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EMOÇÕES E AFETOS NA CONTROVÉRSIA SOBRE A ANENCEFALIA* * Este trabalho é resultado do Projeto “Religião, Direito e Secularismo” (n. 2015/ 02497-5), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a quem agradecemos o apoio.

EMOTIONS AND AFFECTIONS IN THE ANENCEPHALY CONTROVERSY

ÉMOTIONS ET AFFECTIONS DANS LA CONTROVERSE À PROPOS DE L’ANENCÉPHALIE

Resumos

Nesse artigo realizaremos a análise dos documentários sobre a anencefalia produzidos no período em que a ação que julgava a permissão da antecipação do parto de fetos anencéfalos tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF), entre 2004 e 2012. Duas questões serão observadas: a forma pela qual algumas figuras são construídas enquanto “vítimas” e a maneira pela qual a emoção e os sentimentos são acionados. Essas duas questões estão profundamente intrincadas na controvérsia em torno da anencefalia. Além dos documentários, também nos utilizaremos de passagens da audiência pública convocada pelo STF para esclarecimento sobre o tema. Ambos, documentários e audiência pública, são duas das cenas que compõem a controvérsia em torno da anencefalia. A partir da observação da exposição das experiências de pessoas concretas realizadas nessas duas cenas, observaremos como as emoções foram acionadas nessa disputa e de que maneira, a partir delas, procurou-se produzir sujeitos de direitos e figuras de vítimas.

Palavras-chave:
Controvérsias públicas; Aborto de anencéfalos; Igreja Católica; Religião e esfera pública


This paper analyzes the documentaries on anencephaly produced during the period in which the Brazilian Supreme Court was ruling on the anticipation of the birth of anencephalic fetuses, between 2004 and 2012. It observes two questions: the manner with which some figures are constructed as “victims” and how emotions and feelings are triggered. These two issues are deeply intricate in the controversy surrounding anencephaly. Besides the documentaries, we will also use passages from the public hearing convened by the STF for clarification on the subject. Both documentaries and the public hearing are two of the scenes that make up the controversy surrounding anencephaly. From the exposure of these people's actual experiences performed in these two scenes, we will observe how this dispute triggered emotions and how it was intended to produce subjects of rights and figures of victims based on these emotions.

Keywords:
Public controversies; Anencephalic abortion; Catholic church; Religion and public sphere


Dans cet article, nous analyserons les documentaires sur l’anencéphalie produits au cours de la période où l’action qui a jugé la permission de l’anticipation de l’accouchement de fœtus anencéphales a été réalisée à la Cour suprême brésilienne (STF) entre 2004 et 2012. Deux questions seront observées: la manière dont certaines figures sont construites comme des « victimes » et la manière dont l’émotion et les sentiments sont déclenchés. Ces deux questions sont profondément liées à la controverse autour de l’anencéphalie. Outre les documentaires, nous utiliserons également des extraits de l’audience publique convoquée par la Cour suprême pour obtenir des éclaircissements sur le sujet. Les documentaires et l’audience publique font partie de deux des scènes qui composent la controverse autour de l’anencéphalie. A partir de l’observation de l’exposition des expériences des personnes concrètes réalisées dans ces deux scènes, nous observerons comment les émotions ont été déclenchées dans ce conflit et comment, à partir d’elles, nous avons tenté de produire des sujets de droits et des images de victimes.

Mots-clés:
Controverses publiques; Avortement des anencéphales; Église catholique; Religion et sphère publique


Introdução

A controvérsia em torno da questão da anencefalia teve início com a liminar deferida pelo ministro Marco Aurélio Mello, em 2004, que permitia a antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia do feto. Esta liminar foi revogada em menos de quatro meses, mas o caso voltou a julgamento no ano de 2012, sendo antecedido por uma audiência pública no ano de 2008. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) foi impetrada por órgãos representativos dos trabalhadores da saúde e julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.1 1 Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira para o Desenvolvimento da Ciência, Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Rede Feminista e Escola Gente foram alguns das organizações que se colocaram favoravelmente à ADPF 54, pronunciando-se na audiência pública. Durante esse período, o tema entrou para o debate público, intensificando-se nos momentos próximos ao julgamento da ação e da audiência pública convocada para esclarecimento sobre a anencefalia.2 2 A anencefalia é caracterizada pela ausência do tronco encefálico no embrião, não havendo o desenvolvimento do cérebro do feto durante a gestação. O diagnóstico pode ser obtido por volta do terceiro mês de gestação, por exame de ultrassonografia. A audiência pública sobre a anencefalia foi realizada no ano de 2008, tendo sido ouvidos representantes de diversas entidades da sociedade civil, órgãos representativos de classe e instituições ligadas a denominações religiosas, havendo 18 manifestações favoráveis à ação e 11 manifestações contrárias.

Nesses dois momentos a anencefalia entrou para o debate público, gerando uma série de matérias, reportagens e documentários sobre o tema, que estavam divididos em dois polos: favoráveis ou contrários à antecipação do parto de fetos anencéfalos. Os agentes contrários foram intitulados de agentes “pró-vida” (por se alinharem em torno do argumento da defesa da vida humana desde a concepção), e os favoráveis, chamados de “pró-escolha” (em referência ao direito de escolha das mulheres que vivenciam a gestação de um feto anencéfalo).3 3 A pesquisa que deu origem a este artigo vem sendo desenvolvida desde 2014, quando assistimos à audiência sobre a anencefalia no Canal Justiça e acompanhamos a sua repercussão na mídia, identificando atores e argumentos colocados em discussão nestas duas cenas. Com base nessa primeira parte da investigação, constatamos a importância do argumento “em defesa da vida humana”, bem como a centralidade de alguns atores na controvérsia. Para a escrita deste artigo foram levados em conta especificamente os documentários, que foram produzidos por atores vinculados a instituições que se posicionaram publicamente pró ou contra a ADPF 54 na audiência pública ou na mídia.

A classificação dos dois blocos antagônicos em pró-escolha e pró-vida antecipa a disputa em torno dos direitos nessa controvérsia: os direitos das mulheres, por um lado, e os direitos de fetos e embriões, por outro. Os atores contrários à antecipação do parto de anencéfalos defendem a presença de vida do feto, afirmando que se trata da defesa do direito humano primordial: o direito à vida. Já os atores favoráveis à ação defendem o direito à liberdade de escolha e à dignidade humana das mulheres. A disputa é instaurada a partir das categorias e classificações dos direitos, mais especificamente dos direitos humanos.

Parcela significativa do repertório de justificativas produzido pelos agentes antiaborto em disputas envolvendo o início da vida humana estava relacionada à “defesa da vida” e ao estatuto de pessoa humana atribuído ao embrião/feto. Para a Igreja Católica, central nessa controvérsia, a “vida” – mesmo a chamada “vida ainda não nascida” – deve ser defendida4 4 Agentes ligados a instituições religiosas compõem um grupo de peso nas controvérsias envolvendo o início da vida, como foi também o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.510) sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas, em que a CNBB foi aceita como amicus curiae no processo. No julgamento da ADPF 54, a participação de agentes que a representavam ocorreu por outros meios, representando parcela importante do bloco “pró-vida”, realizando campanhas “em defesa da vida”, produzindo e circulando artigos sobre esse tema nas mídias católicas e não católicas, entre outras ações. (Sales, 2014SALES, Lilian. (2014), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil: posições e argumentos dos representantes da Igreja Católica”. Revista de Antropologia, 57 (1): 179-213.; 2015SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.). Posição semelhante é observada no espiritismo kardecista. A Federação Espírita Brasileira (FEB) e a Congregação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) são dois importantes atores nessa controvérsia, participam da audiência pública sobre a anencefalia, integram os movimentos antiaborto no Brasil, utilizam produções filmográficas sobre a temática do aborto e realizam campanhas em defesa da vida.

Dessa maneira, a controvérsia5 5 O conceito de controvérsia vem sendo utilizado como paradigma analítico para compreender a formação e a configuração recente do espaço público brasileiro e o papel dos agenciamentos religiosos nesta construção. Trata-se de um conceito a partir do qual temos observado o desenho de uma arena pública que emerge em situações de dissenso, confronto ou disputa (Montero, 2015; Sales, 2014; 2015). A inspiração para o uso desse conceito vem principalmente da leitura de autores franceses de linhagens relacionadas à Sociologia Pragmática, que colocam as situações de disputa como objetos de observação. em torno dessa questão extravasou as fronteiras da esfera judiciária onde ocorreu o julgamento da ação, entrando para o debate público e mobilizando atores em sua defesa ou em sua oposição, que criaram dispositivos e estratégias na defesa de seus posicionamentos. A produção filmográfica sobre a anencefalia foi um desses dispositivos, tendo sido realizados cinco documentários sobre esse tema no período, dois deles produzidos por instituições vinculadas a movimentos antiaborto, e outros três, por atores favoráveis à ação em julgamento. Neste artigo analisaremos alguns desses documentários, atentando para a maneira como os afetos e as emoções são mobilizados nessa disputa, sendo acionados nas produções vinculadas aos dois polos da controvérsia. Estamos considerando os documentários sobre a anencefalia como uma das cenas que compõem o campo problemático no qual a disputa está inserida. Será dada atenção particular também para a utilização desses documentários ao longo da audiência pública sobre o tema no STF, na qual os expositores, favoráveis e contrários à ação, expõem trechos dessas produções para defender seus argumentos e posicionamentos.

Católicos e espíritas “em defesa da vida”

O presente artigo se insere no contexto de análise das novas formas de atuação das religiões nas controvérsias públicas no Brasil, entre as quais está a participação em controvérsias públicas sobre o início da vida por parte de atores vinculados à Igreja Católica. Até os anos 1980, essa intervenção acontecia diretamente por meio das instituições católicas, como a CNBB, que representava o ator “pró-vida” que tentava interferir nos processos de tomada de decisão sobre questões relativas ao início da vida.6 6 Exemplo disso foi a tentativa realizada pela CNBB, durante o processo constituinte dos anos 1980, de inserir “a defesa da vida desde a concepção” no texto da Constituição Brasileira de 1988 (Rocha, 2005).

Mais recentemente, apesar de manter a participação direta nas disputas públicas, a Igreja Católica, por meio de suas instituições (pastorais, CNBB), também atua através da participação em movimentos, compondo os movimentos “pró-vida” no Brasil e se aliando a outros atores, na defesa de posicionamentos em comum, como é o caso da “defesa da vida desde a concepção”.

O posicionamento contrário à ADPF 54 englobou os principais movimentos antiaborto no Brasil, como o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto e a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, além das instituições religiosas católicas e espíritas. O primeiro movimento possui entre seus membros a Pastoral da Família (órgão da CNBB) e a Federação Espírita Brasileira (FEB). Já a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família está ligada à CNBB. Esses dois movimentos antiaborto tiveram suas posições representadas na audiência pública sobre a anencefalia convocada pelo STF no decorrer da ação, em 2008, no dia reservado às apresentações da “sociedade e movimentos”. Já a CNBB fez sua exposição no dia dedicado aos “religiosos”.7 7 A audiência pública foi dividida em três dias, cada um deles dedicado a um grupo: sociedade civil e movimentos, cientistas e religiosos.

