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A Família Margarina Recebe Visitas: Branquitude e publicidade em cinco décadas (1968-2017)

The Margarine Family Receives Guests: Whiteness in Advertising in the Last Five Decades (1968-2017)

Resumos

Resumo

Vários trabalhos qualitativos apontam para o modo limitado com que negros, mulheres e, sobretudo, mulheres negras, têm sido representados na publicidade brasileira. Entretanto, ainda são poucos os estudos que buscam avaliar quantitativamente o tratamento dispensado a personagens brancas na publicidade mainstream das últimas décadas em comparação àquele dado a negros e mulheres. Para ajudar a preencher essa lacuna, este artigo examina o espaço de modelos brancos e negros na publicidade brasileira ao longo de cinco décadas. A partir de uma amostra temporalmente estratificada de anúncios estampados em edições do semanário noticioso brasileiro de maior circulação, codificamos as imagens dos anúncios, focando os personagens humanos retratados. Os resultados apontam para uma manutenção das desigualdades raciais na publicidade e para mecanismos específicos de representação que naturalizam o predomínio sistemático de brancos nas peças publicitárias.

Palavras-chave:
publicidade; raça; gênero; interseccionalidade; propaganda


Abstract

Several qualitative works point to the limited way in which black people, women and, above all, black women, have been represented in Brazilian advertising. However, only a few studies seek to assess the treatment given to white characters in mainstream advertising compared to that given to blacks and women in a quantitative approach. To help fill that gap, this article examines the representation of white and black models in Brazilian advertising over five decades. From a temporally stratified sample of advertisements published in the Veja magazine, the Brazilian news weekly with the greatest circulation, we coded the images of the advertisements, focusing on the human characters portrayed. The results point to the maintenance of racial inequalities in advertising throughout the period and to specific mechanisms of representation that naturalize the systematic predominance of whites in advertising.

Keywords:
advertising; race; gender; intersectionality


Introdução

A influência da publicidade na conformação de padrões estéticos e sociais muitas vezes pode ser medida pela difusão de seus slogans na linguagem popular. Um exemplo disso é a conhecida expressão “família margarina”. O slogan faz parte de uma série de comerciais produzidos no fim da década de 1980 para a margarina Doriana, marca da multinacional Gessy Lever.1 1 Em 2001 o conglomerado empresarial passou a se chamar Unilever. A campanha retratava o cotidiano de uma família brasileira celebrando sua união e felicidade em refeições matinais regadas à gordura vegetal. Com a repercussão da campanha, a família se tornou uma espécie de arquétipo do sucesso doméstico na expressão popular. Mas, além da alegria da afortunada família fictícia, outra característica chama a atenção hoje: todos os seus membros eram brancos.2 2 A campanha de 1989 pode ser assistida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=avyxVkaaRtM<Acessadoem1/3/2020>.

Não deixa de ser paradoxal que esse ideal branco de família feliz tenha se difundido em um país cujo mito de origem se baseava na apologia da mestiçagem. Mais relevante ainda é que a branquitude desses personagens só foi colocada em xeque pelo fabricante do produto muito recentemente. Em 2018, a hoje renomeada “Margarina Qualy” decidiu incluir não brancos em uma de suas campanhas, intitulada “A Vida Mais Qualy”. Contudo, a campanha surpreende mais pela manutenção dos padrões estéticos de trinta anos atrás do que pelas transformações. A família branca continua protagonizando todas as peças. A novidade é que ela passa a receber a visita de alguns “hóspedes ilustres”, dentre os quais alguns negros, como a cantora paraense Gaby Amaranto e o jogador de futebol Denilson.3 3 A campanha de 2018 e as posteriores podem ser assistidas no link a seguir: https://www.youtube.com/c/QualyOficial/videos?view=0&sort=da&flow=grid<Acessadoem13/1/2020>. Foi somente em 2020, com o lançamento da campanha “Qualy: a Receita”, que temos a primeira peça publicitária com uma família negra.4 4 A peça publicitária pode ser vista no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=f0Vmk2BV0Ok<Acessadoem1/3/2020>. Ainda assim, trata-se de uma mulher negra solitária seguindo as instruções da mãe por meio de um tablet enquanto prepara um pão.

Ao que parece, a propaganda de margarina não é um caso fora da curva da publicidade brasileira. Um olhar impressionista sugere que nossa publicidade mainstream permanece representando um mundo hegemonicamente branco e de classe média ou alta, abrindo concessões pontuais e raras à representação de pessoas que não pertençam a esses grupos sociais. A branquitude das “famílias margarina” parece estar presente em diversos outros setores da publicidade atual. No entanto, esse diagnóstico não é consensual. Num texto publicado há quase vinte anos, o antropólogo Peter Fry manifestava otimismo em relação a essa questão, ao identificar uma suposta nova tendência na qual “pessoas de cor tornaram-se mais numerosas na publicidade brasileira (timidamente, devo dizer) e abandonaram o papel estereotipado de criadagem para se tornarem profissionais em geral; quase cidadãos genéricos, se preferir” (Fry, 2002FRY, Peter. (2002), “Estética e política: relações entre raça, publicidade e produção da beleza no Brasil”. In M. Goldenberg (org.) Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca, Rio de Janeiro/ São Paulo, Record: 295-318., [p.297]). Para o antropólogo, esse avanço tímido estaria ligado à emergência de um mercado consumidor que não apenas consolidaria negros nas peças publicitárias, como também poderia, no longo prazo, contribuir “de forma contundente para a diminuição do racismo no Brasil” (Fry, 2002FRY, Peter. (2002), “Estética e política: relações entre raça, publicidade e produção da beleza no Brasil”. In M. Goldenberg (org.) Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca, Rio de Janeiro/ São Paulo, Record: 295-318., [p.315]).

Contudo, duas décadas depois, ainda temos poucos dados que permitam medir essas impressões divergentes sobre a diversidade de gênero e, sobretudo, racial de nossa publicidade. Houve alteração substantiva dos padrões de branquitude da publicidade brasileira, como previa Fry? O quanto eles se modificaram nas últimas décadas? Há combinação entre padrões de branquitude e desigualdades de gênero? A presença de homens e mulheres negras varia de acordo com o nicho publicitário? Como esses dois grupos são representados nos anúncios?

Este texto pretende contribuir para responder essas e outras perguntas. Ele se baseia em um levantamento amplo e sistemático dos anúncios impressos da revista semanal brasileira de maior circulação, Veja, publicados entre 1968 e 2017. No total, foram analisadas mais de 24 mil peças publicitárias de uma amostra de 588 edições. Resumidamente, uma equipe de pesquisadores identificou todas as figuras humanoides dos anúncios, sejam elas fotografias de pessoas reais ou representações pictográficas, e codificou sua raça e gênero, além de informações como anunciante e interação entre as personagens.

