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APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

Dádiva e solidariedades urbanas

Para os diferentes campos do saber, não há dúvida de que a teoria é uma simplificação abusiva, porém útil para conhecermos os fenômenos que nos interessam. Mesmo se, algumas vezes, e de forma equivocada, possamos argumentar que ela seria apenas uma representação arbitrária da realidade. Da mesma maneira, podemos também argumentar que a maior parte das teorias é tão interessante para compreendermos a realidade como o desenho de uma cidade, cujas leituras terminam aos poucos por nos serem familiares e quase naturais (mesmo que pareçam enigmáticas).

Para as teorias do mundo social podemos ainda levantar uma característica adicional: a diversidade das possibilidades de olhar a realidade e a conseqüente pluralidade de paradigmas e de conceitos findam, muitas vezes, por dificultar o alcance de uma abordagem consensual ou, ao menos, convincente. Se quisermos estabelecer uma analogia, basta nos debruçarmos sobre a tradicional distinção entre valor e preço, feita por Marx, e que é motivo de polêmicas infindáveis sobre o status teórico de um e outro conceito. Pois bem, são justamente estes diferentes níveis de abstração que muitas vezes tornam a teoria um elemento de difícil domínio para os não iniciados, e que a diferencia, sobremaneira, daquilo que o senso comum considera "verdade".

Particularmente, os estudos urbanos detêm, ao nível teórico, algumas dificuldades conceituais, pois os vários níveis de abstração fazem do conceito de "urbano" algo impreciso e pouco operacional. O problema é tão ou mais complexo quando se sabe que são inúmeros os campos do conhecimento que têm o urbano como objeto, cada qual utilizando o seu instrumental específico. De fato, o urbano como a cidade são objetos teóricos e empíricos de várias disciplinas do conhecimento. Especialmente no campo das ciências humanas — Sociologia, Antropologia e Economia —, eles são vistos como partes de um conceito largamente impreciso. Talvez por simplificação, os estudos centram atenção no aspecto físico/territorial, buscando a síntese de uma definição que atenda às necessidades de práticas de pesquisa. Particularmente, dois de nossos clássicos — Karl Marx e Max Weber — consideram o urbano e a cidade sinônimos, tratando-os como aglomeração de pessoas em territórios restritos. Marx (1998), caracterizando-os como lugar da produção industrial no capitalismo, e Weber (1999), tratando-os como lugar de mercado, onde as relações de vizinhança seriam o fato sociológico por excelência. A Antropologia, apenas posteriormente, se ocupou mais detidamente do assunto, quando se tornou inexorável a urbanização das populações humanas, independente de seu grau de desenvolvimento e de complexidade social; mas também a Antropologia terminou por absorver as duas referências citadas, sem oferecer uma solução alternativa plenamente convincente.

De fato, tanto a Sociologia como a Antropologia enfrentam permanentemente o dilema da nãoresolução da dicotomia tradicional/moderno a partir do urbano. Embora a cidade seja vista como espaço da modernidade por excelência, o enfoque socioantropológico não pode suprimir a evidência dos fatos, a saber, que as diferentes manifestações de relações sociais modernas convivem necessariamente com aquelas tradicionais. Estes exemplos dão conta das dificuldades em tratar o fenômeno nas ciências sociais. Vamos, portanto, nos deter em algumas reflexões de cunho teórico, procurando nos aproximar de uma definição menos problemática de "urbano", preferindo tratá-lo como um conceito abstrato que tem na "cidade" a sua manifestação concreta à semelhança do "valor" e do "preço" procurando inseri-lo na problemática deste nosso número temático.