A Igreja Católica incorpora uma nova forma de ação política a partir da redemocratização. Se no período da Constituinte a mobilização contrária ao aborto foi liderada pela CNBB, a partir dos anos 1990, com a organização dos movimentos “pró-vida” no Brasil, a congregação e suas pastorais passam a integrá-los, assim como organizações que também estão conectadas com ativistas e redes internacionais “pró-vida”. Esses movimentos antiaborto se autointitulam “laicos”, ou “arreligiosos”, e não como pertencentes a uma religião.8 8 Patricia Rezende, em sua dissertação de mestrado sobre o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto, classifica-o como um contramovimento, no sentido de que ele se trata de uma reação aos movimentos feministas e de mulheres que colocam na agenda nacional a discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil. É nesse cenário nacional favorável às pautas dos movimentos de mulheres que se organiza este contramovimento (Rezende, 2016).

Essa forma de atuação da Igreja Católica está relacionada às novas configurações do espaço público brasileiro, especialmente no que se refere à intervenção das religiões, como o catolicismo, nas questões de interesse público. A necessidade de justificação dos posicionamentos católicos aconteceria no momento que o “consenso” católico passa a ser questionado, como mostra uma série de ações levadas aos tribunais recentemente (Montero, 2015MONTERO, Paula. (2015), Religião e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.; Sales, 2015SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.). A necessidade de justificação dos valores católicos se deveria, em parte, à expansão das religiões pentecostais e neopentecostais no país9 9 Essa expansão numérica é acompanhada do fortalecimento da representação política de políticos evangélicos no Congresso Nacional a partir do fim da década de 1980, e posteriormente com o surgimento da chamada “Frente Parlamentar Evangélica”, bem como da mobilização de atores vinculados a essas religiões em questões colocadas em pauta na esfera pública nacional, além das ações de ocupação física do espaço público, como a Marcha para Jesus, entre outras. Ou seja, os evangélicos não apenas crescem, mas cada vez mais “aparecem”, mobilizando-se publicamente nas diversas esferas. , acompanhada de uma mudança na sensibilidade e na percepção daquilo que seria de interesse coletivo.

Assim, se o catolicismo, historicamente, com sua forte presença institucional e força simbólica, ocupou posição-chave como agência reguladora da vida social, fomentadora de formas de mobilização e construção de uma cultura cívica brasileira e de uma moralidade pública, hoje se vê em um contexto no qual suas posições necessitam de justificação e mobilização para se tornarem convincentes.

Nesse cenário nacional marcado pelo pluralismo religioso, os estudos sobre a presença das religiões nas questões de interesse público no Brasil apontam que as religiões manifestam suas demandas e convicções na linguagem pública adequada à cena na qual a controvérsia se desenrola, como é o caso da utilização do léxico científico10 10 A utilização de elementos das ciências vem sendo constatada em controvérsias na arena pública brasileira, especialmente nas esferas jurídica e política envolvendo atores religiosos, não apenas católicos, mas também evangélicos e representantes das religiões afro-brasileiras (Luna, 2013; Campos Machado, 2015; Sales, 2015). O modus operandi acadêmico científico deu o tom das discussões sobre o “início da vida”, presente em duas ações julgadas pelo STF: o julgamento da ADPF 54, sobre a permissão da interrupção da gestação de fetos anencéfalos, e o julgamento da ADI 3.510, sobre a possibilidade de uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas (Luna, 2013; Sales, 2015). , dos direitos e também dos direitos humanos. Nesse aspecto, há grande número de experts, cientistas e juristas que defendem publicamente as posições da Igreja Católica. No caso de duas disputas recentes ocorridas no STF envolvendo o “início da vida” – sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas (ADI 3.510) e sobre a possibilidade de antecipação do parto de fetos anencéfalos (ADPF 54) –, juristas e cientistas ligados à Igreja Católica realizaram exposições contrárias às ações. A defesa da convicção de que a vida se inicia na fecundação, presente no catolicismo, é feita por atores que dominam as linguagens em jogo nas arenas em questão: das ciências e dos direitos (Sales, 2015SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.).

Dessa forma, pesquisas anteriores já demonstraram que, na encenação das justificativas durante as audiências públicas, as exposições de atores representantes de instituições religiosas não mencionaram elementos convencionalmente compreendidos como religiosos, como dogmas de fé, crenças e ritos. Pelo contrário, a argumentação seguia a estrutura de um “secularismo estratégico” (Vaggioni, 2017VAGGIONI, Juan. (2017), “La Iglesia Católica frente a la política sexual”. Cadernos Pagu, 50: s.p.), apoiando-se em elementos das ciências e dos direitos.

Outra característica da atuação do catolicismo “em defesa da vida” é a integração nos movimentos sem vinculação religiosa definida, cujo exemplo mais significativo é o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto11 11 Segundo Rezende (2016), este movimento reuniu 120 representantes de 12 estados brasileiros, sendo lançado através do “Manifesto à Nação” e da “Campanha Nacional em Defesa da Vida”. Ele projetou pela primeira vez no Brasil a contramobilização de dentro das instituições para a arena pública das ruas e da mídia em marchas por todo o país, que eram animadas por slogans como: “Por um parlamento em defesa da vida”, “Decida-se pela vida: vote em candidatos que são contra o aborto” e “Vida, sim. Aborto, nunca!”. . Ultrapassa, assim, os limites impostos pelo isolamento do ativismo antiaborto de caráter estritamente religioso ao integrar movimentos que se autodenominam aconfessionais e suprapartidários.

Nesse artigo nos deteremos em outra característica dessa atuação de atores, movimentos e instituições vinculados às religiões nas controvérsias sobre o “início da vida”: os elementos de sensibilização que toquem as emoções e os afetos. Ao acionamento de gramáticas das ciências e dos direitos na formulação das justificativas são acrescentados os elementos de sensibilização, por meio do relato de histórias reais, imagens, vídeos e cenas que demonstram sofrimentos, alegrias, relações, emoções. A dramaticidade – sobretudo por meio de imagens, vídeos e narrativas personalizadas – é parte importante da controvérsia, está presente e compõem as justificativas favoráveis e contrárias à ação judicial.

A produção de documentários envolvendo o tema da anencefalia foi uma das estratégias para se publicizar essa questão, fazendo com que ela extravasasse a arena judiciária onde estava sendo julgada a ADPF 54. Essa produção filmográfica tem uma dimensão valorativa bastante presente, tocando diretamente os afetos dos indivíduos e atribuindo carne e sangue aos discursos científicos e jurídicos. Além disso, trechos desses documentários foram utilizados ao longo da audiência pública sobre anencefalia. Dessa maneira, a dimensão emocional adentra a esfera judiciária durante a cena da audiência, nas imagens e nas narrativas que compõem as falas dos expositores.

A pesquisa que deu origem a esse artigo vem sendo realizada desde 2012, quando levantamos dados referentes à ADPF 54 – inventariamos os atores envolvidos, as publicações realizadas na mídia sobre o tema, os expositores da audiência pública e mapeamos a circulação dos atores de destaque nessa controvérsia. Acumulamos um vasto material sobre as disputas em torno do tema da anencefalia, especialmente o que se refere aos argumentos produzidos na audiência pública e às reportagens e matérias na mídia escrita e televisiva.12 12 Resultados parciais dessas pesquisas podem ser observados em Sales (2015) e Montero, Sales e Silva (2018). A análise desse material nos apontava para o lugar de destaque ocupado pelos documentários e pelos casos relatados por eles, na controvérsia sobre a anencefalia, sendo mencionados nas matérias jornalísticas e utilizados pelos expositores na audiência pública. O presente artigo, portanto, insere-se no escopo de uma pesquisa mais ampla, que se dedica a estudar as controvérsias públicas sobre o início da vida a partir das discussões e mobilizações referentes às ações julgadas pela Suprema Corte.

A Constituição de Sujeitos de Direitos

O esforço argumentativo dos blocos que se antagonizavam nessa controvérsia estava direcionado à constituição de uma das figuras – gestantes ou feto anencefálico – em sujeitos de direitos. Direito à vida, liberdade de escolha, liberdade de consciência e dignidade humana são categorias dos direitos humanos acionadas pelos atores nos dois polos da controvérsia. A imputação do direito à vida aos fetos anencefálicos é o elemento central da estratégia discursiva do bloco antiaborto, enquanto o bloco pró-escolha insiste na dignidade humana e na liberdade de escolha e consciência das mulheres grávidas de fetos anencefálicos. A gramática dos direitos humanos é central, tendo seu léxico e modus operandi acionados com frequência e servindo como dispositivo de legitimação para os argumentos e posicionamentos. A criação do convencimento na arena pública em que essa controvérsia se desenrola passa pela utilização desse léxico.

No entanto, considera-se também a existência de um jogo de símbolos e valores como pano de fundo das razões evocadas. Os elementos de sensibilização, pelo relato de histórias reais, por imagens e vídeos que demonstram sofrimentos, alegrias, relações, emoções e narrativas pessoais, são parte importante das tentativas de convencimento. Assim, por um lado, há um distanciamento dos casos pessoais, uma generalização por meio de justificativas formuladas com base em elementos e termos jurídicos, científicos e dos direitos humanos. Por outro, essas mesmas justificativas são repletas de relatos pessoais, de histórias de sofrimento e alegria de pessoas reais, incorporadas aos discursos por meio de suas fotografias e de suas histórias relatadas em cartas e vídeos.

Saímos, portanto, do plano da abstração e da generalidade da linguagem dos direitos humanos para nos focarmos na concretude da vida das pessoas, em documentários e fotografias, em cartas e testemunhos que compõem essa controvérsia. Nesse processo, duas questões profundamente intrincadas serão observadas: a forma pela qual algumas figuras são construídas enquanto “vítimas” e a maneira pela qual a emoção e os sentimentos são acionados.

A figura da vítima, segundo Cynthia Sarti, é central no discurso contemporâneo sobre a violência, como forma de conferir reconhecimento social ao sofrimento, que se define pela noção de direitos. Segundo a autora, a vítima “é uma figura da contemporaneidade, quando o discurso sobre a violência se volta para o sujeito que a sofreu, a partir de uma noção afirmativa desse sujeito enquanto sujeito de direitos” (2014, p. 82).13 13 O processo de produção de vítimas está tanto associado à produção de grupos como ao fato de determinados grupos serem vulneráveis a violências específicas, tornando-se potenciais vítimas e detentoras de direitos específicos. E, nesse contexto, a construção da figura da vítima opera no sentido de construir uma forma socialmente inteligível de expressar e fazer reconhecer o sofrimento, legitimando demandas. A construção de figuras de vítimas é uma forma de se reconhecer o sofrimento imputado e de se consolidar direitos.14 14 Segundo Wieviorka (1997), foi a questão dos direitos que nomeou a violência e a qualificou enquanto tal, associando a figura da vítima aos direitos. Além disso, de acordo com Janine Barbot e Nicolas Dodier (2011), o contexto atual é marcado pela atenção crescente atribuída à luta contra o sofrimento no espaço público15 15 Os trabalhos de Luc Boltanski (1999), sobre a exposição do sofrimento, também apontam nessa direção. , sendo que a produção de figuras de vítimas nesse contexto aportaria ainda mais legitimidade e força para as suas demandas – no caso analisado, demandas por direitos.

A produção de vítimas está relacionada à segunda questão, sobre o acionamento das emoções e dos sentimentos ao longo da ação, inclusive na cena da audiência pública. Para que determinados grupos – mulheres grávidas ou fetos anencefálicos, por exemplo – sejam reconhecidos enquanto vítimas e sujeitos de direitos, é preciso dar intelegibilidade aos seus sofrimentos. Os documentários, cartas e relatos assumem esse papel, sendo dispositivos de expressão das emoções e dos afetos de quem vivenciou essa situação: a anencefalia.