Nossos dados indicam que os anúncios de margarina ainda fornecem o paradigma para o modo como a publicidade brasileira vem lidando com a questão racial. Embora algumas marcas tenham feito esforços recentes de diversificação de seus elencos publicitários, a inclusão de modelos negros e negras é marginal. Ademais, a branquitude do mundo publicitário parece ser bem maior que aquela detectada por nós em outras esferas da produção cultural comercial como as novelas televisivas (Campos e Feres Júnior, 2016CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JÚNIOR, João. (2016), “Globo, a gente se vê por aqui? Diversidade racial nas telenovelas das últimas três décadas (1985-2014)”. Plural, v. 23, n. 1: 36-52.) ou o cinema de alta bilheteria (Candido et al.; 2016bCANDIDO, Marcia Rangel; DAFLON, Verônica Toste; JÚNIOR, João Feres. (2016b), “Cor e Gênero no cinema comercial brasileiro: Uma análise dos filmes de maior bilheteria”. Revista do centro de pesquisa e formação, v. 3, n. 1: 116-135.).

O texto está organizado em seis seções, além desta. A primeira trata das discussões teóricas sobre branquitude e publicidade com especial ênfase para aqueles que buscam traçar um retrato mais amplo da diversidade racial (ou de sua ausência) nos anúncios publicitários em diferentes contextos nacionais, mormente no Brasil e nos EUA. Na segunda, apresentamos o recorte e as estratégias metodológicas da pesquisa. A terceira foca nos dados quantitativos obtidos, mensurando a presença relativa total e no tempo dos distintos grupos raciais e interseccionais. Na quarta seção, analisamos os modos de representação das pessoas na publicidade, suas vestimentas e interações. A quinta examina uma categoria específica e relativamente rara na demografia brasileira, mas ainda significativa na publicidade, a qual denominamos de “superbrancos”: pessoas loiras ou ruivas, de olhos claros e pele alva. Embora específico, esse grupo é a chave para entender alguns dos limites da publicidade contemporânea. Na sexta e última seção discutimos os resultados da pesquisa.

Branquitude e publicidade

Nas últimas décadas o conceito de branquitude tem sido crescentemente mobilizado em diversas áreas do conhecimento, entre elas a sociologia, psicologia social e estudos culturais. Como todo conceito que passa a ser largamente empregado, esse também vem sofrendo um processo de inchaço semântico, o que corresponde à intensificação de sua polissemia. Tal processo trabalha contra as pretensões acadêmicas de controle e precisão do significado de conceitos analíticos. Assim, é prudente que, sem a pretensão de esgotar o conceito, tentemos, a título de introdução, iluminar seus principais sentidos.

Grosso modo, o conceito de branquitude tem sido empregado para entender a construção implícita e não evidente de padrões dominantes baseados na experiência social dos brancos vis a vis grupos racializados. Em vez de entender as relações raciais de dominação pelas dinâmicas que envolvem a construção da negritude, por exemplo, busca-se inverter a perspectiva analítica. Tal inversão de perspectiva já estava presente no trabalho do sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos (1995)RAMOS, Guerreiro. (1995), Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro, Editora UFRJ., que, sem utilizar o termo, criticou os estudos da questão racial no Brasil por majoritariamente elegerem “o negro” como “problema de pesquisa”, enquanto ignoram o que ele chama de “problema do branco” (p. 216).5 5 Sobre o conceito de branquidade em Guerreiro Ramos ver também Feres Júnior (2015) .

Determinada condição humana é erigida à categoria de problema quando, entre outras coisas, não se coaduna com um ideal, um valor ou uma norma. Quem a rotula como problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o negro no Brasil é objeto de estudo como problema na medida que discrepa de que norma ou valor? (Ramos, 1995, pRAMOS, Guerreiro. (1995), Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro, Editora UFRJ..190)

Para Guerreiro, a obsessão das elites nacionais com o “problema do negro” refletia o desejo do país em ser reconhecido internacionalmente como branco, ou seja, refletia, a rigor, a patologia social do branco. Esta, no entanto, não era perceptível como tal justamente porque o branco desfrutaria no Brasil “do privilégio de ver o negro, sem por este último ser visto” (Ramos, 1995RAMOS, Guerreiro. (1995), Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro, Editora UFRJ., [p.202]). Esse questionamento introduz um aspecto fundamental do conceito de branquitude: a construção invisível ou racialmente neutra do branco na dinâmica das hierarquias raciais.

Em sua introdução ao conceito de branquitude, escrita em um momento no qual a literatura acadêmica sobre o tema já alcançava algum grau de desenvolvimento, pelo menos em língua inglesa, Steve Garner (2007)GARNER, Steve. (2007), Whiteness: an introduction. London, New York: Routledge. identifica quatro dimensões ou abordagens: terror e supremacia sistemática, invisibilidade e ausência, extrema visibilidade e capital cultural, e branquitude como hierarquias contingentes. A branquitude como supremacia sistemática ou terror corresponde à manutenção da dominação racial a partir do controle histórico de instituições importantes na tomada de decisões e distribuição de recursos. Nos regimes nacionais que praticam tal tipo de branquitude, há uma legitimação explícita da hierarquia entre grupos raciais, mesmo que com diferenças sociais relevantes no interior de cada um deles. Por essa ótica, a branquitude constitui uma identidade poderosa que influencia o acesso a recursos materiais e simbólicos, chegando a interferir de modo relevante no direito à cidadania e, no limite, à vida.

A segunda dimensão definida por Garner foca justamente a invisibilidade da branquitude, isto é, na normalização da perspectiva dos brancos. A força do argumento está no fato de normas, leis e instituições terem um formato exterior racialmente neutro e universalizante ao passo que são verdadeiramente expressões da experiência social dos brancos. Assim, a operação de critérios neutros na sua superfície produz o não branco como desviante, aberrante e ilegal, enquanto o branco é associado implicitamente ao normal, legal, moral, verdadeiro e belo. Tal tipo de branquitude também contribui para a invisibilização da opressão e do sofrimento dos não brancos, e, portanto, a manutenção desse estado de coisas.

Já a branquitude como norma social, capital cultural e valores é mais um desenvolvimento do segundo tipo de branquitude do que propriamente um outro tipo. Ele diz respeito às vantagens não materiais de ser percebido como branco, ou seja, trata-se do aspecto simbólico da relação de poder. Como vimos, a branquitude é entendida como normalidade, como ponto de referência de humanidade que determina o que é desviante, interpretado como ameaçador e diferente. “As normas ajudam a estruturar as formas de diferença vistas como ameaçadoras” (p. 62). Uma vez que essa categoria representa a humanidade, tudo o mais que se desvie desta norma precisa ser marcado (Garner, 2007GARNER, Steve. (2007), Whiteness: an introduction. London, New York: Routledge., [p.34]). Aqui, o corpo e sua estética também se tornam importantes para o reconhecimento de humanidade. Desse modo, a branquitude é entendida como algo a ser buscado e almejado não somente de modo físico, mas também no que se refere a um padrão de normas sociais, atitudes, experiências e crenças relacionadas a um status superior.

Por fim, ainda segundo Garner, a branquitude também opera por meio de hierarquias contingentes, criando assimetrias no interior dos grupos privilegiados, por exemplo, os mais brancos entre os brancos, os mais ocidentais entre os europeus, os melhores cristãos entre os cristãos etc. Ademais, entre pessoas brancas também existem outras hierarquias, como classe e gênero. A branquitude é atravessada pelas dimensões econômica, social e política, mostrando uma certa pluralidade a despeito de possíveis vantagens nas relações de poder. Seria o caso, por exemplo, de um imigrante que, por apresentar traços físicos considerados brancos ou europeus, enfrentaria menos discriminação, mas ainda se encontraria em situação de certo desencaixe por ser originário de outro país. As hierarquias contingentes devem ser consideradas para entender a fluidez da branquitude, com modos de proceder que se alteram de acordo com o contexto e local.

