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O IMPEACHMENT NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS

Impeachment in contemporary democracies

SUNSTEIN, Cass. . Impeachment: A Citizen’s GuideCambridge: Harvard University Press, 2017202p.

Cass Sunstein é um dos mais relevantes teóricos da atualidade. Suas reflexões têm influenciado abordagens em distintas áreas do conhecimento, e também em ações governamentais. Foi professor de direito na Universidade de Chicago entre 1981 e 2008, e desde então atua na Harvard Law School, inicialmente no Programa de Regulação de Riscos, e hoje como coordenador do Programa de Economia Comportamental e Políticas Públicas.1 1 No período entre 2009 e 2012, Cass Sunstein foi nomeado pelo presidente estadunidense Barack Obama chefe do Gabinete Executivo de Informação e Assuntos Regulatórios da Casa Branca. A chegada ao cargo conferiu certa amplitude a suas ideias, que tiveram repercussões diversas no debate público. Publicou mais de quarenta livros sobre assuntos que vão de impostos à saúde, comportamento, direito dos animais e extremismo, passando por teoria constitucional, governo e instituições políticas, objetos da obra em questão.

O papel do Estado e da democracia frente aos desafios atuais é o fio condutor que o autor usa para abordar temas tão variados. Esse exercício é feito por meio da discussão das normas constitucionais. Cass Sunstein elucida preceitos fundamentais do pragmatismo jurídico, vertente teórica da qual é expoente e cuja premissa consiste em examinar os princípios legais considerando também variáveis sociais, políticas e econômicas. O pragmatismo jurídico propõe um modelo de reflexão e atuação sobre o direito que ultrapassa a mera aplicação das diretrizes vigentes na Constituição. Há portanto nesta perspectiva uma certa rejeição da existência de princípios perpétuos e irrevogáveis, uma vez que o ordenamento jurídico torna-se passível de modificação para estar em conformidade com as transformações de diferentes setores da sociedade. A intervenção do Poder Judiciário é realizada com o propósito de garantir a efetivação dos direitos, sobretudo quando o Poder Legislativo e/ou Executivo se eximem de algumas discussões ou atuam de forma a torná-las ineficazes. Em certos casos, a consequência da atuação judicial é a implementação de políticas públicas.

Nesse contexto, convém ressaltar que Cass Sunstein se notabilizou por elaborar proposições políticas sobre liberdades e preferências. Por um lado, há a ideia de que a liberdade de expressão requer certa regulação, sobretudo quando mobilizada para difundir conteúdos discriminatórios e degradantes na televisão e no cinema, com o objetivo de preservar da sujeição determinados grupos, como minorias étnicas e de gênero (Sunstein, 2009SUNSTEIN, Cass. (2009), “Preferências e política”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 1, jan./jun.: 219-54.). Por outro lado, também seria necessária a intervenção em circunstâncias do cotidiano, pois, em sua perspectiva, nossas escolhas são, até certo ponto, estruturadas. Assim, seria legítima interferir no caso de comportamentos prejudiciais aos próprios indivíduos e/ou a terceiros, como conduzir veículos em estado de embriaguez, não usar o cinto de segurança, consumir apenas bebidas e alimentos não saudáveis e fumar em locais fechados (Sunstein, 2014SUNSTEIN. (2014), Why nudge? The politics of libertarian paternalism. New Haven, Yale University Press.; Conly, 2013CONLY, Sarah. (2013), Against Autonomy: Justifying Coercive Paternalism. Cambridge, Cambridge University Press.). Essas formas de intervenção, que Richard Thaler e Cass Sunstein (2008) denominam “paternalismo libertário”, sustentam-se na concepção de que as instituições públicas detêm um volume de dados significativo, suficiente para aferir que certas escolhas são nocivas. A partir disso, cabe ampliar as informações (e, por vezes, aplicar sanções) para estimular as pessoas a tomar outras decisões, baseadas em princípios constitucionais compartilhados por todos. Como, por exemplo, garantir que o bem-estar coletivo é mais benéfico que maximizar a satisfação individual.

