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ECONOMIA SOLIDÁRIA E TRAJETÓRIAS DE TRABALHO Uma visão retrospectiva a partir de dados nacionais1 1 Trabalho resultante de pesquisas financiadas pelo CNPq.

SOLIDARITY ECONOMY AND WORK PATHS: A RETROSPECTIVE FROM NATIONAL DATA

ÉCONOMIE SOLIDAIRE ET TRAJECTOIRES DE TRAVAIL: UN PANORAMA RÉTROSPECTIF À PARTIR DE DONNÉES NATIONALES

Resumos

A economia solidária expandiu e ganhou reconhecimento público e acadêmico, nas últimas décadas. Multiplicaram-se visões, definições e enfoques, gerando uma polissemia conceitual e interpretações diversas a respeito. O presente artigo examina essas questões, a partir das estatísticas nacionais sobre a economia solidária. Destaca o seu valor metodológico e as explora sob vários prismas, em particular quanto à origem e ao sentido das experiências solidárias, do ponto de vista de seus integrantes, seus itinerários de trabalho e suas aspirações. Mediante uma análise retrospectiva dos últimos dados nacionais, de 2013, situa a economia solidária como um desdobramento de trajetórias que predispuseram certas categorias sociais à opção por formas coletivas de organização socioeconômica. Esse fato explica a heterogeneidade estrutural dessas práticas, a impropriedade de tratá-las como uma unidade empírica em si, e a conveniência de buscar em características latentes as suas lógicas instituintes.

Palavras-chave:
Economia solidária; Trabalho; Brasil; SIES


Solidarity economy has expanded and gained public and academic recognition in recent decades, which means that views, definitions and approaches have multiplied, generating a conceptual polysemy and diverse interpretations about it. This paper examines these issues taking into consideration national statistics on the solidarity economy. It highlights their methodological value and explores them from various perspectives, in particular as to the origin and meaning of solidarity experiences, from the point of view of their members, their work itineraries and their aspirations. Through a retrospective analysis of the latest national data from 2013, the solidarity economy enables specific social categories to the option of collective forms of socio-economic organization. This fact explains the structural heterogeneity of these practices, the impropriety of treating them as an empirical unit in itself, and the desirability of seeking in their latent features their instituting logics.

Keywords; Solidarity Economy; Work; Brazil; SIES


L’économie solidaire s’est développée et a acquis une reconnaissance publique et académique au cours des dernières décennies. Les points de vue, les définitions et les approches se multiplient, générant une polysémie conceptuelle et diverses interprétations à ce sujet. Cet article examine ces questions à partir de statistiques nationales sur l’économie solidaire. Il met en avant leur valeur méthodologique et les explore sous divers aspects, en particulier quant à l’origine et le sens des expériences de solidarité, du point de vue de ses membres, de leurs parcours professionnel et de leurs aspirations. À partir d’une analyse rétrospective des dernières données nationales, de 2013, nous situons l’économie solidaire comme un dédoublement de trajectoires qui ont prédisposé certaines catégories sociales à l’option envers des formes collectives d’organisation socio-économique. Ce fait explique l’hétérogénéité structurelle de ces pratiques, l’inconvenance de les traiter comme une unité empirique en elle-même, et la commodité de recherche, dans des caractéristiques latentes, ses logiques instituantes.

Mots-clés:
Économie solidaire; Travail; Brésil; SIES


Introdução

O termo “economia solidária” ganhou expressão e oficialidade no Brasil, no decorrer dos anos 1990, à medida que despontaram iniciativas econômicas baseadas na livre associação de pessoas reconhecidas por sua índole participativa e por seus princípios de cooperação e autogestão. Com sua expansão, o campo de práticas identificadas com a economia solidária passou a abarcar diferentes categorias sociais e diversas modalidades de organização - incluindo unidades informais de trabalho e geração de renda, associações de produtores e consumidores, cooperativas populares, empresas recuperadas por trabalhadores, sistemas locais de troca e bancos comunitários -, umas e outras dedicadas principalmente à produção de bens, à prestação de serviços, à comercialização e ao crédito.

Na atualidade, o termo evoca um amplo conjunto de organizações econômicas, entidades representativas, organismos da sociedade civil e ações de governo . Referências à economia solidária têm servido, simultaneamente, para designar um tipo peculiar de empreendimento econômico, um conjunto de entidades representativas que lhe servem de porta-voz, além de uma série de organismos públicos com ações correlatas. Em artigo publicado anteriormente, na RBCS, foram destacados, à guisa de síntese, quatro componentes do campo da economia solidária: a) os empreendimentos solidários, dedicados às atividades supracitadas e também ao consumo coletivo; b) as organizações de apoio à economia solidária, incluindo ONGs, entidades sindicais, organismos de pastoral social e universidades; c) os órgãos de representação e articulação política, ligados ao sindicalismo, a incubadoras de cooperativas populares, a gestores públicos, a entidades de crédito solidário e outras, destacando-se o Fórum Brasileiro (FBES), central nos debates e mobilizações nacionais; d) os organismos estatais à frente de programas públicos de economia solidária, a exemplo da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), criada em 2003, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, e, também, o Conselho Nacional de Economia Solidária, instalado em 2006, como órgão maior de agregação e de formulação de diretrizes para a ação governamental (Gaiger, 2013aGAIGER, Luiz. (2013a), “A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28, 82: 211-228., p. 214).2 2 As mudanças políticas transcorridas desde o Governo Temer produziram um franco refluxo nas ações de governo de fomento à economia solidária, gerando, consequentemente, uma situação calamitosa para a ação pública, que se agravou desde janeiro de 2019. Voltaremos a este assunto, ao final deste artigo.

Existe, portanto, um conjunto variado de iniciativas identificadas com a economia solidária, somando-se a ele uma diversidade de propósitos subjacentes aos juízos e discursos sobre suas práticas, e que transitam da arena política, em sua defesa e promoção, a abordagens conceituais e analíticas, próprias do campo acadêmico. O resultado é uma polissemia do termo e a criação de expectativas variadas a respeito. Ainda assim, como veremos, estabeleceu-se na experiência brasileira uma razoável convergência sobre as principais características que tipificam os empreendimentos de economia solidária, embora as modalidades tomadas como referência, como também os princípios normativos que deveriam orientá-las, sejam tema de debates e avaliações recorrentes - terreno em que preponderam tanto pressupostos ideológicos, quanto visões pragmáticas, com destaque para os problemas de conformação das políticas públicas.

O campo acadêmico, por sua vez, mereceria um tratamento específico, a exemplo das resenhas sobre seu estado da arte, publicadas com diferentes ênfases e perspectivas (Leite, 2009LEITE, Márcia. (2009), “A economia solidária o trabalho associativo: teorias e realidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 24, 69: 31-51.; Lima, 2012LIMA, Jacob. (2012), “Cooperativas, trabalho associado, autogestão e Economia solidária: a constituição do campo de pesquisa no Brasil”. in I. Georges & M. Leite (org.), Novas configurações do trabalho e economia solidária. São Paulo, Annablume, p. 195-221.; Gaiger, 2013bGAIGER, Luiz. (2013b), “Práticas sociais e conhecimento acadêmico no campo da economia solidária”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 73: 5-20.; Pinheiro, 2016PINHEIRO, Daniel. (2016), “O Estado da arte da produção científica em economia solidária”. Administração Pública e Gestão Social, 8, 2: 95-103.; Ferrarini et al., 2018FERRARINI, Adriane; GAIGER, Luiz; SCHIOCHET, Valmor. (2018), “Economia social e solidária: estado da arte e agenda de pesquisa”. Revista Brasileira de Sociologia, 6, 12: 157-180.; Silva, 2018aSILVA, Sandro. (2018a), “O campo de pesquisa da economia solidária no Brasil: abordagens metodológicas e dimensões analíticas”. Textos para Discussão, nº 2361. Rio de Janeiro, Ipea.). Além disso, uma obra coletiva de amplitude, contando com edições em várias línguas e países, buscou, há dez anos, repertoriar e condensar os principais temas, enfoques e conceitos que gravitam em torno das alternativas econômicas emancipatórias (Cattani et al., 2009CATTANI, David; GAIGER, Luiz; HESPANHA, Pedro; LAVILLE, Jean-Louis (orgs.). (2009), Dicionário internacional da outra economia. Coimbra, Almedina.).3 3 Trata-se de um dicionário publicado originalmente no Brasil, em 2003, e que recebeu edições posteriores na Argentina (2004 e 2009), França (2005 e 2006), Itália (2005) e, novamente, no Brasil (2009). Em referência a uma das linhas de teorização e pesquisa confluentes, caberia registrar que estudos sobre a economia solidária, no Brasil (Pinto, 2006PINTO, João. (2006), Economia solidária; de volta à arte da associação. Porto Alegre, UFRGS Editora.; Gaiger et al., 2014GAIGER, Luiz et al. (2014), A economia solidária no Brasil: uma análise de dados nacionais. São Leopoldo, Oikos.) e em outros países (Cadena, 2005CADENA, Félix (coord.). (2005), De la economía popular a la economía de solidaridad. Tlaxcala, El Colegio de Tlaxcala; Gardin, 2006GARDIN, Laurent. (2006), Les initiatives solidaires. La réciprocité face au marché et à l’État. Ramonville Saint-Agne, Éditions Ères.; Gaiger e Santos, 2017GAIGER, Luiz; SANTOS, Aline (orgs.). (2017), Solidariedade e ação coletiva. Trajetórias e experiências. São Leopoldo, Editora Unisinos.), sustentam que a solidariedade atribuída aos empreendimentos se assenta principalmente na socialização dos recursos produtivos, no envolvimento de seus membros na gestão cotidiana dos mesmos, na vigência de regras de equidade e, ainda, no engajamento de suas organizações e entidades representativas em movimentos e mobilizações sociais. Quando estendidas ao seu entorno, essas características estimulam envolvimentos mais amplos (Gardin, 2006GARDIN, Laurent. (2006), Les initiatives solidaires. La réciprocité face au marché et à l’État. Ramonville Saint-Agne, Éditions Ères.; Gaiger, 2016GAIGER, Luiz. (2016), A descoberta dos vínculos sociais. Os fundamentos da solidariedade. São Leopoldo, Editora Unisinos.), à medida que vivências concretas de gestão do bem comum conferem vigor às noções de justiça e de interesse público. Sempre em graus variáveis, e de acordo com a natureza e as finalidades de cada empreendimento, o agir coletivo institui, então, novos sujeitos no mundo do trabalho, nas estratégias de classe e nas lutas sociais, em resposta a anseios de reconhecimento, bem-estar e vida significativa (Veronese, 2008VERONESE, Marília. (2008), Psicologia social e economia solidária. São Paulo, Ideias & Letras). Por tais razões, pode-se dizer que o aspecto mais relevante da economia solidária é o fato de ela dar visibilidade e promover organizações socioeconômicas dotadas de uma racionalidade própria que não contrapõe estruturalmente as pessoas à eficiência econômica, o capital ao trabalho, a ação empreendedora à solidariedade (Singer, 2002SINGER, Paul. (2002), Introdução à economia solidária. São Paulo, Fundação Perseu Abramo.; Gaiger, 2011GAIGER, Luiz. (2011), “Relações entre equidade e viabilidade nos empreendimentos solidários”. Lua Nova, 83: 79-109.; 2013aGAIGER, Luiz. (2013a), “A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 28, 82: 211-228.).