A segunda e a terceira abordagens descritas, a saber, a branquitude como régua do que é considerado positivo, correto e bonito, e as vantagens simbólicas de ser branco, se mostram mais relevantes para compreender os mecanismos de representação da publicidade no Brasil no período estudado aqui, uma vez que nas peças não há a intenção de parecer abertamente racista, como é o caso da propaganda em outros contextos culturais. Um dos pioneiros dos estudos sobre representação da branquitude no cinema, Richard Dyer (1997)DYER, Richard. (1997), White. London, Routledge., explica que o enquadramento para pensar e elaborar os filmes da cultura Ocidental é branco em todas as suas dimensões: nos modos de representar seus personagens, de elaborar e relatar suas histórias e na formação do elenco. Os parâmetros de normalidade, de beleza e de civilização, portanto, são perpassados pela ótica branca, deixando sobre a lente rigorosa da alteridade os não brancos. Dessa forma, enquanto brancos são lidos como indivíduos universais; negros, asiáticos, indígenas, são narrados de modo homogeneizante, como se se representassem pura e simplesmente a negação do branco.

Outras pesquisas que estudam raça e representação em meios de comunicação também detectaram a branquitude como norma de representação dos tipos humanos (Candido et al.; 2016aCANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JÚNIOR, João. (2016a), “A Cara do Cinema Nacional: gênero e raça nos filmes nacionais de maior público (1995-2014)”. Textos para discussão GEMAA, n.13: 1-20.; Felix, 2020FELIX, Marcelle. (2020), “Representatividade negociada: feminilidade, raça e gênero na publicidade”. Revista Brasileira de História da Mídia. v. 8, n. 2: 69-88.; Shinoda, 2017SHINODA, Luciana Messias. (2017), Padrões de Representação do Estereótipo do Gênero Feminino na Propaganda Brasileira. Dissertação de Mestrado. Departamento de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.). Ao descrever as dinâmicas de poder em processos seletivos, Maria Aparecida Bento (2002)BENTO, Maria Aparecida. (2002), Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado, Departamento de Sociologia da USP, São Paulo. observa como brancos não notam com a mesma atenção candidatos negros, enquanto apresentam maior disposição para observar, valorizar, e, por fim, contratar brancos. O exemplo é notório para ilustrar o equilíbrio entre a visibilidade dos brancos e o fato de o grupo parecer “não marcado”: eles são invisibilizados no sentido de que seus privilégios não são questionados.

Embora a representação não se proponha a retratar a realidade de modo fiel, ela é um ponto de partida para entendermos a pedagogia social veiculada pelos meios de comunicação de massa. Os anúncios apresentam narrativas que, na busca de gerar identificação com o público, destilam aspectos sociais entendidos como desejáveis (Kotler e Keller, 2012KOTLER, Phillip; KELLER, Kevin. (2012), Administração de marketing. Tradução de Sônia Midori Yamamoto, 14ª Edição, São Paulo, Pearson.). Além das pesquisas de público, os produtores dos anúncios levam em conta fatores sociais, culturais e psicológicos com o fito de propiciar a identificação entre a marca e o cliente, tendo como pano de fundo o delicado equilíbrio entre novas ambições sociais que afloram e as práticas sociais já sedimentadas (Carrera e Oliveira, 2013CARRERA, Fernanda; OLIVEIRA, Luciana Xavier De. (2013), “’Cabelo de Bombril’? Ethos publicitário, consumo e estereótipo em sites de redes sociais”. Novos Olhares, v. 2, n. 1: 67-75.).

Não são muitas as pesquisas sobre a construção da branquitude na publicidade. É digno de nota como trabalhos clássicos sobre a representação de grupos na publicidade focaram apenas modelos brancas e brancos. Isso em parte reflete a branquitude do próprio objeto, mas apenas em parte. Nos EUA, por exemplo, a preocupação governamental com o tema data do fim da década de 1960. Àquela época, o relatório feito pela “Comissão Kerner”, grupo montado pelo então presidente Lyndon Johnson para investigar as causas que levaram às passeatas pelos direitos civis de 1967, já recomendava mudanças no modo como negros eram representados nos meios de comunicação de massa (Colfax e Sternberg, 1972COLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18., [p.8]). Isso não se traduziu, contudo, numa equivalente preocupação por parte da academia. Afora alguns trabalhos, a diversidade racial da publicidade estadunidense só se tornou objeto sistemático de atenção acadêmica no fim da década 1970. Erving Goffman, clássico da sociologia e autor de um dos mais canônicos trabalhos sobre a representação de mulheres na publicidade, não escreveu nenhum parágrafo sobre a questão racial em seu livro Gender Advertisements (Goffman, 1987GOFFMAN, Erving. (1987), Gender Advertisements. New York, Harper Torchbooks.). A contribuição de Goffman é duplamente significativa, pois não somente invisibiliza o privilégio branco, mas o faz enquanto atenta para outro privilégio, o de gênero, mostrando assim como a produção acadêmica muitas vezes padece dos males da sociedade a sua volta.

De modo geral, a maior parte dos estudos que dialogam com a presente pesquisa lidam com a representação de não brancos nos anúncios. Dentre os estudos quantitativos, destacam-se aqueles que focam a mensuração da ausência ou marginalidade de negros na publicidade (Bristor et al.; 1995BRISTOR, Julia; LEE, Renée Gravois; HUNT, Michelle (1995), “Ideology: Television Advertising”. African-American Images in Television Advertising, v. 14, n. 1: 48-59.; Colfax e Sternberg, 1972COLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18.; Correa, 2006CORREA, Laura Guimarães. (2006), De corpo presente: o negro na publicidade em revista. Dissertação de Mestrado, Departamento de Comunicação Social da UFMG, Belo Horizonte.; Hasenbalg, 1982HASENBALG, Carlos. (1982), “O negro na publicidade”. In L. Gonzalez & C. Hasenbalg (Orgs.), Lugar de Negro, Rio de Janeiro, Marco Zero: 103-113.; Martins, 2009MARTINS, Carlos Augusto. (2009), Racismo Anunciado: o negro e a publicidade no Brasil (1985-2005). Dissertação de mestrado. Departamento de Comunicações e Artes / Escola de Comunicações e Artes da USP, São Paulo.; Silva et al.; 2012SILVA, Paulo Vinícius Baptista Da; ROCHA, Neli Gomes Da; SANTOS, Wellington Oliveira Dos. (2012), “Negras(os) e brancas(os) em publicidades de jornais paranaenses”. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 35, n. 2: 149-168.) e a tipificação dos estereótipos mais recorrentes na sua representação ocasional (Fernandes, 2019FERNANDES, Pablo. (2019), “A publicidade na capital mineira tem cor? Pessoas negras na comunicação de anunciantes de Belo Horizonte”. In F. Leite; L. Leonardo Batista. (orgs.) Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios. São Paulo, ECA-USP: 221-246.; Hasenbalg, 1982HASENBALG, Carlos. (1982), “O negro na publicidade”. In L. Gonzalez & C. Hasenbalg (Orgs.), Lugar de Negro, Rio de Janeiro, Marco Zero: 103-113.). Carlos Hasenbalg, por exemplo, já chamava a atenção no início dos anos 1980 para o fato de que, no tocante à representação de pessoas, a publicidade brasileira, em seus próprios termos, se aproximava mais de padrões nórdicos do que brasileiros (Hasenbalg, 1982HASENBALG, Carlos. (1982), “O negro na publicidade”. In L. Gonzalez & C. Hasenbalg (Orgs.), Lugar de Negro, Rio de Janeiro, Marco Zero: 103-113.). Dez anos antes, Colfax e Sternberg (1972)COLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18. também demonstravam certa sensibilidade para o debate sobre branquitude ao apontarem os limites de estratégias de inclusão de modelos negros em anúncios nos Estados Unidos, ora diluídos em imagens de multidão (o que dilui as personagens ao coletivo), ora reduzidos a um único representante (token) em meio a vários brancos (Colfax e Sternberg, 1972COLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18., [p.13]). A tendência de representar pretos e pardos acompanhados de um grupo de brancos também é identificada nos estudos de publicidade do Brasil (Correa, 2006CORREA, Laura Guimarães. (2006), De corpo presente: o negro na publicidade em revista. Dissertação de Mestrado, Departamento de Comunicação Social da UFMG, Belo Horizonte.; Silva et al., 2012SILVA, Paulo Vinícius Baptista Da; ROCHA, Neli Gomes Da; SANTOS, Wellington Oliveira Dos. (2012), “Negras(os) e brancas(os) em publicidades de jornais paranaenses”. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 35, n. 2: 149-168.).