Há divergências teóricas sobre a abrangência da atuação judicial. Nesse panorama, Cass Sunstein situa-se na corrente conhecida como minimalismo judicial, que propõe uma posição intermediária entre concepções que defendem a aplicação das normas constitucionais originais e aquelas que advogam uma modificação profunda destas (Sunstein, 2006SUNSTEIN. (2006), Radicals in Robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America. Cambridge, Basic Books.). Nesta interpretação, é necessário repensar os princípios da lei a partir das novas demandas emergentes na sociedade, mas sem alterar sua estrutura. Com relação à liberdade de escolha, por exemplo, Sunstein aponta a necessidade de criar estratégias para fazer as pessoas refletirem sobre seus comportamentos. Isso pode ocorrer por meio de campanhas publicitárias que conscientizem sobre os malefícios de algumas condutas e hábitos ou por medidas que estimulem a ampliação dos padrões de consumo – por exemplo, estipulando que alimentos naturais e orgânicos sejam alocados em locais privilegiados nos mercados, ou que escolas e cinemas devem oferecer opções de bebidas e lanches saudáveis. Portanto, a intervenção na escolha ocorre no sentido de criar alternativas, sem que nenhuma seja proibida nem que haja desinformação sobre as consequências de cada uma.

Esta breve introdução ganha relevo se considerarmos que os elementos teóricos destacados no livro Impeachment: a Citizen’s Guide, peculiares da obra de Cass Sunstein, são mobilizados para abordar um assunto complexo: a destituição de representantes legais eleitos, sobretudo o presidente da República. O propósito central do livro é analisar as razões pelas quais o impeachment deve ocorrer somente quando houver violação grave da determinação legal. Na avaliação do autor, com base na Constituição norte-americana, esta norma abrange uma série de circunstâncias que se enquadram em acontecimentos da contemporaneidade, marcada pela intensa polarização e por riscos às garantias constitucionais.

Além da relevância da discussão teórica que empreende, o livro é especialmente importante por sistematizar as origens, pressupostos e atribuições do instituto do impeachment no regime presidencialista. Apesar de considerar estritamente o caso dos Estados Unidos, as observações expressas se constituem em objeto imprescindível para refletir sobre outras realidades, especialmente aquelas que, como o Brasil, têm uma constituição que se inspira na americana no tocante ao impeachment.

A inspiração para se dedicar ao tema surgiu no período em que lecionava direito constitucional – mais especificamente, durante o processo de impeachment do presidente Bill Clinton, devido ao escândalo Monica Lewinsky. Ao verificar a produção técnica, científica e filosófica sobre o assunto, Sunstein constatou que havia uma enorme lacuna bibliográfica – em termos de jurisprudência e nas reflexões no campo do constitucionalismo – sobre o papel e ao estatuto do impeachment nas democracias contemporâneas.

No livro, Sunstein organiza suas considerações em torno da compreensão do impeachment enquanto instrumento constitucional a ser acionado sempre que houver abuso de poder e/ou violação dos direitos fundamentais dos cidadãos. Na história americana, três presidentes foram submetidos a processos de impeachment:2 2 Em dezembro de 2019, o presidente Donald Trump (2017-2020) se tornou o quarto mandatário norte-americano a ser submetido ao processo de impeachment, mas posteriormente foi inocentado pelo senado, das acusações de abuso de poder e obstrução da justiça. Andrew Johnson (que governou entre 1865 e 1869), Richard Nixon (1969-1974), Bill Clinton (1993-2001) e Donald Trump (2017 - 2020).3 3 Andrew Johnson e Bill Clinton foram absolvidos dos respectivos processos de impeachment na votação do Senado; Richard Nixon renunciou ao cargo antes da tramitação do processo. A análise dos processos possibilita elucidar que a aplicação do recurso está circunscrita a situações extremas.

Para desenvolver sua argumentação, o autor começa retomando as discussões dos Federalistas e os artigos dos documentos fundadores na nação norte-americana, sobretudo no que toca às atribuições do chefe do Poder Executivo no presidencialismo e à relevância da previsão constitucional do impeachment enquanto dispositivo para a conservação das liberdades individuais e a contenção de eventuais abusos cometidos pelos governos. Segundo o autor, a Declaração de Independência (1776), os Artigos da Confederação (1781) e a Convenção da Filadélfia (1787) são importantes documentos para compreender os alicerces do Estado, os poderes concedidos ao chefe do Poder Executivo e os mecanismos para controlar suas ações.