Nas duas últimas décadas, a economia solidária mereceu crescente atenção das Ciências Sociais, sobretudo em estudos sobre a economia popular, as desigualdades, as relações de trabalho, os movimentos sociais e as políticas públicas (Ferrarini et al., 2018FERRARINI, Adriane; GAIGER, Luiz; SCHIOCHET, Valmor. (2018), “Economia social e solidária: estado da arte e agenda de pesquisa”. Revista Brasileira de Sociologia, 6, 12: 157-180.). Além de figurar em pesquisas de programas de pós-graduação consolidados, ela foi integrada à agenda de encontros científicos de prestígio, como da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), da Associação de Estudos sobre o Trabalho (Abet) e da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa (AILP). Contudo, ao lado das resenhas temáticas, registram-se questões de pesquisa ainda merecedoras de atenção, seja por serem menos evidentes à luz dos enfoques habituais, seja em razão de restrições metodológicas, dentre as quais, a insuficiência de dados abrangentes no tocante ao perfil dos empreendimentos solidários e a seus integrantes (Gaiger, 2014GAIGER, Luiz. (2014), “Conhecer globalmente: um desafio inadiável dos estudos sobre a economia solidária”. Otra Economía, 8, 14: 101-113.).

Por essa razão, observa-se haver neste campo acadêmico uma predominância de estudos qualitativos, que, no geral, tratam da economia solidária focalizando casos circunscritos, em seus contextos específicos, mediante abordagens em que o relacionamento pessoal do pesquisador com a realidade em estudo assume um papel vital. Entre suas virtudes, tais investigações captam singularidades da dinâmica social, especialmente no tocante às interações face a face, às relações de poder e à subjetividade. Contudo, essas investigações não se revelam as mais apropriadas para generalizar resultados e, assim, levantar os traços predominantes da economia solidária, delinear suas tendências ou identificar seus óbices e fatores de propulsão mais decisivos. Avanços em tais frentes seriam altamente beneficiados com uma integração entre estudos qualitativos e quantitativos, conforme sintetiza o recente trabalho de Silva (2019SILVA, Lucas. (2019), O dilema do esforço, eficiência e sobrevivência das cooperativas de economia solidária brasileiras: uma análise empírica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Ciências Econômicas. Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo., p. 50): de um lado, “a análise econométrica [ou quantitativa] permite identificar correlações entre as variáveis utilizadas, mas não detectar os mecanismos subjacentes a tais correlações”; de outro, proceder à análise comparada de pesquisas baseadas em estudos de caso, embora não conduza a “resultados representativos do universo de empreendimentos solidários, é uma forma válida de evidência para elucidar os resultados econométricos”.

A carência de informações estatísticas retardou o desenvolvimento de um olhar global sobre a economia solidária (Gaiger, 2014GAIGER, Luiz. (2014), “Conhecer globalmente: um desafio inadiável dos estudos sobre a economia solidária”. Otra Economía, 8, 14: 101-113.), no intuito de dimensioná-la e situá-la no espectro amplo da economia, do mercado de trabalho e das estratégias de trabalhadores rurais e urbanos. Entretanto, há alguns anos dispomos de duas fontes de dados empíricos representativos da economia solidária no Brasil. De um lado, trata-se da caracterização demográfica, econômica, social e política de cerca de 35 mil empreendimentos solidários, resultante de dois mapeamentos nacionais realizados entre 2005 e 2013. De outro lado, trata-se das informações oriundas de uma pesquisa amostral realizada em 2013, por meio de um questionário aplicado a sócios e sócias de empreendimentos solidários registrados pelo segundo mapeamento. Um total de 2.985 informantes, de 15 Unidades da Federação, respondeu a esse questionário, a partir de uma estratificação estatisticamente representativa dos empreendimentos antes mapeados.4 4 A pesquisa amostral contou com recursos adicionais do CNPq, o que permitiu contratar e capacitar 60 entrevistadores, boa parte deles com experiência anterior em mapeamentos. Cabe ainda apontar que um dos autores do presente artigo tem sido beneficiado com bolsas de produtividade e diversos auxílios do CNPq, desde o ano 2000. Essas bases de dados passaram por um processo de tratamento e crítica minucioso, graças a um consórcio entre a Senaes, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), antes de virem a público como parte do Sistema de Informações sobre a Economia Solidária (Sies). Por fim, elas foram escrutinadas em seus aspectos gerais, no sentido de traçar um retrato nacional da economia solidária no Brasil (Gaiger et al., 2014GAIGER, Luiz et al. (2014), A economia solidária no Brasil: uma análise de dados nacionais. São Leopoldo, Oikos.).

Embora de acesso público, essas informações não têm sido utilizadas com frequência pela comunidade científica, salvo exceções (Dieese, 2015DIEESE. (2015), Informalidade na economia solidária: conhecendo e discutindo. Coleção Cadernos de Debates do Observatório Nacional da Economia Solidária e do Cooperativismo, nº 1, São Paulo., 2018DIEESE. (2018), A comercialização na economia solidária em empreendimentos urbanos de produção artesanal liderados por mulheres. Coleção Cadernos de Debates do Observatório Nacional da Economia Solidária e do Cooperativismo, nº 2, São Paulo.; Kuyven, 2016KUYVEN, Patrícia. (2016), Economia solidária no Brasil: uma alternativa para redução da pobreza através da geração de renda. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Unisinos, São Leopoldo.; Silva, 2017SILVA, Sandro (2017), “Panorama dos empreendimentos de economia solidária no Brasil: uma análise de suas dimensões socioestruturais”. Revista da Abet, 16: 208-228.; Silva, 2019SILVA, Lucas. (2019), O dilema do esforço, eficiência e sobrevivência das cooperativas de economia solidária brasileiras: uma análise empírica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Ciências Econômicas. Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo.). Não se observa seu uso corrente com vistas ao exame de questões de interesse, como o associativismo de trabalhadores rurais, as práticas informais de reciprocidade, as estratégias socioeconômicas de populações tradicionais, e as formas de ação coletiva dos trabalhadores. Diante do exposto, o primeiro propósito do presente artigo consiste em destacar o valor das informações do Sies para estudos que objetivem identificar tendências gerais ou discernir traços relevantes ou singulares desse campo de práticas, por meio da análise de perfis ou de correlações entre características significativas, dentre outros procedimentos estatísticos usuais.

O processo de criação do Sies, incluindo a metodologia dos mapeamentos nacionais e da pesquisa amostral, encontra-se descrito em vários documentos públicos da Senaes, além de ser objeto de alguns trabalhos acadêmicos (Gaiger et al., 2014GAIGER, Luiz et al. (2014), A economia solidária no Brasil: uma análise de dados nacionais. São Leopoldo, Oikos.; Kuyven, 2016KUYVEN, Patrícia. (2016), Economia solidária no Brasil: uma alternativa para redução da pobreza através da geração de renda. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Unisinos, São Leopoldo.; Silva, 2017SILVA, Sandro (2017), “Panorama dos empreendimentos de economia solidária no Brasil: uma análise de suas dimensões socioestruturais”. Revista da Abet, 16: 208-228.).5 5 Boa parte da documentação relativa ao segundo mapeamento e à pesquisa amostral, incluindo aspectos metodológicos, publicações e acesso aos dados através de um atlas digital, está disponível no site do Projeto Sies, em cujo escopo ocorreu o tratamento das informações e a consolidação das bases de dados: http://sies.ecosol.org.br/. Mediante convênio com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2015, a Senaes disponibilizou as informações ao Observatório Nacional da Economia Solidária e Cooperativa, no qual se encontram indicadores e estudos setoriais, além de um mapa interativo, entre outras ferramentas: http://ecosol.dieese.org.br/. A estruturação do Sies foi conduzida pelo Departamento de Estudos e Divulgação da Senaes, em parceria com o FBES e com entidades civis, incluindo universidades e órgãos de governo. O primeiro mapeamento envolveu mais de 200 entidades, em sua concepção, planificação e execução; o segundo mapeamento adotou um sistema similar, distribuindo o planejamento e a execução regionalmente. Em ambos, o propósito não era realizar um censo demográfico exaustivo, mas um levantamento amplo e representativo, alargando-se ao máximo, para tanto, a coleta de dados a partir de diversas listas prévias e, também, por meio da identificação de novos empreendimentos econômicos solidários (EES), ao longo do próprio mapeamento.