Dentre as pesquisas qualitativas, destacam-se aquelas que apontam os modos essencialistas de representação de negros, quase sempre associados às classes baixas, ao trabalho braçal, ao entretenimento - artistas e celebridades - e a atividades desportivas (Correa, 2006CORREA, Laura Guimarães. (2006), De corpo presente: o negro na publicidade em revista. Dissertação de Mestrado, Departamento de Comunicação Social da UFMG, Belo Horizonte.; Gastaldo, 2002GASTALDO, Édison Luís. (2002), “Negros jogam, brancos torcem: a ritualização das relações raciais na publicidade da Copa do Mundo”. Ilha - Revista Brasileira de Antropologia, v. 4, n. 2: 99-110.). Esses estudos são importantes na medida em que revelam que a representação da diferença - noutras palavras, a produção do outro - é peça fundamental na operação da branquitude. Beleli detecta algum grau de inclusão de modelos negros e negras na propaganda, mas quase sempre como forma de demarcação exótica da branquitude: o “branco”, como norma presumida pela propaganda, impõe a necessidade de marcar as cores escuras, explicitando o lugar de um “outro” distinto, que adquire relevância quando associado à sensualidade (Beleli, 2005BELELI, Iara. (2005), Marcas Da Diferença Na Propaganda Brasileira. Tese de Doutorado, Departamento de Sociologia da Unicamp, São Paulo.).

Na verdade, poucos trabalhos se concentram na análise interseccional de modelos pretos e pardos ao mesmo tempo em que identificam especificidades de gênero, o que acaba por revelar os estereótipos associados a homens não brancos sem levar em conta como mulheres negras são representadas. A análise que foca exclusivamente a representação de gênero na publicidade mostra a abundância de atribuição de papeis estereotipados para homens e mulheres. Porém, a maior parte das mulheres representadas em peças publicitárias é branca (Shinoda, 2017SHINODA, Luciana Messias. (2017), Padrões de Representação do Estereótipo do Gênero Feminino na Propaganda Brasileira. Dissertação de Mestrado. Departamento de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.). A exposição excessiva de mulheres brancas forja uma homogeneidade racial e transmite a ideia de que há uma experiência única do que é ser mulher (Currie, 1997CURRIE, Dawn H. (1997), "Decoding femininity advertisements and their teenage readers". Gender and Society, v. 11, n. 4, p. 453-477.), o que reproduz assimetrias sociais e torna invisíveis as vivências de mulheres não brancas. Goffman, por exemplo, destaca como mulheres (brancas) tendem a sempre aparecer escoltadas por seus supostos companheiros nas peças publicitárias, no entanto, Baker (2005)BAKER, Christina. (2005), “Images of women’s sexuality in advertisements: A content analysis of Black- and White - oriented women’s and men’s magazines”. Sex Roles, v.52, n. 1/2: 13-27. DOI: 10.1007/s11199-005-1190-y
https://doi.org/10.1007/s11199-005-1190-...
mostra como tal padrão raramente se aplica a mulheres negras. Ademais, nas poucas pesquisas quantitativas que consideram gênero, homens não brancos são representados em maior proporção do que mulheres pretas e pardas (Martins, 2009MARTINS, Carlos Augusto. (2009), Racismo Anunciado: o negro e a publicidade no Brasil (1985-2005). Dissertação de mestrado. Departamento de Comunicações e Artes / Escola de Comunicações e Artes da USP, São Paulo.).

A exigência social de investimento e preocupação com a aparência feminina é explorada na publicidade e tema importante para debater a feminilidade neste meio de comunicação. Entretanto, tanto a aparência quanto a feminilidade assumem diferentes proporções e sentidos ao se dirigirem a mulheres pretas e pardas (Sengupta, 2006SENGUPTA, Rhea. (2006), “Reading representations of black, east asian, and white women in magazines for adolescent girls”. Sex Roles, v. 54, n. 11-12: 799-808.). Portanto, as peculiaridades da representação deste grupo demandam atenção.

Poucas pesquisas são abrangentes e adotam uma perspectiva relacional em termos de raça e gênero. As raras exceções tendem a focar a representação de mulheres de diferentes raças (Baker, 2005BAKER, Christina. (2005), “Images of women’s sexuality in advertisements: A content analysis of Black- and White - oriented women’s and men’s magazines”. Sex Roles, v.52, n. 1/2: 13-27. DOI: 10.1007/s11199-005-1190-y
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; Hazell e Clarke, 2008HAZELL, Vanessa; CLARKE, Juanne. (2008), “Race and gender in the media: A content analysis of advertisements in two Mainstream black magazines”. Journal of Black Studies, v. 39, n. 1: 5-21.; Sengupta, 2006SENGUPTA, Rhea. (2006), “Reading representations of black, east asian, and white women in magazines for adolescent girls”. Sex Roles, v. 54, n. 11-12: 799-808.), ignorando como se constrói a representação de modelos masculinos. Os trabalhos citados apresentam análise sistemática da representação de mulheres negras e brancas em peças publicitárias. Os dois primeiros foram publicados em revistas dos Estados Unidos e o terceiro do Canadá. Vale notar que os padrões de construção da branquitude não são apenas relacionais em termos raciais, mas também no que toca o gênero, haja vista as profundas diferenças nos estereótipos associados a mulheres brancas ou negras, e a homens brancos ou negros. Analisar o fenômeno de modo relacional é, assim, importante para entender os mecanismos de visibilidade e representação adotados sistematicamente. Em outras palavras, a abordagem interseccional e relacional contribui para a compreensão de um quadro mais abrangente dos mecanismos de representação.

