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Vukanapavo. O despertar Terena que pode despertar outros grupos da sociedade brasileira para a causa indígena

AMADO, Luiz Henrique Eloy. 2020. Vukápanavo: o despertar do povo terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político. Rio de Janeiro: E-papers, 244

Enquanto eu organizava as ideias para começar essa resenha, minha filha de dez anos chegou da escola contando que sua professora, do quinto ano do ensino fundamental da rede pública do Estado de São Paulo, disse à turma que “índio que usa celular não é mais índio”. Recebi essa informação com certo espanto, pois no material escolar dela há boas referências aos povos indígenas na atualidade, não só a seus costumes e tradições, mas também a suas localizações territoriais, variedade de etnias e línguas. Infelizmente, alguns professores ainda se apoiam em ensinamentos de épocas anteriores, quando o “índio” era vista como algo do passado, somente apresentado na escola em aulas sobre a colonização e homenageados com cocares de penas feitos pelos alunos, para cantar e dançar a música da Xuxa no dia 19 de abril.

Os indígenas têm buscado mais visibilidade através das mídias sociais, estão mais presentes em discussões políticas na Câmara, na universidade, em manifestações públicas. Entretanto, a percepção de muitas pessoas ainda se mantém baseada em estereótipos construídos em séculos passados. A acusação a respeito do uso do celular tem sido tão recorrente que é preciso se justificar frente ao óbvio: o uso ou não de determinadas tecnologias não os torna menos indígenas. Com essa finalidade didática, muitos indígenas têm feito posts em redes sociais para explicar essa e outras questões. Manifestações e eventos como o Acampamento Terra Livre, quando muitos indígenas utilizam seus aparelhos para registrar imagens de sua luta, têm impulsionado essa visibilidade. Com isso, almeja-se chamar atenção da sociedade a respeito das demandas indígenas atuais.

Em meio a esse cenário de visibilidade e julgamentos, livros como Vukanapavo, de Eloy TerenaAMADO, Luiz Henrique Eloy. (2020), Vukápanavo: o despertar do povo terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político. Rio de Janeiro: E-papers, 244 p., são cada vez mais importantes de serem lidos para além do universo acadêmico. Trata-se de uma reflexão crítica sobre a história dos Terena, apresentando

as comunidades indígenas como detentoras de um conjunto de atores sociais que não ficaram estanques no tempo, mas que sofreram mudanças, ressignificaram vários símbolos e, nem por isso, deixaram de pertencer a seus povos. (p.227)

Essa afirmação serve tanto para os Terena como para outros povos indígenas que resistem e enfatizam “o sentimento de pertencimento e a percepção da alteridade como elementos marcantes da identidade” étnica na atualidade.

Eloy TerenaAMADO, Luiz Henrique Eloy. (2020), Vukápanavo: o despertar do povo terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político. Rio de Janeiro: E-papers, 244 p., como advogado e militante da causa indígena, internacionalmente reconhecido, produziu a tese em Antropologia que deu origem ao livro em questão. Com a preocupação de marcar sua posição, seus múltiplos papéis, ele traz elementos sobre sua trajetória, de forma a se colocar como um antropólogo indígena. Em qual aldeia nasceu, a qual família pertence, quem são seus “troncos”, quais as principais relações políticas dentro da comunidade, a relação com o movimento indígena são elementos que compõem a narrativa de seu caminho profissional e pessoal. Além disso, ele faz questão de marcar a importância da política de cotas: sem ela a sua trajetória acadêmica não seria a mesma.

Não há como separar história de vida e escolhas acadêmicas. As suas escolhas refletem as de muitos outros indígenas, que pretendem se apropriar dos conhecimentos específicos para utilizá-los em prol de sua comunidade. “É a oportunidade de o pesquisador indígena, enquanto representante de seu povo, falar em nome dele”. A ideia de não ter mais o branco falando pelos indígenas é recorrente. Os mais velhos da aldeia tem essa expectativa nos jovens que vão para a universidade.

O Eloy antropólogo também escreve sobre suas inquietações e assim contribui para que os pesquisadores não indígenas entendam a importância dos indígenas na academia. Refiro-me a reflexões sobre o trabalho de campo com o próprio povo, por exemplo. Algo que foi pensado com base na alteridade e não no pertencimento precisa ter sua lógica invertida para funcionar no caso de um pesquisador indígena. Também cito a crítica feita pelo autor aos exageros da abstração antropológica: “Surge um desconforto para nós, indígenas antropólogos, quando realizamos o exercício de buscar no fato em concreto alguma referência para determinada categoria suscitada por um antropólogo.”

