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PARA ALÉM DE PUTNAM Cultura, capital social e liberdades, no sul do Brasil*

L’AU-DELA DE PUTNAM: CULTURE, CAPITAL SOCIAL ET LIBERTES AU SUD DU BRESIL

Resumos

Nos debates sobre desenvolvimento territorial, a versão culturalista de Capital Social (Robert Putnam) e a Abordagem das Capacidades (Amartya Sen) destacaram-se a partir dos anos 1990. O artigo escrutina a pertinência da tese putnamiana, a partir da noção de desenvolvimento elaborada por Sen, no sentido de verificar o quanto o capital social é capaz de ampliar capacidades, desviando-se, assim, o foco do crescimento, para o bem-estar. Tomam-se como base empírica os 496 municípios do estado do Rio Grande do Sul, estado rico e diverso, em termos étnicos e culturais. Contrariando o cerne da argumentação putnamiana, os resultados mostram que o capital social não é relevante para explicar a realidade dos municípios quanto a emprego e renda, mas sim para explicar desempenhos em saúde e educação, o que relativiza e complexifica a hipótese culturalista, bem como evidencia outros elementos e mecanismos subjacentes às disparidades territoriais.

Palavras-chave:
Capital Social; Abordagem das Capacidades; Desenvolvimento; Liberdades; Sul do Brasil


In the debates on territorial development, the culturalist version of Social Capital (Robert Putnam) and the Capability Approach (Amartya Sen) reached prominence in the 90s. Based on the notion of development elaborated by Sen, the article scrutinizes the pertinence of Putnam's thesis in order to verify how much the social capital is able to expand capabilities, thus shifting the focus from growth to well-being. The empirical basis are the 496 municipalities in the state of Rio Grande do Sul, which is rich and diverse in ethnic and cultural terms. Contrary to the core of Putnam's argument, the results show that social capital is not relevant to explain the reality of municipalities in terms of Employment and Income. However, it is, nevertheless, important to explain health and education performance. These results relativize and complexify the culturalist hypothesis, as well as highlight other elements and mechanisms underlying territorial disparities.

Keywords:
Social Capital; Capability Approach; Development; Freedoms; South of Brazil


Dans les débats sur le développement territorial la version culturaliste du Capital Social (Robert Putnam) et l’Approche des Capacités (Amartya Sen) ont pris place à partir des années 1990. L`article analyse la pertinence de la thèse putnamienne à partir de la notion du développement élaborée par Sen, dans le sens de vérifier la manière dont le capital social est capable d`amplifier les capacités, détournant, ainsi, la cible de la croissance pour le bien-être. L`article a pour base empirique les 496 municipalités de l`État du Rio Grande du Sud, un État riche et diversifié ethniquement et culturellement. Contrariant le noyau de l`argumentation putnamienne, les résultats montrent que le capital social n`est pas important pour expliquer la réalité des municipalités en ce qui concerne l`Emploi et la Rente, tout en étant, toutefois, pour expliquer les performances en Santé et en Éducation. Cela relativise et complexifie l`hipothèse culturaliste, ainsi que met en évidence d’autres éléments et des mécanismes sous-jacents aux disparités territoriales.

Mots-clés:
Capital Social; Approche des Capacités; Développement; Libertés; Sud du Brésil


Introdução

Possivelmente, nas últimas décadas, poucos conceitos nas ciências sociais tiveram repercussão tão abrangente quanto o de capital social. Isso se deu especialmente após a publicação, em 1993, do livro de Robert Putnam sobre as desigualdades regionais na Itália – Making democracy work: civic traditions in modern Italy. Cerca de duas décadas depois, Fine (2010)FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press. afirma que, em decorrência da intensa difusão do conceito de capital social, ocorreu a perda de seu valor heurístico, restando, basicamente, apenas uma noção ideológica do mesmo. Para este autor, “o capital social está para as ciências sociais como McDonald’s está para comida gourmet”1 1 Todas as traduções que constam do artigo são de seu próprio autor. (Fine, 2010FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., p. 21). Ele afirma, ainda, que “ao invés do global, da economia, da classe, do estado, do conflito, gênero, poder e assim por diante, o capital social oferece uma branda alternativa […]” (Fine, 2010FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., p. 34).

Não apenas nos trabalhos de Putnam, mas em muitas das inúmeras pesquisas recentes inspiradas em sua abordagem, haveria, segundo Fine (2010)FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., uma superestimação do pretenso papel positivo do capital social. Isso porque muitos dos resultados que vêm sendo atribuídos a esse conceito, seriam, em boa medida, decorrentes da desconsideração de outros fatores explicativos. Para Fine (2010FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., p. 26), “isto não é um ‘bicho de sete cabeças’, mas tem sido negligenciado com demasiada frequência na literatura do capital social”. Embora tal problema em relação ao trabalho de Putnam (1996) tenha sido apontado, já na década de 1990, por autores como Levi (1996)LEVI, Margaret. (1996), “Social and Unsocial Capital: A Review Essay on Robert Putnam’s Making Democracy Work”. Politics and Society, 24, 1: 45-55. e Tarrow (1996)TARROW, Sidney. (1996), “Making social science work across space and time: A critical reflection on Robert Putnam’s Making Democracy Work”. American Political Science Review, 90: 389-397, June., bem como, mais recentemente, por Valentin, Ramos e Paiva (2013)VALENTIN, Rosa, RAMOS, Marilia Patta e PAIVA, Carlos Águedo Naguel. (2013), “Putnam Making Democracy Work: A Re-Examination in Cross-National Perspective”. Ask, 22 (1, 2013): 79–101., ele segue sendo um tema candente e atual.

Diante disso, o objetivo do presente texto não reside em negar ou refutar a tese putnamiana, de que o capital social possa ser decorrente da cultura local/regional e que esse capital possa ser um recurso endógeno à localidade/região, com possível efeito instrumental sobre o desenvolvimento. O objetivo é, portanto, o de destacar e evidenciar empiricamente que os supostos efeitos do capital social, na explicação do desenvolvimento socioeconômico de determinado recorte espacial, podem ser bem menores se, ao mesmo tempo, considerarmos outros elementos explicativos e, sobretudo, se adotarmos uma concepção de desenvolvimento que transcenda a dimensão puramente econômica, entendida como crescimento do Produto Interno Bruto ou da renda per capita.

Para tanto, toma-se como referência o trabalho de Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12.The Two Meanings of Social Capital –, que, por meio de regressões multivariadas, testou a hipótese de Coleman (1988)COLEMAN, James. (1988), “Social Capital in the Creation of Human Capital”. American Journal of Sociology, 94, Supplement: 95-120., segundo a qual o capital social auxilia na aquisição de capital humano, chegando à conclusão de que “[...] apesar da popularidade atual do conceito, muito de seus supostos benefícios podem ser espúrios após o controle de outros fatores” (Portes, 2000PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., p. 1).

O campo empírico do presente estudo são os 496 municípios do estado do Rio Grande do Sul, existentes no ano de 2010. Como estado mais meridional do Brasil, ele oferece um contexto muito apropriado para tratar do assunto ora proposto, pela diversidade de origens étnicas bastante acentuada, graças à presença originária de indígenas, à chegada de portugueses, à introdução de povos africanos como trabalhadores escravos, a partir do final do século XVIII, e ainda, ao processo de imigração de diferentes povos, sobretudo europeus não-ibéricos, ao longo do século XIX até meados do século XX (Pellanda, 1925PELLANDA, Ernesto. (1925), A colonização germânica no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Livraria do Globo.).

Numa área de cerca de 282 mil quilômetros quadrados vivem 11,0 milhões de pessoas, descendentes de índios, negros, portugueses, italianos, alemães e asiáticos. Na região da Serra, por exemplo, é comum ouvir-se brasileiros falando alemão e italiano em vez do português. Estado de características europeias, o Rio Grande do Sul apresenta um alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)” (RS, 2013RS (Rio Grande do Sul). (2013), Economia. Disponível em http://ww2.rs.gov.br/o-estado/Economia/109, consultado em 05/12/2013.
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).

Em decorrência de sua herança cultural diversa, predomina, no senso comum e entre os acadêmicos locais, uma percepção que associa a cultura desses antepassados, e seu capital social, ao desenvolvimento atual dos municípios e regiões do estado.2 2 No que se refere aos acadêmicos locais, os trabalhos de Pase (2007 e Pase 2016) e boa parte da literatura por ele usada ilustram bem tal aspecto. Isto pode ser observado no próprio site do governo estadual, que, conforme a citação acima, associa as “características europeias” ao dito alto desenvolvimento. Dentre os mencionados acadêmicos locais, o estudo de Ramos e Mariño (2012)RAMOS, Marília e MARIÑO Juan Mario Fandino. (2012), “Conexões explicativas entre desenvolvimento e capital social Pesquisa piloto com dois casos comparados”. Civitas Porto Alegre, 12, 2: 378-394, maio-ago. destoa ligeiramente desta noção geral. Os autores apresentam evidências de que a maior/menor desigualdade material seja a base da coesão ou integração social, subjacente, portanto, à maior/menor democratização das oportunidades e formação de capital social.

Com base no pressuposto de que desenvolvimento é um conceito pluridimensional, que abrange aspectos sociais e econômicos, optou-se por trabalhar com a noção de Abordagem das Capacidades, desenvolvida, sobretudo, pelo economista indiano Amartya Sen. Dela resulta, em primeiro lugar, um índice multidimensional de desenvolvimento, semelhante ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, que contém informações sobre Emprego/Renda, Educação e Saúde, como medida de desempenho territorial (variáveis dependentes). O estudo também se valeu dos conceitos de Liberdades Instrumentais e de Diversidades e Heterogeneidades, para derivar outros fatores (variáveis de controle) que, juntamente com o conceito de capital social, podem explicar parte do desenvolvimento do campo empírico investigado.