Temos que levar em conta também que o caráter relacional da branquitude aponta também para a necessidade de compreender sua operação nos diferentes contextos culturais e históricos nos quais ela ocorre. Assim, pesquisas produzidas a partir de dados empíricos dos países da América do Norte ou Europa funcionam como exemplos para comparação, mas não substituem a missão de decifrar a branquitude no Brasil. As pesquisas sobre publicidade que adotam essa ótica no Brasil são ainda muito raras. Em geral, são textos teóricos ou ensaísticos (Carrera, 2020CARRERA, Fernanda. (2020), “Raça e privilégios anunciados: ensaio sobre as sete manifestações da branquitude na publicidade brasileira”. Revista Eptic, v. 22, n. 1: 6-28.; Sovik, 2004SOVIK, Liv. (2004), “We are family: Whiteness in the Brazilian Media”. Journal of Latin American Cuitural Studies, v. 13, n. 3: 315-325.; Wottrich, 2019WOTTRICH, Laura. (2019), “Os embates em torno das representações da branquitude na publicidade brasileira”. In F. Leite & L. Leonardo Batista (Orgs.) Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios. São Paulo, ECA-USP: 289-310.), ressaltando aspectos da representação da branquitude na mídia. Entretanto, tais pesquisas não oferecem evidências empíricas sólidas para alicerçar seus argumentos acerca da construção da branquitude na publicidade brasileira. No presente texto pretendemos contribuir para preencher essa lacuna.

Metodologia

Para analisar os princípios de construção das personagens na publicidade brasileira, nos baseamos em uma pesquisa ampla sobre os anúncios publicitários da revista Veja, entre 1968 e 2017. Ao todo, foram compiladas 24.565 peças publicitárias. Utilizamos amostragem estratificada por meio do sorteio de uma edição da revista por mês ao longo do período especificado, a fim de evitar vieses de seleção. Todas as peças publicitárias foram examinadas, com ou sem personagens estampados.

A escolha da revista Veja se deve ao fato de esta ser o semanário de maior circulação nacional e de ser consumida por distintos segmentos da população brasileira. O público estimado é cerca de 49% de mulheres e 51% de homens, atingindo classes A (14%), B (41%), C (37%), e D/E (8%) - conforme a divisão de classes por renda praticada no ramo da publicidade.6 6 Nos três anos que precederam o final do nosso período de análise, isto é, 2014, 2015 e 2016, a revista Veja foi o semanário informativo de maior circulação nacional, com média de mais de 1,1 milhão de exemplares vendidos por semana, ao passo que Época, a segunda colocada, ficou na marca de 370 mil, Isto É, 320 mil e Carta Capital com míseros 25 mil. Acessível em: https://www.poder360.com.br/economia/revistas-em-2021-impresso-cai-28-digital-retrai-21/ O alcance da revista e o perfil de seu leitorado atraem grandes anunciantes, que por seu turno são atendidos por grandes agências de publicidade, as mesmas que estão à frente das tendências do mercado publicitário.

A fim de garantir o maior nível de coerência possível entre as respostas, foram realizadas sete rodadas de pré-teste. Essas foram etapas nas quais os mesmos anúncios foram codificados por meio de um formulário com perguntas fechadas e posteriormente discutidos pela equipe de bolsistas. Passada a fase de pré-teste, as revistas foram divididas pelos integrantes do grupo, que codificaram as revistas semanalmente. Ao final de cada codificação, os mestrandos verificaram as cinco primeiras e as cinco últimas respostas de cada revista. Ao todo, foram codificados 24.565 anúncios de modo sistemático, considerando variáveis como tipo de anunciante, número de modelos representados, atividade desempenhada pelo modelo na imagem, vestimenta utilizada, tipos de interação entre os personagens etc. As interações foram resumidas em cinco opções: amigável ou familiar, laborial, romântica, conflitiva ou outra. A equipe foi orientada a indicar a interação sobressalente entre os modelos, e em caso de dúvida, o caso era debatido entre os pesquisadores.

A codificação de gênero foi dividida entre transgênero, masculino, feminino e não identificável/dúvida. Preocupando-se ainda com a coerência nas respostas, a classificação racial das personagens dos anúncios foi um tema de especial cautela. Por ser uma construção social multifacetada, a raça apresenta um grau de fluidez a depender do fenótipo do indivíduo, apresentando casos que podem suscitar diferentes classificações por parte dos pesquisadores. Para evitar divergências, os pesquisadores que tiveram dúvida quanto à classificação racial foram orientados a “escurecer” os modelos, de modo a irmos contra a nossa hipótese, a fim de garantir a rigidez metodológica. A classificação racial seguiu os critérios do IBGE7 7 Para saber mais a respeito da classificação racial adotada pelo IBGE, acessar: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=284235 , com registros de amarelos, brancos, indígenas, pardos e pretos. Entretanto, para fins deste artigo, dividimos os grupos entre brancos e não brancos, sendo o último grupo de pretos e pardos. O percentual de indígenas e amarelos soma 1% do total.

A hegemonia branca nos anúncios

Os resultados mostram uma altíssima sobrerrepresentação de modelos brancos nos anúncios publicitários, oscilando em torno de 90% no decorrer das últimas cinco décadas. Já pretos e pardos perfazem aproximadamente 10% da amostra, como representado no Gráfico 1. A fim de avaliar a branquitude de modo relacional, focamos a separação entre brancos e não brancos, sendo os últimos a soma de pretos e pardos.8 8 A escolha de excluir os demais grupos dos gráficos seguintes se deveu ao seu percentual muito reduzido, facilitando, portanto, o entendimento dos gráficos e a análise dos processos de racialização de pretos e pardos.

Gráfico 1
Proporção de Brancos e Não Brancos nos Anúncios Publicitários (Série Temporal). Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

A série histórica representada acima mostra pouca variação ano-a-ano (baixa variância) e um declínio bastante acanhado da dominância dos brancos nos anúncios publicitários ao longo dos anos. Há mudanças sutis entre o fim da década de 1970 e início dos 1980, bem como nas primeiras décadas dos anos 2000. Pode-se conjecturar que essas variações se refiram a momentos específicos do contexto político brasileiro, como a abertura política democrática, no primeiro caso, e o advento das políticas de ação afirmativa e a consequente reconfiguração do debate racial, no segundo caso. Mas as variações são tão tímidas que essas análises não podem ir muito além de conjecturas.

Há um aumento gradativo de não brancos ao longo das décadas. Se em 1968 cerca de 7% dos modelos de anúncios eram não brancos, o número chega a 18% em 2017. Porém, o desequilíbrio dessas proporções adquire seu real significado quando levamos em conta o fato de a proporção de não brancos ter girado em torno de 50% ao longo de todo o período e hoje corresponder a 54% da população brasileira.9 9 Fonte: PNAD Contínua, dados coletados em março de 2020. Acessível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html Podemos concluir, mesmo nesse plano mais geral, que a raça é relevante, ainda que de maneira silenciosa, pelo simples ocultamento dos não brancos. Mesmo sem adentrar o conteúdo semântico desses anúncios, a presença massacrante de brancos já sinaliza para certa naturalização e universalização de sua condição naquilo que toca a representação do normal, do humano, ou mesmo do desejável e do modelar: a branquitude aparece visível a ponto de “saturar o campo” (Garner, 2007GARNER, Steve. (2007), Whiteness: an introduction. London, New York: Routledge., [p.34]), entretanto isso não é visto como valorização de um grupo em detrimento de outros, o caráter racial da representação é camuflado e naturalizado.

