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Disputas, alianças e políticas de resistência: os direitos LGBTI+ no Brasil atual

Disputes, alliances and resistance policies: LGBTI+ rights in Brazil today

FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins. 2020. Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp

Os agentes da mudança já afluíram às ruas e ocuparam as praças da cidade, não só ameaçando e derrubando os governantes, mas também evocando visões de um novo mundo.

Negri e Hardt, 2016, p. 9

As profundas mudanças pelas quais a sociedade brasileira passou nos últimos 20 anos não podem ser entendidas sem que se dimensione o lugar político que as discussões sobre gênero e sexualidade passaram a ocupar no debate público. As reações conservadoras às conquistas e aos avanços obtidos na agenda de gênero não tardaram e se avolumaram no que chamamos hoje de ofensiva antigênero. Trata-se de um fenômeno global, mas com particularidades locais (Irineu et. al., 2022IRINEU, Bruna Andrade; SANTOS, Catarina de Almeida; HERNÁNDEZ, Franklin Gil. (2022), Guerras antigênero: batalhas morais e políticas de ódio. In: Anais do VIII Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, IV Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade e IV Luso-Brasileiro Educação em Sexualidade, Gênero, Saúde e Sustentabilidade. Campina Grande (PB), p. 08-15. Disponível em https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/92252 consultado em 26/04/2023.
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).

No Brasil, os discursos reacionários encontraram respaldo institucional durante a presidência de Jair Bolsonaro e, talvez não seja exagerado dizer, que sua eleição se deveu em boa parte à agenda moral que se sustentou no sintagma ideologia de gênero. Termo que, conforme Junqueira (2017)JUNQUEIRA, Rogério Diniz. (2017), ““Ideologia de Gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária - ou: a promoção dos direitos humanos tornou-se uma “ameaça à família natural”?”, in P.R. RIBEIRO & J.C. MAGALHÃES (org.), Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade, Rio Grande, Ed. Furg., surgiu entre meados de 1990 e 2000, em sintonia com o catecismo do Papa João Paulo II, produzindo uma retórica antifeminista de cunho neofundamentalista católica. Na América Latina passa a circular a partir de 2010, através de uma publicação de um leigo que reage aos avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos (Junqueira, 2017JUNQUEIRA, Rogério Diniz. (2017), ““Ideologia de Gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária - ou: a promoção dos direitos humanos tornou-se uma “ameaça à família natural”?”, in P.R. RIBEIRO & J.C. MAGALHÃES (org.), Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade, Rio Grande, Ed. Furg.).

Como observam Vieira Júnior e Pelúcio (2020VIEIRA JUNIOR, Luis Augusto Mugnai; PELÚCIO, Larissa. (2020), “Memes, fake news e pós-verdade ou como a teoria de gênero vira uma “ideologia perigosa””.Estudos De Sociologia, 25, 48: 87-113. DOI: https://doi.org/10.52780/res.13447
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, p. 92), a maior ironia da nominação é que “o próprio argumento de seus adeptos é tão ideológico quanto o que eles criticam”, já que argumentam que debater gênero e sexualidades nas escolas incidiria na destruição da família, heterossexual e procriativa. Assim, o sintagma ideologia de gênero passa a reunir uma vasta pauta moral, congregando descontentes com as mudanças promovidas pelas conquistas do ativismo de diversidade sexual e de gênero.

As transformações provocadas pelos movimentos feministas e LGBTI+ evocam “visões de um novo mundo” e, não atoa, são um exemplo do que explicitam Negri e Hardt (2016)NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. (2016), Declaração - Isto não um manifesto. Tradução de Carlos Szlak. 2ª edição, São Paulo, N-1 edições. na citação que abre esta resenha. Tomo de empréstimo o trecho destacado na epígrafe, como um prognóstico do que a leitora e o leitor encontrarão na coletânea “Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo”, organizada por Regina Facchini e Isadora Lins França. O livro expressa esforços de pesquisadoras e pesquisadores de distintas áreas de conhecimento em refletir sobre a diversidade sexual e de gênero nesses tempos coléricos marcados pelo recrudescimento do conservadorismo.