O autor esclarece que, no contexto norte-americano durante a promulgação da Declaração de Independência e a elaboração dos Artigos da Confederação, a deliberação sobre a necessidade de delimitar o poder presidencial se tornou periférica. A Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783) exigiu a unificação do país contra as intervenções do rei inglês Jorge III, que tencionava mantê-lo como colônia. A independência e a soberania dos Estados Unidos, assim como a autonomia e a autoridade legítima de seu governo, só seriam reconhecidos pelo Tratado de Paris (1783).

Assim, os Artigos da Confederação são considerados frágeis em seu poder prescritivo, sobretudo com relação a taxação e impostos, intervenção comercial, implementação do Poder Executivo e existência de Cortes de Justiça. Após o processo de independência, a Convenção da Filadélfia definiu soluções institucionais para esses temas, resultando na promulgação da Constituição dos Estados Unidos, em 1787. Entre as transformações mais urgentes que esta promoveu estavam: 1. A criação de um comitê executivo; 2. Garantir ao Congresso poderes para regulamentar e estipular normas sobre a vida em sociedade e a atividade econômica; 3. A criação do Poder Judiciário federal, incluindo uma Suprema Corte, além de cortes regionais. As deliberações sobre as funções do Poder Executivo e sua organização institucional causaram controvérsia: quais seriam as prerrogativas do Poder Executivo? Ele deveria ser unitário ou plural, isto é, com poder compartilhado entre um grupo de pessoas?

Por ampla maioria, os delegados da Convenção da Filadélfia optaram pela fórmula unificada de organização do Poder Executivo. A criação do presidencialismo como modo de estruturação do Poder Executivo em torno de uma pessoa eleita, o presidente da República, inaugurou um dispositivo institucional inovador, já que sua premissa fundamental se alicerçava na finalidade de corrigir os impasses identificados em outros sistemas de governo, sobretudo o parlamentarismo.4 4 No parlamentarismo, o Poder Executivo é uma extensão do Legislativo; assim, o governo sobrevive enquanto preserva a confiança da maioria do parlamento; na ausência desta, é dissolvido. O primeiro-ministro é apenas o chefe de governo, enquanto o presidente e o monarca exercem a chefia de Estado. Além disso, ele é escolhido de forma indireta, pelo parlamento (Sartori, 1993). O presidencialismo visava garantir ao país uma razoável estabilidade, ao definir, já na Constituição, prazos determinados para os mandatos e a alternância de poder. Por conseguinte, a escolha do presidente deveria ser realizada por eleições diretas, garantindo a legitimação conferida pelos eleitores.5 5 Entre outras diferenças em relação ao parlamentarismo, cabe destacar que no Presidencialismo: 1. há separação clara entre os poderes Executivo e Legislativo; 2. o presidente da República é chefe de governo e de Estado; 3. o ministério é designado pelo presidente e responde politicamente a ele, e não ao Legislativo (Cintra, 2007). Mesmo assim, o presidente estaria sujeito a julgamento por seus atos e até a ser destituído nos termos da lei.

O autor salienta que a escolha pela composição do Poder Executivo com um único mandatário – em comparação ao sistema plural, constituído por mais membros ou até por instâncias colegiadas superiores – teve duas razões interligadas. Por um lado, nesse modelo haveria menor propensão à fragmentação e à morosidade no processo decisório. A partir disso, por outro lado, o processo de atribuição de responsabilidades e o controle das ações do Poder Executivo, elementos essenciais na regulamentação do impeachment, se tornariam potencialmente mais exequíveis. Por causa disso, segundo Sunstein, as resoluções da Convenção da Filadélfia resultaram sobretudo em uma ampliação expressiva do governo nacional, ao conceder novos poderes ao Poder Executivo, outorgando a este e ao Poder Judiciário autoridade considerável sobre os cidadãos.

Uma vez instituído o presidencialismo nos Estados Unidos, o ponto examinado pelos Fundadores a seguir foram as alternativas institucionais para as situações em que o escolhido se comportasse de forma incompatível com o cargo. A solução apontada foi a utilização do instituto do impeachment, previsto no direito inglês desde 1679. Havia, contudo, entre os Fundadores o entendimento de que tal instituto era usado na Inglaterra para consumar perseguições políticas. Por esse motivo, eles decidiram adaptá-lo ao objetivo de conter o poder oficial. A principal discussão convergiu para quem poderia conduzir o processo. Seguindo o exemplo britânico, os delegados optaram por estruturar o processo em duas fases, contando com a participação do Poder Judiciário – especificamente a Suprema Corte – e do Legislativo. A inserção do impeachment do presidente da República na Constituição não foi uma decisão consensual: delegados de oito estados a defenderam, e três estados foram contrários.