Para efeito de entrada no Sies, os mapeamentos adotaram uma caracterização mínima dos EES, utilizada no processo de coleta de campo e, posteriormente, em várias etapas de crítica e análise de consistência dos dados, mediante filtros e conferências sucessivas das informações. Isto resultou na exclusão daqueles EES que não se apresentavam: a) como empreendimentos coletivos suprafamiliares, com ao menos dois sócios/as e atuação permanente; b) organizados como associações, cooperativas, empresas autogestionárias, grupos informais, etc., cujos participantes realizam coletivamente a gestão das atividades e a alocação dos seus resultados; c) com atividades econômicas de produção de bens, prestação de serviços, fundos de crédito, comercialização ou consumo. No caso do segundo mapeamento, finalizado em 2013, 19.708 EES integram a base de dados.

A engenharia do Sies garantiu o reconhecimento de várias modalidades de economia solidária distantes dos circuitos de suas principais entidades representativas, nos quais se formam consensos quanto à sua identidade, sentido e demandas. É o caso das comunidades tradicionais, dos ribeirinhos, extrativistas, pescadores artesanais e outros, que trouxeram à tona a face rural e interiorana (predominante, como veremos) da economia solidária. Mas, por outro lado, o modelo de mapeamento se mostrou demasiadamente complexo, oneroso e sujeito a riscos, em função da descontinuidade habitual das ações de governo. Por isso, ao invés de projetar um terceiro mapeamento, optou-se pela criação de um cadastro dos EES, o CadSol, a ser progressivamente alimentado pela inscrição voluntária dos EES e por sua validação institucional. Dadas as turbulências políticas posteriores e as reorientações drásticas dos governos, o CadSol não funcionou a ponto de oferecer uma base mais recente de informações.6 6 O CadSol herdou os dados do segundo mapeamento, registrando 26.542 EES em 08/04/2019, dos quais 2.400 EES com atividades iniciadas a partir de 2014. Consultas e extrações de dados podem ser feitas em: http://cadsol.mte.gov.br/inter/cadsol/main.seam?cid=3998.

Não resta dúvida de que seria melhor dispormos de um levantamento de dados após 2013. Contudo, a possibilidade de um novo mapeamento nacional da economia solidária torna-se irrealista, no momento em que o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) se depara com mudanças e graves ameaças ao escopo e à cobertura do próximo censo demográfico.7 7 Assunto de atualidade da pauta jornalística. Veja-se, por exemplo, a Revista Carta Capital, de 08/05/2019. A despeito do que vier a acontecer, o último censo demográfico, de 2010, não fica desprovido de valor e utilidade como referência básica sobre as características da população brasileira, conforme o demonstram várias publicações recentes.8 8 Um indicador de fácil aferição são os artigos registrados na Scientific Electronic Library Online (SciELO), que exploraram recentemente os dados do Censo. Ver em: https://search.scielo.org/?lang=pt. Algo similar sucede com os mapeamentos nacionais da economia solidária, por três razões principais: a) embora sejam levantamentos parciais, eles são consideravelmente representativos e fornecem informações confiáveis sobre as características gerais dos EES, não havendo razões para se presumirem alterações significativas, desde 2013; b) além de retratarem a economia solidária no momento dos mapeamentos, os dados trazem informações indiretas, mas altamente interessantes, sobre a evolução da economia solidária (ou sobre seus antecedentes), uma vez que identificaram EES existentes há muito tempo, e que, em certa medida, testemunharam modalidades semelhantes que tiveram seu momento de auge ou de expansão há várias gerações (Gaiger et al., 2014GAIGER, Luiz et al. (2014), A economia solidária no Brasil: uma análise de dados nacionais. São Leopoldo, Oikos., pp. 95-110); c) mediante recortes, é possível examinar segmentos específicos (por área de atuação, setor de atividade econômica, região do país, raça ou cor predominante, etc.), dispondo-se, em geral, de dados mais homogêneos e comparáveis.

Os dados do Sies permitem, assim, análises de ordem geral, a começar pela demografia dos EES e das pessoas associadas, quanto a tipos significativos, sua distribuição espacial e seus vínculos com a participação em movimentos, redes e fóruns ou, ainda, suas similaridades diante de campos afins, como o cooperativismo. Excetuando análises atualmente em curso, os dados da pesquisa amostral sobre sócias e sócios dos EES permanecem inexplorados. Não obstante, eles podem ser tomados como base principal ou como linha auxiliar para a caracterização dos principais protagonistas da economia solidária, suas trajetórias sociais e suas vidas de trabalho, servindo, por exemplo, para o exame das razões de sua entrada, atuação e permanência nos empreendimentos solidários.

À guisa de exemplificação dessas possibilidades, o segundo propósito do presente artigo consiste em trazer à discussão uma linha argumentativa delineada em quatro pontos principais, ou teses, baseadas, em boa medida, nos dados do Sies. Elas elucidam, principalmente, aspectos relativos à diversidade das trajetórias de trabalho que confluem para a economia solidária e conferem a seus empreendimentos um elevado grau de polimorfismo. Estas teses estão relacionadas a linhas investigativas traçadas há mais tempo e que resultaram em elaborações gradativamente consolidadas no plano teórico-conceitual (Veronese et al., 2017VERONESE, Marília; GAIGER, Luiz; FERRARINI, Adriane. (2017), “Sobre a diversidade de formatos e atores sociais no campo da economia solidária”. Cadernos CRH 30, 79: 89-104.; Gaiger et al., 2018GAIGER, Luiz; FERRARINI, Adriane; VERONESE, Marília. (2018). “O conceito de empreendimento econômico solidário: por uma abordagem gradualista”. Dados – Revista de Ciências Sociais, 61, 1: 137-169.) e em estudos sobre tópicos correlatos, como a contribuição da economia solidária para a renda dos trabalhadores e a redução dos índices de pobreza (Kuyven, 2016KUYVEN, Patrícia. (2016), Economia solidária no Brasil: uma alternativa para redução da pobreza através da geração de renda. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Unisinos, São Leopoldo.). Tais teses serão discutidas uma a uma nas seções subsequentes, encerrando-se o artigo com algumas considerações sobre aspectos conceituais e sobre os rumos da economia solidária diante da conjuntura atual do país.

Múltiplas vertentes da solidariedade econômica

A primeira tese se refere ao fato de que os empreendimentos solidários não comportam uma caracterização única, capaz de abranger e sintetizar a contento suas manifestações empíricas, dado que possuem uma “heterogeneidade estrutural” (Silva, 2017SILVA, Sandro (2017), “Panorama dos empreendimentos de economia solidária no Brasil: uma análise de suas dimensões socioestruturais”. Revista da Abet, 16: 208-228.). Pleitear sua unicidade conceitual é plausível, contanto que se considerem perspectivas de análise determinadas ex ante, em razão das quais se fazem recortes teórico-metodológicos, direcionando, geralmente, as atenções para algum segmento ou tipo peculiar de iniciativas. Em outras palavras, a economia solidária não forma exatamente um todo, um setor ou um campo determinado por uma uniformidade empírica. No plano de suas células de base, ela abarca um aglomerado de iniciativas desenvolvidas a partir de vertentes independentes, que passaram paulatinamente por um processo de reconhecimento mútuo e de gradativa unificação, primeiramente por razões e dinâmicas de caráter sociopolítico, em seguida, por razões de Estado e, por fim, como temática de estudos. No que se refere a esses últimos, pode-se dizer que a unidade objetal da economia solidária é preservada com propriedade, unicamente do ponto de vista dos aspectos teoricamente significativos para cada enfoque analítico adotado, ou então, quando é o processo histórico de unificação política da economia solidária em si, com suas linhas de força e suas contradições, que se constitui como objeto investigado.

Embora os mapeamentos tenham adotado procedimentos de triagem e validação a partir dos critérios de inclusão / exclusão já citados, os dados do Sies refletem a heterogeneidade da economia solidária, além de contradizerem algumas convicções usuais. Eles evidenciam, por exemplo, que a economia solidária não incorpora, como sua categoria predominante, trabalhadores urbanos desempregados do mercado formal. Ademais, indicam que os EES cumprem funções variadas, frequentemente mais centrais para a adesão dos seus membros do que o trabalho e a geração de renda.

O Sies contém informações sobre quase 35.000 EES,9 9 Seguiremos utilizando a sigla EES em referência a conceitos e dados do Sies. provenientes de mapeamentos cuja finalidade foi abarcar o maior número de iniciativas. Buscou-se chegar a lugares recônditos do país e converter os protagonistas das mais diversas experiências em atores visíveis e reconhecidos. Como vimos, para listar sua população-alvo, os mapeamentos adotaram um conjunto de critérios, com base em um acordo nacional prévio em relação às características definidoras dos EES. Além dos critérios antes mencionados, uma das regras consistia em incluir organizações independentemente de elas contarem com registro legal, prevalecendo, consequentemente, a sua existência real ou o seu funcionamento regular. Uma última baliza, introduzida apenas no segundo mapeamento, excluía as organizações complexas ou de segundo nível, as quais deveriam ser inferidas a partir dos vínculos apontados pelas iniciativas singulares. Diagnósticos gerados durante a crítica aos dados indicaram que os EES, em sua expressiva maioria, correspondiam aos critérios de entrada, evidenciando ademais traços mínimos de solidarismo e de empreendedorismo econômico (Gaiger et al., 2014GAIGER, Luiz et al. (2014), A economia solidária no Brasil: uma análise de dados nacionais. São Leopoldo, Oikos.).

