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Utopia e circulação da cultura em Mário de Andrade

Utopia and circulation of culture in Mário de Andrade

BOTELHO, André; HOELZ, Maurício. 2022. O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado. 1ª edição. Petrópolis: Editora Vozes

Em 1940, o poeta Mário de Andrade do Norte,1 1 Como era conhecido o poeta cearense Mário Kepler Sobreira de Andrade (1910-1944). self modernista de um “selvagem do Ceará”, nas suas próprias palavras, muniu-se de lápis e papel como sendo arco e flecha e enviou uma carta ao escritor Mário de Andrade. Interessava ao Mário do Norte e a Antônio Sales, seu amigo e tio de Pedro Nava, apresentar a Mário de Andrade as atividades do CLÃ, grupo que reunia intelectuais interessados na pesquisa sobre cultura popular, folclore, artes plásticas e na criação de uma revista.

Desde a Semana de Arte Moderna de 1922, os escritores do Ceará recebiam e se apropriavam da renovação estética que ecoava de São Paulo para o vizinho Recife. Atualizavam-se e eram ávidos por novidades. Lançaram as revistas Maracajá e Cipó de Fogo. Trocavam cartas com Raul Bopp, Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho, os mais nacionalistas e conservadores do movimento. Católicos fervorosos, os cearenses olhavam com reservas os “futuristas do sul”. Em 1940, os mais jovens se juntaram aos veteranos da primeira geração de modernos e escreveram para a sua fonte de trabalho e inspiração, o já consagrado Mário de Andrade. Segundo o historiador Rodrigo de Albuquerque Marques (2015, pMARQUES, Rodrigo de Albuquerque. (2015), A nação vai à província: do romantismo ao modernismo no Ceará. Tese, Doutorado em Literatura Comparada, Universidade Federal do Ceará, Departamento de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras, Fortaleza.. 145), Mário lhes deu todo apoio e uma bênção.

O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado, de André Botelho e Maurício Hoelz, é leitura indispensável aos que estudam a circulação interna do processo de modernização cultural no Brasil. Mário de Andrade esteve sempre atento às diversidades regionais como processos sociais de desigualdades. Por esse ângulo, percebeu que a legitimidade da cultura popular se tornaria uma forma de reconhecimento social. Isto é, resultaria de uma conquista da democracia. Toda a fundamentação, intensidade e desdobramento do conceito de cultura popular encontra expressão nas ações e políticas de reconhecimento. Esse é um fino argumento de concepção do livro. Os leitores ficam tentados a seguir a mesma pista e buscar os equivalentes do popular como política de reconhecimento na contemporaneidade.

Quais foram os temas e objetos da cultura popular privilegiados na obra do escritor? E como Mário apreendeu suas formas mutáveis para além de São Paulo e, até mesmo, do Rio de Janeiro? Viajando, abrindo bem os olhos e apurando os ouvidos para as aprendizagens do Brasil. As experiências de troca intelectual do modernismo revelam, dizem os autores, uma abertura para o outro como “a constituição de um self modernista” (Botelho e Hoelz, 2022, pBOTELHO, André; HOELZ, Maurício. (2022), O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado. 1ª edição, Petrópolis, Editora Vozes.. 202).

O livro de André Botelho e Maurício Hoelz coloca uma questão sobre a artificialidade que resulta da separação metodológica da trajetória do autor e da obra produzida. Em primeiro lugar, os autores apresentam o percurso iniciático de Mário de Andrade para, em seguida, analisar de modo articulado as obras e a atuação político-institucional. Sua atuação no âmbito da política cultural esbarrou na estrutura do Estado e no sistema de práticas, causando-lhe imensas frustrações pela impossibilidade de realizar suas ideias e utopias nas políticas públicas formuladas.

O conhecimento desse percurso é fundamental quando se trata de um intelectual que participou das instituições do Estado Novo. Ele conduz à problematização das relações de dependência e conquista de autonomia dos modernistas com relação ao poder. A colaboração dos intelectuais no governo autoritário de Getúlio Vargas envolveu tensões e conflitos entre posicionamentos ideológicos e ideias bastante diferentes. Não se pode perder de vista que as políticas e as ideias constituem um campo de forças.

No correr da leitura, redescobrimos formas e expressões artísticas costumeiramente vistas como antagônicas em relação umas às outras. André Botelho e Maurício Hoelz nos mostram que na medida em que Mário de Andrade transferia legitimidade à arte popular, à narrativa do herói Macunaíma, aos cantadores de embolada, de canções de roda e improvisos, às expressões do folclore nordestino junto à música erudita, sem estabelecer hierarquias entre gêneros e práticas, mas aproximações e correspondências, abria-se a possibilidade para o desrecalque da cultura brasileira. E tudo isso nos leva ainda ao conhecimento de uma crítica metodológica ao nacionalismo cultural. Ou melhor, descobrimos com Mário de Andrade algo diferente das formulações comuns a vários intérpretes da identidade nacional. A representação social da nação não é mais estática e fechada sobre si mesma. Por toda parte, vemos modelos abstratos de identidade nacional que respondem imperfeitamente aos dados da pesquisa sócio-histórica.