Estabelecida a incorporação do impeachment na Constituição americana, a Convenção da Filadélfia passou à definição de quais questões deveriam justificá-lo. Com o propósito de conferir conteúdo mais preciso ao dispositivo, a maioria dos delegados optou pela utilização dos termos “outros crimes graves e contravenções contra o Estado dos Estados Unidos”. Segundo Sunstein, a ideia era demonstrar que o impeachment cabia no caso de ofensa contra a coisa pública, principalmente abusos do poder oficial. Entretanto, após revisão, a expressão foi substituída por “graves crimes e contravenções”.

O rito de apreciação do processo e suas consequências estão tipificados na Constituição dos Estados Unidos. O artigo 1º dispõe sobre as atribuições do Poder Legislativo; sua seção 2 diz que a Casa dos Representantes tem a prerrogativa da votação que define a aceitação ou rejeição do pedido de impeachment. Já a seção 3 estipula que, havendo admissibilidade pela Câmara de Representantes, o Senado tem o papel de realizar o julgamento da destituição. Quando o impeachment é dirigido ao presidente dos Estados Unidos, o representante da Suprema Corte preside a sessão no Senado. Para estas etapas, a Constituição delibera que nenhum mandatário deve ser condenado sem três quintos dos votos do Congresso; também garante ao governante que é alvo da ação o direito de defesa diante das acusações, por pronunciamento em plenário, em sessão no Congresso, antes da tomada de decisão definitiva pelos parlamentares. Como efeito, o artigo 2º, seção 4 diz que o presidente, o vice-Presidente e todos os servidores civis dos Estados Unidos devem ser removidos de sua função no caso de impeachment, por condenação decorrente de traição, suborno ou outros crimes e delitos graves. Como é possível perceber, no tocante ao protocolo e às sanções impeachment, a Constituição brasileira de 1988 inspirou-se e reproduziu em grande medida a base formal desses artigos.

Após avaliar as bases históricas, jurídicas e conceituais do impeachment, Cass Sunstein discute se a intenção dos Fundadores e as deliberações instauradas à sua época deveriam interferir no entendimento atual do processo de destituição do presidente da República. Para isso, apresenta as concepções das principais correntes teóricas sobre o assunto. A teoria do originalismo do texto constitucional, identificada nas formulações do jurista Antonin Scalia, compreende a aceitação da intenção dos constituintes ao formular e promulgar a lei. Nesta perspectiva, é decisivo preservar o significado público original das ideias base do constitucionalismo, vetando às gerações futuras e aos tribunais a autoridade para modificar seus princípios. Há também a teoria de que a compreensão dos princípios e sentidos do texto constitucional devem ser atribuídos pelo cenário contemporâneo. Conforme as elaborações do jurista Thurgood Marshall, reformulações são sempre necessárias, já que os objetivos e termos utilizados pelos Fundadores refletem a época de sua construção. Nesta controvérsia, Cass Sunstein adota uma perspectiva moderada (minimalismo judicial), partindo da ideia de que o modo de conservar a República é sendo fiel ao texto, sem deixar de incorporar os desafios de nosso contexto. Dito de outro modo: o conceito não muda, mas as interpretações, sim.

A obra assinala que a visão dos originalistas tende a prevalecer, no que tange a esse aspecto. Isso porque entende-se que as situações previstas no momento da elaboração da Constituição, em 1787, não são tão distintas das confrontadas atualmente. Mesmo considerando, no panorama recente, a diversidade de formas e instrumentos novos que podem ser mobilizados para cometer abusos, a interpretação predominante é que esses casos incidem no conjunto de circunstâncias que os primeiros constituintes chamaram de “graves crimes e contravenções”: traição, roubo, corrupção, abuso da confiança pública e mau uso da autoridade presidencial. Isso se aproxima da visão dos Federalistas que, no artigo XLV, definiram que são considerados “graves crimes e contravenções” os abusos e/ou violações relacionados à expectativa pública. Logo, sua razoabilidade se concentra nos abusos da autoridade oficial. Assim, explica o autor, alguns crimes não se qualificam como tal, por ter um caráter essencialmente privado (não pagar os tributos, manter relações extraconjugais ou gastar de forma indevida, por exemplo); este são, até certo ponto, insuficientemente sérios para mover ação dessa natureza. Por seu turno, há ofensas que, apesar de não serem crimes, constituem razão suficiente para o impeachment, entre elas criar inimigos políticos, gozar férias indevidas ou prolongadas e mentir deliberadamente para o Congresso ou o povo americano. Essas atitudes passaram a contar como graves contravenções.