Os valores agregados no tempo das frequências das variáveis de raça e gênero mostram que homens brancos são a maioria dos modelos, com, em média, 52,5% do total, como apresentado no gráfico 2. Já as mulheres não brancas são o grupo menos representado, com somente 3,5%. Os dados confirmam a normalização de padrões estéticos, sobretudo no quesito racial. Isto é, ainda que gênero seja um fator de desigualdade que opera em ambas as raças, raça é um fator de desigualdade ainda mais intenso, que opera em ambos os gêneros. Com o decorrer dos anos, a diferença de representação numérica entre homens e mulheres foi sendo reduzida, enquanto a racial segue, com brancos quase cinco vezes mais representados do que os demais. Desse modo, a predominância do grupo ao longo dos anos indica a construção de representações de masculinidade e feminilidade fortemente perpassadas por uma estética branca (Dyer, 1997DYER, Richard. (1997), White. London, Routledge.).

Gráfico 2
Proporção de Gênero e Raça na Publicidade. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

Embora modelos brancos estejam representados de modo majoritário em todos os tipos de anúncios - exceto mulheres brancas em anúncios publicitários de ONGs -, chama a atenção a maior proporção relativa de homens e mulheres não brancos em anúncios de instituições públicas - com 21% e 12% - e estatais - 13% e 8%, respectivamente, como o gráfico 3 ilustra. Isso indica que houve um esforço dos governos de promover algum tipo de inclusão e diversidade em suas peças publicitárias, ao passo que a iniciativa privada continuou a prática de alto grau de exclusão racial em seus anúncios. O maior equilíbrio de gênero nos anúncios de empresas privadas se deve também ao direcionamento de parte de seus produtos ao público feminino, algo que raramente acontece em anúncios de órgãos públicos e de empresas estatais. Vale destacar que a maior parte das peças publicitárias são feitas por empresas privadas (92,3%), seguidas de anúncios de empresas estatais (3,3%), instituições públicas (2,4%), organizações não-governamentais (0,1%) e outras (1,9%).

Gráfico 3
Proporção de Modelos por Raça e Gênero por Tipo de Anunciante. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

Como os grupos são representados?

Não é apenas nos dados quantitativos brutos que a branquitude na publicidade se apresenta. Como já notava Goffman (1987)GOFFMAN, Erving. (1987), Gender Advertisements. New York, Harper Torchbooks., uma forma padronizada de representar as mulheres nos anúncios publicitários estadunidenses era raramente colocá-las sozinhas, mas sempre em relação com os homens, o que, em sua visão, transmitia a ideia de dependência do gênero feminino. Daí a importância de se analisar, também, a quantidade e diversidade de modelos representados nas peças publicitárias que representam cada um dos grupos raciais e de gênero considerados. O gráfico 4 apresenta a quantidade de modelos por peça, dando destaque individual a cada um dos grupos. A partir disso, observamos a tendência de mulheres e homens brancos terem maior destaque, pois preponderam nos anúncios que têm um ou dois personagens em cena. Já entre os não brancos, chama atenção o fato de as mulheres não brancas serem aquelas com maior presença em anúncios com muitos personagens em cena, com homens não brancos também alcançando alta proporção. Em outras palavras, além de aparecerem pouco, não brancos tendem a ser retratados em grupo, modo de representação que rouba sua individualidade e é condizente com a generalização categorial promovida pelas práticas de branquitude.

Gráfico 4
Proporção por Raça e Cor de Modelos Representados nos Anúncios, Estratificada por Número de Modelos por Peça. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

De modo geral, aparecer sozinho em uma peça gera maior destaque individual, enquanto estar com mais personagens ao redor, por sua vez, dilui tal destaque. A partir disso, observamos a tendência de mulheres e homens brancos apresentarem maiores porcentagens relativas, sobretudo quando há um ou dois personagens na peça. Já os não brancos, mulheres e homens, são aqueles com maior presença em anúncios com muitos personagens em cena, além de serem as menos presentes em peças com apenas um ou dois modelos.

Uma estratégia de representação que contribui para a invisibilização de pretos e pardos é a sua retratação em meio a um número grande de brancos, o que dilui a sua presença (Hasenbalg, 1982HASENBALG, Carlos. (1982), “O negro na publicidade”. In L. Gonzalez & C. Hasenbalg (Orgs.), Lugar de Negro, Rio de Janeiro, Marco Zero: 103-113.). A presença estratégica de um único negro em um grupo majoritariamente branco recebe o nome de “token” na literatura de fala inglesa (Niemann, 1999NIEMANN, Yolanda Flores. (1999), "The Making of a Token: A Case Study of Stereotype Threat, Stigma, Racism, and Tokenism in Academe". A Journal of Women Studies, v. 20, n. 1, p. 111-134.), no sentido de ser uma presença que representa a real ausência de uma categoria em um determinado contexto. Essa modalidade de representação foi apontada como uma forma de evitar a associação direta de não brancos ao produto, ao mesmo tempo em que emprestam às marcas uma aparência de modernidade e de apoio à diversidade (Colfax e Sternberg, 1972COLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18.).

No gráfico 5 a diferença reside em um detalhe relevante: mulheres brancas costumam ser três vezes mais representadas em interações românticas do que mulheres pretas ou pardas e nove vezes mais do que homens pretos ou pardos. Esse tipo de normalização do amor branco é coerente com estudos sobre o feito da raça no mercado matrimonial brasileiro (Neri, 2005NERI, Marcelo. (2005), Sexo, casamento e economia. Rio de Janeiro, FGV/IBRE.; Silva, 1987SILVA, Nelson do Valle. (1987), “Distância Social e Casamento Interracial no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, n. 14: 54-84.). Ademais, o fato de os homens não brancos serem de longe os menos representados em situações românticas levanta a possibilidade de operação de estereótipos racistas acerca da figura do homem negro, tema fartamente explorado na literatura acadêmica de língua inglesa (Trawalter et al., 2008TRAWALTER, Sophie; TODD, Andrew; BAIRD, Abigail; RICHESON, Jennifer. (2008), “Attending to Threat: Race-based Patterns of Selective Attention”. J Exp Soc Psychol., v. 44, n. 5: 1322-1327.), que poderiam ser melhor explorados em estudos futuros.

Gráfico 5
Distribuição da Proporção de Modelos Brancos e Não Brancos por Interação nos Anúncios. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

A pesquisa também averiguou em quais atividades os modelos eram representados nos anúncios, como indicado no gráfico 6. A diferença mais saliente se dá no efeito da variável raça sobre a representação em atividades de lazer, com os brancos atingindo uma média de quase 40% enquanto os negros não atingem 17% de média. Quando olhamos para a interação disso com o gênero notamos uma inversão, enquanto entre os brancos homens marcam 17,6 pontos percentuais acima das mulheres, entre os não brancos são as mulheres que sobrepujam os homens por 6,2 pontos percentuais. Aparentemente, na publicidade da Veja, lazer não é para não brancos e particularmente para homens não brancos.