Voltando, então, ao cerne da primeira tese proposta, podemos nos debruçar com alguma brevidade sobre dados centrais da demografia dos EES. A constatação inicial é de que os EES estão disseminados no território brasileiro, em todas as regiões e estados. Um dos aspectos de interesse a respeito é a área de atuação dos EES: conforme dados do segundo mapeamento,10 10 Doravante, salvo menção em contrário, os dados em análise farão referência apenas ao segundo mapeamento. o espaço rural prevalece como área de atuação, contendo 54,8% dos EES. A área urbana corresponde a 34,8% deles, enquanto 10,4% dos EES atuam no espaço rural e urbano. A diferença se dilata ao compararmos o contingente humano associado aos EES: 48% dos membros associados se localizam na zona rural, contra 30% na zona urbana. A diferença entre os espaços rural e urbano, de exatos 20% no caso dos EES, constitui um fato relacionado à forma de organização jurídica. As associações são uma forma de organização típica dos EES rurais, os quais possuem tradicionalmente como integrantes os pequenos agricultores familiares que se unem para utilizar equipamentos e recursos produtivos, aumentar seu poder de barganha diante de fornecedores ou comercializar seus produtos. As associações predominam em área rural, enquanto os EES informais se concentram na área urbana e as cooperativas se dividem entre ambas.

Estas relações também incidem sobre a principal atividade econômica coletiva dos EES. Observa-se uma predominância de EES dedicados prioritariamente à produção de bens (atividade que usualmente envolve a comercialização), totalizando 56,2%. Bem abaixo desse percentual estão os EES dedicados ao consumo ou uso coletivo de bens e serviços pelos sócios, com 20%. A seguir, têm-se os EES apenas de comercialização, abarcando 13,3%, e aqueles de prestação de serviço ou trabalho a terceiros, com 6,6%. Os últimos dois tipos são claramente minoritários: EES de troca de produtos e serviços, com 2,2%, e EES de poupança, crédito ou finanças solidárias, com 1,7%.

A atividade econômica coletiva principal está também relacionada com a forma de organização dos EES. A atividade de produção, predominante, é característica ainda mais acentuada nos grupos informais. Já o consumo ou uso coletivo de bens e serviços é atividade mais frequente nas associações. A comercialização se distribui de modo mais homogêneo, com destaque para as cooperativas. A atividade de prestação de serviços ou de trabalho (a terceiros) cresce também entre as cooperativas, mas reparte-se igualmente, com percentuais menores, entre os grupos informais e as associações.

Historicamente, seria adequado situar na década de 2000 a emergência política da economia solidária, por meio dos fóruns regionais, estaduais e nacional, como também de sua entrada na agenda pública e seu reconhecimento nas políticas de governo. Recuando-se mais uma década, verifica-se que as primeiras articulações entre empreendimentos e organizações de apoio, ao lado de crescente interesse acadêmico, confluíram nos anos 1990 para o termo economia solidária, como forma de designar e integrar as diversas experiências. O período marca também o início do boom de empreendimentos e o aparecimento de iniciativas conexas, como as empresas recuperadas pelos trabalhadores (Chedid et al., 2013CHEDID, Flávio et al. (2013), Empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro, Multifoco.) e as redes de comercialização (Ribeiro et al., 2012RIBEIRO, Eduardo; GALIZONI, Flávia; ASSIS, Thiago. (2012), Comercialização solidária no Brasil: uma estratégia em rede. Porto Alegre, EDIPUCRS.), cujo crescimento, de acordo com as informações disponíveis, estendeu-se ao menos até 2010.

Todos esses fatos sedimentaram uma compreensão generalizada da economia solidária como um fenômeno recente. Consequentemente, prestou-se menor atenção à anterioridade de várias iniciativas registradas pelo mapeamento, cuja presença numérica foi, em décadas passadas, presumível ou sabidamente maior, tais como as cooperativas de consumo ou a vasta plêiade de associações que se disseminaram no decorrer do séc. XX como estruturas de suporte à vida social e econômica. O exame da gênese da economia solidária remete a esses antecedentes. Várias experiências de organização socioeconômica, datadas desde o final do séc. XIX, deixaram seu testemunho através de exemplos ainda vivos no período de coleta dos dados, havendo EES que, supreendentemente, remontam a 1885. Mutatis mutandis experiências antigas podem ter sido revitalizadas ou renovadas pela profusão de iniciativas mais recentes.

Em termos globais, dentre os EES registrados no primeiro mapeamento, 11% funcionavam ao menos há 15 anos, e quase 23%, há 10 anos; no segundo mapeamento, cresce a fração de EES mais antigos: 19% deles tinham ao menos 15 anos de funcionamento, ao passo que mais de 30% tinham 10 ou mais anos de atuação. Um caso peculiar, ilustrativo dessas raízes um tanto desconhecidas, é trazido à superfície pela notável concentração de EES no interior do Nordeste, em particular as associações. Nessa região, 72,2% dos EES atuam na zona rural e 74,2% adotam a forma jurídica associativa. As associações rurais no Nordeste totalizam 83,5% dos EES rurais e 81% das associações, sendo então a figura regional predominante e também a mais antiga: se os EES do Nordeste com mais de 15 anos (24%), ou mais de 10 anos (39%), superam globalmente os percentuais nacionais, as associações rurais vão mais longe, pois, na data do mapeamento, 28,7% possuíam em torno de 15 anos de atividade e 48%, ao menos 10 anos.

Assim, os dados sinalizam a existência de uma vertente associativa via de regra ignorada por interpretações correntes, centradas nas origens sulinas do associativismo e do cooperativismo no Brasil. Um fato bastante relevante é que 20% dos sócios dos EES mapeados no território nacional encontram-se nas associações rurais do Nordeste. Portanto, é plausível supor que nessa região ocorreu um associativismo popular autóctone, ao menos em parte desvinculado das estruturas de dominação política, e que mereceria uma atenção similar àquela já dedicada ao coronelismo e ao clientelismo oligárquico.

Por conseguinte, deve-se evitar uma abordagem meramente conjuntural da solidariedade popular, bem como explicações monocausais que tendem a padronizar suas manifestações pelo fato de refletirem um fator gerador, pretensamente comum. Conviria buscar antes entendê-la como um desdobramento de trajetórias humanas que predispuseram determinadas categorias sociais ao agir coletivo, a despeito de circunstâncias que possam ter refreado ou estimulado tal conduta. Pesquisas anteriores ao mapeamento já o haviam demonstrado (Gaiger, 2004GAIGER, Luiz (org.). (2004), Sentidos e experiências da economia solidária no Brasil. Porto Alegre, UFRGS Editora), bem como estudos qualitativos, a exemplo de uma análise diacrônica de dados reunidos em um período de 20 anos sobre essas experiências de solidariedade, com o objetivo de identificar seus fatores dinâmicos e suas linhas evolutivas (Gaiger e Corrêa, 2010GAIGER, Luiz; CORRÊA, Andressa. (2010), “A história e os sentidos do empreendedorismo solidário”. Otra Economía, IV, 7: 153-176.).

A multiplicidade de trajetórias se reflete na diversidade social dos membros dos EES, de acordo com as informações da pesquisa amostral.11 11 O levantamento amostral observou standards de confiança em pesquisas estatisticamente representativas. Mas, por se referir a 15 Unidades da Federação, ele serve, para o restante do país, como uma base de projeção por inferência, à condição de inexistirem razões particulares em contrário, no tocante às variáveis em tela. A face rural da economia solidária é estampada pelo amplo predomínio de agricultores, enquanto outros perfis relevantes não dão guarida à percepção da economia solidária, em seu conjunto, como um refúgio para a população trabalhadora flutuante ou alijada do mercado formal de trabalho. Bem pelo contrário, novas categorias sociais se aproximaram paulatinamente da economia solidária, sendo reconhecidas como seus integrantes natos, às vezes trazendo a marca de sua ancestralidade. Pescadores artesanais, ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, seringueiros e outras categorias pertencentes aos povos e comunidades tradicionais entraram em cena, trazendo novas frentes de reivindicação e ampliando o leque da ação pública. Outro caso digno de nota se refere ao público-alvo de políticas sociais (beneficiários de prestações continuadas, populações vulneráveis, pessoas com deficiência ou transtorno mental, etc.), à medida que o mapeamento e estudos sucessivos acusaram sua presença na economia solidária e tais segmentos passaram a se organizar, como o exemplificam as cooperativas sociais (Cayres e Rimoli, 2012CAYRES, Cleusa; RIMOLI, Josely (org.). (2012), Saúde mental e economia solidária – Armazém das Oficinas: um olhar para além da produção. Campinas, Medita.).

Seria justo dizer que, em lugares perdidos do interior do país, ou em periferias urbanas, há populações que vivem em circuitos sociais e econômicos, quiçá sem maior interesse sob a ótica da economia capitalista moderna, mas de valor inestimável como repositórios de formas de vida que se alimentam da coesão social primária e a transpõem a sistemas mais amplos, sustentados na reciprocidade (Gaiger, 2016GAIGER, Luiz. (2016), A descoberta dos vínculos sociais. Os fundamentos da solidariedade. São Leopoldo, Editora Unisinos.). Essas práticas sociais de solidariedade não constituem formas anacrônicas. Elas cumprem funções indispensáveis à sobrevivência e integridade de populações e dão suporte às modalidades de organização mais recentes que, tomando a frente, identificaram-se progressivamente com a economia solidária.

Tipos e lógicas instituintes

Estas constatações conduzem à segunda tese: os empreendimentos de economia solidária não ficam adequadamente caracterizados com base em seus traços mais salientes, como a forma jurídica, a atividade econômica ou a predominância de determinadas categorias ocupacionais. Para lograr uma tipologia consistente, capaz de distinguir tipos de EES de acordo com fatores de propulsão e lógicas instituintes específicas, é necessário lançar mão de princípios de ordenamento que conjugam vários aspectos, nem sempre perceptíveis à primeira vista.