Ao dizer que o livro deve ser lido por público amplo, me refiro à sua importância em divulgar pontos da história do país que não estão presentes nos livros didáticos. Por exemplo, o autor apresenta, através de uma construção detalhada de dados e relatos, a participação ativa de seu povo na guerra do Paraguai, relevante inclusive na própria configuração atual do território brasileiro. O livro também é fundamental na divulgação da trajetória política dos povos indígenas, desde o chão da aldeia até instâncias internacionais.

Deve ser lido também pela comunidade antropológica, pois traz uma análise rica a respeito da produção sobre os Terena e seus impactos práticos na vida desse povo. A divisão “Terena no Chaco Paraguaio” e “Terena no território brasileiro”, apresentada por acadêmicos, foi utilizada para reforçar a ideia de que eles não teriam direito à terra, por terem chegado em solo brasileiro depois da Guerra do Paraguai, o período conhecido entre os Terena como “tempo do esparramo”. Eloy chama a atenção dos pesquisadores que saberes antropológicos e históricos podem ser utilizados contra ou a favor dos povos indígenas, por isso devem ser construídos e apresentados com responsabilidade.

Eloy parte de “duas afirmações não refutadas” que o levaram à Antropologia: a unanimidade sobre a origem do povo e o argumento dos fazendeiros para deslegitimar o direto à terra pelos Terena, ambos com base na ideia de serem provenientes do chaco paraguaio, portanto não brasileiros. Ele questiona as “temporalidades Terenas” construídas na academia e apresenta seus impactos em processos judiciais. Propõe-se a repensar a ideia da divisão dos tempos (antigos, de servidão, atuais e de despertar) como etapas ao contrapô-la com a noção de situação histórica desenvolvida por João Pacheco de Oliveira, que se baseia em uma “descrição singularizante de um processo através de seus momentos no tempo”. Ele refuta, portanto, a ideia de que houve migração dos Terena do chaco para o Brasil, a não ser como “movimento de fuga”.

É preciso ter em mente a presença dos povos indígenas no território antes da criação do Estado-nação. As fronteiras nacionais e internas e as decisões em torno delas são invenções estatais. Muitas áreas indígenas “viraram fazenda da noite para o dia”, apoiadas na ideia do “processo civilizatório” para reforçar as fronteiras nacionais. Negar isso é contribuir com a “invisibilidade dos povos indígenas enquanto sujeitos de direitos originários”. Não levar em conta os efeitos do colonialismo na análise de situações históricas pode direcionar o pesquisador a cometer falsas interpretações. Lembrando que assimilação e desintegração territorial eram os motes da ação indigenista colonial.

Ao mesmo tempo em que faz uma revisão bibliográfica detalhada para construir essa análise, Eloy apresenta relatos emocionantes sobre as retomadas, como o de seu Nelson, ao pisar pela primeira vez na casa-sede da fazenda Esperança depois de trabalhar décadas para o fazendeiro. Ganha o leitor em poder acessar dados tão ricos compilados em trajetória Terena que se confunde com a trajetória dos povos indígenas do Brasil em geral.

Em continuidade à construção da cronologia da resistência Terena, o autor expõe como as políticas de assimilação, dominação e desterritorialização foram mantidas no período republicano. Esse cenário é descrito detalhadamente através da atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que, nas palavras de um Terena, se enquadraria mais em “perseguição” do que proteção. Atos de violência e de corrupção são relacionados diretamente à criação das reservas indígenas, que revelava a relação parcial do órgão com os fazendeiros. Relatos de prisão e de tortura revelados ao longo da Comissão Nacional da Verdade Indígena, ocorrida em 2014, compõe a narrativa. Esse momento trouxe à tona relatos também de outras etnias, além do Terena, como Krenak e Kaigang.