Na sequência, o texto sintetiza os argumentos centrais da tese putnamiana e, depois, os da Abordagem das Capacidades, conferindo atenção especial ao conceito de “agência”, desenvolvido por Sen e complementado por Crocker e Robeyns (2010)CROCKER, David & ROBEYNS, Ingrid. (2010), “Capability and Agency”, in C. MORRIS (ed.), Amartya Sen. Cambridge, Cambridge University Press.. Desse arcabouço teórico/conceitual, associado à estratégia empírica de Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., resultam o modelo explicativo e as hipóteses gerais que orientam a exposição e análise dos resultados. O terceiro item que compõe o artigo apresenta a estratégia de operacionalização dos conceitos, os dados e as variáveis utilizados para tal. O modelo de Putnam foi operacionalizado por três variáveis de capital social. O desenvolvimento foi medido pelo Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), composto por três dimensões (Emprego/Renda, Saúde e Educação). Representando os conceitos de “Liberdades Instrumentais” e “Diversidades e Heterogeneidades”, foram consideradas oito variáveis de controle, apresentadas no item em questão.

Na quarta seção, que traz os resultados empíricos, destaca-se que, contrariando o argumento central da tese putnamiana, os indicadores de capital social não se mostraram associados positivamente à dimensão que mede aspectos econômicos (Emprego/Renda), no âmbito municipal. Já com relação às dimensões “Saúde” e “Educação”, duas das variáveis de capital social se mostraram associadas a elas de maneira positiva e significante. Quando fatores explicativos concorrentes (variáveis de controle) foram considerados simultaneamente, tais variáveis apresentaram certa redução do seu potencial explicativo, mas ainda se mantiveram robustas nos respectivos modelos.

Os resultados, conforme discussão na seção final do artigo, tendem a lançar nova luz sobre o debate capital social/desenvolvimento, visto que boa parte da literatura foca justamente na associação positiva entre capital social e crescimento econômico (Stadelmann-Steffen e Freitag, 2007STADELMANN-STEFFEN, I. e FREITAG, M. (2007), “Der ökonomische Wert sozialer Beziehungen: Eine empirische Analyse zum Verhältnis von Vertrauen, sozialen Netzwerken und wirtschaftlichem Wachstum im interkulturellen Vergleich”, in A. FRANZEN e M. FREITAG (ed.). (2007), Sozialkapital. Grundlagen und Anwendungen. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, Sonderheft 47.), negligenciando outras dimensões do desenvolvimento humano. Além disso, visto à luz da Abordagem das Capacidades, o conjunto dos resultados aqui apresentado evidencia um leque de questionamentos e possibilidades investigativas, que apontam para muito além de Putnam.

Desenvolvimento regional entre a cultura cívica e as liberdades

Cultura cívica e disparidades espaciais de desenvolvimento

Para Putnam (2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV., p. 177), capital social diz respeito a características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas”. Este capital seria uma espécie de recurso coletivo/comunitário intangível, inerente à cultura e ao ethos regional, dos quais as coletividades se beneficiariam em termos de melhores instituições políticas e desempenho econômico. Em Putnam (2000bPUTNAM, Robert. (2000b), Bowling alone. The collapse and revival of american community. New York, Simon & Schuster., p. 19), lê-se que “[...] o capital social está estreitamente relacionado com o que alguns chamaram de ‘virtude cívica’”.

Esta virtude cívica (ou cultura cívica, ou comunidade cívica) seria caracterizada por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, relações políticas igualitárias e uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração. Todavia, esses cidadãos não seriam “santos abnegados” (Putnam, 2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV.), mas considerariam o domínio público algo mais do que um campo de batalha para a afirmação do interesse pessoal. Baseado em Alexis de Tocqueville, Putnam afirma que, em uma comunidade cívica, os cidadãos buscam o interesse próprio corretamente entendido, isto é, interesse próprio definido no contexto das necessidades públicas gerais, o interesse próprio que é ‘esclarecido’ e não ‘míope’, o interesse próprio que é sensível aos interesses dos outros” (Putnam, 2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV., p. 102).

A cultura cívica seria também caracterizada pela abundância de associações das mais diversas (culturais, esportivas, beneficentes, etc.), nas quais se reproduziria a própria cultura e se formaria o capital social. Tal cenário seria propício ao estabelecimento da confiança e de normas de reciprocidade generalizadas, fundamentais para o círculo virtuoso de capital social - desenvolvimento regional - capital social. Isto porque, a predominância de confiança e de normas de reciprocidade generalizadas tornariam as pessoas mais predispostas a cooperar umas com as outras, reduzindo-se, assim, os comportamentos oportunistas, bem como os custos de transação - o que tornaria o sistema mais eficiente, facilitando as ações coletivas. E, coletivamente, seria possível atingir objetivos maiores não alcançáveis por meio de ações individuais. Assim se explicariam, em grande parte, as disparidades regionais atuais, tanto no caso italiano, quanto em outros países e continentes.

Pode-se considerar que, para Putnam, a característica predominante de regiões desenvolvidas seria uma forte tradição de engajamento cívico afluência às urnas, leitura de jornais, a participação em corais e círculos literários, Lions Clubes e clubes de futebol - são as características de uma região bem-sucedida [...]” (Putnam, 1993PUTNAM, Robert. (1993), “The Prosperous Community: Social Capital and Public Life”. The American Prospect, 13: 35-52., p. 3). Em outras palavras, Putnam afirma que a explicação para as diferenças socioeconômicas interregionais está dentro de cada região e o elemento-chave seria a respectiva cultura.

Fatores externos e internos, para além da cultura, são obliterados pela lente putnamiana, como também o fato de que a própria origem do capital social pode não ser simplesmente a cultura em si, argumentação para a qual apontam autores como Offe e Fuchs (2002)OFFE, Claus e FUCHS, Susanne. (2002), “A Decline of Social Capital? The German Case”, in Robert D. PUTNAM. Democracies in Flux: The Evolution of Social Capital in Contemporary Society. Oxford, University Press., Valentim, Ramos e Paiva (2013) e Salej (2005)SALEJ, Silvio. (2005), “¿Necesitamos de capital social? Sí, pero socializando el capital”. Revista Colombiana de Sociologia, 25: 171-189.. Para este último, é muito provável que por detrás de uma comunidade cívica exista uma comunidade justa, devendo-se buscar, nos estudos de Putnam sobre as regiões italianas, os indicadores socioeconômicos que revelem o que ele chama de vantagens sociais, como liberdades, riqueza e renda. E foi basicamente isso que Valentim, Ramos e Paiva (2013) fizeram: em seu estudo, fica evidente que uma sociedade caracterizada por um baixo nível de desigualdade material é a base para a existência de confiança generalizada e civismo; o que, por sua vez, afeta o desempenho institucional e socioeconômico regional. Já Offe e Fuchs (2002)OFFE, Claus e FUCHS, Susanne. (2002), “A Decline of Social Capital? The German Case”, in Robert D. PUTNAM. Democracies in Flux: The Evolution of Social Capital in Contemporary Society. Oxford, University Press., ao estudarem o contexto alemão, destacam uma série de “antecedentes sociológicos”, tais como nível de renda, religiosidade, características demográficas da população, tamanho da localidade, como sendo corresponsáveis pelos níveis de capital social em determinado território.

A mencionada noção culturalista, com foco no endógeno, fica bastante clara na acepção de Ismail Serageldin, em seu prefácio ao working paper nº1 da Social Capital Initiative do Banco Mundial. Para ele, “capital social se refere à coerência social e cultural interna da sociedade, às normas e valores que governam as interações entre pessoas e instituições nas quais elas estão inseridas” (Serageldin, 1998SERAGELDIN, Ismail. (1998), “Foreword”. The World Bank Social Capital Initiative. Working Paper 1. Disponível em http://siteresources.worldbank.org/INTSOCIALCAPITAL/Resources/Social-Capital-Initiative-Working-Paper-Series/SCI-WPS-01.pdf, consultado em 26/01/2018.
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p. iii; grifos nossos). Para os fins do presente trabalho, importa reiterar que a desconsideração de outros fatores explicativos é, nas palavras de Fine (2010)FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., uma das características centrais de grande parte dos estudos mais recentes, baseados em Putnam. Portanto, estaria ocorrendo uma recorrente e reiterada superestimação dos supostos efeitos benéficos esperáveis do capital social. Neste sentido, no que tange às disparidades espaciais de desenvolvimento, trabalhar com a abordagem putnamiana, sem considerar, simultaneamente, outros aspectos, pode contribuir para a superestimação do papel do capital social e das respectivas culturas locais ou regionais; o que, por sua vez, pode mais legitimar do que explicar disparidades espaciais de desenvolvimento ora existentes (Mueller, 2016 e 2018).

Desenvolvimento segundo a Abordagem das Capacidades

O conjunto de reflexões do ganhador do Prêmio Nobel de economia em 1998, Amartya Sen, passou a ser conhecido como Abordagem das Capacidades (Capability Approach). Em uma de suas obras mais recentes, ele afirma que tal abordagem: “[...] confere um papel central à real capacidade de uma pessoa fazer as diferentes coisas que ela valoriza. [...] foca em vidas humanas, e não apenas nos recursos que as pessoas têm [...]” (Sen, 2010SEN, Amartya. (2010), The Idea of Justice. London, Penguin Books., p. 253).