A análise dos pedidos de impeachment na história americana permitiu a Sunstein pontuar algumas constatações. Primeiramente, o fato de o governo ser considerado ruim não autoriza o pedido de impeachment: dos quinze presidentes americanos classificados como péssimos governantes,6 6 Conforme ranking dos presidentes da história americana com as piores avaliações (pp. 81-82), pela ordem: James Buchanan (que governou de 1857 a 1861), Andrew Johnson (1865-69), Franklin Pierce (1853-57), Warren Harding (1921-23), John Tyler (1841-45), William Harrison (1841-41), Millard Fillmore (1850-53), Herbert Hoover (1929-33), Chester Arthur (1881-85), Martin Van Buren (1837-41), George W. Bush (2001-09), Rutherford Hayes (1877-81), Zachary Taylor (1849-50), Benjamin Harrison (1881-93) e James Garfield (1881-81). apenas Andrew Johnson chegou a sofrê-lo. O autor considera injustificável aplicar o instituto apenas por discordância das ideias e/ou do desempenho do mandatário a frente do Poder Executivo, ainda que seu governo seja considerado ruim. Sunstein também constatou que o impeachment é utilizado com raridade: somente quatro presidentes norte-americanos o sofreram e nenhum deles foi condenado em definitivo. Essas apurações demonstram que o mérito da previsão constitucional na apresentação das ações de deposição foi mantido, impedindo que o dispositivo fosse usado de maneira banal ao longo dos anos.

O autor também examina o tratamento que a Constituição norte-americana confere aos presidentes que ficaram impossibilitados a desempenhar sua função por doença mental ou física. A 25ª Emenda diz que, em caso de falecimento, renúncia ou destituição, o sucessor ao cargo é sempre o vice. A discussão da noção de incapacidade no direito norte-americano tem duas vertentes: a. O minimalismo judicial, que defende que o presidente só pode ser declarado incapaz quando não tiver condições de tomar decisões por inconsciência ou debilidade plena; e b. A corrente maximalista, para a qual razões mais amplas podem fundamentar a declaração de incapacidade. Nestas circunstâncias, o autor compreende que o impeachment deve ser aplicado quando o presidente, estando incapacitado e inapto a cumprir seus deveres constitucionais, recusa-se a requerer a tutela da 25ª Emenda.

Depois de examinar os casos concretos, o autor elabora cenários hipotéticos para definir quais condutas poderiam ocasionar a instauração de um processo de impeachment. Seu propósito é resolver questões controversas com base no texto constitucional. Ele defende que o presidente não pode sofrer processo de impeachment se, em uma situação de guerra, tomar decisões que resultem na violação de direitos civis. Na hipótese de haver omissão ou mentira deliberada acerca das informações relacionadas à guerra, porém, o mandatário torna-se suscetível ao impeachment por ter traído a confiança dos cidadãos. O mesmo pode ocorrer se, tendo que resolver uma matéria sobre terrorismo, o presidente criar regulamentos que ferem, de alguma forma, os direitos civis constitucionalmente previstos. Neste caso, estaria cometendo abuso de poder. Também poderá ser destituído o presidente cujas ações atentarem contra a vida ou a integridade física e moral de uma pessoa, o que seria um crime grave e incompatível com a relevância de sua posição.

A partir disso, Cass Sunstein defende que o impeachment seja compreendido, por um lado, como uma das ferramentas que organizam as atribuições do sistema político; e, por outro, que seja relacionado aos princípios estruturantes da sociedade norte-americana. Sendo assim, o instrumento deve ser mobilizado, com respaldo legal, sempre que houver indícios de que os direitos fundamentais estão sendo violados; esses indícios serão utilizados para fundamentar o requerimento da destituição do presidente. No entanto, o autor faz ressalvas relativas aos desafios na atualidade, como a disseminação de notícias falsas e a intensa polarização, que podem gerar processos injustos e gerar instabilidade política.