Gráfico 6
Distribuição Percentual de Modelos por Atividade Desempenhada em Anúncios. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

Mas os homens negros marcam acima das outras categorias aqui analisadas em dois quesitos importantes: trabalho esportivo e trabalho braçal. Aqui novamente vemos evidência da operação dos estereótipos do negro esportista e do negro associado a atividades laborais de baixa remuneração e prestígio.

As mulheres brancas, por outro lado, estão em proporção reduzida nas representações de trabalho braçal e trabalho esportivo - 1% e 2%, respectivamente -, enquanto se mostram mais abundantes em atividades de lazer, 30%, ou simplesmente posando para a foto, 51,4%. A proporção de fotos nessa última situação é também bastante alta para as mulheres não brancas, 55,5%. Tais dados podem estar relacionados à construção de uma imagem de maior fragilidade atrelada à feminilidade, algo notado por Goffman em seu estudo supracitado (Goffman, 1987GOFFMAN, Erving. (1987), Gender Advertisements. New York, Harper Torchbooks.).

Como é possível observer no gráfico 7, as diferenças continuam a ser marcadas por um cruzamento das variáveis raça e gênero. Notemos as discrepâncias mais salientes. No geral, as mulheres são mais retratadas com vestimenta casual do que os homens, o que já denota a maior associação destes a atividades laborais, dado confirmado pela superioridade desse gênero no quesito uniforme de trabalho. Aqui, contudo, já aparece uma diferença racial, pois homens negros aparecem proporcionalmente duas vezes mais nesses uniformes que os brancos. Confirmando essa tendência, temos a representação em roupa empresarial ou esporte fino, associada a posições de poder, riqueza e status social: os homens brancos sobrepujam de longe as outras categorias, marcando 30 pontos percentuais.

Gráfico 7
Distribuição da Proporção de Tipo de Vestimenta de Modelos nos Anúncios Publicitários. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

Em concordância com os dados expostos nas atividades desempenhadas pelos modelos, os homens não brancos são mais representados com traje esportivo (17% contra 6% entre homens brancos), proporção que praticamente se inverte quando computamos os personagens retratados com uniforme de trabalho (16,5% contra 9% entre modelos masculinos brancos) - vale frisar que, de modo geral as profissões que aparecem com uniforme de trabalho representam empregos de baixa remuneração, com exceção de médicos, dentistas e pesquisadores de laboratório.

O gráfico 8 indica que a maior parte dos anúncios apresenta modelos desconhecidos para vender os produtos. Entretanto, o percentual de famosos é maior entre os homens não brancos. Essa pode ser uma estratégia para atenuar o estigma da raça, vinculando-a ao status da celebridade. A despeito do fato de o percentual de modelos famosos não brancos aumentar com o tempo, ao mesmo tempo em que a quantidade de pretos e pardos cresce na publicidade, ainda que timidamente, não podemos descartar que tal estratégia redunda em mitigação da representação do negro como homem comum. Pessoas não brancas reconhecidas pelo público são consideradas mais elegíveis para estampar peças publicitárias e gerar identificação dos possíveis consumidores, ao passo que pessoas negras comuns tem taxas de representatividade bastante inferior às dos brancos em atividades de prestígio social. Como afirmou um publicitário ao ser entrevistado, “as pessoas não querem ser negras, as pessoas querem ser o Pelé... e é com essa identificação que trabalhamos” (Beleli, 2005BELELI, Iara. (2005), Marcas Da Diferença Na Propaganda Brasileira. Tese de Doutorado, Departamento de Sociologia da Unicamp, São Paulo., [p.108]).

Gráfico 8
Percentual de Celebridades Entre os Grupos Separados por Raça e Gênero. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

A representação dos “Superbrancos”

Um indício do grau de branquitude da publicidade brasileira está não apenas na quantidade de brancos ou como eles aparecem representados, mas também no tipo de branquitude representada (e normalizada). Hasenbalg (1982)HASENBALG, Carlos. (1982), “O negro na publicidade”. In L. Gonzalez & C. Hasenbalg (Orgs.), Lugar de Negro, Rio de Janeiro, Marco Zero: 103-113. já havia notado os traços nórdicos de parte dos modelos representados na publicidade brasileira. Um estudo sobre a representação de tipos humanos em revistas de bordo de companhias aéreas brasileiras confirmou a ocorrência abundante desse tipo de representação, chamando esses personagens de “superbrancos”, indivíduos “loiros, ruivos e/ou com olhos azuis ou verdes” (Feres Júnior; Martins, 2017FERES JÚNIOR, João; MARTINS, Cleissa Regina. (2017), "Gênero e Raça nas Revistas de Bordo". Textos para discussão GEMAA, n. 15, 2017, pp. 1-19.). Embora não sejam o grupo majoritário dentre os brancos representados na nossa amostra, notamos um aumento constante de superbrancos ao longo das décadas, marcadamente entre as mulheres. Há, portanto, não somente uma manutenção do padrão detectado por Hasenbalg, mas uma intensificação do apelo estético supremacista no gênero feminino.

O gráfico 9 mostra como há representação mais acentuada de superbrancos, particularmente de mulheres superbrancas. Isso sugere a associação da brancura à beleza e a noções de respeitabilidade. Ademais, tal prática corresponde também à quinta definição de branquidade, isto é, aquela que opera dentro do próprio grupo (brancos) criando hierarquias (Garner, 2007GARNER, Steve. (2007), Whiteness: an introduction. London, New York: Routledge.).

Gráfico 9
Distribuição da Proporção de Superbrancos por Gênero em Relação a Modelos Brancos nos Anúncios. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

Não é apenas a relativa escassez de “superbrancos” na população brasileira que torna esse fato relevante, mas a curiosa associação dele com a presença de negros. Parece que o investimento de parte da publicidade privada em “superbrancos” vem sendo “compensado” por um investimento contrário da publicidade social na retórica da diversidade. E tal processo pode estar ligado àquilo que Colfax e Sternberg (1972)COLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18. chamam de “tokenização” dos processos de inclusão racial na mídia, isto é, a introdução limitada de membros individuais de grupos não brancos nas peças publicitárias como representantes suficientes de todo o grupo.

Aqui a representação do negro lhe dá alguma visibilidade, mas a composição predominantemente branca dos grupos nos quais ele é representado reitera, por um lado, seu status de minoria e, por outro lado, evita a possibilidade de que ele seja identificado de perto com um determinado produto na mente do público branco.10 10 No original: “Here the representation of the black gives him some visibility, but the predominantly white composition of the groups in which he is depicted reiterates his minority status, on the one hand, and averts the possibility that he might become closely identified with a particular product in the minds of the white audience, on the other”. Tradução dos autores do artigo. (Colfax e Sternberg, 1972, pCOLFAX, David.; STERNBERG, Susan Frankel. (1972), “The Perpetuation of Racial Stereotypes: Blacks in Mass Circulation Magazine Advertisements”. The Public Opinion Quarterly, v. 36, n. 1: 8-18..13)

O gráfico 10 exibe a proporção de superbrancos e de não brancos nas peças publicitárias ao longo dos anos. Nele observamos que o percentual de superbrancos aumenta com o tempo, acompanhando o crescimento de modelos não brancos. Em alguns anos, o percentual de modelos superbrancos chega a ultrapassar o percentual de não brancos na publicidade, como é o caso de 1986 e 2016. Isso pode ser interpretado como um mecanismo de atenuação da presença de corpos pretos e pardos na publicidade, “compensados” com o recrutamento quase proporcional de superbrancos. Não estamos postulando aqui uma intencionalidade nesse processo, mas sim mecanismos culturais e institucionais complexos que acabam por produzir resultados prenhes de desigualdades.