O ponto de partida de Sen são as “Diversidades e Heterogeneidades”; ou seja, dadas as “heterogeneidades pessoais” (diferenças intrínsecas entre indivíduos em termos de idade, saúde física, etnia, gênero, etc.), um mesmo nível de renda, ou uma mesma quantidade de recursos poderiam proporcionar níveis distintos de bem-estar. Da mesma forma, uma série de outras diversidades contextuais, tais como as “diversidades ambientais” (temperaturas extremas, inundações, etc.), poderiam interferir na conversão de rendas e recursos em bem-estar. Assim, avaliar somente as rendas seria pouco esclarecedor quanto ao real bem-estar das pessoas. Por isso, o autor propõe tomar as rendas e recursos como meios e o bem-estar individual como fim, como medida de desenvolvimento (Sen, 1989SEN, Amartya. (1989), “Development as Capability Expansion”. Jounal of Development Planning, 19.).

Levando em consideração a pluralidade3 3 Além destas duas categorias de “Diversidades e Heterogeneidades”, Sen (2000) cita outras três, que não foram aqui utilizadas. São elas: “Variações no clima social”, “Diferenças de perspectivas relativas” e “Distribuição na família”. de “Diversidades e Heterogeneidades” e a distinção clara entre fins e meios, sua análise, tanto do bem-estar individual quanto coletivo, baseia-se em quatro conceitos interconexos: funcionamentos, capacidades, agência e liberdade. Funcionamentos refletem as realizações, as conquistas, aquilo que de fato uma pessoa consegue fazer ou ser. As capacidades, por sua vez, refletem as diferentes possibilidades de um indivíduo alcançar funcionamentos. Nas palavras de Sen (1987SEN, Amartya. (1987), “The Standard of living”. The Tanner Lecture on Human Values. Delivered at Stanford University. Cambridge, Cambridge University Press., p. 48), “um funcionamento é uma realização, enquanto uma capacidade é a possibilidade efetiva de realizar”.

É neste sentido que Sen (2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., p. 10) defende que “o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer sua condição de agente”. A noção de liberdade, para Sen, possui um duplo aspecto. Ela está associada às capacidades que permitem a obtenção de distintos funcionamentos (aspecto do bem-estar), como também à condição de agente de indivíduos e coletividades (aspecto da agência). Segundo o autor (1985, p. 169), “tanto o aspecto do bem-estar quanto o aspecto da agência das pessoas têm sua própria relevância na avaliação de estados e ações. Cada aspecto também produz uma noção correspondente de liberdade”. Isso quer dizer que as liberdades são expressas, em parte, pelo conceito de capacidades e, em parte, pelo conceito de agência.

Um agente é “alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos [...]” (Sen, 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., p. 33). Em outros termos, agência, opondo-se à ideia passiva de público-alvo, implica a liberdade de ser protagonista, a liberdade de tomar decisões que impactem na própria vida e no mundo ao redor.

Se a ideia de agência, neste sentido mais lato, é relativamente bem conhecida, costumam receber, contudo, menor atenção os aspectos de “poder efetivo” (effective power) e de “controle” (control), que são inerentes e constitutivos da noção de agência ora em questão. Sen (1985)SEN, Amartya. (1985), “Well-Being, Agency and Freedom: The Dewey Lectures”. The Journal of Philosophy, 82, 4: 169-221. afirma que, no âmbito de seu constructo teórico, “poder efetivo” diz respeito ao fato de uma pessoa ou grupo possuírem o poder de atingir objetivos e prioridades por ela (ele) estabelecidos, não importando se os diretamente interessados têm controle sobre os processos que conduzam à consecução de seus objetivos. Já a ideia de controle complementa a de poder efetivo; ou seja, controle se refere à possibilidade de fazer escolhas e controlar os processos associados à sua efetivação.

Portanto, falar em agência implica levar em consideração os aspectos do poder efetivo e do controle, juntamente com a noção lato de alguém que age e ocasiona mudanças na própria vida e no mundo. Implica, ainda, levar em consideração que “[...] a condição de agente de cada um é inescapavelmente restrita e limitada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas de que dispomos” (Sen, 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., p. 10). Em outros termos, significa que o “aspecto do bem-estar” interfere diretamente no “aspecto da agência”, uma vez que as mencionadas oportunidades sociais, políticas e econômicas são constitutivas do “aspecto do bem-estar”. Ou seja, de um lado, a agência impacta no bem-estar; de outro lado, o bem-estar condiciona a capacidade de agência, constituindo uma relação de influência recíproca.

Em linhas gerais, é possível concluir que o mesmo conceito de “agência” auxilia a evidenciar que os indivíduos podem e devem controlar seus destinos, assim como podem e devem participar das questões de interesse público; ainda que igualmente evidencie que nem tudo está sob controle dos próprios interessados. Por isso, Crocker e Robeyns (2010)CROCKER, David & ROBEYNS, Ingrid. (2010), “Capability and Agency”, in C. MORRIS (ed.), Amartya Sen. Cambridge, Cambridge University Press. alertam para o fato de que muito do que acontece com um indivíduo ou grupo pode ser resultado da “agência de outros” (agency of others), sem resultar necessariamente, nem mesmo majoritariamente, da própria agência. Assim, a avaliação de realizações presumivelmente decorrentes da agência de um indivíduo ou grupo requer que se dê atenção aos aspectos de Poder Efetivo e Controle, a elas subjacentes.

Putnam, Sen e a questão da agência

Partindo dessa noção de agência, pode-se dizer que, na abordagem de Putnam ora em questão, somente a cultura interfere na agência dos indivíduos, da qual resultam o capital social e seus efeitos sobre o desenvolvimento. Já para Sen, a agência também é afetada por aspectos materiais, sociais e políticos, e tem implícito as noções de poder efetivo e controle – o que pode tanto restringir, quanto potencializar seus resultados. Neste sentido, entende-se que Putnam trabalha apenas com uma dimensão da noção de agência; isto é, aquela que diz respeito ao engajamento e à participação. Ele não considera, conforme já apontado por Valentim, Ramos e Paiva (2013), os aspectos não culturais que limitam e/ou potencializam a condição de agente em si e condicionam, portanto, os efeitos que dela se pode esperar; sem contar o fato de que ele permanece “alheio aos conflitos distributivos que geram o sentido de justiça distributiva, ou seja, de repartição de vantagens e desvantagens sociais” (Salej, 2005SALEJ, Silvio. (2005), “¿Necesitamos de capital social? Sí, pero socializando el capital”. Revista Colombiana de Sociologia, 25: 171-189., p. 179).

Portanto, a existência de capital social em determinado território pode ser, sim, decorrente da cultura. Todavia, os seus efeitos sobre o desenvolvimento podem não ser diretamente proporcionais a essa quantidade de capital social, tendo em vista a ação de condicionantes não culturais. Além disso, é preciso ter em mente que os diferentes territórios sofrem a constante interferência da “agência de outros”, de atores externos ao território. Consequentemente, boa parte do desenvolvimento de um município pode ocorrer de modo relativamente desacoplado da cultura local, a despeito dela e da respectiva quantidade de capital social.

Neste sentido, há que se considerar, em primeiro lugar, o poder e o controle que os agentes locais dispõem para influenciar aspectos que interferem no desenvolvimento local – o que é indissociável dos aspectos distributivos relativos à propriedade e à renda (Valentim, Ramos e Paiva, 2013; Salej, 2005SALEJ, Silvio. (2005), “¿Necesitamos de capital social? Sí, pero socializando el capital”. Revista Colombiana de Sociologia, 25: 171-189.). Regiões pouco desenvolvidas, com má distribuição das “vantagens sociais” (Salej, 2005SALEJ, Silvio. (2005), “¿Necesitamos de capital social? Sí, pero socializando el capital”. Revista Colombiana de Sociologia, 25: 171-189.), dentre elas a renda e a propriedade, têm menores possibilidades de existência de confiança e, consequentemente, de capital social; sendo que o existente é, predominantemente, formado por um conjunto de indivíduos carentes em termos materiais e de instrução formal, etc. Em outras palavras, indivíduos com possibilidades mais restritas de exercerem com eficácia sua condição de agente, e influenciarem, assim, os processos inerentes ao desenvolvimento local e ou regional.

Em segundo lugar, há que se ter em mente que alguns aspectos e processos inerentes a cada uma das dimensões do desenvolvimento podem ser mais controláveis por atores locais, do que outros. Em um contexto de economia globalizada, é bastante provável que muitas das atividades econômicas locais estejam sendo controladas por agentes externos (agency of others) e não pela agência dos atores locais. De modo contrário, é possível que, por exemplo, vários aspectos e processos subjacentes à “Educação” e à “Saúde”, em um município, possam ser mais bem controlados pelos agentes locais. Nesse sentido, o capital social local poderia se mostrar mais eficaz sobre essas dimensões, do que sobre a dimensão “emprego/renda”.

Em outras palavras, estamos sugerindo a existência de um desacoplamento relativo entre capital social e desenvolvimento local. Dizemos relativo, porque o poder efetivo e o controle possíveis aos agentes locais são condicionados por uma série de contingências que vão além da cultura. É relativo, também, porque as dimensões do desenvolvimento podem ser influenciáveis de maneira distinta, por atores internos e externos. E, também, pelo fato de que, apesar da influência de atores externos e dos demais condicionantes próprios de cada contexto, uma parte do desenvolvimento de uma região será, certamente, decorrente das ações dos atores internos.