Entretanto, por meio da explicitação de sentimentos e afetos, de nosso ponto de vista, também se constitui públicos. Estamos considerando a anencefalia enquanto um problema de interesse público, adotando a abordagem da sociologia dos problemas públicos, segundo a qual, paralelamente ao surgimento de um problema de interesse público – como, no caso, a anencefalia –, acontece a constituição de um público. Grupos, atores, organizações emergem das discussões em torno da questão, interagem, emitem opiniões e posições referentes ao tema colocado em pauta, transformando essa questão em um problema público. Esse público vai sendo constituído ao longo das discussões e mobilizações sobre o tema.16 16 Nos termos de Daniel Cefaï, essa abordagem da sociologia dos problemas públicos retrabalha a noção de “público” a partir de John Dewey, Robert E. Park e George H. Mead, autores da filosofia pragmatista norte-americana. Essa abordagem se desenvolveu na França a partir da década de 1990 e “pouco a pouco foi desenhando uma ecologia da experiência e da ação pública, como fundamento de uma democracia centrada na definição e na resolução de problemas públicos” (Cefaï, 2017, p. 188). Nessa perspectiva, público e problema de interesse público são constituídos simultaneamente, no processo conflituoso de debates e posicionamentos acerca de questões sobre as quais não há um consenso estabelecido, ou sobre as quais o consenso é rompido (Cefaï e Terzi, 2012CEFAÏ, Daniel; TERZI, Cédric. (2012), L’expérience des problèmes publics. Paris, EHESS. Collection «Raisons Pratiques», 22.; Cefaï, 2017CEFAÏ, Daniel. (2017), “Públicos, problemas públicos, arenas públicas”. Novos Estudos Cebrap, 36 (1): 187-213.).

Nesta perspectiva, o problema público e o público apenas podem ser entendidos a partir da compreensão da sua emergência e do avanço do problema no seu espaço de debate, investigação e experiências constantes, sendo que a experiência – mais especificamente a experiência sensível – ganha centralidade. O distúrbio, a desordem, o campo problemático em torno de uma questão começa a nascer de provas afetivas, sensíveis ou avaliativas que perturbam a base de evidência da vida cotidiana e levam a fazer investigações. Os afetos e as emoções, nessa abordagem, podem gerar reflexões sobre as situações perturbadas e estimularem à ação, especialmente quando as emoções são compartilhadas por vários sujeitos, podendo impulsionar a ação coletiva. A emoção é entendida enquanto prática, não podendo ser separada da situação ou do objeto que a suscitou (Queré, 2012QUERÉ, Louis. (2012), «Le travail des émotions dans l’expérience publique. Marées vertes en Bretagne», in Daniel Cefaï & Cédric Terzi (dir.), L’expérience des problèmes publics. Paris, EHESS. p. 135-162. Collection «Raisons Pratiques», 22.).

Dessa forma, a experiência sensível e compartilhada está na origem da formação do problema público e do público. Trata-se, em muitos casos, de uma experiência sensível e coletiva/compartilhada pelos sujeitos que “têm a experiência” de uma imagem, um vídeo, um documentário e se sentem concernidos com a situação perturbada. Nos termos de Daniel Cefaï, a ação coletiva não está toda no agir, mas também no sofrer e no compartilhar. Ela tem uma dimensão de afeição e paixão coletiva que é compartilhada pelos sujeitos ao experienciarem uma determinada situação (Cefaï, 2009CEFAÏ, Daniel. (2009), «La fabrique des problems publics: boire ou conduire, Il faut choisir», in Joseph Gusfield (2009[1981]), La culture des problèmes publics: l’alcool au volant et la production de l’ordre symbolique. Paris, Éditions Economica.). Essa afetividade em comum – a emoção, o mal-estar, o nojo, o entusiasmo – toca a moral e as sensibilidades coletivas, sendo vivenciadas in situ, ou seja, diante de uma situação específica.

Os públicos que se formam são primeiramente afetados por situações problemáticas. Os sujeitos são abalados, tocados, afetados por uma situação perturbada, sendo concernidos por essa situação. Forma-se, então, uma comunidade de sentimentos, constituída por pessoas que compartilham uma emoção diante de uma situação determinada17 17 Destacamos que esse concernimento não é exclusivo das pessoas diretamente afetadas pelo problema público. Ela pode ser uma experiência individual, pode ser uma experiência em segunda pessoa, ou ainda uma experiência de um outro generalizado (terceira pessoa). O que há em comum entre elas é a capacidade que essa experiência tem de concernir por meio compartilhamento de determinados afetos e sentimentos. Esses diferentes níveis de experiência formam um público, uma comunidade que compartilha a experiência comum de uma situação problemática e também as consequências danosas dessa situação (Cefaï, 2018). , por sujeitos que compartilham sentimentos diante de uma situação problemática. Essa experiência coletiva tem continuidade por meio da formulação de críticas, das denúncias, das reivindicações a respeito da situação em disputa, buscando a aprovação e o concernimento de públicos mais amplos (Cefaï, 2017CEFAÏ, Daniel. (2017), “Públicos, problemas públicos, arenas públicas”. Novos Estudos Cebrap, 36 (1): 187-213.).

Por meio desse processo de experiência e investigação constantes, aquilo que era antes percebido como uma perturbação – sensível, mas fugaz – adquire consistência de fenômeno público, possuindo nome, estando associado a imagens, tornando-se um fenômeno sobre o qual se pode atribuir causas e imputar responsabilidades. E, com isso, público e problema público se cristalizam, ganhando configurações específicas.

Nesse processo de constituição de públicos, a dimensão valorativa e afetiva é central. As emoções e os sentimentos são mobilizados na busca de se constituir aderência, apoio a uma das causas em disputa. A demonstração de quanto uma questão é cruel, por exemplo, pode compor parte importante do processo de mobilização em torno de um problema público (Cefaï e Pasquier, 2003CEFAÏ, Daniel; PASQUIER, Dominique. (2003), Les sens du public: publics politiques, publics médiatiques. Paris, PUFF-CURAPP.). Nesse aspecto, observaremos a produção filmográfica também como instrumento político, no sentido atribuído por Daniel Cefaï, Mathieu Berger e Carole Gavet-Viad (2011)CEFAÏ, Daniel; BERGER, Mathieu; GAYET-VIAD, Carole. (2011), Du civil au politique: ethnographies du vivre-ensemble. Bruxelles, Peter Lang., como forma de constituição e mobilização de um público em torno de uma questão, no caso, a anencefalia.18 18 Nosso ponto de partida é a concepção de que o político emerge cada vez que coletivos se formam, interrogam-se e se engajam em torno de uma disputa, como no caso da disputa jurídica impetrada no STF em torno da possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos. Estamos nos utilizando da concepção de Daniel Cefaï e Dominique Pasquier (2003), de seu livro Du civil au politique: ethnographies du vivre-ensemble, que considera o político não como sendo determinado a priori, mas sim o resultado das mobilizações coletivas ou de controvérsias públicas. Aquilo que é o “político” não é fixado antecipadamente, mas construído ao longo do processo e como resultantes desse processo. Seria preciso observar e descrever como o político é fixado ao longo dos diversos processos do vivre-ensemble. Dessa maneira, consideramos os filmes e documentários como dispositivos para a sensibilização e instrumentos utilizados para se concernir e mobilizar públicos ao longo dessa controvérsia.

Para analisar essas duas questões – o uso das emoções e a produção de vítimas e comunidades de sentimento –, analisaremos os documentários e algumas passagens da audiência pública, privilegiando os momentos em que as imagens, os vídeos e as narrativas foram utilizados pelos palestrantes.

No caso dos grupos antiaborto, o uso de imagens, vídeos e documentários não é recente. Esse tipo de produção tem início com o documentário O grito silencioso19 19 Bernard Nathanson apresenta e narra o filme The silent scream (1984). , de 1984, e permanece ao longo dos anos. Naara Luna (2014)LUNA, Naara. (2014), “Aborto e corporalidade: sofrimento e violência nas disputas morais através de imagens”. Horizontes Antropológicos, 20 (42): 293-325., ao analisar parte da produção fílmica que circula entre os movimentos antiaborto no Brasil, observa que o uso de imagens, filmes e documentários por esses grupos é recorrente. No que se refere à temática específica sobre a anencefalia, levantamos a produção de cinco documentários sobre o tema, sendo três deles favoráveis à ação: Uma história Severina (2005), Habeas Corpus (2005) e Quem são elas (2006). Já no que se refere ao bloco contrário à ADPF 54, localizamos a produção de dois documentários: Flores de Marcela (2009)FILHO, Glauber. (Direção e roteiro). (2009), Flores de Marcela [DVD]. Fortaleza, Estação Luz Filmes. e Eu, Vitória (2012), ambos realizados pela produtora Estação Luz Filmes e com o apoio da Federação Espírita Brasileira.

Os documentários: produtores e protagonistas

Produtores

A Estação Luz Filmes20 20 A Estação Luz Filmes é uma produtora cinematográfica ligada à Associação Estação da Luz, entidade sem fins lucrativos que realiza projetos de intervenção nas áreas de saúde e educação. A produtora de filmes faz parte dessa associação e afirma ter como objetivo “realizar obras cinematográficas, de abrangência nacional e internacional, ligadas à Cultura de Paz e à Espiritualidade”. é a produtora dos documentários Flores de Marcela e Eu, Vitória, ambos dirigidos por Glauber Filho. Esta produtora realiza filmes de temática espírita. Possui entre seus títulos alguns filmes emblemáticos do espiritismo, como as produções Chico Xavier (2010), Mães de Chico Xavier (2011) e Bezerra de Menezes (2008), todas produções de grande circulação nacional sobre personagens centrais do espiritismo no Brasil.

Já a postagem no YouTube do documentário Flores de Marcela é realizada pelos promotores da vida, grupo da Igreja Católica ligado ao Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto. Os promotores da vida atuam nas paróquias e se colocam como “defensores da vida”, participando de eventos como a marcha anual em defesa da vida.21 21 Essa marcha acontece anualmente, no segundo domingo de junho, e cada ano tem como tema alguma questão relacionada à “defesa da vida” e contra o aborto. A postagem acontece no ano de 2012, quando a controvérsia sobre a anencefalia estava bastante ativa, alguns meses antes da votação da ADPF 54 pelo STF. Já o documentário sobre Vitória é disponibilizado no YouTube apenas em 2013, após a votação da anencefalia no STF, talvez por isso não obtido a mesma notoriedade de Flores de Marcela.22 22 Os dois documentários estão disponíveis na página da produtora Estação Luz Filmes (www.estacaoluzfilmes.com.br/producoes) e também no YouTube. Na página da produtora não é possível saber o número de visualizações, mas ela com frequência os partilha em sua página do Facebook. No YouTube, o documentário Flores de Marcela obteve 32.304 visualizações, e o documentário Eu, Vitória foi visualizado 84.742 vezes até a redação deste artigo.

Além do apoio formal da Federação Espírita Brasileira, presente nos créditos dos documentários, as duas produções têm o patrocínio de dois movimentos antiaborto no Brasil, o Movida: movimento a favor da vida e o já mencionado Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto.

Constatamos que os atores individuais e coletivos se repetem nas diversas cenas que compõem esta controvérsia. Os movimentos e as instituições que se pronunciam na audiência pública sobre a anencefalia são os mesmos que produzem e/ou circulam documentários, notícias e fazem campanhas “em defesa da vida”. Conforme mencionado, a Federação Espírita Brasileira e instituições ligadas à Igreja Católica, como pastorais da CNBB, compõem esses movimentos antiaborto no Brasil. Além disso, ambas (FEB e CNBB) tiveram representantes expositores na audiência pública realizada no STF, assim como os dois movimentos pró-vida (Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto e Movida) também tiveram espaço para expor seus posicionamentos.