Tipologias não retratam, certamente, apenas diferenças patentes. Sua finalidade consiste em ordenar incontáveis diferenças e similitudes, hierarquizando-as de modo a configurarem grupos com as singularidades que se mostram explicativas de suas respectivas dinâmicas. Por isso, as tipologias se baseiam em hipóteses sobre o que importa diferenciar, segundo o conhecimento prévio e a abordagem proposta. Todavia, o intuito de separar e distinguir se defronta com dificuldades consideráveis no caso da economia solidária. Em primeiro lugar, os empreendimentos desenvolvem atividades simultâneas, por vezes entrelaçadas com finalidades extraeconômicas, não sendo trivial identificar a atividade principal que tipificaria sua razão de ser. Em segundo lugar, eles apresentam, via de regra, respeitável complexidade estrutural e funcional, ao combinarem atividades coletivas e individuais cuja função, complementar ou essencial, pode variar entre seus membros.

Apesar disso, tipologias podem ser um passo necessário para objetivar respostas à questão sobre a natureza e o sentido da economia solidária, abrindo campo para elucidar os motivos e as condições da adesão de trabalhadores a essas iniciativas. Em resultado de análises realizadas nessa direção, por meio de sucessivos testes de correlação entre variáveis, configuram-se cinco tipos de EES, de acordo com a principal finalidade social e econômica que cumprem para seus membros. Como veremos, essa finalidade corresponde a situações de trabalho e renda distintas, bem como a categorias sociais específicas, do ponto de vista de suas ocupações e de seu perfil sócio-profissional. Resumidamente:

I. EES de provimento de serviços e desenvolvimento comunitário: sua atividade coletiva principal tem por objetivo aportar bens, serviços e benefícios em prol do bem-estar de seus membros (como, por exemplo, crédito pessoal, repasse de benefícios sociais, itens de consumo doméstico, serviços socioculturais e educativos), ou para fomentar o desenvolvimento associativo e comunitário local (por meio de infraestrutura, serviços de transporte, manutenção de espaços coletivos, acesso a internet, etc.). Este tipo corresponde a 8,8% dos EES registrados no mapeamento. Nele se concentram os EES mais antigos, com 10 a 30 anos de existência. Localizam-se majoritariamente em meio rural, sendo que seus membros são, principalmente, agricultores familiares, seguidos de beneficiários de políticas sociais e de integrantes de povos ou comunidades tradicionais, como ribeirinhos. Entre as razões declaradas para a sua criação, salienta-se a busca de apoio financeiro e técnico oferecidos por programas governamentais e entidades civis, ao lado de motivações filantrópicas e de engajamentos comunitários. Entre seus integrantes predominam os homens, que são participantes do EES sem que isso caracterize uma ocupação laboral ou uma fonte de renda relevante.

II. EES de apoio à atividade produtiva dos sócios: sua atividade coletiva principal aporta serviços, recursos ou benefícios para as atividades econômicas individuais ou familiares de seus integrantes, em itens como: intercâmbio de produtos, remuneração pelas vendas, comercialização e uso de equipamentos ou infraestrutura produtiva. Como Tipo associado a 17,9% dos EES, ele também apresenta predomínio do meio rural e reúne iniciativas antigas, com 10 a 20 de funcionamento e média de tempo de atividade ligeiramente inferior ao Tipo I. O principal motivo de sua criação, ou de sua eventual formalização, relaciona-se ao acesso a financiamentos e outras formas de apoio à atividade econômica de seus membros. A proporção de sócios que trabalham no EES é superior àquela do Tipo I; no entanto, para a maioria não se trata de uma fonte de remuneração direta. Além de alta predominância de agricultores familiares, nota-se a presença proporcionalmente maior de povos ou comunidades tradicionais - caso dos quilombolas -, em relação aos demais tipos. Esses EES atuam principalmente no apoio a atividades agropecuárias, fornecendo máquinas, instalações, implementos e insumos diversos, além de formas tradicionais de compartilhamento de terras produtivas - como os fundos de pasto - e de equipamentos coletivos, como as casas de farinha, comuns no interior do país. Oferecem serviços técnicos especializados, sobretudo contábeis, agronômicos e veterinários. Vários deles se dedicam à comercialização da produção individual dos sócios, incluindo, no caso, pescadores artesanais e catadores de material reciclável.

III. EES de trabalho e geração de renda primordiais para os sócios: sua atividade coletiva principal consiste na produção de bens, comercialização ou prestação de serviços, e representa a ocupação e a fonte de ingresso mais importantes para os membros do EES. Essa atividade se desenvolve, ao menos parcialmente, com base na socialização dos meios de produção e na coletivização do trabalho, em tarefas de execução ou gestão. Este Tipo abrange 18,9% dos EES, predominantemente localizados no universo urbano, com EES mais recentes do que a média geral do mapeamento, prevalecendo, assim, aqueles com até 15 anos de funcionamento. Sua motivação imediata principal é a defesa contra o desemprego, mas também a busca de alternativas de organização econômica, em que os trabalhadores não dependam de patrões ou de terceiros. Quase a totalidade dos sócios trabalha nos EES, em setores econômicos ligados à agricultura e serviços relacionados, como também à fabricação de gêneros alimentícios e produtos diversos, além do comércio varejista. Tais atividades são realizadas por associações, grupos informais, cooperativas e, em menor número, EES formalizados como empresas mercantis.

IV. EES de complementação de trabalho e renda: sua atividade econômica principal também se relaciona à produção de bens, comercialização ou prestação de serviços, mas constituindo, ao contrário do caso anterior, uma ocupação e uma fonte de renda complementares. A remuneração principal dos sócios resulta, em geral, de outras atividades econômicas, ou provém de rendimentos independentes da atividade laboral atualmente exercida, como pensões e aposentadorias. Este Tipo abrange 20,2% dos EES, com maior proporção em áreas urbanas. Trata-se de EES mais recentes, com média inferior a 10 anos de atividade. Sua motivação principal consiste em dispor de uma fonte suplementar de renda, sendo o número de sócios que trabalham nos EES ligeiramente inferior ao Tipo III. Ainda que os setores econômicos principais em que atuam sejam similares, predominam aqui, contrariamente ao Tipo III, EES informais, seguidos de associações e, em terceiro lugar, cooperativas. Cresce o número de aposentadose pensionistas, como já apontado, e, paralelamente, cresce também a participação de mulheres. Embora esses EES possam elevar os rendimentos de trabalho que oferecem, adquirindo maior importância e convertendo-se em EES do Tipo III, essa não é a tendência geral. A expectativa dos sócios, decorrente de suas fontes atuais de renda e de suas possibilidades de inserção produtiva, somada às fragilidades dos EES - em geral, pequenos, informais e com baixos rendimentos -, são fatores impeditivos para que eles assumam uma função econômica preponderante para seus integrantes.

V. EES com remuneração insuficiente dos sócios: embora sua atividade econômica não difira dos tipos anteriores, eles não logram gerar renda adequada para a maioria dos sócios. Perfazem 25,5% do total e localizam-se em áreas rurais e urbanas. Entre os motivos de sua criação, destacam-se o objetivo de recuperar empresas privadas falidas - o que redunda no fenômeno das fábricas recuperadas pelos trabalhadores, com os incontáveis problemas que enfrentam - e o propósito de fortalecer grupos étnicos, relacionado com a presença de povos e comunidades tradicionais na economia solidária. Suas dificuldades de remunerar adequadamente os sócios transparecem no fato de ¼ deles, em média, não dispor de trabalho nos EES. Cerca de 40% desses EES possuem um ou mais sócios sem trabalho, e a remuneração dos demais é considerada insuficiente, por ser muito baixa ou descontínua. Seu faturamento médio é inferior aos tipos precedentes, sendo também mais frágeis as garantias e direitos sociais que oferecem a seus trabalhadores. É imaginável que o Tipo V corresponda a uma fase inicial de funcionamento dos EES de trabalho e geração de renda, cuja evolução posterior os conduziria ao Tipo III ou IV. Entretanto, nem sempre é assim, pois há EES do Tipo V com muitos anos de atividade. Trata-se, nesses casos, de um padrão organizacional, não apenas de um estado transitório. O fato é, no mínimo, revelador da magnitude dos desafios econômicos, sociais e culturais a serem vencidos. Este quadro adverso e persistente afeta a economia dos setores populares de um modo geral, como bem o demonstram os indicadores de insolvência e mortalidade das micro e pequenas empresas no Brasil (Sebrae, 2007SEBRAE. (2007), Fatores condicionantes e taxas de sobrevivência e mortalidade das micro e pequenas empresas no Brasil: 2003-2005. Brasília.).12 12 Entretanto, a taxa de sobrevivência das empresas cresceu desde 2008, chegando a 76,6%, em 2014, nas empresas com até dois anos de funcionamento. Entre elas, as microempresas apresentavam a menor cifra, de 55% (Sebrae, 2016, p. 26-24). Ainda assim, a melhora geral se coaduna com o que discutiremos a seguir.

Todos os tipos aqui relatados apresentam considerável envolvimento social e político, em redes, fóruns e movimentos sociais. É pertinente afirmar que os EES dos Tipos I e II ocupam-se do provimento de bens e serviços a seus integrantes e ao meio circundante, funcionando como iniciativas de usuários e consumidores, com foco em uma missão social, mesmo que implícita. Enquanto isso, os EES dos Tipos III e IV constituem iniciativas de produtores e trabalhadores, com ênfase à sua finalidade econômica de geração de trabalho e renda. Os dois primeiros tipos, com EES em funcionamento há mais tempo, precederam os demais; entretanto, não é menos verdade que entre os EES de geração de trabalho e renda existam experiências com mais de dois lustros na data do mapeamento, sendo, portanto, anteriores à eclosão da economia solidária verificada ao final dos anos 1990.