Putnam, Sen e a multiplicidade de questões internas à unidade de análise

Além dos fatores acima arrolados, há que se considerar, para além da cultura, outros elementos internos à unidade de análise, que podem, junto ou paralelamente ao capital social, influenciar o desenvolvimento local, visto que, do contrário, poderia ocorrer uma superestimação do referido capital, como alertam Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12. e Fine (2010)FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press.. Ao levar em conta ao menos alguns deles, pode-se obter uma espécie de diluição de parte dos supostos efeitos do capital social, dentre os demais elementos considerados (Portes, 2000PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12.). Este autor os denomina efeitos brutos do capital social (sem a apreciação de outros elementos/variáveis de controle) e efeitos líquidos (após a incorporação de outros elementos). Para selecionar alguns destes “concorrentes” do capital social, serão usados os conceitos de liberdades instrumentais e de diversidades e heterogeneidades, ambos inerentes à teoria de Sen.

Com relação às liberdades instrumentais, Sen (1985)SEN, Amartya. (1985), “Well-Being, Agency and Freedom: The Dewey Lectures”. The Journal of Philosophy, 82, 4: 169-221. ressalta que, associadamente aos dois aspectos da liberdade, acima citados (bem-estar e agência), deve-se atentar para dois papéis ou duas funções. Relacionado ao aspecto do bem-estar, tem-se o papel constitutivo/avaliativo da liberdade, que serve para mensurar/avaliar o desenvolvimento. Por sua vez, relativamente ao aspecto da agência, tem-se seu papel instrumental no processo de obtenção do desenvolvimento. Ter mais liberdade significa ser mais desenvolvido, mas também potencializar novas possibilidades de alcançar mais desenvolvimento. Nesse sentido, Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras. apresenta a mencionada noção de liberdades instrumentais, para elencar distintos aspectos e mecanismos que possam ter um papel instrumental na obtenção de desenvolvimento, dentre as quais, destacam-se as facilidades econômicas e as oportunidades sociais4 4 Sen (2000) menciona ainda as “liberdades políticas”, as “garantias de transparência” e a “segurança protetora”, como liberdades instrumentais ao desenvolvimento, não operacionalizadas no presente trabalho. .

Facilidades econômicas são as “oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo, produção e troca” (Sen, 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., p. 55). Tais liberdades dependerão, segundo o autor, tanto da disponibilidade de recursos, quanto do acesso a eles. Já as oportunidades sociais são as “disposições que a sociedade estabelece nas áreas de educação, saúde, etc., as quais influenciam a liberdade substantiva de o indivíduo viver melhor” (Sen, 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., p. 56).

Em relação ao conceito de diversidades e heterogeneidades, priorizam-se as heterogeneidades pessoais, uma vez que a desigual distribuição da população entre os municípios - segundo faixa etária, sexo, cor da pele etc. - pode tanto ser resultado da disparidade de desenvolvimento, quanto ter implicações instrumentais sobre o mesmo. Além disso, representando a noção de diversidades, foram selecionadas peculiaridades próprias ao campo empírico em estudo, apresentadas no item 2 deste artigo, e aqui denominadas diversidades locais.

Em síntese, a partir da função constitutiva/avaliativa da liberdade, define-se a noção de desenvolvimento adotada (desenvolvimento como liberdade) e, consequentemente, sua mensuração empírica (índice multidimensional de desenvolvimento local). Da função instrumental da liberdade, mais especificamente das duas categorias de liberdades instrumentais destacadas, derivam-se algumas das variáveis de controle empregadas nos modelos estimados. As demais são derivadas do conceito de diversidades e heterogeneidades.

Modelo explicativo e hipóteses gerais

A figura 1 sintetiza a discussão acima desenvolvida. Para isso, são observadas, simultaneamente, as contribuições de Putnam (2000a)PUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV., Sen (1985SEN, Amartya. (1985), “Well-Being, Agency and Freedom: The Dewey Lectures”. The Journal of Philosophy, 82, 4: 169-221., 1987SEN, Amartya. (1987), “The Standard of living”. The Tanner Lecture on Human Values. Delivered at Stanford University. Cambridge, Cambridge University Press., 1989SEN, Amartya. (1989), “Development as Capability Expansion”. Jounal of Development Planning, 19. e 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras.), Crocker e Robeyns (2010)CROCKER, David & ROBEYNS, Ingrid. (2010), “Capability and Agency”, in C. MORRIS (ed.), Amartya Sen. Cambridge, Cambridge University Press. e Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12..

FIGURA 1
Modelo Explicativo da Pesquisa

Mantém-se o modelo de Putnam (2000, p. 157), representado pelas setas “b” e “d”, segundo o qual, a cultura gera capital social, sendo ele um fator endógeno relevante na obtenção do desenvolvimento (setas b). Além disso, mantém-se o controle dos níveis de desenvolvimento no momento “1” (seta d), tal qual defendido por Putnam (2000a)PUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV. e detalhado no item 2.3 deste artigo. Tal modelo é expandido através da estratégia de Portes (2000a), visando considerar, simultaneamente, outros elementos concorrentes na explicação daquilo que supostamente estaria sendo resultado do capital social (seta y). Estes elementos se derivam das noções de liberdades instrumentais e diversidades e heterogeneidades, de Amartya Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras.. Da mesma forma, chama-se atenção para a influência atual (seta x) e pretérita (seta x’) dos agentes externos, sintetizada no conceito de agency of others (Crocker e Robeyns, 2010CROCKER, David & ROBEYNS, Ingrid. (2010), “Capability and Agency”, in C. MORRIS (ed.), Amartya Sen. Cambridge, Cambridge University Press.).

Com relação aos conceitos da Abordagem das Capacidades, vale frisar que os aspectos do Bem-estar e de Agência, partes da Figura 1, não são variáveis de controle, mas são parte constitutiva e inseparável do constructo de Amartya Sen. Sendo assim, eles dão sustentação teórica e lógica ao raciocínio desenvolvido até então e, sobretudo, à Hipótese Geral 2, apresentada na sequência.

A argumentação desenvolvida pode ser sintetizada nos dois pontos a seguir, denominados Hipóteses Gerais (HG).

HG 1) Segundo a abordagem putnamiana, é de se esperar que os indicadores de capital social estejam correlacionados positivamente com o índice de desenvolvimento local e suas dimensões e, também, que essa correlação represente uma relação causal, no sentido de que o capital social afete positivamente o desenvolvimento. Caso a correlação positiva se confirme, espera-se que, conforme os resultados apresentados por Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., os “efeitos” do capital social também apresentem redução significativa, deixando de ser estatisticamente significantes depois de controlados por outros fatores - o que será denominado Hipótese da Diluição.

HG 2) Espera-se que os efeitos positivos do capital social se mostrem menores na dimensão “emprego e renda”, do que nas demais dimensões, uma vez que se propõe a análise dos efeitos do capital social através da noção de agência (e dos conceitos de poder e controle a ela inerentes) de Amartya Sen, sem contudo desconsiderar o papel da cultura e dos agentes externos. Neste sentido, é possível que, em muitos municípios, especialmente as atividades econômicas – ou parte delas – não sejam decorrentes diretamente da agência dos atores locais. Se dela resultar o capital social local, poderá haver um desacoplamento entre ele e muitas das atividades econômicas locais. Isso pode não ser tão acentuado, no caso das dimensões “saúde e educação”, tendo em vista que elas podem estar mais sob o controle dos agentes locais e, portanto, da sua agência e do seu capital social - o que é denominado Hipótese do Desacoplamento Relativo.

Em ambas as hipóteses examinadas, considera-se que os efeitos do capital social são mediados tanto pela cultura, quanto por uma série de restrições à agência dos atores locais (seta z). Neste sentido, a seta representa o efeito líquido do capital social sobre o desenvolvimento local – atentando-se para as diferentes dimensões desse desenvolvimento, bem como para os diferentes efeitos do capital social sobre cada dimensão.

Dados, variáveis e suas peculiaridades

Variáveis Dependentes

IFDM: Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal. Tal qual o IDH, esse índice também varia de zero a um. Valores mais próximos de zero (0) indicam pior desenvolvimento, e valores mais próximos a um (1) indicam melhor desenvolvimento. Três áreas do desenvolvimento humano são levadas em consideração, em sua composição final: emprego/renda, educação e saúde. Cada uma das áreas consideradas contribui de forma igual para a composição final do índice. A composição de cada indicador se dá conforme descrito a seguir.

IFDM Emprego/Renda: visa acompanhar a movimentação e as características do mercado formal de trabalho. Cada uma das duas áreas (emprego e renda) contribui com 50% na composição do indicador.

IFDM Educação: objetiva captar tanto a oferta, quanto a qualidade da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, que são de competência direta dos municípios. O Ensino Infantil contribui com 20% para esse indicador, e o Fundamental, com 80%.

IFDM Saúde: busca captar a oferta e a qualidade de atenção básica à saúde dos moradores de cada município. Os dados foram obtidos em Firjan (2012)FIRJAN. (2012), Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal. Disponível em http://www.firjan.com.br/ifdm/, consultado em 20/10/2012.
http://www.firjan.com.br/ifdm/...
, em sítio eletrônico que também traz detalhes sobre a composição de cada um dos indicadores.

Variáveis de Capital Social55Para não ultrapassar a extensão do artigo, foram aqui omitidos detalhes secundários da composição de cada um dos indicadores de capital social e das variáveis de controle, os quais podem ser consultados em Mueller (2015).