Cidade, Economia e Sociologia

Tradicionalmente, a cidade ocidental é pensada como produto da industrialização e que, por conseguinte, em razão da necessidade de força de trabalho para a indústria, atrairia estruturalmente populações à procura de emprego. Porém a força de atração da cidade sobre populações espalhadas pelo campo é sem dúvida universal e ultrapassa a existência de atividades industriais. São os caso de sociedades com baixo nível de produção industrial e elevado índice de urbanização, como pode ser constatado em várias regiões da América Latina e da África, sobre as quais pode-se falar em urbanização sem industrialização (num questionamento objetivo da correlação mecânica entre uma e outra).

Entretanto, mesmo se a urbanização dependa, em suas características mais essenciais, de condições e fatores históricos preexistentes ao desenvolvimento industrial ou mesmo de elementos amplamente independentes de concentração industrial e de emprego na manufatura — o caso, por exemplo, de cidades capitais não é fora de propósito considerar o fenômeno de urbanização como um dado "cultural" no sentido em que impregna as mentalidades individuais, independente de serem do campo ou da cidade. A circulação de valores novos, quais têm nas cidades sua origem, talvez esteja na base da importância que se deva dar ao espaço urbano como núcleo difusor de inovações tanto na produção econômica, como também, e, sobretudo, na simbólica. Esta consideração adquire maior pertinência se olharmos o fantástico desenvolvimento dos meios de comunicação nos últimos anos do século XX e que alterou radicalmente as noções de tempo e espaço. Ao mesmo tempo, tais noções constituem dimensões particularmente estratégicas para refletirmos sobre a universalização simultânea de experiências alternativas ao padrão utilitarista e individualista atualmente hegemônico.

Além do mais, podemos argumentar que toda e qualquer sociedade procura sempre resolver problemas materiais substanciais, mas que nem todas os administram da mesma maneira; o econômico, por exemplo, seria o ato de escolher em situações de raridade expressando formalmente o desejo de economizar recursos materiais raros. Mas esta afirmação não é consensual. Karl Polanyi (1983), por exemplo, considera, de forma incisiva, não ser a raridade algo natural, que ela é uma criação do mercado sendo, por conseguinte, uma criação cultural. Por conseguinte, é apenas no interior de operações mercantis que os indivíduos têm de escolher entre coisas "raras". Se agregarmos a esta concepção a tese weberiana segundo a qual a "cidade" ocidental é um lugar propriamente de mercado (Weber, 1973), iremos perceber por que a dimensão econômica predomina nas interpretações sobre a constituição do urbano, mesmo no interior dos estudos sociológicos.

Mas se os dois raciocínios — mercado como produtor de raridades e cidade como lugar de mercado — nos auxiliam para pensarmos a cidade com os economistas, devemos, todavia, ter o cuidado de nãoesquecer o fato de que o mercado não constitui uma categoria universal e a-histórica, como pretendem os economistas. Desta forma, numa perspectiva antiutilitarista, diríamos ser possível pensar a cidade de outra maneira, fora da categoria mercantil, quando a observamos, por exemplo, pela sua dimensão simbólica. Isto é, quando nos debruçamos na compreensão dos rituais, dos gestos, das regras informais, dos códigos implícitos que funcionam permanentemente na organização dos vínculos sociais e que existem independentemente dos humores do mercado econômico.

No enfoque economicista restrito, a cidade termina sendo vista — o que é problemático —, meramente como uma mega firma ou uma empresa gigante. Daí, por exemplo, a tentativa sempre frustrada de se pensar um "tamanho ótimo" de cidades, nos moldes em que se pensa o tamanho ótimo da firma, calcado em ganhos de escala ou em ganhos marginais. Trata-se de uma armadilha teórica que não consegue explicar toda a complexidade das megalópoles ou das atuais metrópoles globais. Muitas delas constituem verdadeiras potências econômicas e produzem mais riquezas ou mais mercadorias do que regiões inteiras e até mesmos países, o que confirma a hegemonia do mercado, mas não nega a validade da crítica de Polanyi sobre as limitações do enfoque utilitarista. A teoria macroeconômica, reserva à cidade apenas as características das chamadas "economias de urbanização" ou de "aglomeração", esquecendo-se que a cidade moderna, na qual vivemos, antes de se constituir em um lugar de reprodução das esferas econômica ou política, é também um lugar de passagem, de passeio, de lazer, enfim, de construção simbólica, emocional e cognitiva, dos processos de individuação e de solidariedade social, como observou poeticamente Baudelaire, há mais de um século.