Protagonistas

Marcela de Jesus e Vitória de Cristo

Marcela e Vitória foram as protagonistas de dois documentários (Flores de Marcela e Eu, Vitória), importantes na controvérsia sobre a anencefalia. As duas meninas foram diagnosticadas com anencefalia com semanas no ventre materno, e suas mães decidiram manter a gravidez. Marcela viveu um tempo excepcional para um feto diagnosticado com anencefalia, um ano e oito meses, e um documentário sobre sua vida foi realizado quando a menina tinha um ano e dois meses. No momento do julgamento, em 2012, ela já havia falecido, mas seu nome foi citado várias vezes ao longo da audiência pública sobre o tema. Cenas do documentário foram mostradas pelos expositores do bloco pró-vida, assim como fotos e exames da menina: ultrassonografias, tomografias etc. Marcela de Jesus foi o nome predominante nessa audiência e também – como na controvérsia mais ampla – em reportagens e notícias sobre a ação.

Para o bloco pró-vida, a menina era o exemplo de que fetos diagnosticados com anencefalia podem sobreviver após o nascimento, fora do útero materno. Por isso a importância da exibição da sua vida no documentário, juntamente com os exames e laudos que diagnosticavam a sua condição de anencefalia, sendo ambos importantes para o argumento do bloco contrário à ação de que fetos diagnosticados com anencefalia têm vida.

Já o caso de Vitória de Cristo é mais recente. Ela nasceu em 2010 e viveu por dois anos e meio. A menina estava presente nos braços de seus pais no dia da votação da ADPF 54 no STF, na mobilização contrária à ação ocorrida em frente à Suprema Corte. Vitória representava a comprovação física aos ministros da corte de que um feto diagnosticado com anencefalia poderia sobreviver.23 23 O argumento utilizado pelo bloco favorável à ADPF 54 era o de que o diagnóstico de anencefalia seria um diagnóstico de morte, pois o feto não poderia sobreviver fora do corpo da mãe, morrendo segundos ou minutos após o nascimento, ou ainda no ventre materno. O caso de Vitória também foi bastante divulgado em reportagens em jornais, televisão e blogs, sendo sempre acompanhadas de uma imagem da bebê.24 24 Reportagens: “‘Ela tem sentimentos’, diz mãe sobre filha com diagnóstico de anencefalia”, G1, 11 abr. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/04/ela-e-ser-com-sentimentos-diz-mae-de-crianca-de-2-anos-com-anencefalia.html, consultada em 28 maio 2019. LIMA, Wilson. “‘Minha filha não é um monstro’, diz mãe”, iG Brasília, 11 abr. 2012. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/minha-filha-nao-e-um-monstro-diz-mae/n1597738615699.html, consultada em 28 maio 2019. “Grupo protesta em frente ao STF contra aborto de feto sem cérebro”, G1, 11 abr. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/grupo-protesta-em-frente-ao-stf-contra-aborto-de-feto-sem-cerebro.html, consultada em 31 maio 2019.

As duas meninas ganham centralidade em momentos diferentes da controvérsia. Marcela é protagonista importante na primeira fase da controvérsia, sendo o caso amplamente referido na audiência pública sobre o tema, realizada em 2008. Já Vitória ganha centralidade no segundo momento, em 2012, próximo à votação da ADPF 54.25 25 Na cena do julgamento não houve espaço para os elementos de sensibilização, por não se tratar de um momento aberto à sociedade civil ou a testemunhos, como foi a audiência pública.

Severina, Érica e Michele

O bloco pró-escolha também produziu documentários e filmes ao longo da controvérsia, tendo como protagonistas as mulheres que receberam o diagnóstico de anencefalia em suas gravidezes. Duas produções se destacam, tendo sido citadas e/ou utilizadas ao longo da audiência pública: Uma História Severina e Quem são elas.26 26 O documentário Quem são elas foi visualizado 1.913 vezes no YouTube até 4 de junho de 2019 e esteve disponível em outras plataformas digitais, como o Porta Curtas ( http://portacurtas.org.br/filme/?name=quem_sao_elas ). Já o documentário Uma História Severina foi visualizado 127.147 vezes no YouTube e ganhou grande repercussão, obtendo o prêmio de Melhor Filme no Curta Cinema, em 2005, no Rio de Janeiro, e o terceiro lugar no festival Fort Lauderdale, em 2005, nos Estados Unidos. As duas produções são dirigidas por Débora DinizDINIZ, Débora (Direção e roteiro); PARANHOS, Fabiana (Direção de produção). (2006), Quem são elas? [DVD]. Brasília, Imagens Livres., antropóloga e integrante da rede feminista Anis, que também foi expositora na audiência pública sobre a anencefalia.27 27 O documentário Uma História Severina é dirigido por Débora Diniz e Eliane Brum.

Se as meninas diagnosticadas com anencefalia dão nome aos documentários do bloco antiaborto, no outro polo da controvérsia são as mulheres que recebem esse diagnóstico que nomeiam os documentários e são colocadas em destaque na audiência pública. Os nomes, os rostos e as vozes das mulheres que interromperam suas gestações ou que a levaram a termo irrompem nos documentários, compondo as justificativas do bloco favorável à ADPF 54.

Mulheres como Severina, Érica, Michele. Érica e Michele contam suas histórias no documentário Quem são elas, que traz os relatos de quatro mulheres que interromperam suas gestações de fetos anencéfalos durante o curto período em que a liminar do STF que permitia esse procedimento esteve vigente.28 28 Em 2004 o Ministro Marco Aurélio de Mello defere uma liminar que permite a interrupção da gestação em casos de anencefalia do feto. Entretanto, essa liminar esteve pouco tempo em vigência, sendo revogada quatro meses depois. Durante esse curto período, as mulheres foram autorizadas a realizar o procedimento de interrupção da gestação sem a necessidade da autorização judicial que, porém, voltou a ser necessária no período entre a revogação da liminar, ocorrida ainda em 2004, e o julgamento da ADPF 54 pelo STF, que legalizou o aborto em caso de anencefalia do feto em 2012. Segundo as produtoras, o documentário é uma resposta à pergunta de um dos ministros durante o julgamento da limitar: “Mas quem são elas?” Partes do documentário foram utilizadas na audiência pública, como durante a exposição de Lia Zanotta, representante da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, mostrando os relatos de Érica e de Michele.

Michele também compareceu no dia da audiência, acompanhada de seu marido e dos dois filhos que tiveram após a interrupção da gestação relatada do documentário. Ela é convidada a falar nessa audiência e conta a sua história.

As histórias das mulheres que puderam interromper suas gestações são acompanhadas pelas histórias (mais trágicas) daquelas que não puderam realizar o procedimento. Entre esses relatos ganha destaque a história de Severina, contada no documentário Uma história Severina. Ela estava internada em um hospital público do Recife no momento que a liminar do STF é derrubada, não podendo interromper sua gestação e tendo de voltar para casa ainda grávida. O documentário relata a sua “peregrinação”29 29 “Peregrinação” é o termo utilizado pela antropóloga Débora Diniz para descrever o longo percurso de Severina e seu marido, Rosivaldo, até obterem a autorização judicial e encontrarem um hospital que a acolhesse para a realização do procedimento médico. por mais três longos meses pelos tribunais, e depois pelos hospitais, para enfim conseguir a autorização judicial para a realização do procedimento e uma vaga em hospital público para antecipar o seu parto. O caso de Severina é citado por três expositores durante a audiência pública, representando a corporificação do argumento do bloco favorável à ação sobre o desrespeito à liberdade de escolha e à dignidade humana das mulheres grávidas de fetos anencéfalos. Nos termos dos defensores da ação, Severina foi “obrigada a manter-se grávida por mais três meses, a sentir o feto mexer em seu ventre e a enterrar um natimorto”.30 30 Segundo pareceres do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp; pareceres 40.191/00, 34.775/00, 22.770/94), os fetos com mais de 500 gramas devem ter atestado de óbito e serem enterrados, e passam a constar nas estatísticas de natalidade como “natimorto”. Resolução semelhante é dada pelo Conselho Federal de Medicina (resolução 1.601/00). A sua dignidade humana e a sua liberdade de consciência e escolha lhe teriam sido tolhidos.

Os documentários e suas sequências

Sequência 1: Severina e sua malinha

A cena do documentário Uma História Severina é do dia 10 de janeiro, data em que Severina obteve a autorização judicial para interromper a sua gestação. A cena a mostra saindo de casa com sua mala de maternidade às 13h30. Mala que ela apenas preparou no momento que conseguiu o “papel”, a autorização judicial para a interrupção da gestação. Na sua malinha de maternidade não há roupinhas de bebê, não houve a preparação do enxoval. A cena seguinte mostra Severina em uma loja de roupas de bebê, antes de chegar à maternidade. Ela está comprando uma roupinha para ele. Ela fala para a vendedora, que insiste em lhe mostrar outros itens do enxoval: “Não, é só a roupinha, porque ele não vai sobreviver mesmo…”. Ela estava comprando a roupa do enterro de seu filho. A vendedora não sabe muito bem o que fazer, fica sem ação diante da resposta de Severina. A câmera fecha na expressão de sofrimento de Severina.

A imagem remete aos espectadores o universo dos objetos e símbolos que circundam a espera de um bebê. Severina é uma mulher grávida em uma loja de enxovais, e o esperado é que ela se interesse por vários itens. A cena dialoga com a metáfora utilizada pelos atores favoráveis à ADPF 54: a substituição da preparação do berço pela preparação do caixão, mulheres como Severina a prepararem o enterro dos filhos logo após o nascimento. A preparação do berço e do enxoval, que marcam a chegada de uma criança, é substituída pela preparação do caixão e do enterro. Era isso que Severina fazia na loja de enxovais: preparava o enterro de seu filho, ainda estando com ele em seu ventre.

A dramaticidade da situação vivenciada por Severina é exposta na cena, que mostra a loja, assim como exibe outras mulheres escolhendo os itens do enxoval de seus bebês. Expõe a crueldade da situação experenciada por Severina por não ter podido interromper previamente a sua gestação. Ela precisará enterrar seu filho, pois o feto já pesa mais de 500 gramas, e para isso precisará vesti-lo, comprar o caixão e organizar o enterro (e não o berço e o enxoval).31 31 Outra cena mostra Severina no hospital, já tendo tomado os medicamentos para a indução do parto, arrumando as roupinhas da criança sobre a cama. Um conjunto todo branco e um minúsculo par de sapatos. Nessa cena, o sofrimento de Severina é também físico.

Esse sofrimento é expresso nas cenas do documentário, assim como é expresso na audiência pública sobre a anencefalia. É preciso construir a imagem de Severina como vítima, e o uso de imagens e documentários é central nesse processo. As cenas do documentário e os relatos na audiência retratam a dor, expressam o sofrimento das mulheres que tiveram de manter a gestação de um anencéfalo. Ao fazerem isso, tornam esse sofrimento inteligível, quase palpável, nessa controvérsia.32 32 Segundo Sarti (2014), há variadas formas de expressão da violência vivenciada, que se encontram entre o inenarrável e as possibilidades de elaboração das experiências de dor e sofrimento.