Velhos pânicos morais foram reatualizados de maneira vigorosa. Valendo-se de um ecossistema de desinformação, as chamadas fakes news recolocaram a "ameaça comunista" na ordem do dia, associada à ideia de "fim da família" e, até mesmo, de "ditadura gayzista". O governo Bolsonaro fortaleceu um populismo que se caracteriza por seu perfil: a) antigênero, com políticas estatais de manutenção da ordem binária de gênero; b) antidiversidade, estimulando o ódio à pessoas LGBTI+, indígenas e à população negra; c) de militarização e punitivismo, nas politicas educacionais e de segurança pública; d) pró-meritocracia e antidireitos sociais, se expressando contra as politicas sociais, como cotas, distribuição de renda e o auxilio emergencial na pandemia de covid-19; e) submisso ao capital financeiro e ao mercado, promovendo contrarreformas, políticas favorecendo empresários e, durante a pandemia, buscando lucrar com as vacinas; f) de radicalização autocrática, com o número expressivo de militares na gestão do governo; e, por último, g) negacionista, em relação à ciência e por sua programática baseada na proliferação de notícias falsas e postura na pandemia.

Publicada em 2020, ano em que vimos emergir a pandemia de covid-19, a obra é dividida em cinco seções que costuram os 20 capítulos da Coletânea. O livro surge em um cenário trágico de regressão nos direitos sociais e ameaças à liberdade de cátedra, de tal forma que a segunda parte da obra - “Estado, direitos e políticas públicas” - dialoga diretamente com o momento de sua publicação, assim como a quinta seção - “Saúde, processos de regulação e de cuidado” - soa ainda mais oportuna.

As seções “Ciência, política, diferença e processos de mudança”; “Corpos, sujeitos e movimentos”; e “Conservadorismo, política sexual e educação”, reúnem artigos que trazem reflexões, fruto de pesquisas acadêmicas sobre o processo de cidadanização LGBTI+ no Brasil, ora remetendo-se a enquadramentos que antecedem a ascensão do bolsonarismo, ora discutindo os desmontes ocasionados pelo projeto antidemocrático que estabeleceu no Brasil uma “política antigênero e antisexualidade”, como aponta Bulgarelli (2020)BULGARELLI, Lucas. (2020), “Das políticas de gênero e sexualidade às políticas antigênero e antisexualidade no Brasil”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. no texto “Das políticas de gênero e sexualidade às políticas antigênero e antisexualidade no Brasil”.

As políticas sexuais perfazem e se entrecruzam às políticas do corpo, um corpo que é antes de tudo território político, no qual se fundam as lutas em torno do reconhecimento da diferença. Como aprendemos com Foucault (2007, pFOUCAULT, Michel. ([1979] 2007), Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 24ª edição, Rio de Janeiro, Graal.. 147): “nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder”. É, portanto, sob os corpos que se engendram as marcas da violência, seja nas mortes de LGBTI+ contadas pelos movimentos sociais, como descreve Coacci (2020)COACCI, Thiago. (2020), “Contando as mortes: coproduzindo gênero, conhecimento e política no movimento trans”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. no segundo capítulo da Coletânea - “Contando as mortes: coproduzindo gênero, conhecimento e política no movimento trans” - ou na desproteção que reside nas estruturas socioeconômicas, biomédicas e jurídicas denunciadas pelos sujeitos políticos. Essas denúncias e enfrentamentos coletivos estão narrados e discutidos nos artigos de Prado e Queiroz (2020)PRADO, Marco Aurélio M.; QUEIROZ, Isabela Saraiva de. (2020), “Sexualidades, drogas e religião: práticas atualizadas da “cura gay” no Brasil”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp., intitulado “Sexualidades, drogas e religião: práticas atualizadas da “cura gay” no Brasil”, bem como nas contribuições de Freitas e Machado (2020)FREITAS, Janaína; MACHADO, Paulo Sandrine. (2020), “Intersexualidades, bioética e negociações técnico-políticas”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. em “Intersexualidades, bioética e negociações técnico-políticas”.

Simões (2020)SIMÕES, Júlio. (2020), “Prefácio: diferenças, disputas, esperanças”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp., ao prefaciar a obra, indica que nos últimos dez anos o sentido atribuído aos “direitos humanos” e à “justiça social” fora disputado e reposicionado em favor da meritocracia e da desumanização de sujeitos coletivos, que estiveram peremptoriamente sob acusação por ameaçar valores e arranjos tradicionais. Ao mesmo tempo, as configurações, expressões e experiências LGBTI+ estão mais incorporadas no cotidiano da sociedade. Para Simões (2020)SIMÕES, Júlio. (2020), “Prefácio: diferenças, disputas, esperanças”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp., com quem concordo, o livro é um convite à esperança, ainda que, em todos esses anos de lutas e embate no e com o Estado, os retrocessos sempre tenham estado à espreita, como discutem Mello e Braz (2020)MELLO, Luiz; BRAZ, Camilo. (2020), “Entre o desmonte e a resistência: reflexões críticas sobre cidadania, direitos humanos e políticas públicas para a população LGBTT no Brasil contemporâneo”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. no capítulo “Entre o desmonte e a resistência: reflexões críticas sobre cidadania, direitos humanos e políticas públicas para a população LGBTT no Brasil contemporâneo”, e Silvia Aguião (2020)AGUIÃO, Silvia. (2020), “O processo de (re)fazer-se no Estado, leitura de um ciclo da constituição da população LGBT(I+) no Brasil”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp., em "O processo de (re)fazer-se no Estado, leitura de um ciclo da constituição da população LGBT(I+) no Brasil".

