative action in higher Education”. Journal of Human Resources , 47 (3): 754-784. , 2013FRANCIS, A. M. & TANNURI-PIANTO, M. (2013) “Endogenous race in Brazil: affirmative action and the construction of racial identity among young adults”. Economic Development and Cultural Change 61 (4): 731-753. ) e Francis-Tan e Tannuri-Pianto (2015)FRANCIS-TAN, Andrew & TANNURI-PIANTO, Maria. (2015), “Inside the black box: affirmative action and the social construction of race in Brazil”. Ethnic and Racial Studies , 38 (15): 2771-2790. , por exemplo, mostram que a adoção de políticas de ação afirmativa na Universidade de Brasília provocou um aumento do número de pessoas que se reportaram como negras. Processo similar também ocorreu nos Estados Unidos ( Antman e Duncan, 2015ANTMAN, Francisca & DUNCAN, Brian. (2015), “Incentives to identify: racial identity in the age of affirmative action”. The Review of Economics and Statistics , 97 (3): 710–713. ) e na Índia ( Cassan, 2015CASSAN, Guilhem. (2015), “Identity-based policies and identity manipulation: evidence from colonial Punjab.” American Economic Journal: Economic Policy 7 (4): 103–31. ), em resposta a políticas de distribuição de terras específicas por casta.
  • 10
    Agradecemos a um dos revisores do artigo por levantar esta alternativa.

Tabela 4 Regressão Ordinal para a Chance de Pertencer a Classe Social Baixa, Média ou Alta

Covariáveis
Cor autodeclarada(ref.Pardos):
1 se branco 1,3824***
1 se preto 0,9106
1 se homem 1,3780***
Idade 0,9755***
Região
Sul 1,0158
Nordeste 0,4593***
Norte/ Centro-oeste 0,962
Ponto de corte 1 (classe baixa) 0,2304***
Ponto de corte 2 (classe média) 2,5805***
N 2644
Pseudo-R2 0,042
Log-likelihood -2500
AIC 5100
* p<0,05; ** p<0,01; *** p<0,001
Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Tabela 5 Regressão Ordinal para a Concordância com Frases Racistas

Covariáveis modelo1 modelo2 modelo3
Cor autodeclarada (ref. Pardos):
1 se branco 0,9941 0,9202 0,7757
1 se preto 1,4696** 1,5281** 1,3936
1 se homem 0,8912 0,8214* 0,8262*
Idade 0,9726*** 0,9773*** 0,9773***
Região
Sul 1,4349** 1,4367** 1,4329**
Nordeste 0,6774*** 0,8046* 0,8068*
Norte/ Centro-oeste 0,9844 0,9891 0,9939
Classe social (ref. Baixa):
Média 1,9596*** 1,7366***
Alta 4,6487*** 3,5190***
Interações:
Brancos de classe média 1,2877
Brancos de classe alta 1,7421
Pretos de classe média 1,1873
Pretos de classe alta 1,2026
Ponto de corte 1 (classe baixa) 0,0164*** 0,0304*** 0,0282***
Ponto de corte 2 (classe média) 0,1548*** 0,3058*** 0,2845***
N 2644 2644 2644
Pseudo-R2 0,038 0,068 0,069
Log-likelihood -2000 -1900 -1900
AIC 4000 3800 3900
* p<0,05; ** p<0,01; *** p<0,001
Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Tabela 6 Regressão Ordinal para a Concordância sobre a Desejabilidade da Mistura Racial

Covariáveis modelo4 modelo5 modelo6
Cor autodeclarada(ref.Pardos):
1 se branco 1,0435 1,0923 1,2903
1 se preto 0,9908 0,9806 1,0776
1 se homem 1,0641 1,1076 1,1049
Idade 1,0067* 1,0037 1,0037
Região
Sul 0,8482 0,8498 0,8530
Nordeste 1,0723 0,9732 0,9692
Norte/ Centro-oeste 0,8346 0,8291 0,8236
Classe social (ref. Baixa):
Média 0,7120** 0,8318
Alta 0,4169*** 0,4396**
Interações:
Brancos de classe média 0,7289
Brancos de classe alta 0,8553
Pretos de classe média 0,8091
Pretos de classe alta 1,0581
Ponto de corte 1 (classe baixa) 5,0573*** 3,4676*** 3,7413***
Ponto de corte 2 (classe média) 118,6752*** 82,4334*** 89,0555***
N 2644 2644 2644
Pseudo-R2 0,0033 0,0136 0,0144
Log-likelihood -1500 -1400 -1400
AIC 2900 2900 2900
* p<0,05; ** p<0,01; *** p<0,001
Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Tabela 7 Regressão Ordinal para a Concordância com as Cotas Raciais

Covariáveis modelo7 modelo8 modelo9
Cor autodeclarada (ref. Pardos):
1 se branco 0,8456* 0,9196 0,9038
1 se preto 1,0766 1,0713 1,2278
1 se homem 0,8659* 0,9258 0,9254
Idade 1,0061** 1,0010 1,0010
Região (ref. Sudeste):
Sul 1,1261 1,1527 1,1564
Nordeste 1,5588*** 1,3368** 1,3346**
Norte/ Centro-oeste 0,9137 0,9067 0,9071
Classe social (ref. Baixa):
Média 0,5421*** 0,5761***
Alta 0,2289*** 0,2037***
Interações:
Brancos de classe média 0,9622
Brancos de classe alta 1,2596
Pretos de classe média 0,7537
Pretos de classe alta 1,0429
Ponto de corte 1 (classe baixa) 0,3956*** 0,1893*** 0,1921***
Ponto de corte 2 (classe média) 1,4370** 0,7364* 0,7479
N 2644 2644 2644
Pseudo-R2 0,0086 0,0378 0,0383
Log-likelihood -2.800 -2.700 -2.700
AIC 5.600 5.400 5.400
* p<0,05; ** p<0,01; *** p<0,001
Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Figura 3 Probabilidades Preditas de Pertencimento a Classes Sociais por Raça

Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Figura 4 Probabilidades Preditas de Concordância com Frases Racistas, por Raça e Classe Social

Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Figura 5 Probabilidades Preditas de Desejabilidade da Mistura Racial, por Raça e Classe Social

Fonte: Elaboração própria, com base em Datafolha (2008).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2018
  • Aceito
    30 Abr 2019
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