Devemos, porém, registrar que uma parte do pensamento econômico não é completamente indiferente a esta compreensão polifônica da cidade que assinalamos acima. Pensamos aqui na idéia da cidade como lugar de produção de externalidades. Nesta perspectiva somos levados a concordar com Davezies (2000) quanto a considerar que aquilo que produz a cidade como lugar da troca, ou do mercado, não é a troca em si mesma. Segundo os teóricos que trabalham com o conceito de externalidade, as cidades se constróem e se desenvolvem antes das trocas mercantis, para criar as condições espaciais de funcionamento do mercado. E isso pelo jogo de forças que não são exclusivamente aquelas do mercado, mas que se enraízamna política, na cultura e na vida cotidiana. Esse autor argumenta que, na teoria, as "economias externas" nada mais seriam do que transferência de valor entre agentes sem uma contrapartida monetária. Ora, isto significa dizer que a economia de mercado pára justamente ali onde começam as economias externas e onde a indivisibilidade da organização urbana em si mesmo, não dá lugar a trocas mercantis explícitas. Estamos pensando, por exemplo, na liberdade, mesmo que formal, do trabalhador em optar por uma cidade em detrimento de outra, na própria infra-estrutura de circulação e transportes urbanos, cuja utilização não pode ser monetariamente controlada, na gama enorme de serviços coletivos urbanos de natureza indivisível cujas ofertas, justamente por isso, são reguladas pelo Estado, ao invés do mercado, etc. Em outras palavras, mesmo dentro da teoria econômica haveria uma necessária coabitação entre estas duas dimensões: uma mercantil e outra não mercantil.

A sociologia urbana, de seu lado, trata a cidade de diferentes maneiras: em princípio, seguindo uma lógica mais funcionalista, ela é vista como um espaço particular onde certas práticas sociais se estruturam. Aqui ela é vista como um objeto exterior a modos de vida que nele se desenvolvem, como um fator independente anterior aos agentes sociais, como um dado positivo sobre o qual as práticas sociais acontecem mas que não se misturam. Mas a urbanização das grandes cidades, no século XX, obrigou a Sociologia a se abrir para os problemas dos conflitos étnicos, da desigualdade social e da desordem da vida cotidiana. Assim, para certos sociólogos, como, por exemplo, aqueles da Escola de Chicago, dos anos vinte (Park, 1973), o espaço urbano aparece como um lugar de processamento de novas sociabilidades, respondendo às pressões produzidas pelos fluxos de migração e de diferenças étnicas e sociais. A cidade passa a ser entendida como um dos fatores responsáveis pela redução das distâncias sociais (na medida em que permitiria uma coabitação entre grupos diferentes, ou como uma possibilidade de manifestar estas diferenças na medida em que viabiliza a proximidade entre grupos diversos).

Mais recentemente, a Sociologia vem buscando ultrapassar as alternativas teóricas precedentes numa perspectiva que se aproxima daquela sugerida por Simmel, para quem a cidade era sobretudo um lugar de alteração da dimensão cognitiva do cidadão. Forçado pela necessidade de gerir uma quantidade crescente de fluxos de informações e de um tempo acelerado, o indivíduo urbano é levado a construir uma nova equação espaço—tempo. O espaço urbano deixa de ser visto como um simples mecanismo funcional que se organiza em função das necessidades ou expectativas dos agentes, e passa a ser tratado como um objeto dinâmico em permanente redefinição, feito pelos indivíduos que nele moram e que o constróem dia após dia.