O papel motor das aspirações

As considerações feitas sobre a tipologia introduzem a terceira tese: a economia solidária não é apreensível adequadamente como mera resposta de trabalhadores ao desemprego e às oscilações do mercado de trabalho, ou mesmo a momentos de retração econômica. Os dados sobre a evolução do número de EES indicam tendências de expansão, mesmo quando a oferta do mercado de trabalho não se encontrava em seus momentos mais críticos. A análise nos conduz a reinterpretar o crescimento dos EES e a considerar a maior adesão dos trabalhadores, usuários e consumidores a essa alternativa de organização econômica - quiçá promissora, mas de resultados incertos –, como reflexo não de maior, mas de menor instabilidade econômica, aliando-se a isso um ambiente estimulador da confiança, conforme prenunciava Kalecki (1983)KALECKI, Michal. (1983), Teoria da dinâmica econômica: ensaio sobre as mudanças cíclicas e a longo prazo da economia capitalista. São Paulo, Abril Cultural.. Em outras palavras, não poderíamos tratar a questão como um mero problema de necessidades, sem ao menos admitir que elas são relativas, variam conforme as prioridades, segundo aquilo que se julga mais relevante e que, conforme as circunstâncias, ousa-se tentar atingir. Em suma, elas dependem igualmente das aspirações dos indivíduos.

No contexto aqui em análise, não basta que a economia e o mercado restrinjam, ou mesmo suprimam, as alternativas de ocupação e renda, ou as perspectivas de vida que usualmente oferecem para boa parte da população. É preciso que as alternativas concorrentes com as convencionais sejam atrativas, viáveis, convincentes. A relação custo/benefício deve parecer vantajosa, sob um ou mais desses pontos de vista. E quando as alternativas são julgadas de muito valor, mas seu custo é também elevado, o crescimento da economia capitalista - ao criar cenários de maior segurança, que estimulam riscos e facilitam o emprego flexível e combinado de múltiplas estratégias - pode ser ele próprio benéfico. Nesse sentido, não a recessão e a precarização, mas sim os seus contrários estimulariam a expansão da economia solidária.

Além disso, as determinações estruturais não explicam escolhas não convencionais de modo independente dos valores, das formas de sociabilidade e dos novos fatos gerados pelos próprios atores sociais. Entre a precarização, ou a pauperização, e as lutas sociais, há uma produção de experiências e idealizações, cujo percurso e desenlace não se encerram no quadro das condições objetivas. Ao produzir sentidos para o ator, a subjetividade – ou a identidade forjada na trajetória de trabalho e nos envolvimentos coletivos – impulsiona-o à ação e contribui decisivamente para que ele atribua significados valiosos ao que sente estar ao alcance de suas experiências.13 13 A dimensão social e o caráter construído das necessidades não passaram despercebidos a Marx. De acordo com uma de suas grandes exegetas, Agnes Heller, isso explicaria que a tipologia marxiana tenha diferenciado “necessidades existenciais” de “necessidades propriamente humanas” (Heller, 1986: 170-171).

À luz dos dados, a tese de que a economia solidária constitui uma opção ao desemprego não é a rigor desmentida: 46,2% dos informantes citaram ter sido esse um (não o único)14 14 A pergunta era de resposta múltipla. dos motivos de criação dos EES. Contudo, outras motivações aparecem simultaneamente, tais como: a procura de renda complementar (48,8%), a obtenção de maiores ganhos - não estritamente econômicos - em um empreendimento associativo (43%), o desenvolvimento de uma atividade em que “todos sejam donos” (40,7%), o desenvolvimento comunitário de capacidades e potencialidades (28,6%), o acesso a financiamentos (21%), e a prática da filantropia (19,3%), entre os mais citados.

A forma jurídica reflete o papel primordial que os EES cumprem para seus membros. Sinteticamente, as empresas mercantis e as cooperativas se identificam com a finalidade de gerar a renda primordial dos sócios, especialmente nos EES de prestação de serviços ou trabalho a terceiros, sendo que tal característica alcança 78,9% para as sociedades mercantis e 77%, para as cooperativas. Nos grupos informais, a obtenção de renda complementar prevalece, alcançando 53,2% em EES de produção. Diante de motivações concomitantes, as cooperativas também se vinculam a propósitos de autogestão e a questões ligadas a trabalho e formação profissional. As associações ficam uma vez mais em posição intermédia, destacando-se no quesito de busca de financiamentos e apoios. Os grupos informais se distanciam dessas expectativas e respondem, com maior frequência, à busca de uma fonte complementar de renda ou de alternativa ao desemprego. Nas entrelinhas, mais do que nos grandes números, os dados sugerem que a economia solidária responde a aspirações cevadas na inconformidade dos trabalhadores com a condição secular de subalternidade, mas igualmente em uma avaliação positiva de experiências de maior autonomia, na economia solidária ou em vivências anteriores.

A análise comparativa dos tipos de EES demonstra que alguns precederam temporalmente outros: os EES do Tipo III, de trabalho e geração de renda primordial para os sócios, engatinhavam na década de 1980 e exibiram um movimento ascendente, cada vez mais acelerado, até meados dos anos 2000; os EES de complementação de trabalho e renda mostram curva similar, porém mais oscilante, que sobrepujou os demais tipos no final do período; já os EES com remuneração insuficiente dos sócios salientavam-se desde os anos 1970, acompanhando o ritmo dos tipos anteriores, mas com cifras menores no período imediatamente anterior ao mapeamento.

Paralelamente ao surgimento progressivo dos EES, o ano 2000 separa duas décadas marcadas no Brasil por conjunturas econômicas diferenciadas. Indicadores - como Produto Interno Bruto (PIB) per capita, poder de compra do salário mínimo, taxa de desemprego e Índice de Gini - demonstram que, a partir de 2000, ocorreram acréscimos e melhorias na renda média, no poder de compra do salário, na oferta de empregos e na distribuição de renda. Ou seja, a conjuntura econômica brasileira passou por uma inflexão no início dos anos 2000, modificando a inserção das classes econômicas com menores rendimentos. A década seguinte se configurou como um cenário de crescente oferta de empregos, acréscimos na renda e aumento do poder de compra do salário mínimo.

Tal comportamento sugere uma análise contrastando os dois períodos, do ponto de vista do ritmo de criação dos EES. Dividindo-os em dois grupos, conforme tenham sido criados até 1999, ou a partir de 2000, nota-se que os EES mais recentes se concentram na área urbana, passando dos 23% dos EES, criados até 1999, para 41% dos novos EES, a contar do ano 2000. Os EES com atuação urbana e rural são também mais numerosos no segundo período. Visto que as zonas urbanas são mais impactadas pela oferta de emprego, a maior concentração de EES urbanos nos pós-2000 é o primeiro sinal de ligação entre a conjuntura econômica brasileira e a economia solidária. A hipótese aqui, como já adiantamos, não consiste em dizer que teriam aparecido mais EES devido à falta de emprego ou de ocupações convencionais - uma vez que ambos se ampliam gradativamente, no decorrer da década -, mas sim de que, num quadro de crescente escolha e de reiterados apoios, é possível escolher. Sendo a formação de um EES um fato longe do trivial, como o testemunham as incubadoras (França et al., 2008FRANÇA, Bárbara; BARBOSA, Érica; CASTRO, Rafaelle; SANTOS, Rodrigo. (2008), Guia de Economia Solidária; ou porque não organizar cooperativas para populações carentes. Niterói, Editora da UFF), o incremento relativo da segurança econômica trazida pelo contexto mais geral, associado aos instrumentos e estímulos dos programas de apoio à economia solidária, constituem o que parece ter feito a diferença.15 15 Esta linha interpretativa vai ao encontro das premissas de importantes iniciativas de redistribuição condicionada de renda, como o Programa Bolsa-Família, do qual um grande contingente de membros dos EES se tem beneficiado. Não é por falta de renda mínima, mas pela existência dela, que os trabalhadores podem enveredar por novos caminhos e persistir em concretizá-los.

De outra parte, as associações são mais numerosas até 1999, não havendo diferenças relevantes no caso das cooperativas; já quanto aos grupos informais, eles são mais frequentes após o ano de corte, com um percentual de 37,8% contra 14%, no período anterior. Mesmo que a formalização das associações seja menos trabalhosa do que a das cooperativas, elas requerem a existência de um agrupamento social, em geral de feições comunitárias, com uma vida associativa consistente e algum nível razoável de articulação. Faz sentido a supremacia das associações entre os EES que pressupõem maior continuidade dos laços comunitários, bem como em EES mais antigos, nos quais elas funcionam como espaço para a realização de diferentes atividades, de natureza econômica, social e cultural. Já a informalidade condiz com a espontaneidade inicial dos EES, caracterizando grupos recentes e menores, desprovidos do número suficiente de membros para se legalizarem como cooperativas; ou de um nível de coesão social ou de viabilização dos negócios que justifique bancar o ônus da formalização.

Como vimos, os EES informais se vinculam globalmente ao contexto urbano e a um quadro de precariedade social acentuada. No plano das motivações, eles se direcionam para a busca de uma fonte complementar de renda, de uma alternativa ao desemprego, mas também de maiores ganhos, associativamente, ou de uma atividade em que “todos sejam donos”. Consequentemente, na conjuntura econômica mais favorável dos anos 2000, a profusão de informais não teria necessariamente refletido um aprofundamento da precarização, mas uma reação positiva em busca de novas oportunidades de ocupação e renda, pressupondo, assim, disposição e disponibilidade para agir; no caso da economia solidária, não apenas visando à renda, mas ao ambiente cooperativo e de valorização mútua - o que nos grupos informais diz respeito, particularmente, a mulheres das periferias urbanas, predominantes nesse segmento.