IOV: Índice de organizações voluntárias. Representa o número de associações, fundações e organizações religiosas existentes nos municípios, no ano de 2002, para cada grupo de mil habitantes. Tais informações são parte do estudo “As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil” (IBGE/IPEA, 2004IBGE/IPEA. (2004), As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil 2002. Rio de Janeiro.).

PE: Participação nas eleições regulares. Trata-se do percentual médio de comparecimento às eleições ocorridas no Brasil, nos anos de 2000, 2002, 2004, 2006 e 2008. Para cada ano em que ocorreram eleições, calculou-se o percentual de eleitores que votou em cada município, e, em seguida, a média da participação durante o período. Os dados foram obtidos junto à plataforma Ipeadata (IPEA, 2011IPEA. (2011), Banco de Metadados IPEA. Eleições. Disponível em http://www.ipeadata.gov.br/, consultado em 05/05/2011.
http://www.ipeadata.gov.br/...
). Seria possível questionar a validade deste indicador para um país, onde a participação eleitoral é obrigatória e não voluntária, conforme o indicador de participação em referendos, usado por Putnam (2000a)PUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV.. Porém, como resposta a esse questionamento, argumenta-se que a obrigatoriedade de voto seria um problema incontornável, caso fossem comparados países com legislações eleitorais distintas, e não regiões/municípios dentro de um mesmo país e regidos, portanto, pelo mesmo regime jurídico. Dessa forma, o não comparecimento às urnas tem as mesmas consequências legais para todos aqueles que deixam de participar das eleições. Logo, as diferenças na participação eleitoral podem ser pensadas como resultantes de maior/menor interesse pelas questões coletivas, e não simplesmente como resultado de uma imposição legal.

CP: Consulta popular. Refere-se a um procedimento realizado anualmente pelo governo estadual do estado do Rio Grande do Sul, com a finalidade de definir a destinação de parte do orçamento do próximo ano, conforme demandas apresentadas e eleitas pelos moradores de cada município. Elaborou-se um indicador baseado no percentual médio de participação dos respectivos eleitores, no período de 2005 até 2008. Os dados são oriundos de RS (2010)RS (Rio Grande do Sul). (2010), Consulta Popular. Disponível em http://www.consultapopular.rs.gov.br/, consultado em 02/12/2010.
http://www.consultapopular.rs.gov.br/...
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Variáveis de Controle

IFDM 2000:Putnam (2000a)PUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV. ressalta ser necessário considerar os valores de cada variável dependente, em seu período “um”, “[...] uma vez que presumivelmente o melhor prognosticador de uma variável no segundo período é esta mesma variável no primeiro período – o chamado efeito ‘auto-regressivo’” (Putnam, 2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV., p. 164). Assim, os valores do IFDM e de cada uma de suas dimensões, no ano 2000, são usados como variáveis de controle nos respectivos modelos6 6 Embora uma série temporal destes valores fosse mais robusta do que apenas um ano, o critério aqui adotado foi o de permanecer o mais próximo possível dos procedimentos adotados por Putnam (2000a). .

Facilidades Econômicas

AT: Acesso à terra. Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras. refere-se às “facilidades econômicas” como oportunidades que os indivíduos possuem para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo, produção e troca. Neste sentido, o acesso à propriedade fundiária se mostra como um aspecto que contempla de maneira ampla tais oportunidades. Em um cenário de grandes propriedades, somente poucos têm acesso à terra. Já onde as propriedades são menores, maior será o número de proprietários. Portanto, é de se esperar que quanto maiores forem as propriedades rurais em um município, piores serão seus indicadores de desenvolvimento. No presente estudo, o acesso à terra foi medido com base no tamanho médio das propriedades rurais (em hectares) em cada município7 7 Optou-se em adotar a média do tamanho das propriedades rurais, pois ela sinaliza a quantidade de proprietários em um município. Ou seja, ela é também um indicador de distribuição da propriedade fundiária, pois onde as propriedades são grandes, haverá um menor número de proprietários. Portanto, médias altas indicam concentração da terra na mão de poucos proprietários, enquanto médias baixas indicam maior democratização no acesso à terra. , conforme dados do Censo Agropecuário de 2006 (IBGE, 2007IBGE. (2007). Censo Agropecuário de 2006. Disponível em http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?z=t&o=11&i=P&c=1244, consultado em 07/04/2012.
http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/...
).

Gini: Índice de Gini. Segundo Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., além dos aspectos agregativos (crescimento econômico), os aspectos distributivos são fundamentais para os processos de desenvolvimento. “O modo como as rendas adicionais geradas são distribuídas claramente fará diferença” (Sen, 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., p. 56). A desigualdade de renda implica em desigualdade de acesso a “facilidades econômicas” e significa, particularmente, menor capacidade de consumo de um contingente maior da população – o que pode ter efeitos subsequentes sobre todas as atividades econômicas. Toma-se como variável de controle o Índice de Gini da renda auferida pelos moradores de cada um dos municípios, no ano 2000. É de se esperar que a maior desigualdade implique em menores índices de desenvolvimento municipal. A fonte para tais dados é o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, referente ao ano 2000 (PNUD, 2003PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). (2003), Atlas do desenvolvimento humano no Brasil.).

Oportunidades Sociais

Analfab25: Percentual de adultos (acima de 25 anos de idade) analfabetos, no total da população residente no ano 2000. Dentre as “oportunidades sociais”, Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras. se refere às possibilidades de acesso à educação, como elemento fundamental para o desenvolvimento individual. Do ponto de vista coletivo, o nível de educação da população de um município pode também ser visto como estoque de capital humano, no sentido de Becker (1964)BECKER, Gary. (1964), Human Capital. Chicago, University of Chicago Press.. Espera-se que uma maior concentração de adultos sob essa condição traduza-se em efeitos negativos sobre o IFDM e suas dimensões. Os dados são oriundos do Atlas do Desenvolvimento Humano (PNUD, 2003PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). (2003), Atlas do desenvolvimento humano no Brasil.).

PC: Acesso à informática. Além da educação formal, torna-se cada vez mais primordial ao desenvolvimento individual e coletivo o acesso à informática, bem como a habilidade com tecnologias de informação e comunicação digital (Unesco, 2011UNESCO. (2011), “Digital Literacy in Education”. IITE Policy Brief - May 2011. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002144/214485e.pdf, consultado 26/01/2018.). Dessa forma, é de se supor que a maior disponibilidade e acesso ao “mundo digital” tenham impactos positivos sobre o desenvolvimento local. A variável em questão refere-se ao percentual da população que, em 2000, vivia em residências com acesso a algum tipo de computador pessoal (personal computer, PC), segundo os dados disponibilizados em PNUD (2003)PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). (2003), Atlas do desenvolvimento humano no Brasil..

Heterogeneidades Pessoais

Mulheres: Proporção de mulheres com idade entre 15 e 64 anos, no total da população no ano 2000. Para Sen, as mulheres são “agentes ativos de mudança: promotoras dinâmicas de transformações sociais que podem alterar a vida das mulheres e homens” (Sen, 2000 p. 220-221). Considerando-se correta tal afirmação, tem-se que a maior presença de mulheres (especialmente daquelas em idade economicamente ativa), em determinado município, deverá ter um impacto positivo sobre o desenvolvimento local. Logo, a distribuição espacial das mulheres (entre municípios) pode ser um fator de desenvolvimento local, sobretudo tendo em vista o cenário recente de migração intermunicipal, no estado estudado (Mueller, 2017MUELLER, Airton Adelar. (2017), “O fenômeno do esvaziamento populacional em municípios do Rio Grande do Sul - Brasil sob a lente da Abordagem das Capacidades”. Redes (Santa Cruz do Sul), 22, 1: 494.). Toma-se, portanto, tal informação como uma das variáveis de controle, cujos dados foram obtidos junto à FEE (2012)FEE (Fundação de Economia e Estatística). (2012), População por faixa etária e sexo. Disponível em https://www.fee.rs.gov.br/indicadores/populacao/apresentacao/, consultado em 01.07.2012.
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Pret.Pard: Percentual de pretos e pardos, no total da população no ano 2000. Segundo Sen (1992SEN, Amartya. (1992), Inequality Re-examined. Oxford, Clarendon Press., p. 121-122), “a forma como uma pessoa é vista em uma sociedade com disparidades raciais pode ser influenciada profundamente por suas características raciais visíveis e isto pode atuar como barreira às possibilidades de funcionamentos em muitas circunstâncias”. Tendo em vista a experiência brasileira com a escravidão e o racismo a ela inerente (Guimarães, 1995GUIMARÃES, Antônio Sérgio. (1995), “Racismo e anti-racismo no Brasil”. Novos Estudos, 3, 43: 26-44.), é possível que a maior presença de pretos e pardos na população de um município afete negativamente seus índices de desenvolvimento. Isso porque, nos termos de Amartya Sen, tal contingente populacional pode ter sido, ou estar sendo “visto de maneira preconceituosa” e, consequentemente, pode ter tido ou ter menores oportunidades de desenvolvimento (renda, educação e saúde), do que a população branca. Assim, parte dos indicadores de desenvolvimento municipal pode estar atrelada à composição étnica de sua população. A partir desse ponto de vista, pode-se esperar que quanto maior for a população preta ou parda, piores sejam os indicadores de desenvolvimento municipal. Estes dados são oriundos de IBGE (2001)IBGE. (2001), Censo Demográfico 2000. Disponível em http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?z=cd&o=27&i=P&c=2094, consultado em 02/04/2011.
http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/...
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Diversidades Locais