Trata-se, portanto de encarar a cidade seja como fenômeno histórico, seja como fenômeno social. Por um lado, história como algo objetivado, presente ao longo do tempo, no ambiente construído, nos monumentos e memórias; por outro, história como dispositivo incorporado pelos indivíduos, transformado em habitus, servindo a delimitar distâncias e posições de classes e interesses simbólicos e materiais. Lida desta forma, a cidade pode ser tratada como um dos parâmetros de definição da posição social do indivíduo/grupo. Por exemplo, sabemos que na sociedade capitalista não há prestígio social digno deste nome que não venha acompanhado de signos de riqueza material (carros, jóias etc.) ou simbólica (roupas de grife, obras de arte etc.) que manifestem o habitus do indivíduo. Aqui, o espaço urbano aparece como uma verdadeira expressão simbólica da sociedade de classes, como uma linguagem que parafraseia a estratificação do espaço social (Pinçon e Pinçon, 1996). Mas para além dos interesses de classe, a cidade também é lugar de paixões e gratuidades, o que abre necessariamente o trabalho de análise para uma dimensão antiutilitarista.

Cidade e modernidade

Os argumentos acima, tanto econômicos como sociológicos, mostram portanto que pensar um fenômeno social em um contexto urbano implica concebê-lo com certas qualidades que são originárias da cidade em si mesma. De certo modo, é evidente que a cidade é o ambiente mercantil por excelência. Não poderíamos imaginar, por exemplo, um cotidiano urbano onde a moeda não seja o instrumento privilegiado para estabelecimento de trocas objetivas; grande parte das relações cotidianas nas cidades são reguladas através de relações monetárias, o que significa dizer que estamos tratando de um espaço social onde o modelo de equivalência e de interesse material predomina nas trocas que aí se passam. De outro lado, porém, as trocas mercantis que aí ocorrem não esgotam o campo de interações existentes na cidade, nem mesmo as econômicas (se pensarmos que existe uma parte significativa de trabalho produtivo que não é contabilizado oficialmente como, por exemplo, o trabalho doméstico, os mutirões populares etc.). Pode estar aqui uma das razões pelas quais a cidade é entendida como o espaço por excelência da modernidade, conforme sugerido por Georg Simmel. Este, na Filosofia do dinheiro, elabora uma infinitude de nexos entre o desenvolvimento e a difusão de uma economia monetária e o impacto múltiplo e variado que esse tipo de desenvolvimento tem no mundo e na vida. Implícito e fragmentariamente, encontra-se naquelas reflexões um conceito econômico de moderno, diferente do conceito utilitarista,no sentido em que a abordagem simmeliana expressa a presença de relações não monetarizadas em instâncias diferenciadas da vida urbana, e que se submetem a um jogo de relações extra-econômicas.

Façamos aqui um parêntese e lembremos que os trabalhos de Karl Polanyi são uma das principais fontes de inspiração da história econômica e para o entendimento do urbano em uma perspectiva antiutilitarista, justamente pelo fato de, sem negar o valor da economia, insiste na importância de contextualizá-lo historicamente. Por isso mesmo, o pensamento deste autor, ao lado daquele de Simmel, nos inspira na organização de uma reflexão antiutilitarista e polissêmica sobre a cidade, enriquecendo a contribuição de Marcel Mauss sobre o espírito da dádiva. Ou seja, sem negligenciar a importância funcional das práticas mercantis, os estudos sociológicos necessitam explorar as riquezas das dimensões institucional e simbólica da prática econômica. Por exemplo, se de uma parte, é verdade que a economia monetária constitui uma condição da existência do mercado, de outra, esta mesma economia monetária se subtrai à tirania do mercado para aparecer como a economia redistributivista a cargo do Estado. Se o mercado é uma instituição historicamente delimitada, como lembra Polanyi, a moeda, diferentemente, constitui um símbolo arcaico que nas sociedades tradicionais ultrapassa sua dimensão estritamente utilitarista para aparecer como condição simbólica básica da vida social. Para certos autores, como Jean-Louis Laville (2001), o mais importante é organizar uma tipologia do que ele chama de economia plural, que seria constituída de três vertentes: a economia mercantil, a economia não mercantil e a economia não monetária. A primeira corresponde à economia na qual a distribuição de bens e serviços é confiada prioritariamente ao mercado; a segunda, aquela na qual a distribuição de bens e serviços é confiada prioritariamente à redistribuição e a terceira, aquela na qual a referida distribuição é confiada prioritariamente à reciprocidade e à administração doméstica.