Ao ler sobre o modus operandi dos fazendeiros, que “da noite para o dia, transformava um bem público em privado, um bem coletivo em individual” com a prática de “chegar e colocar gado”, faço uma conexão com as palavras do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que defendeu a ideia de deixar passar “a boiada” na Amazônia enquanto a sociedade se preocupava com o avanço da Covid-19 no país.1 1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml A imagem do boi, que remete a pastos e propriedades privadas, se contrapõe diretamente às terras indígenas, onde se convive em comunhão com os outros seres da floresta. Também na fala de Lindomar Terena na primeira Assembleia a imagem do gado é acionada para ilustrar questões territoriais, como a criação das reservas indígenas após o “tempo do esparramo”: Às vezes fico analisando, como nós, Terena, que éramos donos de todo esse território, chegamos a essa situação, a ponto de viver cercado como gado. Vê-se que essa política de desterritorialização que põe em risco comunidades indígenas não se manteve no século passado.

Há outros pontos do livro que merecem destaque. Tem a peculiaridade de ser escrito por um pesquisador que também é advogado, portanto detentor de um vocabulário e saberes específicos para falar das leis, decretos, constituições e outras formas legais pelas quais passaram (ou foram deixados de lado) os direitos dos povos indígenas. Nas constituições brasileiras anteriores a política indigenista se baseava na “suposta transitoriedade da condição indígena e superioridade da cultura hegemônica”. Já na constituição de 1988 houve uma ruptura com essa visão, que permitiu uma conduta decolonial do Estado com relação aos povos indígenas. A pressão por mudanças foi impulsionada no Simpósio sobre a Fricção Interétnica na América do Sul, em 1971, cujo principal destaque foi o reconhecimento da pluralidade étnica existente no território nacional. Esse evento teve impacto na construção do movimento indígena, desde a aldeia até o Congresso Nacional. A própria constituinte teve a participação ativa dos Terena.

A expectativa em torno da etnografia, por ser o autor um Terena, que poderia girar em torno das memórias e experiências pessoais com seu povo, extrapola essa esfera. De forma muito cuidadosa, o autor constrói uma etnografia de muitas camadas. Ele inicia o texto falando de si enquanto criança na aldeia e sua posterior mudança para a cidade. Assim, ele apresenta a ideia a ser desenvolvida de que as alianças políticas construídas ao longo do tempo com os purutuye (os não indígenas) tiveram como propósito a manutenção e permanência do grupo enquanto povo “ainda que para isso tivessem que acionar outros símbolos e outros elementos culturais”.

O terceiro capítulo é o mais sensível etnograficamente, pois é onde está o caminho da mobilização política Terena na luta pelos direitos territoriais, identificada como o Vukanapavo, ou seja, o despertar do povo Terena para seus direitos. Uma história que se confunde com a de sua atuação como advogado indígena e é marcada por muitos conflitos envolvendo seu povo. Mas não só de conflitos é feita essa história. A luta por direitos promove muita interação, organização, modos de fazer política que transformam ao mesmo tempo em que unem e reafirmam os Terena enquanto povo que faz política “embaixo do pé de manga, que irradia nas retomadas”.

Nesse contexto reafirma-se a importância da participação do cacique; das Assembleias Terena; das reuniões políticas; dos conselhos tribais, do uso da palavra nesses espaços; da variedade de atores; dos documentos produzidos após esses encontros, enfim, de toda uma rede que expande a aldeia para níveis outros e legitima a participação ativa desses indígenas na vida política brasileira. Essa ação em rede agrega variadas etnias, que se conectam através do movimento indígena nacional, constroem agendas convergentes e trocam “experiências, saberes e estratégias de luta”.

Por fim, retomo os dois pontos que resumem a tese: sentimento de pertencimento e percepção de alteridade. Com essa combinação que forma o pensamento Terena (isonêuti), eles e tantos outros povos indígenas, são capazes de transitar entre mundos sem deixar de ser quem são, apesar de todas as décadas de políticas assimilacionistas. A própria interação com os não indígenas, os arranjos e rearranjos feitos e refeitos contribuíram para a continuidade do povo Terena. Em meio ao cenário político atual, torna-se cada vez mais importante chamar atenção para a luta indígena, para a questão do território como direito fundamental e base para os direitos sociais. E, dessa forma, mostrar à sociedade brasileira que essa é uma luta de todos nós.2 2 https://www.greenpeace.org/brasil/blog/essa-luta-nao-e-apenas-dos-povos-indigenas-mas-de-todos-nos-e-uma-luta-pela-vida-do-planeta/

Bibliografia

  • AMADO, Luiz Henrique Eloy. (2020), Vukápanavo: o despertar do povo terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político Rio de Janeiro: E-papers, 244 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2021
  • Aceito
    09 Dez 2021
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