A construção da pessoa como vítima é pensada como uma forma de conferir reconhecimento social ao sofrimento, sendo um elemento importante na luta por direitos. Essa construção, no caso analisado, é realizada por meio da expressão de emoções, afetos e sofrimentos. Para que determinados grupos – mulheres grávidas ou fetos anencefálicos – sejam percebidos enquanto vítimas é preciso dar intelegibilidade aos seus sofrimentos ou a suas alegrias. Os documentários, as cartas e os relatos de dores e violências vivenciadas pelas mulheres (no caso, a violência estatal de se dificultar a possibilidade de interromper a gestação) são importantes. Eles expõem as dores e os sentimentos e, ao expressarem, tornam-nas inteligíveis (ao outro, ou ao público que se constitui ao longo da controvérsia).

Expressar os sentimentos (alegria ou sofrimento) pressupõe a existência de códigos/gramáticas que os sancionem (ou não), que reconheçam esses sentimentos e que possibilitem a compaixão, a constituição de “comunidades de compaixão” em torno deles, na expressão cunhada por Janine Barbot e Nicolas Dodier (2011). As emoções, quando são coletivas e compartilhadas, formam comunidades (públicos) em torno delas. Segundo o autor, uma comunidade compassional é estabelecida em torno dos sentimentos de compaixão compartilhados (Barbot e Dodier, 2011BARBOT, Janine; DODIER Nicolas. (2011), «De la douleur au droit. Ethnographie des plaidoiries lors de l’audience pénale du procès de l’hormone de croissance contaminée», in Daniel Cefaï & Cédric Terzi (dir.), L’expérience des problèmes publics. Paris, EHESS. p. 289-322. Collection «Raisons Pratiques», 22.). Como no documentário, expor a dor de Severina desperta o sentimento de compaixão compartilhado pelos espectadores diante do drama exposto.

Essas “comunidades de sentimento” são capazes de produzir o concernimento sobre a causa de que essa situação seria sofrida e dolorosa e, por isso, injusta. Severina representaria uma entre muitas mulheres vitimadas pela violência do Estado brasileiro que não permite que ela interrompa a gestação, atentando contra sua dignidade humana e sua liberdade de escolha. Nesse sentido, a sensibilização em torno de uma questão, realizada pelo acionamento e compartilhamento das emoções é parte importante do processo de constituição de vítimas, de sujeitos de direitos e de públicos em torno da questão da anencefalia.

Sequência 2: a toalha de Marcela e o quarto de Vitória

A primeira tomada do documentário Flores de Marcela mostra um varal repleto de roupas de bebê, secando ao vento. Roupinhas de menina e, em destaque no centro do vídeo, uma toalhinha cor-de-rosa bordada com o nome Marcela. A tomada é muito rápida, com cerca de 30 segundos, e acompanhada por uma música de fundo. Na cena, o enquadramento vai se fechando na toalha cor-de-rosa e nos remete à questão central dessa controvérsia para os atores contrários à ADPF 54: a vida de uma criança, um bebê de nome Marcela de Jesus. Faz isso ao remeter o telespectador ao universo de símbolos e objetos que circundam a espera do nascimento de uma criança: o enxoval do bebê. As roupinhas, as toalhinhas bordadas com os nomes e a escolha de uma cor específica para cada sexo constituem os enxovais. A sequência inicial do documentário informa ao telespectador que naquela casa mora uma criança e que, como todas as crianças amadas e esperadas, possui um enxoval, inclusive uma toalhinha bordada, item costumeiro dos enxovais.

Segundo a narrativa do documentário, a mãe de Marcela recebeu o diagnóstico de anencefalia do feto no início de sua gestação. A existência desse diagnóstico é reforçada em depoimentos de médicos e cenas que mostram as ultrassonografias e os laudos, como na fala da médica ginecologista que acompanhou a gestação da mãe de Marcela: “Ela é considerada um caso clássico de anencefalia, por não possuir nada do córtex cerebral.” Outros médicos também apresentam depoimentos no documentário, afirmando que, apesar da anencefalia ser fatal, algumas crianças sobrevivem após o parto, como seria o caso de Marcela. Ela seria o exemplo de que esse diagnóstico nem sempre representa a morte do feto ou do bebê logo ao nascer.

De forma semelhante, a mãe de Vitória – que relata a sua experiência no documentário Eu, Vitória – também recebeu o diagnóstico de anencefalia logo no início da gestação e, segundo o documentário, nunca teve dúvidas sobre mantê-la. Grande parte do documentário é dedicada a demonstrar a vida da menina Vitória, que é retratada principalmente pela exposição das suas interações com os pais, pelas muitas cenas de convivência e felicidade familiar. No caso do documentário sobre Vitória, a ênfase no enxoval da menina é ainda mais presente. O documentário mostra o quarto da bebê, seu berço, o travesseiro com seu nome e bonecos de pelúcia.

O diagnóstico da condição clínica de Marcela é intercalado pelas cenas que demonstram a existência feliz da menina. O documentário aciona uma gramática relacionada à maternidade e à plenitude que é associada a ela. As cenas expõem o afeto, especialmente a felicidade gerada pela interação da mãe com a criança e os momentos de felicidade vivenciados em família. Ao longo de todo o documentário as alegrias da maternidade e da vida familiar são colocadas em destaque. Esse é um dispositivo comum nos dois documentários, e ainda mais presentes no documentário sobre Vitória, uma vez que estão ausentes os relatos de médicos sobre o diagnóstico da menina, havendo apenas uma passagem na qual a mãe afirma o seu desconforto durante uma consulta em que um especialista em medicina fetal lhe indica um aborto.

Os nomes de Marcela e de Vitória ficaram conhecidos na controvérsia em torno da ADPF 54, tornando-se centrais na composição do argumento de que bebês com anencefalia têm vida – e que devem ter seu direito a ela garantido pelo Estado. A existência das duas meninas concretiza a possibilidade de vida e de pessoalização de fetos anencefálicos. As cenas da toalha de Marcela e do quarto de Vitória compõem a primeira expressão dos afetos, elas se remetem à presença de uma criança amada e esperada, mas também de uma pessoa humana, um sujeito de direitos, com nome e com objetos que lhe pertencem. Dessa maneira, a vítima aqui presente são os fetos com anencefalia, representados por Marcela e Vitória, que teriam suas existências tolhidas ainda no ventre materno, a quem não seria permitido vivenciar as alegrias da convivência familiar e das interações com a mãe.

Nesse sentido, ambos os documentários também apontam a interrupção da gestação como uma sentença de morte para os fetos. As falas dos familiares, além de exporem a vida familiar plena, também tecem considerações sobre a desumanidade de se tirar essa vida. “Matar uma criança não pode”, diz o pai de Marcela. A mesma ideia está presente na fala de sua irmã: “Como é que pode querer tirar?” A fala do pai é quase explícita, interromper a gestação seria assassinato, seria crime cometido contra a vida de Marcela (e de todos os fetos anencefálicos). Esses fetos, representados por Marcela, precisam ter seu direito à vida garantido pelo Estado.

A colocação de que o aborto de anencéfalos é semelhante ao assassinato é ainda mais explícita no documentário sobre Vitória de Cristo. Embora os pais da menina não façam referência a esses termos (os únicos depoimentos presentes no documentário são os dos pais da menina), o documentário é finalizado com os seguintes dizeres na tela: “Em 11 de abril de 2012 Vitória compareceu à sessão histórica de julgamento em que o Supremo Tribunal Federal decidia a legalização do aborto de bebês anencéfalos. Na ocasião, muitos ministros que votavam pelo aborto olhavam incomodados para ela. A presença de Vitória contrastou com nove sentenças de morte e contra dois votos a favor da vida.” Os votos dos ministros favoráveis à ação são classificados enquanto “sentenças de morte” aos fetos com anencefalia, que deixaram de ter, nos termos dos produtores do documentário, o seu direito à vida garantido pelo Estado.

Além disso, na ordem de interações presente nessa controvérsia, o universo dos objetos que circundam a espera de uma criança é também acionado pelos atores favoráveis à ação. Se os enxovais de Marcela e Vitória expõem a felicidade e a plenitude de se ter uma bebê em casa, o enxoval de Severina expõe a dor e o sofrimento de ter de escolher as peças de vestuário de um natimorto, de preparar previamente o enterro de um filho. O universo de objetos e valores da espera de uma criança é acionado a partir de outra perspectiva pelos atores antiaborto: da alegria e da plenitude de se vivenciar a maternidade e a vida familiar. Surge, pois, como uma reação à potente e sensibilizadora metáfora da substituição da preparação do berço pela preparação do caixão acionada pelo bloco pró-escolha.

Analisar os documentários permite identificar não apenas os argumentos, mas o jogo de interações entre eles presente nessa controvérsia. Estamos contemplando também a análise dos ordenamentos, das interações, do desenrolar das sequências na controvérsia sobre a anencefalia. Levamos em conta a organização sequencial e multifacetada dessa questão, destrinchando as múltiplas franjas de significado que se interpenetram no engajamento nessa situação.

A descrição das interações permite ainda perceber que, a partir do acionamento de elementos do mesmo universo simbólico, valores bastante diversos são defendidos por cada um dos polos. Por um lado, o sofrimento de se manter a gestação de um feto sem potencialidade de vida – e o sofrimento, no mundo contemporâneo, deve ser extirpado. Por outro lado, a plenitude e a felicidade associadas à maternidade. Se há um valor compartilhado no mundo contemporâneo de que o sofrimento deve ser combatido, a plenitude associada à maternidade, mesmo à “maternidade dolorosa”, também o é e possui grande profundidade histórica. Voltaremos a esse tema adiante, após a próxima sequência.

Sequência 3: Marcela na audiência pública do STF

Marcela foi o nome de destaque na controvérsia sobre a anencefalia, sendo mencionada em vários momentos da audiência pública sobre o tema.33 33 Com a proximidade do julgamento, o nome de Vitória de Cristo também vai ganhando centralidade na mídia, tendo sido alvo de várias reportagens e matérias e estando presente no dia do julgamento da ação no STF. A sequência acontece durante a exposição de Rodolfo Acatauassu, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e representante da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família na audiência. O expositor mostra um slide com a ressonância nuclear magnética de Marcela e afirma que, apesar de a menina ter sido diagnosticada com anencefalia, conforme o laudo que acompanha a imagem do exame, resquícios de seu cérebro permaneciam, possibilitando que ela vivesse por um ano e oito meses.

Em seguida, projeta na tela a ressonância de Marcela quando ela tinha 11 meses. Lê todo o laudo e reitera: “Na realidade, não há dúvidas de que se trata de anencefalia.” Trazer provas de que a menina possuía anencefalia era central. As provas científicas (exames, laudos e diagnósticos), lidos e expostos em sua integralidade, seriam a comprovação de que fetos diagnosticados com anencefalia poderiam viver por meses, e mesmo por anos.34 34 Os exames de Marcela, entretanto, também são exibidos pelos expositores do grupo pró-escolha, como na exposição de Everton Medice Petersen, representante da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, que mostra a tomografia de Marcela, afirmando não se tratar de um caso de anencefalia. Segundo o expositor: “Eu trago aos senhores e posso provar [com a tomografia de Marcela exposta no telão] que é uma falsa ideia de anencéfalo, porque essa criança apresenta, como podemos ver na tomografia, região de cerebelo, tronco cerebral e um pedacinho do lóbulo temporal. Isso não é diagnóstico de anencefalia.” Marcela encarnava o argumento central do bloco pró-vida de que fetos anencefálicos tinham vida, colocando em questão o argumento que a anencefalia seria um diagnóstico de morte do feto, central na argumentação do bloco antagônico.