Temos, portanto, aí, as bases de um debate entre utilitaristas e antiutilitaristas que está presente como orientação básica deste número da revista Sociedade e Estado e que deve ser incorporado de modo mais sistemático nos estudos urbanos, em geral, e nos da Sociologia urbana em particular. A partir daqui, é importante que exploremos com mais detalhes a importância da cidade como "rito de passagem", como modo de organização das sociabilidades em geral.

Cidade, dádiva e vínculo social

Entendemos que as discussões sobre as abordagens econômicas e sociológicas do urbano deveriam nos levar a procurar no "fato urbano", e não externamente, as raízes explicativas dos desafios de transformação das cidades no momento atual. Se reduzirmos, por exemplo, as relações sociais às relações mercantis é evidente que nossa observação fica reduzida a estatísticas de trocas de bens materiais. Entretanto, se lemos as relações sociais na cidade como um espectro mais amplo no qual convivem diferentes tipos de práticas, constatamos que aquelas mercantis constituem apenas uma das expressões sociológicas da cidade.

Bourdieu (1994), por exemplo, enxerga na cidade algo mais amplo que uma economia de trocas mercantis, sendo este "algo" as trocas simbólicas. Para ele, a sociedade aparece como fenômeno que se objetiva e se incorpora nos indivíduos e classes através de certos dispositivos (crenças, valores etc.) que explicam seus modos de funcionamento simbólico e econômico em coletividade. Mauss (1999), por outro lado, diria que a cidade é um "fato total", no qual a atividade econômica constitui apenas uma das partes da troca geral e onde a troca de bens materiais vale tanto quanto a troca de gentilezas, festas, sorrisos etc.. Esses e outros autores nos conduzem, assim, nos rastros de uma reflexão claramente formulada em Simmel, a nos darmos conta de que a história das cidades é também história das pessoas que aí habitam: de seus rituais, expectativas, emoções e estilos de vida.

Assim, buscamos também neste número especial da revista Sociedade & Estado explorar outras leituras da cidade, pelas quais as relações entre pessoas são mais importante que as relações entre coisas e em que a cidade não pode ser compreendida a partir de uma única lógica. Nesta perspectiva, a corrente regulacionista da economia (Aglietta, Boyer, Coriat, Lipietz, etc.) já havia chamado a atenção para a necessidade de articular a lógica estatal e a lógica do mercado, valorizando o papel das relações intermediárias institucionais para explicar as grandes transformações econômicas. Esta entrada das instituições na macroeconomia permitiu integrar no horizonte econômico as racionalidades plurais dos grupos sociais. Partindo de um programa estrutural-marxista, os regulacionistas conseguiram dinamizar a estrutura e reintegrar os agentes econômicos, que até então eram vistos como simples suportes de lógicas estruturais. A lembrança dos regulacionistas é importante para assinalarmos que o debate é complexo, apresentando diversas variáveis.