Gráfico 10
Proporção de Superbrancos em Relação a Não Brancos nos Anúncios. Fonte: elaboração própria dos autores, com base no projeto Diversidade Racial e de Gênero na publicidade brasileira (GEMAA).

Considerações Finais

Os debates sobre as desigualdades raciais marcaram o Brasil e o mundo a partir do fim dos anos 1970. As medidas para a redução dessas disparidades abrangem de leis antidiscriminatórias a políticas de ação afirmativa nas universidades, no funcionalismo público, na política formal e em diversas outras esferas da sociedade. Até mesmo empresas privadas têm envidado esforços para reduzir as disparidades raciais no seu interior.11 11 O caso mais notório foi o do programa para trainees negros da varejista Magazine Luiza: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/magazine-luiza-abre-programa-de-trainee-exclusivo-para-pessoas-negras.shtml.

Mas apesar do otimismo de alguns analistas do tema (Fry, 2002FRY, Peter. (2002), “Estética e política: relações entre raça, publicidade e produção da beleza no Brasil”. In M. Goldenberg (org.) Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca, Rio de Janeiro/ São Paulo, Record: 295-318.), a publicidade parece imune a esses avanços. A proporção de negros nos anúncios analisados permaneceu quase constante do fim da década de 1960 para cá, bem como a posição dos (poucos) negros e negras em seu interior. Nesse sentido, a publicidade brasileira parece ainda reproduzir princípios de branquitude no qual pessoas brancas são colocadas como padrão de normalidade e representantes fundamentais da nossa sociedade. As mudanças raciais aqui foram mínimas e, mesmo quando ocorreram, vieram acompanhadas de imagens estereotipadas de negritude. Brancos e brancas não apenas são maioria, como também aparecem mais associados a produtos de beleza, artigos de luxo e marcadores de prestígio social. As poucas seções em que negros têm algum destaque são aquelas relacionadas à publicidade filantrópica, estatal ou desportiva.

Ainda que isso não valha para as distinções de gênero, onde as mudanças quantitativas são visíveis, há uma relativa estabilidade também dos estereótipos de gênero expressos na renitente associação entre a feminilidade e produtos de beleza, por exemplo. Mas é na abordagem interseccional que esses padrões se revelam ainda mais marcantes. Mulheres negras compõem o menor de todos os coortes e, quando são representadas nas peças, o são quase sempre em grupos. Sua presença está quase sempre restrita a propagandas com apelo esportivo ou ligadas à filantropia e à ação estatal.

As análises quantitativas e de padrões de representação mostram como os brancos são lidos como símbolo do que é desejável e passível de identificação para o público: seja pela sua sobrerrepresentação nos anúncios, seja por meio das vestimentas e pelas atividades desempenhadas pelos modelos, que traduzem prestígio social. Mesmo sem adentrar o conteúdo semântico desses anúncios, a presença massacrante de brancos já aponta para certa naturalização e universalização de sua condição naquilo que toca a representação do normal, do humano, ou mesmo do desejável e do modelar: a branquitude aparece visível a ponto de “saturar o campo”, como propõe Garner (2007, [p.34]). Entretanto isso não é explicitado como valorização de um grupo em detrimento de outros, o caráter racial da representação é camuflado e naturalizado. Desse modo, a publicidade representa a branquitude como neutra e universal, enquanto marginaliza pretos e pardos.

Personagens não brancos, por seu turno, estão presentes quase sempre em situações específicas e homogeneizantes, o que por sua vez, leva à sua desumanização. É a “normatividade branca” (Silva et al., 2012SILVA, Paulo Vinícius Baptista Da; ROCHA, Neli Gomes Da; SANTOS, Wellington Oliveira Dos. (2012), “Negras(os) e brancas(os) em publicidades de jornais paranaenses”. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 35, n. 2: 149-168., [p.162]) que de certo modo filtra aquilo que é representado. Uma vez que a branquitude se manifesta como norma, resta aos demais grupos a associação a atividades e circunstâncias específicas, como os esportes ou imagens relacionadas à assistência social.

Outro dado significativo diz respeito à interação dos modelos: pretos e pardos aparecem proporcionalmente mais em interações conflitivas e de trabalho e menos em interações românticas ou familiares, se comparados aos brancos. Ademais, enquanto os modelos brancos vestem trajes que sinalizam alto status social - como roupa empresarial e esporte fino -, as personagens não brancas utilizam vestimentas que sugerem condições ocupacionais subalternas. As roupas são mais um marcador social associado à raça e gênero na representação dos grupos nas propagandas. Outra construção de alteridade detectada é a representação de indivíduos pretos e pardos em meio a um grupo de pessoas brancas.

Tudo isso mostra como a publicidade pouco avançou em termos de diversidade racial ao longo do período estudado (1968-2017). O dado que coroa essa análise é o da proporção crescente de superbrancos na publicidade, sobretudo entre as mulheres, o que indica a associação direta entre branquitude e beleza. O aumento contínuo de superbrancos nos anúncios teria alguma relação com o crescimento ainda que tímido da proporção de modelos não brancos nas peças publicitárias? Tal questão merece ser explorada em futuras oportunidades.

Pode-se argumentar que a publicidade reflete esses padrões porque expressa os anseios de seu mercado consumidor. No entanto, além de partir de uma visão simplória de como os desejos e hábitos de consumo são formados - afinal, uma das funções precípuas da publicidade é justamente formá-los e transformá-los (Schudson, 1984SCHUDSON, Michael. (1984), Advertising, The Uneasy Persuasion: Its Dubious Impact on American Society. New York, Basic Books.; Beleli, 2005BELELI, Iara. (2005), Marcas Da Diferença Na Propaganda Brasileira. Tese de Doutorado, Departamento de Sociologia da Unicamp, São Paulo.) -, esse argumento ignora regulações que incidem sobre a publicidade no Brasil. Seja por conselhos de regulamentação dos anúncios, seja por leis e regulamentos específicos, a publicidade é há muito tempo vista como espaço importante na difusão de hábitos e valores, com decorrências políticas e sociais. Ela é uma atividade que tem por objeto o público e, portanto, deve ser condicionada por normas públicas. Há que se questionar se critérios antidiscriminatórios mais fortes não deveriam também ser levados em conta em um mundo publicitário que não é apenas majoritariamente branco e masculino, mas que parece permanecer assim há décadas.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer a equipe editorial da RBCS, bem como os pareceres anônimos. Os dados aqui analisados foram produzidos pela equipe do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), nominalmente André Felix, Marcell Machado, Raissa Imani, Águida Bessa, Beatris Lima, Caroline Serodio, Gizelle Marques, Luisa Calixto, Vivian Nascimento e Yan Aguiar

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2022
  • Aceito
    26 Mar 2023
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