O aprofundamento dessas análises requer que se distingam fatores macrossociais que afetam o conjunto da sociedade, ao lado de fatores próximos aos protagonistas da economia solidária, sendo a conjunção entre eles o que explicaria por que esses indivíduos, e não outros, fizeram essa opção e nela se mantiveram. No plano micro, uma pesquisa nacional (Gaiger, 2004GAIGER, Luiz (org.). (2004), Sentidos e experiências da economia solidária no Brasil. Porto Alegre, UFRGS Editora) contabilizou, sobretudo, fatores positivos, como o lastro associativo das lideranças populares locais, que reforçaram a atratividade da alternativa solidária. Os fatores negativos, a exemplo da precarização das relações laborais e da retração do mercado formal, tornaram as opções usuais menos interessantes ou viáveis, mas seu efeito imediato e indelével, na falta de alternativas, é o de semear a desesperança.

São as experiências positivas dos trabalhadores e sua capacidade de idealização que convertem uma possibilidade em projeto e ação prática. Na economia solidária, perseverar não se explica pela falta de alternativas, mas pela escolha dessa alternativa. Uma escolha em boa medida suscitada por fatores profundamente ancorados na experiência popular, mas também na própria eclosão dos EES, precedida de uma fase de germinação que a muitos passou despercebida. A criação de ambientes favoráveis, com vias de articulação entre as experiências, apoios e anteparos da sociedade e do Estado, teria cumprido, a seguir, o seu papel, selando em boa medida a sorte da economia solidária nos anos subsequentes .

Trajetórias de vida e de trabalho

As estratégias dos trabalhadores reservam diferentes fins aos EES, no campo do trabalho e de outros propósitos. Nossa quarta tese diz respeito a dados da pesquisa sobre os sócios e sócias, evidenciando que o ingresso e a permanência de pessoas nos EES dependem de trajetórias de vida, por vezes longas, bem como de ajustes entre as demandas de participação dos EES e o nível de interesse e disponibilidade de seus integrantes.

Os principais participantes dos EES, sócios e sócias, pertencem, em sua maioria, à população adulta economicamente ativa. No mapeamento, 87,5% dos EES declararam que seu quadro de associados é formado preponderantemente por pessoas adultas. Conforme a pesquisa amostral, considerando como adultas pessoas de 20 a 60 anos, há um percentual de 82,1% nessa faixa, enquanto os jovens perfazem 2,0%, e os idosos, 14,9%. Quanto à subsistência econômica do núcleo familiar, em apenas 22,4% dos casos o papel principal recai sobre terceiros (filhos, cônjuge ou outro parente), sendo dividido pelo/a sócio/a com seu cônjuge em 35,6% das famílias, ou sendo assumido apenas pelo sócio ou sócia em 30% dos domicílios. Como 72,5% dos informantes se declararam casados, e 74,4% com 1 a 5 filhos, é patente a sua função de responsáveis e provedores no núcleo familiar.16 16 Ademais, apenas 27,9% dos informantes não possuem pessoas dependentes de seus rendimentos entre aquelas que com eles coabitam, sendo 21,3% os casos de um único dependente.

Voltando ao mapeamento, apenas 6,9% dos EES possuem uma parcela significativa de integrantes que já ultrapassaram a fase laboral ativa e gozam de proventos de aposentadoria ou de pensões. Da mesma forma, são diminutos os percentuais de pessoas com algum impedimento ou limitação para o trabalho. Em compensação, 50% dos EES declararam a predominância, em seu quadro social, de pessoas beneficiárias de programas de transferência de renda ou de benefícios de assistência. O recebimento desses benefícios é mais frequente em EES com número maior de integrantes, em média com 80 membros. Presume-se que os benefícios sirvam, então, de suporte à permanência dos/as sócios/as nos EES, quando a renda neles auferida é insuficiente - caso dos Tipos IV e V antes examinados.

Dada sua composição etária, não é surpreendente que os/as sócios/as tenham exercido uma ou mais ocupações ao longo de sua vida de trabalho, antes de seu ingresso nos EES; ou mesmo depois disso, uma vez que os EES nem sempre têm por finalidade gerar trabalho e renda. Além disso, trata-se, por vezes, de ocupações exercidas há muito tempo: a ocupação no último ano antes da aplicação do questionário - sem contar as atividades no próprio EES amostral - era desempenhada, em 47,8% dos casos, há 10 anos ou mais, tendo 15% deles atingido 30 anos ou mais de exercício. Ao longo desse itinerário laboral, 20,4% dos/as sócios/as reconheceram ter ficado sem trabalho ou sem renda própria, muitas vezes ou por longo tempo; ao passo que 32,5% enfrentaram dificuldades de emprego e renda, poucas vezes, ou por pouco tempo. Não acusaram infortúnios dessa ordem 45,4% deles, o que confirma a impropriedade de se ver a economia solidária precipuamente como um paliativo ao desemprego.

Ao serem indagados, 94,5% dos informantes declararam ter exercido ou estar ainda exercendo o que estimam ser (ou ter sido) a sua “ocupação ou trabalho principal”. Em alguns casos, trata-se de ocupações polivalentes (agricultor, serviços gerais, comércio, etc.), ou mais específicas (ligadas ao artesanato, à pesca e à reciclagem, por exemplo), que, de um modo ou de outro, mantêm afinidades com as atividades econômicas dos EES, os quais representariam, assim, um meio de prolongar, qualificar e tornar viáveis conhecimentos profissionais e ocupações anteriores, além de, em certos casos, agregar funções e ampliar as competências profissionais de seus integrantes.

Como vimos, os EES não constituem uma fonte exclusiva de rendimentos. No ano anterior ao da coleta de dados, 42,7% dos/as sócios/as trabalharam em alguma atividade econômica externa ao EES. Nesse caso, para 53,4% deles a remuneração em dinheiro teve R$ 700,00 como limite máximo; sendo que na faixa imediatamente superior, 25,9% ganharam até R$ 1.500,00 mensais. Ao lado disso, outras ocupações simultâneas, citadas por um contingente menor, de 6,5%, acrescentaram um ganho médio de R$ 954,00. A considerar, ainda, remunerações de fontes desvinculadas do trabalho atual, o rendimento global sofre incrementos em certos casos: aposentadorias e pensões concediam, em média, R$ 874,78 para 17,2% dos sócios/as; e o Programa Bolsa-Família beneficiava 23% dos sócios/as, com um repasse mensal médio de R$ 150,45.17 17 Valores padronizados em referência a julho de 2013, da mesma forma que aqueles do mapeamento.

Contando com um perfil ocupacional e um esquema econômico-financeiro indissociável do núcleo familiar, trabalhadores, usuários e consumidores ingressaram nos EES em cadência crescente entre 1990 e 2010.18 18 O nível de ingresso tende a ser compreensivelmente menor nos anos mais distantes do período da coleta, em função da mortalidade dos EES, com a exclusão paulatina dos mais antigos do mapeamento, bem como do envelhecimento das pessoas, consequentemente afastadas da população em idade ativa. A variedade de motivos de adesão aos EES pode ser melhor compreendida à luz da tipologia anterior. Os EES de Tipo II exemplificam com nitidez que a economia solidária funciona, por vezes, como alavanca para viabilizar e fortalecer atividades produtivas de trabalhadores de baixa renda, com base na associação e na participação coletiva, sem prescrever as práticas econômicas anteriores. O papel dos EES consiste em contrabalançar as fragilidades inerentes da pequena produção, dada a sua diminuta escala de atividade, sua descapitalização e sua defasagem tecnológica, entre outros fatores limitantes.

Já a particularidade dos EES do Tipo III é a de que eles logram remunerar a maior parte dos seus trabalhadores, em sua grande maioria formada por pessoas que têm neles a sua principal fonte de renda. Esses EES são muitas vezes considerados como um modelo exemplar de economia solidária, visto que reúnem os requisitos de uma nova forma de trabalho e produção, com base na autogestão e na socialização parcial ou plena dos meios de produção. Contudo, sua ocorrência não reflete apenas um grau de consciência ou de vontade de seus integrantes, mas depende de circunstâncias objetivas específicas, não generalizáveis a todos os EES do tipo III e, menos ainda, aos dos tipos IV e V.

No Tipo IV, os EES promovem uma ativação econômica de beneficiários de programas de redistribuição de renda, fato que poderia representar um passo essencial para a redução do seu grau de dependência econômica (Ferrarini, 2008FERRARINI, Adriane. (2008), Pobreza: possibilidades de construção de políticas emancipatórias. São Leopoldo, Oikos.). Em contrapartida, eles funcionam como espaços de cultivo de vínculos sociais, como experiências de participação democrática que estimulam a formação de sujeitos ativos (Ferrarini e Veronese, 2010FERRARINI, Adriane; VERONESE, Marília. (2010), “Piracema: uma metáfora para o microempreendedorismo associativo no Brasil”. Otra Economía, IV, 7: 131-152.), não obstante as adversidades cotidianas que enfrentam em situações acentuadas de pobreza, tanto em áreas rurais quanto em periferias urbanas.

Considerações finais

Uma dúvida pode se haver instalado no espírito do leitor, ao término de uma exposição que enfatizou a natureza multifacetada da economia solidária: esse termo, afinal, sustenta-se conceitualmente? Para fins de análise e teorização, conceitos são úteis quando conjugam um valor explanatório a um valor heurístico: servem como quadro explicativo - ao menos preliminar -, que torna o real inteligível e conhecido antecipadamente, em algumas de suas características. Servem também por sua fecundidade, ao sugerirem questões e interpelarem o real sob diferentes pontos de vista.

No caso em apreço, não estamos diante de um conceito a priori sociológico, mas de um vocábulo oriundo do mundo social, gerado por um conjunto de atores e deles transferido para as ciências sociais. Daí sua flutuação semântica e sua carga valorativa. Ainda assim, ou por conta disso, ele evoca três processos sociais interrelacionados: a) uma construção político-ideológica de parte de organizações civis e movimentos populares, demarcando com isso um novo campo de práticas em relação às já conhecidas, do cooperativismo histórico ou da micro e pequena empresa - todos também com seus respectivos promotores e sua semântica própria; b) um novo alvo de ação das políticas públicas, pressupondo processos deliberativos e, simultaneamente, a adoção de premissas e definições com vistas a nomear o real e agir sobre ele; c) um conjunto de organizações econômicas populares – foco da análise empreendida no presente artigo – à medida que passaram a ter ou a ser reconhecidas por compartilharem, em grau diverso e sujeito a controvérsias, uma lógica social singular.