Uma das tentativas recentes de superação das distorções provocadas pela falta de diálogo entre disciplinas, é representada pela idéia defendida por alguns de criação de uma disciplina universitária nova, uma socioeconomia, conforme é lembrado por Alain Caillé (1994), a qual permitiria escapar tanto da fragmentação do saber como do excesso de formalismo. Propostas ambiciosas, como aquela representada pela Revista do M.A.U.S.S. (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), buscam ultrapassar este debate interdisciplinar para realizar uma crítica mais abrangente das teses utilitaristas, em particular a do economicismo dominante. De uma postura crítica e de simples negação do utilitarismo, nos anos 80, o debate maussiano evoluiu para uma crítica antiutilitarista afirmativa, nos anos 90, que desembocou na busca de sistematização de um novo paradigma para as ciências sociais a partir do resgate do sistema social da dádiva, conforme revelado por Mauss, no essai sur le don, de 1924.

Para o pensamento utilitarista, o comportamento racional, calculador e interessado dos agentes sociais deve ser considerado o valor prioritário da sociedade. Contra esta perspectiva utilitarista, os estudos sobre a "dádiva" oferecem uma compreensão diferenciada da cidade, ao ressaltar o valor das interações diretas, das relações interpessoais. A dádiva constitui o sistema de reciprocidades que tem como elementos estruturantes esses quatro elementos (obrigação x liberdade, interesse x desinteresse), e que funciona a partir de uma relação tripartite: dar, receber e retribuir (Caillé, 1998). Através desta, considera-se que a ação humana não advém de uma única motivação, mas de várias, com princípios irredutíveis uns aos outros. Em outros termos, as interações humanas, as intersubjetividades, escapam tanto da pura obrigação como do puro interesse, ao mesmo tempo em que está impregnada de ambos. Tais interações também são movidas pela liberdade e pelo desinteresse.

Cidade, sociedade e solidariedade

Com base nas reflexões anteriores, podemos considerar que numa sociedade onde o individualismo prima sobre o coletivo, a empresa privada sobre o Estado, a concorrência sobre a proteção social, o mercado sobre a regulamentação (que é o contexto de dominação do neoliberalismo), não deixa de ser paradoxal que um coletivismo prático venham a ocorrer através de iniciativas espontâneas de solidariedade, como nos prova a rápida expansão do trabalho voluntário espontâneo, no momento presente. Neste, a ênfase sobre a natureza das inter-relações humanas e destas com o meio ambiente construído, permite que o espaço urbano possa ser visto como fenômeno estruturador de relações sociais, de comportamentos individuais, de práticas coletivas específicas, e agregaríamos, heterogêneas.

Por outro lado, da mesma forma que a economia urbana é constituída por uma esfera não mercantil — as economias de "aglomeração" —, podemos pressupor a existência, neste universo socialmente heterogêneo, de relações entre pessoas onde os vínculos estabelecidos não estejam calcados exclusivamente no contrato formal e utilitário. Expressando de maneira diferente: as formas ou os modos de identificação sociais diversos que aparecem no espaço urbano, pressupõem lugares e princípios não utilitários e não mercantis, os quais asseguram a presença de certos princípios universais independentemente da natureza da sociedade ser ou não utilitária.

Isto significaria dizer que, na aglomeração urbana, embora se perceba a característica tendencial de generalizar relações contratuais e mercantis, verifica-se a reprodução simultânea de vínculos seculares e de novos vínculos, isto não significando uma ruptura radical com modos de vida não utilitários. Entretanto é a natureza da convivência de ambas esferas — mercantis e não mercantis , que fornece a especificidade do fato social, especialmente o urbano, e que coloca o desafio da sua decodificação, para que o mesmo seja compreendido como fenômeno cultural complexo no qual as relações entre os homens também oferecem suporte às relações entre as coisas.