Idade: Idade dos municípios, em anos, em 2010. Dentre as diversas formas de operacionalizar o conceito de “diversidades locais” (que representa peculiaridades do campo empírico em estudo), optou-se por considerar a idade dos municípios, visto que, segundo Mueller (2014)MUELLER, Airton Adelar. (2014), “Criação de novos municípios, capital social e desenvolvimento: Movimentos emancipacionistas como geradores de capital social e desenvolvimento local”. 1. ed. Saarbrücken, OmniScriptum GmbH & Co. KG, 2014. 212p., o desenvolvimento dos municípios pode variar conforme a própria idade, já que municípios criados mais recentemente podem estar em condições piores que os municípios mais antigos. Por tal motivo, buscou-se controlar este possível efeito sobre as variáveis dependentes. A fonte dos dados brutos é o sítio eletrônico da FEE (2014)FEE (Fundação de Economia e Estatística). (2014), Data de Criação dos Municípios. Disponível em http://feedados.fee.tche.br/feedados/#!home/datacriacao, consultado em 02/02/2014.
http://feedados.fee.tche.br/feedados/#!h...
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VPOP: Percentual de variação da população dos municípios, entre os anos 2000 e 2010. Outra peculiaridade do campo empírico em estudo é a recente variação populacional nos municípios. Entre os anos 2000 e 2010, mais da metade (52%) dos 496 municípios então existentes apresentou variação negativa da população. Já outros 147 municípios (30%) apresentaram variação positiva acima da média estadual, que foi de 4,97%. De um lado, tal variação pode espelhar as desigualdades de oportunidades já existentes; de outro, pode também ter um efeito sobre o desenvolvimento futuro dos municípios. Por isso, considera-se tal fator como uma das variáveis de controle. Os valores da variação populacional foram calculados a partir de dados brutos disponíveis em FEE (2012)FEE (Fundação de Economia e Estatística). (2012), População por faixa etária e sexo. Disponível em https://www.fee.rs.gov.br/indicadores/populacao/apresentacao/, consultado em 01.07.2012.
https://www.fee.rs.gov.br/indicadores/po...
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Resultados: as regressões com o índice multidimensional de desenvolvimento

Esta seção traz os resultados dos modelos estatísticos, sendo que, para cada uma das variáveis dependentes (IFDM e suas três dimensões), são apresentados até 7 modelos de regressão. Isso não se dá quando há ausência de correlação de uma ou mais variáveis de capital social com a respectiva variável dependente. Nas tabelas, são apresentados os coeficientes de regressão estandardizados (Beta).

Seguindo a estratégia de Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., destacam-se, primeiramente, os “efeitos brutos” do capital social (sem a consideração de outras variáveis), demonstrados nos modelos de 1 a 4. Os três primeiros apresentam os efeitos de cada variável de capital social em separado8 8 Isto se deveu, basicamente, à baixa correlação entre tais variáveis, impossibilitando a elaboração de um índice de capital social, conforme Putnam (2000a e 2000b). ; já o modelo 4 mostra o efeito conjunto destas variáveis. Em seguida, o modelo 5 representa a estratégia empregada por Putnam (2000a)PUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV., para controlar o efeito da variável dependente em seu período inicial. Neste caso, trata-se dos valores do IFDM e suas dimensões, no ano 2000. O modelo 6 corresponde ao proposto por Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., na medida em que juntamente com as variáveis de capital social são simultaneamente incluídas nos modelos as demais variáveis explicativas. É o que, em alusão a Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., denomina-se “efeitos líquidos” do capital social. Já o modelo 7 mostra os efeitos somente das variáveis de controle, uma vez que nele não estão incluídas as variáveis de capital social. Verifica-se, então, por meio da comparação dos coeficientes de determinação (R2) dos modelos 6 e 7, o quanto este valor se altera sem a presença das variáveis putnamianas9 9 Segundo Diaz-Bone (2006), isso se obtém subtraindo o valor R2 do modelo completo (modelo 6), do valor R2 do modelo menor (modelo 7). A diferença resultante corresponde ao valor que as variáveis excluídas podem explicar do modelo completo. .

A tabela 1 apresenta os resultados dos modelos que têm como variável dependente o índice multidimensional de desenvolvimento. Analisando primeiramente as variáveis de capital social (modelos 1-4), verifica-se que, separadamente (modelos 1-3), duas delas (IOV e PE) apresentaram valores beta positivos e altamente significantes – o que vai na direção de confirmar a argumentação putnamiana, quanto a sua influência positiva sobre o índice de desenvolvimento. Já a variável CP apresentou sinal negativo, contrariando a hipótese putnamiana.

Tabela 1
Resultados para os modelos de regressão com o índice multidimensional de desenvolvimento IFDM 2010 como variável dependente

Quanto à capacidade explicativa da variância do IFDM (valores dos coeficientes de determinação R2), observa-se que ela é relativamente baixa em todas elas (cerca de 6% para “IOV”, 7% para “PE” e 2,3% para “CP”.). Quando vistas em conjunto (modelo 4), essa capacidade explicativa sobe para cerca de 13%. Com a introdução da variável IFDM 2000 (modelo 5), percebe-se que ela passou a ser a principal variável explicativa no modelo (beta 0,55) – o que, de um lado, confirma a proposição de Putnam, de que o melhor preditor de uma variável é ela própria, no período anterior; mas, de outro lado, contradiz os resultados (Putnam, 2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV.) em que seu índice de capital social mostrou-se um preditor melhor do que seu índice de desenvolvimento.

A introdução das demais variáveis independentes (modelo 6) demonstra uma considerável redução dos valores beta das variáveis de capital social, na comparação com estes valores nos modelos anteriores. Duas variáveis de capital social (PE e CP) deixaram de ser significantes, o que não aconteceu com a variável IOV. Tais resultados não permitem, até o momento, uma conclusão quanto à tese putnamiana, mas revelam que diferentes indicadores de capital social podem estar associados, de maneiras distintas, ao desenvolvimento, merecendo, assim, ser analisados separadamente. Por outro lado, os resultados mostram claramente a redução da importância do capital social frente aos modelos anteriores, bem como a pouca importância da variável que ainda permaneceu significante no modelo 6 (IOV, beta 0,09), frente às demais variáveis do modelo.

Comparando o valor R2 do modelo 7 (0,60) com o respectivo valor do modelo 6 (0,61), é possível verificar a pouca importância das variáveis de capital social na explicação da variância da variável dependente em questão. Comparando, ainda, o valor R2 do modelo 4 - no qual, à primeira vista, o capital social explica cerca de 13% da variável dependente - com o 1% resultante da diferença dos modelos 7 (60%) e 6 (61%) -, verifica-se claramente a importância de serem consideradas outras variáveis explicativas, para que o papel do capital social não seja superestimado. Tal resultado tende a atestar a pertinência da Hipótese Geral 1, quanto à ocorrência de uma clara diluição dos efeitos do capital social, uma vez considerados outros fatores explicativos.

A tabela 2 apresenta, separadamente, os respectivos modelos para cada uma das dimensões – emprego/renda, educação e saúde –. Observando-se as variáveis de capital social em todos os modelos dessa tabela, verifica-se a ausência dos modelos 1 e 2 para a dimensão emprego/renda, em decorrência da ausência de correlação entre elas (IOV e PE) e a referida variável dependente. Por outro lado, ambas as variáveis se mostraram fortemente associadas às outras duas dimensões do IFDM, apesar de apresentarem redução do seu poder explicativo após a introdução de variáveis de controle nos respectivos modelos 6. No caso da dimensão saúde, tanto IOV quanto PE permaneceram robustas, mesmo após a introdução das variáveis de controle no modelo 6. Para a dimensão educação, a variável IOV também se manteve robusta em tal modelo. Já “CP” mostrou uma correlação negativa com a dimensão emprego/renda e não correlacionada com educação e saúde.

Tabela 2
Resultados para os modelos de regressão com as três dimensões do IFDM 2010 como variáveis dependentes

Esses resultados também tendem a confirmar a argumentação aqui desenvolvida, de que ocorre uma diluição dos efeitos do capital social quando se consideram, simultaneamente, outras variáveis explicativas - o que relativiza o suposto poder explicativo da cultura local, quanto ao desenvolvimento de cada município.

O resultado mais importante, todavia, reside em evidenciar um considerável desacoplamento (HG 2) entre atividades econômicas e capital social local. Isso pode ser apreendido a partir da inexistência de associação entre duas variáveis de capital social (IOV e PE) e a dimensão emprego/renda, além da associação negativa de CP com esta mesma dimensão. Conforme se sustenta aqui, há, contemporaneamente em muitos territórios um contexto de atividades econômicas amplamente globalizado, sobretudo em regiões com um perfil agroexportador, como é o caso de grande parte do território do Rio Grande do Sul – o que reduz o grau de controle, por parte dos atores locais, sobre as dinâmicas de tais atividades, e evidencia a existência de uma agency of others (Crocker e Robeyns, 2010CROCKER, David & ROBEYNS, Ingrid. (2010), “Capability and Agency”, in C. MORRIS (ed.), Amartya Sen. Cambridge, Cambridge University Press.), indicando os limites do capital social local.