Logo após a exibição dos exames, o expositor projeta na tela uma fotografia de Marcela em um cavalo com seu pai, seguida de uma imagem de uma criança de três meses, diagnosticada com anencefalia, ao lado de seu irmão, que sorri com a bebê em seu colo. E ainda uma terceira fotografia, de uma criança anencéfala sendo amamentada pela mãe. A apresentação de dados clínicos e científicos é encerrada com a apresentação das imagens das crianças vivas, em situações de convívio e felicidade familiar.

A estratégia de se combinar dados e depoimentos clínicos e científicos com imagens de convivência e interação de crianças diagnosticadas com anencefalia e seus familiares é recorrente na audiência, tendo sido também utilizada pela expositora Lenise Martins – professora titular do Departamento de Biologia da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto, que inicia sua exposição apresentando trechos do documentário Flores de Marcela, em que a menina aparece interagindo com a mãe. A menina brinca e sorri com as brincadeiras da mãe, em uma típica cena de interação entre bebê e mãe. O enquadramento da cena destaca o sorriso de Marcela, a sua mãozinha segurando a mão de sua mãe. Essa cena corriqueira de felicidade familiar seria proporcionada pela existência da criança. As brincadeiras, o segurar na mão e o sorriso expressam a felicidade, o afeto e a plenitude da experiência da maternidade e da convivência com o bebê.35 35 Cenas semelhantes a essa estão amplamente presentes também no documentário sobre Vitória de Cristo. As cenas mostram a menina brincando, sorrindo, interagindo com a mãe e também com o pai. Porém, como Vitória nasceu em 2010, após a audiência realizada no STF, elas estão ausentes nesse evento, ganhando centralidade apenas na proximidade do julgamento, especialmente pela sua presença na data.

Afetos e emoções estão inscritos na ordem simbólica, ganhando sentido nas relações com o mundo social. A expressão desses afetos, como no documentário, é capaz de torná-los socialmente inteligíveis. Assim, uma cena de uma toalhinha pendurada no varal importa e faz sentido, como faz sentido o sorriso e o enquadramento da pequena mão da menina. Essas imagens acionam um contexto significativo relacionado à maternidade e à felicidade e à plenitude a ela associadas. A exposição dos sentimentos – não apenas dos sofrimentos, mas também dos afetos – é importante para a formação de públicos, que sejam tocados pelo sentimento de afeto expresso no documentário.

Outra cena mostra a mãe de Marcela com a menina no colo. Ela a beija, e a menina sorri. A cena é acompanhada por uma narrativa de fundo, na qual a mãe de Marcela diz: “Com a Marcela é um minuto de cada vez. E eu aproveito cada minuto com ela. A gente comemora o aniversário dela a cada mês. Eu coloco nas mãos de Deus, e o dia que ele vier buscar ela eu vou sofrer muito. Mas sofrer assim, sofrer ao mesmo tempo feliz porque eu fiz a vontade de Deus. Eu deixei ela nascer.”

A maternidade é representada pela plenitude e pela felicidade, como o documentário insistentemente demonstra. Porém, ela também representa a abnegação e o sofrimento em prol do filho quando necessário. A crueldade estaria em não deixar Marcela nascer, que se sobrepõe ao processo doloroso de viver um dia de cada vez, ciente da pouca expectativa de vida da menina. Isso sequer é colocado como sofrimento pela mãe de Marcela, mas sim como felicidade e plenitude decorrentes do afeto gerado pela convivência com a menina que ela “deixou nascer”. A plenitude do dia a dia com Marcela está em destaque, e não as dificuldades ou o processo doloroso da ciência da sua perda próxima. A abnegação é o valor em destaque.

No caso da Igreja Católica, central nessa controvérsia, esses dois valores associados à maternidade – plenitude e abnegação – estão presentes desde longa data, como na figura da Virgem Maria no momento da Anunciação36 36 Momento em que Nossa Senhora diz “sim” ao anjo que lhe anunciara que estava esperando um filho de Deus. No catolicismo, o “sim” de Maria representa a aceitação da maternidade e de todo sofrimento e martírio decorrentes dela. , e ainda se fazem presentes na atualidade, sendo constantemente renovados pela Igreja Católica. Exemplo disso foi a canonização de Santa Gianna, defensora da vida, em 2004. Gianna Bereta Molla abriu mão de sua vida para dar à luz seu quarto filho, passando a ser vista como modelo de conduta católica em prol da vida, em prol de outrem, como modelo de maternidade e abnegação em prol do filho e/ou da família, sendo consagrada como “Santa Gianna, mãe de família” (Soares e Pinto, 2015SOARES, Hugo Ricardo; PINTO, Flávia Slompo. (2015), “Santa Gianna Defensora da Vida: uma leitura fenomenológico-cultural da experiência do milagre”. Debates do NER, 16 (28): 253-272.). Sua imagem é recorrente nas campanhas em defesa da vida e contra o aborto realizadas pela Igreja Católica, como foi o caso da Campanha da Fraternidade de 2008. Nesse ano, Hugo Soares e Flávia Pinto colhem o relato de Elisabete, miraculada brasileira de Santa Gianna e que tem uma história semelhante à da santa. Ela sofre um grave problema durante sua terceira gestação e é aconselhada pelos médicos a interrompê-la, mas, apesar do risco de morte, decide mantê-la, rezando para Santa Gianna e para a Virgem Maria – dois modelos de maternidade e de abnegação no catolicismo. Ela afirma em sua narrativa que as rezas que realizou para Santa Gianna e para a Virgem, para que essas lhe fizessem compreender “o sublime sentido da maternidade, no âmbito do martírio e do sofrimento que ambas haviam passado em vida” (Soares e Pinto, 2015SOARES, Hugo Ricardo; PINTO, Flávia Slompo. (2015), “Santa Gianna Defensora da Vida: uma leitura fenomenológico-cultural da experiência do milagre”. Debates do NER, 16 (28): 253-272., p. 260). Essa fala é paradigmática, expressando o paradoxal sentimento de plenitude e martírio associado à maternidade.

O sofrimento, em situações específicas, como aquele dedicado aos filhos, é um potente valor moral ainda presente no mundo contemporâneo e convive com a concepção contemporânea de que o sofrimento deva ser extirpado. Luiz Fernando Dias Duarte (1998)DUARTE, Luiz Fernando Dias. (1998), “Pessoa e dor no Ocidente (o ‘holismo metodológico’ na Antropologia da Saúde e Doença)”. Horizontes Antropológicos, 4 (9): 13-28., ao tratar do sofrimento e da dor na cultura ocidental moderna, lembra-nos de que a ênfase na dor, no sofrimento e no sacrifício foi considerada forma de acesso ao Valor, ao Divino durante um longo período na história do Ocidente, estando fortemente arraigada no catolicismo e no cristianismo. Nesse aspecto, segundo o autor, embora um patamar ampliado de saúde tenha sido obtido progressivamente às custas da dor, esse processo gerou inquietações quanto a sua perda (devido ao seu valor intrínseco na tradição católica e cristã do Ocidente).

Nesse sentido, embora exista uma tendência cada vez mais predominante em se expulsar a dor do horizonte das experiências corporais, o valor atribuído a ela ainda está presente em determinados casos, sendo um deles a maternidade. Os documentários sobre Marcela e Vitória se enquadrariam nesse regime de valores, ao exporem a maternidade como algo sublime, mas que também implica abnegação e martírio. E a Igreja Católica constantemente renova suas estratégias para lembrar as mulheres disso, produzindo santas contemporâneas que reforcem esse modelo.37 37 Gianna Bereta Molla era médica e, apesar de ter sido consagrada enquanto “mãe de família”, tinha também uma vida profissional e não exclusivamente dedicada à família, o que reforçaria um modelo menos convencional de maternidade. Entretanto, não é isso que é reforçado na narrativa da Igreja Católica sobre ela.

A análise da ordem de interação nessa controvérsia permitiu a observação do enfrentamento de dois valores bastante caros ao mundo contemporâneo: o sofrimento como algo a ser expurgado, acionado pelos atores favoráveis à ADPF 54, por um lado, e a plenitude e abnegação associados à maternidade, presente nas falas e documentários contrários à ação, por outro.

Sequência 4: o diagnóstico fatal

O documentário Quem são elas é composto pelo relato de quatro mulheres que interromperam suas gestações no curto período em que a liminar que permitia este procedimento esteve em vigor. Trechos desse documentário contendo as narrativas de duas dessas mulheres foram expostos durante a audiência pública, como a sequência que mostra o depoimento de Michele e de seu marido. A cena mostra os dois, sentados de mãos dadas em sua casa. Eles relatam que obtiveram o diagnóstico ainda no início da gestação, após um longo tratamento para que Michele conseguisse engravidar. Segundo ela, seu mundo caiu quando recebeu a notícia: “Foi um dos piores momentos da minha vida. Eu me senti um bagaço de mulher, me senti a pior mulher do mundo. Depois de todo um tratamento…” Nesse momento, ela começa a chorar e diz: “Ele foi desejado, ele foi esperado, ele foi amado antes de ser gerado.”

O documentário humaniza as mulheres que optaram pela interrupção da gestação ao exibir a dor vivenciada por elas no momento do diagnóstico. Como é o caso de Dulcinéia, mulher pobre e solteira que não planejou sua gestação, mas que também sofreu com o diagnóstico. O documentário expõe seu sofrimento, ela também chora ao relatar o momento da ecografia, quando recebeu o diagnóstico da anencefalia, e afirma em seguida: “Filho é muito bom. Ele depende da gente pra tudo, mas é muito bom.” E então Dulcinéia sorri. A cena a mostra rodeada por seus filhos vivos e saudáveis, de quem a lembrança a faz sorrir, o enquadramento da câmera mostra o seu sorriso e, em seguida, abre a cena para seus filhos. Sete.

Novamente notamos a ordem das interações nesta controvérsia, que também se faz por meio da exposição dos sentimentos nos documentários. Essas mulheres são também mães, e assim são exibidas, acompanhadas de seus filhos e em relatos que valorizam ou desejam a experiência da maternidade. Elas, como as mulheres que optaram por manter a gestação de um anencéfalo, vivenciam a maternidade como plenitude e felicidade. O documentário expõe o quanto o diagnóstico e a interrupção da gestação foram dolorosos e sofridos para essas mulheres, mas também expõe a maternidade vivenciada como algo pleno e desejado por elas. Da mesma forma que as mães de Marcela e Vitória, elas também eram mulheres felizes e plenas com a condição de maternidade. Na ordem de interação presente nessa controvérsia, o documentário Quem são elas não se contrapõe à concepção da maternidade enquanto plenitude, presente nos documentários sobre as crianças anencéfalas, mas sim o reitera. Reitera também a humanidade dessas mulheres-mães, felizes com a presença de seus filhos vivos.38 38 Michele, ao comparecer na audiência pública do STF, esteve acompanhada pelos dois filhos que teve após a perda da primeira gestação. Isso reforçou a imagem do seu desejo pela maternidade, concretizada posteriormente.

Considerações finais

A exposição das emoções e dos sentimentos contribuiu para a constituição de figuras de vítimas e de sujeitos de direito. Nos documentários e na audiência pública sobre a anencefalia vimos emergir figuras de vítimas nos dois polos antagônicos: as mulheres grávidas e os bebês anencéfalos. Essa polarização se institui em torno de duas causas (ou direitos): o direito à vida dos fetos anencefálicos e à dignidade humana e a liberdade de escolha e consciência das mulheres grávidas. Os documentários, as cartas e os relatos, ao exporem os sofrimentos e as alegrias desses grupos, tornam palpáveis suas agruras e felicidades, fazendo-as inteligíveis.