Entendemos, portanto, que é na articulação entre "redes" (sociabilidades primárias) e "aparelhos" (sociabilidades secundárias) que poderia ser compreendida a lógica social do espaço urbano, e na sua interface com o mundo rural e com a sociedade em geral. Isto porque o urbano guarda na sua heterogeneidade uma mistura de estilos de vida que podem indicar a presença de elementos tradicionais numa sociedade em processo de mudança, mas que, de fato, aponta para a concentração de recursos culturais, simbólicos e históricos num único ponto, a cidade. Assim, se fossemos utilizar a noção de "redes" no sentido em que seriam relações onde a entrada e a saída dos participantes é aberta, livre, e a de "aparelhos" onde esta entrada é controlada por códigos formais, podemos nos dar conta de que nas cidades ambos têm o espaço privilegiado de coexistência, superando as contradições entre o utilitarismo e o antiutilitarismo como modalidades de pensamentos eruditos e vulgares na manifestação dos vínculos sociais.

Também por estas razões, achamos oportuno organizar este número temático de Sociedade & Estado, trazendo à tona experiências que têm na dádiva e na solidariedade a função relacional constitutiva do vínculo social. A problemática implícita no tema permite uma releitura de diferentes perspectivas do fenômeno urbano, produtor de inúmeras experiências que merecem a atenção do cientista social. Os textos selecionados na sua diversidade refletem estas possibilidades.

O presente número está organizado em duas partes que se complementam. A primeira com artigos de quatro renomados professores discutindo o lugar do debate sobre dádiva e economia solidária na teoria social, mostrando a pertinência da problemática nos tempos atuais. Assim, o professor Alain Caillé, diretor do GEODE (Grupo de Estudos e Observação sobre a Democracia) da Universidade de Nanterre e editor da Revista do M.A.U.S.S., parte de uma questão essencial: em que medida o destino das ciências sociais está ligado ao do princípio da razão? Em que medida, em outras palavras, o acesso à cientificidade está determinado por uma razão utilitarista que propõe serem todos os homens egoístas e calculistas? Um texto denso, de uma profundidade teórica ímpar que nos leva a refletir sobre o lugar das ciências sociais no mundo atual onde a razão interessada reina triunfante assegurando a hegemonia do neoliberalismo.

Na seqüência, temos o texto de Jean-Louis Laville (CRIDA/CNRS), considerado um dos pioneiros na introdução do debate sobre economia solidária na França. Neste artigo, pensando no caso europeu, o autor considera que a existência de um número limitado de pesquisas sobre o associativismo tem contribuído para relativizar a importância de certas noções como aquelas de não lucratividade. É principalmente o conceito de solidariedade que aparece como essencial para se explicitar as diversas práticas sociais que podem ser reagrupadas pelo nome genérico de associativismo lírico.

Após, o professor Paul Singer (UNITRABALHO), um dos principais difusores do debate sobre economia solidária no Brasil, discorre sobre o aparente paradoxo do aparecimento de uma economia solidária num espaço social caracterizado pela competição como regra básica de existência. Esta surgiria sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade, onde a escassez de capital daria lugar, justamente, à solidariedade, substituindo, em alguma medida, o capital faltante e transformando a associação e conservação entre empresas em uma prática concreta.

As professoras Ana Clara Torres Ribeiro e Alice Loureiro (UFRJ) interrogam sobre a crise societária e as formas atuais de nomeação e classificação social, que procuram organizar intervenções referidas aos denominados excluídos. Tratam com especial ênfase, a produção social do anonimato, enfatizando seus lidos sociais da ação estratégica focalizada que caracteriza as políticas públicas e a competitividade entre agentes econômicos.

A segunda parte dos textos selecionados é fornecida pelos seguintes autores: Christiane Girard Ferreira Nunes (UnB), que reflete sobre o impacto identitário e as dinâmicas que dele resultam a partir de diferentes formas de inserção no mundo do trabalho, especificamente a partir da socialização dos trabalhadores do setor informal e das cooperativas existentes em núcleos urbanos em cidades-satélites de Brasília; Ricardo Augusto Alves Carvalho e Sanyo Drummond (UFMG) procura articular noções de autogestão à de autonomia, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista metodológico procurando pensar o sujeito em um terreno do eco-laboration na atividade do trabalho. Breno Augusto Souto Maior Fontes e Klaus Eichner (UFPE) investiga os processos de estruturação de redes sociais em associações voluntárias a partir de estudos empíricos realizado em ONGs da cidade de Recife; Ruthy Nadia Laniado (UFBA) discute a ação social no campo da cultura política, buscando um possível entendimento a respeito da capacidade de adesão dos indivíduos aos valores e normas que orientam uma sociedade democrática.