Não há como falar de políticas públicas e Estado sem considerar o neoliberalismo como uma marca do presente. Como afirma Butler (2020)BUTLER, Judith. (2020), Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., é a racionalidade neoliberal que vem estruturando cada vez mais as instituições e os serviços públicos, precarizando vidas, mesmo quando estas alcançam o campo dos direitos, como discutem Teixeira et al. (2020)TEIXEIRA, Flávia do Bonsucesso; PEREIRA, Pedro Paulo Gomes; RAIMONDI, Gustavo Antonio; PRADO, Marco Aurélio Máximo. (2020), “Formas de cuidado como violência: AIDS, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. em “Formas de cuidado como violência: AIDS, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras”. Criminalizar e punir tem sido, muitas vezes, a lógica que orienta profissionais do cuidado, imersos nos ritos e fluxos administrativos de um atendimento em saúde.

Quando o neoliberalismo revela toda sua força reacionária, a ineficiência administrativa se torna apenas mais um elemento na execução de políticas conservadoras, como argumentam Junqueira et al. (2020)JUNQUEIRA, Rogério Diniz; CÁSSIO, Fernando; PELLANDA, Andressa. (2020), “Políticas educacionais de gênero e sexualidade no Brasil 2020: enquadramentos e enfrentamentos”, in R. FACCHINI, & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. em “Políticas educacionais de gênero e sexualidade no Brasil 2020: enquadramentos e enfrentamentos”. O repertório reacionário se disseminará a despeito do funcionamento administrativo estatal, por outras instituições como a família e as comunidades religiosas.

De maneira geral, os capítulos sinalizam que os processos de mudança, que marcam a cidadanização LGBTI+ no país, se desenvolvem: (1) quando extrapolam as demandas por direitos sexuais e reprodutivos; (2) pelo confronto aos limites normativos do próprio Estado; e (3) coproduzindo saberes, cuidados e resistências plurais. O livro também historiciza e documenta a formação dessas resistências.

Marcos históricos são reavivados em alguns capítulos do livro, entre esses: a constituição de uma imprensa gay a partir do Jornal Lampião de Esquina e a fundação do Grupo Somos, do Triângulo Rosa, bem como a formação de coletivos exclusivamente lésbicos e outros que registraram a entrada das travestis protagonizando pautas específicas. Nessa retomada, não tem como deixar de fora a epidemia do HIV/AIDS, que teve como um de seus efeitos menos deletérios a emergência de um diálogo com o Estado.

Os textos reunidos por Facchini e França (2020)FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins. (2020), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. registram também os avanços: a consolidação das paradas do orgulho e sua capilarizaçao para contextos interioranos; as demandas engavetadas no Legislativo; e, por consequência, o investimento no diálogo com o Executivo para a criação de políticas, conselhos, conferências e programas específicos. Nessa esteira, perfazendo politicamente esse ciclo da constituição LGBTI+ como sujeitos de direitos, assistimos a consolidação dos estudos de diversidade sexual e gênero nas universidades como um campo de produção de conhecimento; e a incidência no Judiciário, que logrou decisões favoráveis ao matrimônio, criminalização da homofobia, retificação de registro civil de pessoas trans e a doação de sangue por homossexuais masculinos. Do mesmo modo, um amplo vocabulário para significar as experiências fora da cis-heterossexualidade se disseminou e passou a ser incorporado até mesmo pela imprensa mainstream e não pôde mais ser ignorado por grupos conservadores.

Chegamos à segunda década deste século com os ativismos LGBTI+ reconfigurados. Entre esses redesenhos, temos a ampliação do ativismo travesti e de mulheres transexuais, somado posteriormente à emergência das transmasculinidades e do ativismo bissexual. Paralelamente, se formam e se consolidam organizações de pessoas intersexos e, mais recente, de pessoas não binárias.

Além disso, as agendas LGBTI+ passam a se encontrar com as lutas antirracistas, anticapacitistas, contra a corponormatividade, o etarismo e a sorofobia. Novas alianças se consolidam com fortalecimento da defesa da diversidade sexual e de gênero entre conselhos profissionais e sindicatos, destacando-se também o surgimento de setores religiosos pró-diversidade, e de pais e mães em defesa da vida de filhos e filhas LGBTI+. Ao mundo, é permitido ver o quanto a solidariedade pode ser poderosa quando as lutas antirracistas, anticapitalistas, trans, queer e indígenas se coproduzem em aliança (Butler, 2020BUTLER, Judith. (2020), Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.).