Dessa maneira, a expressão dos afetos não apenas constitui figuras de vítimas, mas também legitima demandas. A construção de figuras de vítimas é uma forma de se reconhecer o sofrimento imputado e de se consolidar direitos. No caso analisado observamos que a disputa se estende para a constituição de figuras de vítimas e para a imputação de direitos específicos a cada uma dessas figuras. A argumentação e os sentimentos expressados instituem uma hierarquia de vítimas, e também uma hierarquia de direitos, que se altera entre os defensores e os opositores da ADPF 54. Quem seriam as “verdadeiras vítimas” a quem os direitos deveriam ser garantidos pelo Estado brasileiro: mulheres grávidas ou fetos anencefálicos? Qual direito se sobreporia: o direito à vida dos fetos anencefálicos ou o direito à dignidade humana e à liberdade de consciência das mulheres?

Nesse sentido, ao terminar os documentários pró-vida, eu não sabia o nome das mães de Marcela e de Vitória. Assim como também eu não sabia o nome do filho natimorto de Severina ao assistir ao documentário sobre ela. Na verdade, para os atores que defendiam cada um dos grupos em disputa, não importava o espectador ser informado a esse respeito. A ausência de nomes indica quem eram os sujeitos de direito instituídos por cada um dos blocos na ADPF 54, e indica também a despessoalização do grupo estabelecido pelo bloco antagônico.

Nesse contexto, a exposição dos afetos, por meio dos documentários, mas também de fotografias, cartas e relatos, constitui um importante dispositivo para a construção da figura da vítima, de sujeitos de direitos e também como estratégia para mobilização de públicos em defesa de cada um dos grupos. Cada um dos polos em disputa procura mobilizar públicos em defesa de sua causa.

Os filmes e documentários são um importante dispositivo na controvérsia sobre a possibilidade da interrupção da gestação de fetos anencefálicos, contribuindo para a publicização do problema público que se forma em torno da anencefalia. Segundo Daniel Cefaï e Dominique Pasquier (2003), quanto mais um problema público ultrapassa fronteiras, mais ele ganha em poder, aumentando graus de mobilização, envolvendo mais atores e multiplicando as cenas nas quais ele se reproduz.

De acordo com essa perspectiva teórica, os documentários podem ser entendidos como uma importante estratégia para o concernimento de público em torno de uma das causas defendidas, pois o processo de sensibilização é central para o engajamento em relação a uma causa. Nesse sentido, a exposição dos afetos e sofrimentos nos documentários é parte importante do processo de constituição de públicos em torno da questão da anencefalia. A exposição da dimensão afetiva, das dores e alegrias das pessoas afetadas torna essas emoções palpáveis, permitindo que elas sejam compartilhadas pelos espectadores. Formam-se comunidades de sentimento (públicos) em torno das dores e alegrias expostas, que são caracterizadas por um “sentir em comum” (Barbot e Dodier, 2011BARBOT, Janine; DODIER Nicolas. (2011), «De la douleur au droit. Ethnographie des plaidoiries lors de l’audience pénale du procès de l’hormone de croissance contaminée», in Daniel Cefaï & Cédric Terzi (dir.), L’expérience des problèmes publics. Paris, EHESS. p. 289-322. Collection «Raisons Pratiques», 22.). Pela via do afeto, os documentários buscam concernir públicos e de produzir aderência para um dos posicionamentos em disputa nessa controvérsia.

Além disso, na abordagem pragmatista da qual estamos nos utilizando, compartilhar uma determinada emoção pode impulsionar a ação coletiva. As emoções podem ser mobilizadoras de ações. A emoção é entendida enquanto prática, ou enquanto ação, não se podendo separar a emoção da situação ou do objeto que a suscitou (Queré, 2012QUERÉ, Louis. (2012), «Le travail des émotions dans l’expérience publique. Marées vertes en Bretagne», in Daniel Cefaï & Cédric Terzi (dir.), L’expérience des problèmes publics. Paris, EHESS. p. 135-162. Collection «Raisons Pratiques», 22.). A emoção é uma função de coisas objetivas e concretas, como situações ou objetos, podendo, devido a este caráter objetivo, entravar ou estimular a ação.

A demonstração de como o diagnóstico da anencefalia é cruel para as mulheres que a vivenciam, segundo o bloco favorável à ADPF 54, ou de quanto seria cruel não se gestar um feto com potencialidade de vida, segundo o bloco contrário à ação, compõem parte importante do processo de mobilização em torno do problema público da anencefalia.

Por fim, observamos que as comunidades de sentimento estabelecidas eram sancionadas por valores morais de peso no mundo contemporâneo. Por um lado, o sofrimento de se manter a gestação de um feto sem potencialidade de vida – e o sofrimento, no mundo contemporâneo, deve ser combatido. Por outro lado, a plenitude e o martírio associados à maternidade, não importa em qual situação. A concepção de que o sofrimento deve ser combatido e extirpado é um valor moral bastante disseminado, já tendo sido vastamente estudado. A plenitude e a abnegação associadas à maternidade também são valores fortemente presentes, possuindo laços estreitos com a Igreja Católica, central nessa controvérsia.

Dessa maneira, a observação de uma parte da ordem de interações instituída na controvérsia sobre a anencefalia nos permitiu identificar que a disputa passa pela dimensão afetiva, mas é também instituída em torno de valores morais. Os documentários não podem ser entendidos isoladamente, eles fazem sentido quando observamos o campo problemático que se estabelece em torno da questão da anencefalia, no qual os argumentos e os valores acionados nos documentários estão em diálogo com argumentos e valores acionados em outras cenas que compõem a controvérsia, como na audiência pública, ou ainda nos documentários produzidos pelo polo antagônico. Nesse aspecto, essa é uma disputa que toca os afetos e se estende para o campo da moral, na qual valores morais, sentimentos e afetos são inseridos no conflito, buscando-se concernir públicos em ambos os polos do debate.