A preocupação primordial de Sunstein é a ascensão, ao sistema político, de grupos sociais e líderes com ideias extremistas, cujas declarações e atos têm caráter profundamente antidemocrático, seja na condução da administração pública, seja no tratamento dado à diversidade da sociedade. É neste sentido que sublinha que o impeachment é um instrumento para proteger o cidadão dos autoritarismos, estando estreitamente vinculado à garantia das liberdades individuais. Apesar de analisar sua utilização em situações remotas ao longo da história, a obra trata o impeachment como um recurso legítimo de que o povo, a sociedade civil e as demais instituições do Estado dispõem para assegurar o ideal do republicanismo – um instrumento que se opõe à tirania e à violação dos direitos e defende a salvaguarda dos valores que alicerçam o Estado democrático de direito.

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    No período entre 2009 e 2012, Cass Sunstein foi nomeado pelo presidente estadunidense Barack Obama chefe do Gabinete Executivo de Informação e Assuntos Regulatórios da Casa Branca. A chegada ao cargo conferiu certa amplitude a suas ideias, que tiveram repercussões diversas no debate público.
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    Em dezembro de 2019, o presidente Donald Trump (2017-2020) se tornou o quarto mandatário norte-americano a ser submetido ao processo de impeachment, mas posteriormente foi inocentado pelo senado, das acusações de abuso de poder e obstrução da justiça.
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    Andrew Johnson e Bill Clinton foram absolvidos dos respectivos processos de impeachment na votação do Senado; Richard Nixon renunciou ao cargo antes da tramitação do processo.
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    No parlamentarismo, o Poder Executivo é uma extensão do Legislativo; assim, o governo sobrevive enquanto preserva a confiança da maioria do parlamento; na ausência desta, é dissolvido. O primeiro-ministro é apenas o chefe de governo, enquanto o presidente e o monarca exercem a chefia de Estado. Além disso, ele é escolhido de forma indireta, pelo parlamento (Sartori, 1993SARTORI, Giovanni. (1993), “Nem presidencialismo, Nem parlamentarismo”. Revista Novos Estudos CEBRAP, n° 35, março: 3-14.).
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    Entre outras diferenças em relação ao parlamentarismo, cabe destacar que no Presidencialismo: 1. há separação clara entre os poderes Executivo e Legislativo; 2. o presidente da República é chefe de governo e de Estado; 3. o ministério é designado pelo presidente e responde politicamente a ele, e não ao Legislativo (Cintra, 2007CINTRA, Antônio Octávio. (2007), “Presidencialismo e Parlamentarismo: são importantes as instituições?”, In: L. Avelar & A. O. Cintra (orgs.), Sistema Político Brasileiro: uma introdução, Rio de Janeiro, Editora UNESP/Fund. Konrad-Adenauer.).
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    Conforme ranking dos presidentes da história americana com as piores avaliações (pp. 81-82), pela ordem: James Buchanan (que governou de 1857 a 1861), Andrew Johnson (1865-69), Franklin Pierce (1853-57), Warren Harding (1921-23), John Tyler (1841-45), William Harrison (1841-41), Millard Fillmore (1850-53), Herbert Hoover (1929-33), Chester Arthur (1881-85), Martin Van Buren (1837-41), George W. Bush (2001-09), Rutherford Hayes (1877-81), Zachary Taylor (1849-50), Benjamin Harrison (1881-93) e James Garfield (1881-81).
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REFERÊNCIAS

  • CINTRA, Antônio Octávio. (2007), “Presidencialismo e Parlamentarismo: são importantes as instituições?”, In: L. Avelar & A. O. Cintra (orgs.), Sistema Político Brasileiro: uma introdução, Rio de Janeiro, Editora UNESP/Fund. Konrad-Adenauer.
  • CONLY, Sarah. (2013), Against Autonomy: Justifying Coercive Paternalism Cambridge, Cambridge University Press.
  • SARTORI, Giovanni. (1993), “Nem presidencialismo, Nem parlamentarismo”. Revista Novos Estudos CEBRAP, n° 35, março: 3-14.
  • SUNSTEIN. (2006), Radicals in Robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America Cambridge, Basic Books.
  • SUNSTEIN, Cass. (2009), “Preferências e política”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 1, jan./jun.: 219-54.
  • SUNSTEIN. (2014), Why nudge? The politics of libertarian paternalism New Haven, Yale University Press.
  • THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. (2008), Nudge: o empurrão para a escolha certa São Paulo, Editora Elsevier.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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