Em "Viver, Brilhar e Arrasar: resistências e universos criativos entre pessoas negras, e LGBT+ em São Paulo”, França e Ribeiro (2020)FRANÇA, Isadora Lins; RIBEIRO, Bruno Nzinga. (2020), “Viver, Brilhar e Arrasar: resistências e universos criativos entre pessoas negras, e LGBT+ em São Paulo”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp., etnografam essas alianças, presentes também no texto de Marques (2020)MARQUES, Roberto. (2020), “Feminismos, coalizões e emergência de sujeitos políticos - participação de gays, bissexuais e homens trans na frente de mulheres dos movimentos do Cariri (CE)”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp., “Feminismos, coalizões e emergência de sujeitos políticos - participação de gays, bissexuais e homens trans na frente de mulheres dos movimentos do Cariri (CE)”.

Todo esse percurso demonstra a capilaridade dos sujeitos políticos LGBTI+, a pluralidade de demandas e de novas identidades. Corpo e emoção confluem anunciando novas figuras da subjetividade cujas formas de participação excedem o individualismo e o corporativismo tipicamente (neo)liberais, nos termos de Negri e Hardt (2016)NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. (2016), Declaração - Isto não um manifesto. Tradução de Carlos Szlak. 2ª edição, São Paulo, N-1 edições..

A esperança, enquanto necessidade ontológica e ato político necessário para recriação do mundo ou de um novo mundo, como escrevem Negri e Hardt (2016)NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. (2016), Declaração - Isto não um manifesto. Tradução de Carlos Szlak. 2ª edição, São Paulo, N-1 edições., precisa da prática política para se concretizar e não se tornar uma espera vã ou desespero (Freire, 1992FREIRE, Paulo. (1992), Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.). A trilha do ativismo LGBTI+ brasileiro, nesses 45 anos, foi feita de conquistas e retrocessos, bem registrados nessa robusta Coletânea. Mas como nos ensina a perspectiva freiriana: “não há mudança sem sonho, assim como não há sonho sem esperança” (Freire, 1992, pFREIRE, Paulo. (1992), Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.. 87).

A esperança, como sentimento inerente à subjetividade humana, e o corpo, como território da prática política, comungam possibilidades de aprendizagem emocional e reorganização social do sofrimento, como sinaliza Facchini (2020)FACCHINI, Regina. (2020), “De homossexuais a LGBTQIAP+: sujeitos políticos, saberes, mudanças e enquadramentos”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp. no capítulo de abertura do livro. A leitura nos conduz por esse tempo-espaço que delineia a “arena” e o “campo” em torno da diversidade sexual e de gênero, mas também registra como esse novo mundo foi se construindo, apesar dos discursos de ódio, da burocratização do acesso a direitos e da banalização da vida que marcaram os anos do governo Bolsonaro. Um tempo também marcado pela construção de alianças (Butler, 2020BUTLER, Judith. (2020), Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.) entre as diversas lutas sociais e pelo reavivamento do cuidado como uma agenda da política de gênero.

Dean Spade (2021)SPADE, Dean. (2021), Apoio mútuo - construindo solidariedade durante essa crise (e a próxima). Porto Alegre, Criação Humana. tem defendido a ideia de mutual aid (apoio mútuo, em português), como um caminho importante para as lutas LGBTI+. Ele aponta que o apoio mútuo - que se diferencia radicalmente da caridade - se realiza quando provemos condições materiais para sobreviver aos sistemas existentes e, ao mesmo tempo, direcionados à construção de um movimento. Assim, estabelece-se uma participação consistente nas lutas sociais por diversidade sexual e de gênero, e não “engajamentos capilares”, pontuais e oportunistas, envolvendo uma construção real de segurança e bem-estar em meio a tantas catástrofes que estamos vivendo e que ainda viveremos. Portanto, é na potência das alianças e do cuidado mútuo que os “corpos-bandeira” (Facchini, 2020FACCHINI, Regina. (2020), “De homossexuais a LGBTQIAP+: sujeitos políticos, saberes, mudanças e enquadramentos”, in R. FACCHINI & I. FRANÇA (org.), Direitos em disputa: LGBTI+ poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, Editora da Unicamp.) reatualizam utopias e esperanças para construção de um novo mundo.

BIBLIOGRAFIA

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2023
  • Aceito
    30 Maio 2023
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