Ao mesmo tempo, tendo em vista a legislação brasileira subjacente à organização dos ensinos Fundamental e Infantil (dimensão educação) e as atribuições dos municípios quanto à saúde básica (dimensão saúde), os efeitos do capital social local se mostram positivos e significantes – o que, em nosso entender, não está indicando uma questão cultural, e sim uma questão de poder e controle. Em outros termos, esses resultados confirmam que os efeitos do capital social local podem, sim, existir, embora ocorram principalmente sobre as dimensões e aspectos mais controláveis pelos agentes locais e, consequentemente, influenciáveis pelo capital social por eles formado. Não se trata, portanto, de uma questão meramente cultural. Além disso, nossos resultados demonstram que se deve separar a existência de capital social, em determinado território, dos efeitos que dele se pode esperar em termos de desenvolvimento. Ou seja, a existência de capital social pode ser resultado de valores e normas culturais; porém, seu efeito sobre o desenvolvimento pode não ser proporcional à sua existência.

Entretanto, o sinal negativo da variável CP – nas duas tabelas – mostra que a maior participação na Consulta Popular se deu justamente naqueles municípios com piores resultados na dimensão emprego/renda. Agrupando-se os municípios em quartis (quatro grupos iguais), viu-se que, no grupo dos 25% menos desenvolvidos em 2000, a participação alcançou uma média de 13,15%. No grupo seguinte (25% a 50%), ela foi de 12,18%. No grupo de 50% até 75%, foi de 12,41%. A menor média de participação se deu justamente no grupo daqueles que apresentavam os melhores resultados na referida dimensão (75% até 100%), sendo de 10,76%. Isso indica que o próprio capital social pode ser oriundo não totalmente de heranças culturais, mas, em parte, também da disparidade espacial de oportunidades reais de desenvolvimento individual existente no presente, uma vez que, muito provavelmente, foi a busca pelo desenvolvimento que engendrou a maior participação nos municípios menos desenvolvidos.

Quanto às demais variáveis do modelo 6, nas duas tabelas, destaca-se a variável mulheres, apresentando um efeito positivo e altamente significante sobre “IFDM 2010” e sobre cada uma de suas dimensões. Isso permite inferir que onde há mais mulheres em idade economicamente ativa, são melhores os resultados em todas as dimensões do IFDM; e também tende a corroborar a argumentação de Sen, quanto à importância do papel de agente das mulheres nos processos de desenvolvimento. É igualmente notável a associação negativa entre as grandes propriedades fundiárias (variável AT) e a dimensão saúde e educação, indicando que existindo grandes propriedades, a tendência será haver piores resultados nessas áreas – o que aponta para uma dimensão não cultural, e sim material (posse da terra), subjacente ao desempenho dos municípios nesses aspectos.

A variável que busca captar o acesso ao mundo digital (PC) apresentou associação positiva com a dimensão emprego/renda, e negativa com as demais. Tais resultados se mostram contraditórios e não lógicos, especialmente no que tange à dimensão educação, uma vez que é pouco plausível supor que o acesso à informática tenha efeitos deletérios sobre o desempenho escolar. Todavia, isso mostra a necessidade de investigar mais a fundo o que de fato pode estar subjacente a tal resultado.

Merece também destaque a variável “Analf25”, quando a variável dependente é educação. Ela nos mostra que o analfabetismo dos adultos configura um elemento importante na aquisição de capital humano por jovens e crianças em idade escolar. Mais especificamente, o baixo capital humano dos adultos dificulta a sua aquisição pelos estudantes. Isto evidencia que a alfabetização de adultos pode ter repercussões de longo prazo, impactando nas futuras gerações, merecendo, assim, atenção especial da parte de formuladores de políticas públicas.

Com relação à variável Pret.Pard, vale ressaltar que a ausência de significância estatística nos modelos estimados, não deve ser interpretada como ausência de relevância da temática das relações raciais, para o desenvolvimento local. Para tanto, vale trazer ao leitor a informação de que essa variável se correlaciona positivamente com “Gini” (r= 0,47) e com Analf25 (r= 0,48); o que significa que não só boa parte daqueles que têm menor renda, como também dos analfabetos acima de 25 anos, sejam pretos e/ou pardos, já inclusos, portanto, em Pret.Pard - o que explica sua não significância nos modelos estimados.

Em síntese, há possibilidades diversas de discutir e estudar mais detidamente cada uma das variáveis do modelo 6, contudo isso transcenderia os limites e propósito do presente texto.

Considerações finais: o capital social sob a lente das capacidades

Este artigo discutiu a teoria do capital social de Robert Putnam (2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV. e 2000bPUTNAM, Robert. (2000b), Bowling alone. The collapse and revival of american community. New York, Simon & Schuster.) e suas relações com o desenvolvimento local. Para isso, tomou como base empírica os 496 municípios do estado do Rio Grande do Sul – Brasil, existentes no ano de 2010. A escolha desse recorte empírico se deu em função da diversidade étnico/cultural do estado, tendo em vista a presença de povos nativos, além de descendentes de africanos e de um grande número de povos europeus, ibéricos e não ibéricos, dentre os quais predominam os de ascendência alemã e italiana. Há, também, a presença de descendentes de outras nacionalidades, tais como poloneses, russos, suecos, franceses, letos, etc. Consequentemente, conforme mencionado na Introdução deste artigo, observa-se uma tendência bastante forte no estado em atribuir a essa diversidade étnico/cultural um elevado peso explicativo, no que tange ao desenvolvimento de suas regiões e municípios. Nesse sentido, entende-se que o recorte empírico da pesquisa se mostrou bastante adequado para a realização de um estudo que visa pôr à prova o argumento culturalista de Putnam.

Como conceito de desenvolvimento, optou-se pela Abordagem das Capacidades, de Amartya Sen. Assim, trabalhou-se com um índice que traz informações sobre emprego/renda, educação e saúde, visando operacionalizar o conceito de “desenvolvimento como liberdade” elaborado pelo autor. Tal desenvolvimento é definido e medido de forma multidimensional, permitindo, assim, ir além das abordagens que tomam, como medida de desenvolvimento, o crescimento do Produto Interno Bruto de um determinado recorte territorial em um determinado intervalo de tempo.

A ideia central, na esteira de Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., consistiu em mostrar empiricamente que os supostos efeitos do capital social sobre o desenvolvimento local podem ser menos relevantes do que a tese putnamiana faz crer, quando se parte de uma concepção de desenvolvimento multidimensional, e quando, a partir dela, consideram-se outros elementos e mecanismos que também podem influenciar neste desenvolvimento. Sem pretender negar a tese putnamiana, partiu-se das críticas de Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12. e Fine (2010)FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., de que ela oblitera outros fatores (internos e externos) que podem também exercer influência sobre o desenvolvimento de um município e/ou região. Isso pode resultar em uma importância desproporcional do capital social e, consequentemente, das respectivas culturas locais/regionais na explicação do desenvolvimento socioeconômico, dado que, segundo a tese putnamiana, o capital social advém dessas culturas.

Por sua vez, também pode funcionar como uma espécie de “cilada política” (Mueller, 2018MUELLER, Airton Adelar. (2018), “Limites e engodos da abordagem comunitarista / bottom-up de capital social em contextos globalizados”, in A. A. Mueller & F. A. A. Soares (org.). (2018), Modernidade sem Fronteiras: Desenvolvimento e Desigualdades entrelaçadas. Ijuí, Editora Unijuí & Ediunesc.), em termos de causas e responsabilidades quanto às disparidades espaciais de desenvolvimento, uma vez que o desenvolvimento alcançado por cada território seria proporcional aos respectivos valores e normas culturais. Neste sentido, o que aparenta ser explicação, pode estar mais próximo de ser legitimação da realidade atual de desenvolvimento e, consequentemente, legitimação das desigualdades espaciais.

Portanto, seguindo o percurso metodológico de Portes (2000)PORTES, Alejandro. (2000), “The Two Meanings of Social Capital”. Sociological Forum, 15, 1: 1-12., trabalhou-se com duas hipóteses gerais. A primeira delas – hipótese da diluição – vai na direção de que, tal como no estudo do autor (2000), quando se consideram outros elementos concorrentes na explicação do desenvolvimento local, o peso do capital social tende a reduzir, podendo até mesmo desaparecer em termos estatísticos, pois o que aparentava ser resultado do capital social pode ser resultado da ação de outras forças, outros elementos explicativos.

A segunda delas – hipótese do desacoplamento relativo – foi construída a partir da noção de agência (Sen, 1985SEN, Amartya. (1985), “Well-Being, Agency and Freedom: The Dewey Lectures”. The Journal of Philosophy, 82, 4: 169-221., 1987SEN, Amartya. (1987), “The Standard of living”. The Tanner Lecture on Human Values. Delivered at Stanford University. Cambridge, Cambridge University Press., 1989SEN, Amartya. (1989), “Development as Capability Expansion”. Jounal of Development Planning, 19., 1992SEN, Amartya. (1992), Inequality Re-examined. Oxford, Clarendon Press. e 2000SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras., Crocker e Robeyns, 2010CROCKER, David & ROBEYNS, Ingrid. (2010), “Capability and Agency”, in C. MORRIS (ed.), Amartya Sen. Cambridge, Cambridge University Press.), de que, além da cultura, aspectos de poder e controle (inerentes ao conceito de agência em questão) precisam ser levados em consideração, quando se avaliam os supostos efeitos do capital social sobre o desenvolvimento. Daí decorre que a existência de capital social pode não ter uma relação direta com os seus efeitos sobre o desenvolvimento. Ambos podem estar relativamente desacoplados. Diz-se relativamente, pois há que se considerar que o desenvolvimento possui diversas dimensões, como, por exemplo, emprego/renda, saúde e educação. Assim sendo, os efeitos do capital social podem ser distintos sobre as diferentes dimensões do desenvolvimento, tendo em vista que, em primeiro lugar, diferentes atores que formam o capital social em cada território são desiguais em termos de poder e controle. Em segundo lugar, as dinâmicas e os atores subjacentes a cada uma delas podem estar mais, ou menos, sob controle dos atores locais que formam o capital social local. Se assim for, é de se esperar que o capital social local tenha pouco ou nenhum efeito sobre a dimensão emprego/renda, na medida que as atividades econômicas, a depender do contexto, podem ser amplamente globalizadas e estar sob controle de atores externos que não são parte do capital social local. Já as demais dimensões (saúde e educação), levando-se em consideração o mesmo conceito de agência, estão possivelmente mais sob controle dos atores locais e de seu capital social.