A particularidade do caso brasileiro é que, embora os empreendimentos solidários sejam a origem e a matéria-prima a partir das quais tudo o mais se justifica, seu reconhecimento e sua caracterização ocorreram com o concurso dos demais segmentos, dentre eles agentes de inúmeras organizações, responsáveis públicos, militantes de toda a sorte e, ademais, atores provenientes do mundo acadêmico. Produziu-se, assim, uma unificação simultaneamente conceitual e política.

Contudo, o fato não impede que o conceito de empreendimento solidário – e sua versão EES, gerada no âmbito dos mapeamentos para fins de classificação e registro – seja usado com fins descritivos ou analíticos, neutralizando-se a sua carga valorativa e adotando-se perspectivas de estudo em função de problemáticas (em nosso caso) sociológicas. Uma vantagem, no caso do Sies, são a diversidade e a abrangência dos dados. Isto traz a possibilidade de conectar setores ou universos independentes em suas respectivas construções históricas, como as cooperativas de produção agropecuárias ou de catadores de materiais recicláveis, contanto que sejam pertinentes a uma dada problemática e suscetíveis a algum grau de unidade conceitual.

Por conseguinte, são os prismas de análise o que pode vincular realidades em aparência díspares, tendo-se a consciência de que os conceitos servem a diferentes propósitos e que é ilegítimo para o estudioso encurtar caminho, valendo-se de metonímias e da inclinação ao imperialismo semântico, própria da política. Cabe ainda ter em vista a epistemologia latente de nossas abordagens, ou o modo como julgamos mais conveniente apreender determinadas realidades. No caso do presente artigo, tratou-se de compreender a economia solidária a partir dos seus membros natos, com seus itinerários de vida e trabalho, suas aspirações e estratégias.

Dado o declínio abrupto das políticas de governo direcionadas à economia solidária (Silva, 2018bSILVA, Sandro (2018b), “Crise de paradigma? A política nacional de economia solidária no PPA 2016-2019”. Mercado de Trabalho, 64: 163-172.; Gaiger, 2019GAIGER, Luiz. (2019), “La lucha por el marco legal de la economía solidaria en Brasil: déficit republicano y ethos movimentalista”. Cultura Económica, XXXVII, 97: 65-88.), soaria irrealista imaginar que elas voltem à cena nos próximos anos, e ainda menos com o vigor que propiciou as primeiras estatísticas nacionais. Não obstante o desmonte da ação pública, nesse e noutros campos, os empreendimentos solidários seguem em larga medida ativos, conforme atestam o CadSol e variadas movimentações dos atores sociais. Como demonstrou a primeira pesquisa nacional no Brasil (Gaiger, 2004GAIGER, Luiz (org.). (2004), Sentidos e experiências da economia solidária no Brasil. Porto Alegre, UFRGS Editora), eles não nasceram graças ao poder público, não sendo de se esperar que venham a sucumbir apenas por sua falta.19 19 É o que de alguma forma demonstra a análise aqui empreendida, na linha de trabalhos antes citados, como o de Veronese et al. (2017). A respeito dos processos de conformação de ativismos e movimentos sociais, vale consultar o interessante trabalho de Sanchez (2018). De resto, como já evidenciado por estudos em profundidade (Darós, 2016DARÓS, Marilene. (2016), Vínculos sociais e felicidade: um estudo sobre as relações humanas na economia solidária. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Unisinos, São Leopoldo.), a valorização de espaços de inserção social e de criação de laços, nas lides cotidianas ou via mobilizações coletivas, talvez seja o que melhor apreenda o sentido geral da economia solidária aos olhos de seus protagonistas. O desenvolvimento desse campo de práticas descredencia uma visão comum, que as via, anos atrás, como respostas lenitivas diante da pobreza e do desalento, não constituindo senão uma reação defensiva, sobretudo no campo do emprego. Por sua vez, os dados do Sies refletem a natureza contraditória dos processos de ação social. Afastando as posições mais céticas ou mais entusiasmadas, eles trazem argumentos quanto à compatibilidade entre papéis diversos da economia solidária, seja de resistência, seja de reparação ou compensação, ou ainda, de espaço propulsor de alternatividade social e econômica.

  • 1
    Trabalho resultante de pesquisas financiadas pelo CNPq.
  • 2
    As mudanças políticas transcorridas desde o Governo Temer produziram um franco refluxo nas ações de governo de fomento à economia solidária, gerando, consequentemente, uma situação calamitosa para a ação pública, que se agravou desde janeiro de 2019. Voltaremos a este assunto, ao final deste artigo.
  • 3
    Trata-se de um dicionário publicado originalmente no Brasil, em 2003, e que recebeu edições posteriores na Argentina (2004 e 2009), França (2005 e 2006), Itália (2005) e, novamente, no Brasil (2009).
  • 4
    A pesquisa amostral contou com recursos adicionais do CNPq, o que permitiu contratar e capacitar 60 entrevistadores, boa parte deles com experiência anterior em mapeamentos. Cabe ainda apontar que um dos autores do presente artigo tem sido beneficiado com bolsas de produtividade e diversos auxílios do CNPq, desde o ano 2000.
  • 5
    Boa parte da documentação relativa ao segundo mapeamento e à pesquisa amostral, incluindo aspectos metodológicos, publicações e acesso aos dados através de um atlas digital, está disponível no site do Projeto Sies, em cujo escopo ocorreu o tratamento das informações e a consolidação das bases de dados: http://sies.ecosol.org.br/. Mediante convênio com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2015, a Senaes disponibilizou as informações ao Observatório Nacional da Economia Solidária e Cooperativa, no qual se encontram indicadores e estudos setoriais, além de um mapa interativo, entre outras ferramentas: http://ecosol.dieese.org.br/.
  • 6
    O CadSol herdou os dados do segundo mapeamento, registrando 26.542 EES em 08/04/2019, dos quais 2.400 EES com atividades iniciadas a partir de 2014. Consultas e extrações de dados podem ser feitas em: http://cadsol.mte.gov.br/inter/cadsol/main.seam?cid=3998.
  • 7
    Assunto de atualidade da pauta jornalística. Veja-se, por exemplo, a Revista Carta Capital, de 08/05/2019.
  • 8
    Um indicador de fácil aferição são os artigos registrados na Scientific Electronic Library Online (SciELO), que exploraram recentemente os dados do Censo. Ver em: https://search.scielo.org/?lang=pt.
  • 9
    Seguiremos utilizando a sigla EES em referência a conceitos e dados do Sies.
  • 10
    Doravante, salvo menção em contrário, os dados em análise farão referência apenas ao segundo mapeamento.
  • 11
    O levantamento amostral observou standards de confiança em pesquisas estatisticamente representativas. Mas, por se referir a 15 Unidades da Federação, ele serve, para o restante do país, como uma base de projeção por inferência, à condição de inexistirem razões particulares em contrário, no tocante às variáveis em tela.
  • 12
    Entretanto, a taxa de sobrevivência das empresas cresceu desde 2008, chegando a 76,6%, em 2014, nas empresas com até dois anos de funcionamento. Entre elas, as microempresas apresentavam a menor cifra, de 55% (Sebrae, 2016SEBRAE. (2016), Sobrevivência das empresas no Brasil. Brasília., p. 26-24). Ainda assim, a melhora geral se coaduna com o que discutiremos a seguir.
  • 13
    A dimensão social e o caráter construído das necessidades não passaram despercebidos a Marx. De acordo com uma de suas grandes exegetas, Agnes Heller, isso explicaria que a tipologia marxiana tenha diferenciado “necessidades existenciais” de “necessidades propriamente humanas” (Heller, 1986HELLER, Agnes. (1986), La teoría de las necesidades en Marx. 2ª ed., Barcelona, Ediciones Península.: 170-171).
  • 14
    A pergunta era de resposta múltipla.
  • 15
    Esta linha interpretativa vai ao encontro das premissas de importantes iniciativas de redistribuição condicionada de renda, como o Programa Bolsa-Família, do qual um grande contingente de membros dos EES se tem beneficiado. Não é por falta de renda mínima, mas pela existência dela, que os trabalhadores podem enveredar por novos caminhos e persistir em concretizá-los.
  • 16
    Ademais, apenas 27,9% dos informantes não possuem pessoas dependentes de seus rendimentos entre aquelas que com eles coabitam, sendo 21,3% os casos de um único dependente.
  • 17
    Valores padronizados em referência a julho de 2013, da mesma forma que aqueles do mapeamento.
  • 18
    O nível de ingresso tende a ser compreensivelmente menor nos anos mais distantes do período da coleta, em função da mortalidade dos EES, com a exclusão paulatina dos mais antigos do mapeamento, bem como do envelhecimento das pessoas, consequentemente afastadas da população em idade ativa.
  • 19
    É o que de alguma forma demonstra a análise aqui empreendida, na linha de trabalhos antes citados, como o de Veronese et al. (2017)VERONESE, Marília; GAIGER, Luiz; FERRARINI, Adriane. (2017), “Sobre a diversidade de formatos e atores sociais no campo da economia solidária”. Cadernos CRH 30, 79: 89-104.. A respeito dos processos de conformação de ativismos e movimentos sociais, vale consultar o interessante trabalho de Sanchez (2018)SANCHEZ, Fábio. (2018), “Interrogações sobre as reconfigurações dos movimentos sociais - rupturas e continuidades”. in J. Barros, A. da Costa, C. Rizek (orgs.), Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios. São Carlos, IAU-USP, p. 101-112..
  • DOI: 10.1590/3510304/2020

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2018
  • Aceito
    08 Out 2019
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