Na seqüência, temos os artigos de Genauto Carvalho de França Filho (UFBA) e Laura Graziela Gomes (UFF). O primeiro procura explorar a perspectiva da economia solidária a partir de sua manifestação na realidade européia, apoiando-se nos pressupostos de uma tradição de estudos do campo da antropologia econômica e a partir dessa referência, conclui com uma reflexão sobre o caso brasileiro. Laura Graziela Gomes reflete sobre as relações entre associativismo e reciprocidade no mundo contemporâneo, a partir de observações e experiências pessoais em uma associação francesa, o le réseau d'échanges de savoirs de Belleville e Menilmontant, dois bairros populares do leste parisiense, onde convivem pessoas de etnias e culturas diferentes. Finalmente, a professora Ciméa Bevilaqua (UFPr), explorando a perspectiva proposta por Marcel Mauss, apresenta algumas reflexões sobre a consistência entre as lógicas do dom e do mercado na sociedade brasileira, tomando por base uma pesquisa etnográfica sobre os conflitos decorrentes de relações de consumo realizada em Curitiba.

Como se percebe através dos artigos selecionados, pode-se constatar a enorme difusão de experiências de ações solidárias no contexto urbano, tanto no Brasil como no exterior, indicando uma tendência generalizada do fenômeno. Se, enfim, apesar do ecletismo do conjunto dos textos, o leitor conseguir perceber a riqueza teórica oferecida por um olhar antiutilitarista da realidade urbana contemporânea, consideramos, então, que a idéia da coletânea terá atingido seu objetivo maior.

Brasilmar Ferreira Nunes (UnB/Bolsista CNPq)

Paulo Henrique Martins (UFPE/Bolsista CNPq)

(Organizadores)

  • BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l'action Paris: Seuil, 1994.
  • CAILLÉ, Alain. Anthropologie du don: le tiers paradigme. Paris : Desclés de Brouwer, 2000.
  • _______. Appél à la création d'un enseignement de socio-écomie. Revue du M.A.U.S.S., Paris, n. 3, 1er sem. 1994.
  • _______. Nem holismo, nem individualismo metodológico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, São Paulo, v. 13, n. 38, out. 1998.
  • DAVEZIES, Laurent. La ville des économistes. In: PAQUOT, Thierry et al. La ville et l'urbain, l'état des savoirs Paris : La Découverte, 2000.
  • GODBOUT, Jacques. Le don, la dette et l'identité: homo donator, homo economicus Paris : La Découverte, M.A.U.S.S., 2000.
  • LAVILLE, Jean-Louis. Les raisons d'être des associations. In: LAVILLE, J. L. Chanial, P. et al (Org.). Association, démocratie et societé Paris : La Découverte, M.A.U.S.S., 2001.
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  • MAUSS, Marcel. Essai sur le don: forme et raison de l'échange dans les sociétés archaiques. In: MAUSS, M. Sociologie et Anthropologie Paris: PUF, 1999.
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  • PINÇON, M.; CHARLÔT-PINÇON, M. L'espace urbain comme expression symbolique de l'espace social. In: OSTROWETSKY, S. (Org.). Sociologie en ville Paris : L'Harmattar, 1996.
  • POLANYI, Karl. La grande transformation: aux origines politiques et économiques de notre temps Paris : Gallimard, 1983.
  • SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. (Org.). O fenômeno urbano Rio de Janeiro : Zahar, 1993.
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  • _______. Economia e sociedade Brasília : Edunb, 1999. v. 2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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