Com relação à primeira hipótese geral, os resultados obtidos evidenciaram uma considerável redução dos efeitos do capital social, uma vez tomadas variáveis concorrentes. Isso pode ser observado nas tabelas 1 e 2, de duas maneiras: a) subtraindo o valor do R2 do modelo 7 do respectivo valor do R2 do modelo 6 e, então, comparando esse novo valor com o R2 do modelo 4; b) comparando os valores Beta e as respectivas significâncias das variáveis de capital social do modelo 4 com os respectivos valores no modelo 6. Em “a”, torna-se mais nítida a pouca força explicativa das variáveis de capital social. Já em “b”, fica mais evidente a diluição de seus efeitos entre as demais variáveis consideradas. Em ambos os casos, esses resultados corroboram a necessidade de relativizar o suposto peso da cultura e do capital social a ela atrelado, nas análises do desenvolvimento local, colocando em evidência outros aspectos não culturais. Tanto a comparação dos valores R2 (modelo 4 x modelo 6 e modelo 6 x modelo 7), quanto as modificações nos valores beta das variáveis de capital social, na medida em que outras variáveis passaram a ser incluídas nos modelos 1 até 6, dão sustentação empírica consistente a tal conclusão.

Por sua vez, a fundamentação teórica embasada em Sen proporcionou um leque de variáveis alternativas, visando ressaltar a multiplicidade de questões internas à unidade de análise. As forças explicativas de cada uma das variáveis trabalhadas são evidenciadas no modelo 6.

Os resultados tidos como os mais importantes do estudo estão, todavia, relacionados à hipótese geral 2. Viu-se que, no contexto estudado, capital social local e atividades econômicas locais não estão positivamente associados (ver tabela 2, dimensão emprego/renda). Na interpretação do autor deste artigo, não se trata de buscar explicações na cultura. Trata-se, sobretudo, do fato de que muitas das atividades econômicas desenvolvidas no âmbito municipal estão inseridas em estruturas e redes de atores globais. Por isso, muitos municípios, independentemente de sua cultura e da quantidade de capital social do tipo putnamiano, podem estar à mercê de decisões políticas e outras decisões no âmbito empresarial, diretamente relacionadas à sua realidade em termos de emprego e renda. No caso específico do Rio Grande do Sul, isto é muito provavelmente verdadeiro para as atividades agroexportadores lá desenvolvidas, sobretudo, para os casos da soja e do tabaco (Mueller, 2017MUELLER, Airton Adelar. (2017), “O fenômeno do esvaziamento populacional em municípios do Rio Grande do Sul - Brasil sob a lente da Abordagem das Capacidades”. Redes (Santa Cruz do Sul), 22, 1: 494.).

Pode-se afirmar, então, que mesmo na presença de muito capital social em uma “comunidade” pouco desenvolvida, poderá ser pequeno o seu impacto sobre o desenvolvimento, já que ele será basicamente formado pela agência de pessoas materialmente pobres e pouco instruídas, e, consequentemente, com pouco poder e controle sobre processos e atores que mais diretamente afetam seu entorno. Além disso, o mecanismo de controle social apontado por Putnam, de que uma comunidade rica em capital social restringe comportamentos oportunistas, pode não ter nenhuma eficácia, se os atores mais relevantes não forem parte da comunidade local. Nestes casos, o mecanismo putnamiano exercido pela comunidade cívica sequer entra em cena.

Por outro lado, o presente estudo mostrou que o capital social pode ter efeitos positivos sobre aspectos de saúde e educação. Tal resultado pode também ser compreendido pela consideração das noções de poder e controle, inerentes aos aspectos subjacentes às dimensões em questão. Aqui se entende que pelo menos parte desse efeito pode ocorrer pelo fato de a comunidade local (bem como cada indivíduo) ter mais poder e controle sobre muitos dos aspectos subjacentes a tais dimensões, do que sobre aqueles subjacentes à dimensão emprego/renda. Em outras palavras, uma mobilização local (ativar o capital social coletivo) pode ter, sim, efeitos positivos sobre o bem-estar local. Porém, isso está diretamente ligado ao fato de se tratar de aspectos realmente influenciáveis pela mobilização local.

Em síntese, tomando por base os resultados ora apresentados, parece-nos plausível inferir, para além do caso empírico, que a existência de capital social em determinado território pode ser, sim, resultado de valores e normas culturais, embora o efeito desse capital sobre o desenvolvimento possa não decorrer direta e necessariamente desses valores e normas. Isso aponta para a pertinência de abordar separadamente a existência e os supostos efeitos do capital social. Se as culturas importam e se elas são distintas de um território para outro, há, em todas elas, a ação de outros elementos internos e externos que relativizam o seu peso.

Nos termos da abordagem aqui desenvolvida, significa que o entendimento sobre os efeitos do capital social comunitário passa por uma concepção mais complexa de agência, do que aquela inerente a Putnam. Passa por uma concepção que incorpore, além da cultura, os aspectos de poder e controle: o poder dos agentes locais em si, e o quanto eles podem controlar cada um dos aspectos subjacentes a cada dimensão do desenvolvimento. Desta forma, acredita-se ser possível não dar razão a Fine (2010)FINE, Ben. (2010), Theories of Social Capital: Researchers Behaving Badly. London, Pluto Press., quando ele diz que o capital social está para as ciências sociais, como McDonald’s está para a comida gourmet.

*Agradeço a Sergio Costa, pelas orientações e apoio na realização da pesquisa que resultou no presente texto. Também agradeço aos colegas da Freie Universität Berlin, pelas ricas discussões, e a Brot für die Welt, cujo apoio financeiro foi imprescindível para a concretização da pesquisa.

  • 1
    Todas as traduções que constam do artigo são de seu próprio autor.
  • 2
    No que se refere aos acadêmicos locais, os trabalhos de Pase (2007PASE, Hemerson. (2007), “Capital social e desenvolvimento rural: uma abordagem cultural das desigualdades”. Redes (Santa Cruz do Sul), 11, 2: 135-153. e Pase 2016PASE, Hemerson. (2016), Capital social e desenvolvimento: a experiência do Rio Grande do Sul. Pelotas, Editora da UFPel.) e boa parte da literatura por ele usada ilustram bem tal aspecto.
  • 3
    Além destas duas categorias de “Diversidades e Heterogeneidades”, Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras. cita outras três, que não foram aqui utilizadas. São elas: “Variações no clima social”, “Diferenças de perspectivas relativas” e “Distribuição na família”.
  • 4
    Sen (2000)SEN, Amartya. (2000), Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras. menciona ainda as “liberdades políticas”, as “garantias de transparência” e a “segurança protetora”, como liberdades instrumentais ao desenvolvimento, não operacionalizadas no presente trabalho.
  • 6
    Embora uma série temporal destes valores fosse mais robusta do que apenas um ano, o critério aqui adotado foi o de permanecer o mais próximo possível dos procedimentos adotados por Putnam (2000a)PUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV..
  • 7
    Optou-se em adotar a média do tamanho das propriedades rurais, pois ela sinaliza a quantidade de proprietários em um município. Ou seja, ela é também um indicador de distribuição da propriedade fundiária, pois onde as propriedades são grandes, haverá um menor número de proprietários. Portanto, médias altas indicam concentração da terra na mão de poucos proprietários, enquanto médias baixas indicam maior democratização no acesso à terra.
  • 8
    Isto se deveu, basicamente, à baixa correlação entre tais variáveis, impossibilitando a elaboração de um índice de capital social, conforme Putnam (2000aPUTNAM, Robert. (2000a), Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª Ed. Rio de Janeiro, FGV. e 2000bPUTNAM, Robert. (2000b), Bowling alone. The collapse and revival of american community. New York, Simon & Schuster.).
  • 9
    Segundo Diaz-Bone (2006)DIAZ-BONE, Rainer. (2006), Statistik für Soziologen. Konstanz, UVK Verlagsgesellschaft., isso se obtém subtraindo o valor R2 do modelo completo (modelo 6), do valor R2 do modelo menor (modelo 7). A diferença resultante corresponde ao valor que as variáveis excluídas podem explicar do modelo completo.
  • DOI: 10.1590/3510308/2020

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  • 5
    Para não ultrapassar a extensão do artigo, foram aqui omitidos detalhes secundários da composição de cada um dos indicadores de capital social e das variáveis de controle, os quais podem ser consultados em Mueller (2015).MUELLER, Airton Adelar. (2015), Lokale Entwicklung und soziales Kapital im Süden von Brasilien. Tese de doutorado. Universidade Livre de Berlin, Alemanha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Maio 2020
    • Data do Fascículo
      2020

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2018
    • Aceito
      17 Out 2019
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