A compreensão aberta pelos artigos, pelos livros e pela atuação político-institucional de Mário de Andrade como gestor tanto do Departamento de Cultura, como dos Ministérios da Educação e da Saúde Pública, ressaltam André Botelho e Maurício Hoelz, estabelece relações de interdependência entre o erudito e o popular, o localismo e o cosmopolitismo, fora de classificações hierárquicas ou preocupações com nivelamentos, embora sem desconhecer as singularidades de uns e de outros. É na música erudita que encontramos referências à oralidade e vice-versa. Esse é, a meu ver, um dos pontos altos do livro porque retoma a problemática da circularidade, situando-a no equilíbrio dos pólos antagônicos de produção da cultura. Em Mário de Andrade, os intercâmbios intelectuais formam uma ampla e rica polifonia e são os elos para o estudo dos movimentos e constituição de esferas públicas na formação social brasileira. Mário, apesar das ambiguidades e tensões na sua relação com o regime autoritário do Estado Novo, converteu suas ideias relacionais de arte e cultura nas políticas públicas que formulou.

Mirando nos livros, os leitores encontram referências para a construção compartilhada de suas subjetividades. Talvez tenha sido pela experiência de aprendizado na leitura que Mário do Norte armou-se de coragem e escreveu a Mário de Andrade sobre a criação do grupo e da revista CLÃ. O dinamismo e arrojo dos rapazes e das ousadas mulheres do CLÃ resultou na fundação da Universidade do Ceará, nos anos 1950. Gilberto Freyre, por disputa regional e pouca camaradagem, foi imediatamente contra. Se Mário de Andrade estivesse vivo, certamente teria se posicionado a favor da Universidade.

Em Belo Horizonte, o projeto intelectual, sentimental e pedagógico de Mário tocou outro jovem poeta que também o procuraria por carta. A carta é um suporte da escrita que só se realiza na circulação da cultura. Por atração mútua mediada pela palavra escrita, iniciava-se, entre Carlos Drummond e Mário de Andrade, uma das mais longevas correspondências da cultura brasileira. Uma relação de aprendizagens recíprocas.

Na formulação de uma modernidade cultural, Mário de Andrade construiu, sobretudo, um projeto de utopia para o Brasil, que aproxima universos eruditos e populares, espaços centrais e margens periféricas, todas as gradações do trabalho intelectual. O projeto de utopia de Mário produz suas próprias classificações. Refiro-me à utopia como significada pelo sociólogo Norbert Elias (2014)ELIAS, Norbert. (2014), L’utopie. Éditions La Découvert.. As utopias fazem parte da análise sociológica do conhecimento e das representações coletivas. Nas palavras do sociólogo,

(...) uma utopia é a representação imaginária de uma sociedade, representação contendo proposição de soluções para problemas não resolvidos, bem particulares, da sociedade de origem, a saber de proposições de soluções que indicam as mudanças que os autores ou portadores da utopia desejam ou as mudanças que temem, as vezes as duas coisas ao mesmo tempo.2 2 Tradução própria. (Elias, 2014, pELIAS, Norbert. (2014), L’utopie. Éditions La Découvert.. 45)

As utopias de Brasil, construídas pelo escritor modernista e nos dadas a ler por Botelho e Hoeltz, operam como pontos de observação das direções que tomavam os processos sociais. As utopias de Mário cumpriam a função de meios de orientação de novas ações coletivas, a exemplo do popular como uma aspiração à igualdade social. Foi com um modo próprio de fazer circular os objetos e as ideias na perspectiva da utopia de um Brasil moderno, que Mário nos proporcionou, lendo-o pelas mãos de Botelho e Hoelz, a experiência da transgressão e da mudança. Se nos deixou lacunas, não precisam ser fechadas.

Projetos utópicos são ferramentas reveladoras de tendências de desenvolvimento ou de ofensivas de regressões civilizatórias. Ao tecer aproximações e estabelecer correspondências entre pólos antagônicos da arte, cultura e civilização brasileiras, o livro de André Botelho e Maurício Hoelz nos revela como Mário de Andrade captou e deu forma com suas pesquisas estéticas às tendências de desenvolvimento em curso na sociedade brasileira. Sua maior frustração foi não ter podido convertê-las em políticas públicas e estáveis da cultura. O Modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado acompanha o itinerário de um pensamento singular, mas que também se formou em redes de amizade, antagonismo e trabalho. Na leitura do livro, operamos deslocamentos no tempo, encontramos a presença do passado modernista no presente e somos levados a refletir com Mário, André e Maurício sobre os movimentos de circulação da cultura, de abertura de novos espaços públicos com seus repertórios de obras e autoras/es regionais e cosmopolitas, plenos de assimetrias e mútuas atrações.

  • 1
    Como era conhecido o poeta cearense Mário Kepler Sobreira de Andrade (1910-1944).
  • 2
    Tradução própria.
  • DOI: 10.1590/3710912/2022

Bibliografia

  • BOTELHO, André; HOELZ, Maurício. (2022), O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado. 1ª edição, Petrópolis, Editora Vozes.
  • ELIAS, Norbert. (2014), L’utopie Éditions La Découvert.
  • MARQUES, Rodrigo de Albuquerque. (2015), A nação vai à província: do romantismo ao modernismo no Ceará. Tese, Doutorado em Literatura Comparada, Universidade Federal do Ceará, Departamento de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras, Fortaleza.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Recebido
    15 Out 2022
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