  • 1
    Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira para o Desenvolvimento da Ciência, Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Rede Feminista e Escola Gente foram alguns das organizações que se colocaram favoravelmente à ADPF 54, pronunciando-se na audiência pública.
  • 2
    A anencefalia é caracterizada pela ausência do tronco encefálico no embrião, não havendo o desenvolvimento do cérebro do feto durante a gestação. O diagnóstico pode ser obtido por volta do terceiro mês de gestação, por exame de ultrassonografia. A audiência pública sobre a anencefalia foi realizada no ano de 2008, tendo sido ouvidos representantes de diversas entidades da sociedade civil, órgãos representativos de classe e instituições ligadas a denominações religiosas, havendo 18 manifestações favoráveis à ação e 11 manifestações contrárias.
  • 3
    A pesquisa que deu origem a este artigo vem sendo desenvolvida desde 2014, quando assistimos à audiência sobre a anencefalia no Canal Justiça e acompanhamos a sua repercussão na mídia, identificando atores e argumentos colocados em discussão nestas duas cenas. Com base nessa primeira parte da investigação, constatamos a importância do argumento “em defesa da vida humana”, bem como a centralidade de alguns atores na controvérsia. Para a escrita deste artigo foram levados em conta especificamente os documentários, que foram produzidos por atores vinculados a instituições que se posicionaram publicamente pró ou contra a ADPF 54 na audiência pública ou na mídia.
  • 4
    Agentes ligados a instituições religiosas compõem um grupo de peso nas controvérsias envolvendo o início da vida, como foi também o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.510) sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas, em que a CNBB foi aceita como amicus curiae no processo. No julgamento da ADPF 54, a participação de agentes que a representavam ocorreu por outros meios, representando parcela importante do bloco “pró-vida”, realizando campanhas “em defesa da vida”, produzindo e circulando artigos sobre esse tema nas mídias católicas e não católicas, entre outras ações.
  • 5
    O conceito de controvérsia vem sendo utilizado como paradigma analítico para compreender a formação e a configuração recente do espaço público brasileiro e o papel dos agenciamentos religiosos nesta construção. Trata-se de um conceito a partir do qual temos observado o desenho de uma arena pública que emerge em situações de dissenso, confronto ou disputa (Montero, 2015MONTERO, Paula. (2015), Religião e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.; Sales, 2014SALES, Lilian. (2014), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil: posições e argumentos dos representantes da Igreja Católica”. Revista de Antropologia, 57 (1): 179-213.; 2015SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.). A inspiração para o uso desse conceito vem principalmente da leitura de autores franceses de linhagens relacionadas à Sociologia Pragmática, que colocam as situações de disputa como objetos de observação.
  • 6
    Exemplo disso foi a tentativa realizada pela CNBB, durante o processo constituinte dos anos 1980, de inserir “a defesa da vida desde a concepção” no texto da Constituição Brasileira de 1988 (Rocha, 2005ROCHA, Maria. (2005), “Discussões políticas e decisões no parlamento”, in Maria Ávila, Verônica Ferreira e Ana Portella (orgs.), Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro, Garamont.).
  • 7
    A audiência pública foi dividida em três dias, cada um deles dedicado a um grupo: sociedade civil e movimentos, cientistas e religiosos.
  • 8
    Patricia Rezende, em sua dissertação de mestrado sobre o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida: Brasil sem Aborto, classifica-o como um contramovimento, no sentido de que ele se trata de uma reação aos movimentos feministas e de mulheres que colocam na agenda nacional a discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil. É nesse cenário nacional favorável às pautas dos movimentos de mulheres que se organiza este contramovimento (Rezende, 2016REZENDE, Patricia Jimenez. (2016), Movimentos sociais e contramovimentos: mobilizações antiaborto no Brasil contemporâneo. Dissertação de Mestrado. Guarulhos, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.).
  • 9
    Essa expansão numérica é acompanhada do fortalecimento da representação política de políticos evangélicos no Congresso Nacional a partir do fim da década de 1980, e posteriormente com o surgimento da chamada “Frente Parlamentar Evangélica”, bem como da mobilização de atores vinculados a essas religiões em questões colocadas em pauta na esfera pública nacional, além das ações de ocupação física do espaço público, como a Marcha para Jesus, entre outras. Ou seja, os evangélicos não apenas crescem, mas cada vez mais “aparecem”, mobilizando-se publicamente nas diversas esferas.
  • 10
    A utilização de elementos das ciências vem sendo constatada em controvérsias na arena pública brasileira, especialmente nas esferas jurídica e política envolvendo atores religiosos, não apenas católicos, mas também evangélicos e representantes das religiões afro-brasileiras (Luna, 2013LUNA, Naara. (2013), “O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um Estado laico”. Religião & Sociedade, 33 (1): 71-97.; Campos Machado, 2015CAMPOS MACHADO, Maria das Dores. (2015), “Religião e política no Brasil contemporâneo: uma análise de pentecostais e carismáticos católicos”. Religião e Sociedade, 35 (2): 45-72.; Sales, 2015SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.). O modus operandi acadêmico científico deu o tom das discussões sobre o “início da vida”, presente em duas ações julgadas pelo STF: o julgamento da ADPF 54, sobre a permissão da interrupção da gestação de fetos anencéfalos, e o julgamento da ADI 3.510, sobre a possibilidade de uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas (Luna, 2013LUNA, Naara. (2013), “O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um Estado laico”. Religião & Sociedade, 33 (1): 71-97.; Sales, 2015SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome.).
  • 11
    Segundo Rezende (2016)REZENDE, Patricia Jimenez. (2016), Movimentos sociais e contramovimentos: mobilizações antiaborto no Brasil contemporâneo. Dissertação de Mestrado. Guarulhos, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo., este movimento reuniu 120 representantes de 12 estados brasileiros, sendo lançado através do “Manifesto à Nação” e da “Campanha Nacional em Defesa da Vida”. Ele projetou pela primeira vez no Brasil a contramobilização de dentro das instituições para a arena pública das ruas e da mídia em marchas por todo o país, que eram animadas por slogans como: “Por um parlamento em defesa da vida”, “Decida-se pela vida: vote em candidatos que são contra o aborto” e “Vida, sim. Aborto, nunca!”.
  • 12
    Resultados parciais dessas pesquisas podem ser observados em Sales (2015)SALES, Lilian. (2015), “A controvérsia em torno da liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias: justificativas e moralidades”, in Paula Montero (org.), Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo, Terceiro Nome. e Montero, Sales e Silva (2018)MONTERO, Paula; SALES, Lilian; SILVA, Aramis. (2018), “Fazer religião em público: encenações religiosas e influência pública”. Horizontes Antropológicos, 24 (52): 131-164..
  • 13
    O processo de produção de vítimas está tanto associado à produção de grupos como ao fato de determinados grupos serem vulneráveis a violências específicas, tornando-se potenciais vítimas e detentoras de direitos específicos.
  • 14
    Segundo Wieviorka (1997)WIEVIORKA, Michel (1997), “O novo paradigma da violência”. Tradução de Ademir Barbosa Jr. Revisão técnica de Angelina Peralva e Paulo Menezes. Tempo Social, 9 (1): 5-41., foi a questão dos direitos que nomeou a violência e a qualificou enquanto tal, associando a figura da vítima aos direitos.
  • 15
    Os trabalhos de Luc Boltanski (1999)BOLTANSKI, Luc. (1999), Distant suffering. Cambridge, Cambridge University Press., sobre a exposição do sofrimento, também apontam nessa direção.
  • 16
    Nos termos de Daniel Cefaï, essa abordagem da sociologia dos problemas públicos retrabalha a noção de “público” a partir de John Dewey, Robert E. Park e George H. Mead, autores da filosofia pragmatista norte-americana. Essa abordagem se desenvolveu na França a partir da década de 1990 e “pouco a pouco foi desenhando uma ecologia da experiência e da ação pública, como fundamento de uma democracia centrada na definição e na resolução de problemas públicos” (Cefaï, 2017CEFAÏ, Daniel. (2017), “Públicos, problemas públicos, arenas públicas”. Novos Estudos Cebrap, 36 (1): 187-213., p. 188).
  • 17
    Destacamos que esse concernimento não é exclusivo das pessoas diretamente afetadas pelo problema público. Ela pode ser uma experiência individual, pode ser uma experiência em segunda pessoa, ou ainda uma experiência de um outro generalizado (terceira pessoa). O que há em comum entre elas é a capacidade que essa experiência tem de concernir por meio compartilhamento de determinados afetos e sentimentos. Esses diferentes níveis de experiência formam um público, uma comunidade que compartilha a experiência comum de uma situação problemática e também as consequências danosas dessa situação (Cefaï, 2018CEFAÏ, Daniel. (2018), “Público, socialização e politização: reler John Dewey na companhia de George Herbert Mead”, in Diogo Silva Corrêa, Laura Chartain, Rodrigo Cantu e Sayonara Leal (orgs.), Crítica e pragmatismo na sociologia: diálogos entre Brasil e França. São Paulo, Annablume Editora. p. 57-88.).
  • 18
    Nosso ponto de partida é a concepção de que o político emerge cada vez que coletivos se formam, interrogam-se e se engajam em torno de uma disputa, como no caso da disputa jurídica impetrada no STF em torno da possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos. Estamos nos utilizando da concepção de Daniel Cefaï e Dominique Pasquier (2003), de seu livro Du civil au politique: ethnographies du vivre-ensemble, que considera o político não como sendo determinado a priori, mas sim o resultado das mobilizações coletivas ou de controvérsias públicas. Aquilo que é o “político” não é fixado antecipadamente, mas construído ao longo do processo e como resultantes desse processo. Seria preciso observar e descrever como o político é fixado ao longo dos diversos processos do vivre-ensemble.
  • 19
    Bernard Nathanson apresenta e narra o filme The silent scream (1984).
  • 20
    A Estação Luz Filmes é uma produtora cinematográfica ligada à Associação Estação da Luz, entidade sem fins lucrativos que realiza projetos de intervenção nas áreas de saúde e educação. A produtora de filmes faz parte dessa associação e afirma ter como objetivo “realizar obras cinematográficas, de abrangência nacional e internacional, ligadas à Cultura de Paz e à Espiritualidade”.
  • 21
    Essa marcha acontece anualmente, no segundo domingo de junho, e cada ano tem como tema alguma questão relacionada à “defesa da vida” e contra o aborto.
  • 22
    Os dois documentários estão disponíveis na página da produtora Estação Luz Filmes (www.estacaoluzfilmes.com.br/producoes) e também no YouTube. Na página da produtora não é possível saber o número de visualizações, mas ela com frequência os partilha em sua página do Facebook. No YouTube, o documentário Flores de Marcela obteve 32.304 visualizações, e o documentário Eu, Vitória foi visualizado 84.742 vezes até a redação deste artigo.
  • 23
    O argumento utilizado pelo bloco favorável à ADPF 54 era o de que o diagnóstico de anencefalia seria um diagnóstico de morte, pois o feto não poderia sobreviver fora do corpo da mãe, morrendo segundos ou minutos após o nascimento, ou ainda no ventre materno.
  • 24
    Reportagens: “‘Ela tem sentimentos’, diz mãe sobre filha com diagnóstico de anencefalia”, G1, 11 abr. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/04/ela-e-ser-com-sentimentos-diz-mae-de-crianca-de-2-anos-com-anencefalia.html, consultada em 28 maio 2019. LIMA, Wilson. “‘Minha filha não é um monstro’, diz mãe”, iG Brasília, 11 abr. 2012. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/minha-filha-nao-e-um-monstro-diz-mae/n1597738615699.html, consultada em 28 maio 2019. “Grupo protesta em frente ao STF contra aborto de feto sem cérebro”, G1, 11 abr. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/grupo-protesta-em-frente-ao-stf-contra-aborto-de-feto-sem-cerebro.html, consultada em 31 maio 2019.
  • 25
    Na cena do julgamento não houve espaço para os elementos de sensibilização, por não se tratar de um momento aberto à sociedade civil ou a testemunhos, como foi a audiência pública.
  • 26
    O documentário Quem são elas foi visualizado 1.913 vezes no YouTube até 4 de junho de 2019 e esteve disponível em outras plataformas digitais, como o Porta Curtas ( http://portacurtas.org.br/filme/?name=quem_sao_elas ). Já o documentário Uma História Severina foi visualizado 127.147 vezes no YouTube e ganhou grande repercussão, obtendo o prêmio de Melhor Filme no Curta Cinema, em 2005, no Rio de Janeiro, e o terceiro lugar no festival Fort Lauderdale, em 2005, nos Estados Unidos.
  • 27
    O documentário Uma História Severina é dirigido por Débora Diniz e Eliane BrumDINIZ, Débora; BRUM, Eliane (Direção e roteiro); PARANHOS, Fabiana (Produção Executiva). (2005), Uma história Severina [DVD]. Brasília, Imagens Livres..
  • 28
    Em 2004 o Ministro Marco Aurélio de Mello defere uma liminar que permite a interrupção da gestação em casos de anencefalia do feto. Entretanto, essa liminar esteve pouco tempo em vigência, sendo revogada quatro meses depois. Durante esse curto período, as mulheres foram autorizadas a realizar o procedimento de interrupção da gestação sem a necessidade da autorização judicial que, porém, voltou a ser necessária no período entre a revogação da liminar, ocorrida ainda em 2004, e o julgamento da ADPF 54 pelo STF, que legalizou o aborto em caso de anencefalia do feto em 2012.
  • 29
    “Peregrinação” é o termo utilizado pela antropóloga Débora DinizDINIZ, Débora (Direção e roteiro); PARANHOS, Fabiana (Direção de produção). (2006), Quem são elas? [DVD]. Brasília, Imagens Livres. para descrever o longo percurso de Severina e seu marido, Rosivaldo, até obterem a autorização judicial e encontrarem um hospital que a acolhesse para a realização do procedimento médico.
  • 30
    Segundo pareceres do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp; pareceres 40.191/00, 34.775/00, 22.770/94), os fetos com mais de 500 gramas devem ter atestado de óbito e serem enterrados, e passam a constar nas estatísticas de natalidade como “natimorto”. Resolução semelhante é dada pelo Conselho Federal de Medicina (resolução 1.601/00).
  • 31
    Outra cena mostra Severina no hospital, já tendo tomado os medicamentos para a indução do parto, arrumando as roupinhas da criança sobre a cama. Um conjunto todo branco e um minúsculo par de sapatos. Nessa cena, o sofrimento de Severina é também físico.
  • 32
    Segundo Sarti (2014)SARTI, Cynthia. (2014), “A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha”. Horizontes Antropológicos, 20 (42): 77-105., há variadas formas de expressão da violência vivenciada, que se encontram entre o inenarrável e as possibilidades de elaboração das experiências de dor e sofrimento.
  • 33
    Com a proximidade do julgamento, o nome de Vitória de Cristo também vai ganhando centralidade na mídia, tendo sido alvo de várias reportagens e matérias e estando presente no dia do julgamento da ação no STF.
  • 34
    Os exames de Marcela, entretanto, também são exibidos pelos expositores do grupo pró-escolha, como na exposição de Everton Medice Petersen, representante da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, que mostra a tomografia de Marcela, afirmando não se tratar de um caso de anencefalia. Segundo o expositor: “Eu trago aos senhores e posso provar [com a tomografia de Marcela exposta no telão] que é uma falsa ideia de anencéfalo, porque essa criança apresenta, como podemos ver na tomografia, região de cerebelo, tronco cerebral e um pedacinho do lóbulo temporal. Isso não é diagnóstico de anencefalia.”
  • 35
    Cenas semelhantes a essa estão amplamente presentes também no documentário sobre Vitória de Cristo. As cenas mostram a menina brincando, sorrindo, interagindo com a mãe e também com o pai. Porém, como Vitória nasceu em 2010, após a audiência realizada no STF, elas estão ausentes nesse evento, ganhando centralidade apenas na proximidade do julgamento, especialmente pela sua presença na data.
  • 36
    Momento em que Nossa Senhora diz “sim” ao anjo que lhe anunciara que estava esperando um filho de Deus. No catolicismo, o “sim” de Maria representa a aceitação da maternidade e de todo sofrimento e martírio decorrentes dela.
  • 37
    Gianna Bereta Molla era médica e, apesar de ter sido consagrada enquanto “mãe de família”, tinha também uma vida profissional e não exclusivamente dedicada à família, o que reforçaria um modelo menos convencional de maternidade. Entretanto, não é isso que é reforçado na narrativa da Igreja Católica sobre ela.
  • 38
    Michele, ao comparecer na audiência pública do STF, esteve acompanhada pelos dois filhos que teve após a perda da primeira gestação. Isso reforçou a imagem do seu desejo pela maternidade, concretizada posteriormente.
  • DOI: 10.1590/3510305/2020
  • *
    Este trabalho é resultado do Projeto “Religião, Direito e Secularismo” (n. 2015/ 02497-5), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a quem agradecemos o apoio.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2018
  • Aceito
    08 Out 2019
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