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Karl Mannheim e o método documentário de interpretação: uma forma de análise das visões de mundo

Resumos

O presente artigo retoma a contribuição de Mannheim na construção de um método interpretativo de pesquisa, com base no trabalho escrito originalmente em 1921/22 Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation (Contribuições para a teoria da interpretação das visões de mundo). O texto discute as reflexões metodológicas e o desenvolvimento de um método de análise das visões de mundo para as ciências sociais, denominado método documentário de interpretação. Ao trazer como proposta metodológica a análise documentária das experiências ateóricas, o autor instiga-nos a repensar o processo e o tratamento dado à interpretação dos objetos culturais. Num momento atual, em que presenciamos a ação e o discurso da velocidade da difusão de informações, no qual a instantaneidade do tempo aniquilaria o espaço e homogeneizaria as culturas, o artigo de Mannheim é propositivo: nos convida a repensar a construção de instrumentos analíticos capazes de mapear e dar forma à singularidade de experiências concretas, que carecem de uma análise teórica.

visões de mundo; método documentário de interpretação; sociologia do conhecimento


Cet article reprend la contribution de Mannheim dans la construction d'une méthode interprétative de recherche, avec de la base dans le travail écrit originellement en 1921/22 "Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation" (Les contributions pour la théorie de l'interprétation des visions du monde). Le text discute les réflexions méthodologiques et le développement d'une méthode d'analyse des visions du monde pour les sciences sociales nommé La méthode documentaire d'interpretation. Apportant comme proposition méthodologique l'analyse documentaire des expériences pas theoriques, l' auteur nous motive à repenser le proccès et le traitement conferé sur l'interpretation des objets culturels. À ce moment, dans lequel on voit l'acte et le discours de la vitesse de difusion des informations, dans laquelle la instantanéité du temps annhilerait l'espace et homogénéiserait les cultures, l'article de Mannheim nous donne la proposition: invite à repenser à la construction des instruments analytiques capables de cartographier et donner la forme la singularité d'expériences concrets, qui demandent une analyse theórique.

visions du monde; méthode documentaire d'interpretation; Sociologie de la Coinnaissance


This article resumes Mannheim's contribution in the construction of interpretative research methods based in the work originally written in 1921/1922 "Beiträge zur Theorie der Weltanschungsinterpretation" (Contributions for the interpretation of world view theory). The text discusses about the methodological reflections and development of a method of analysis of world views for the social sciences, called documentary method of interpretation. By bringing a methodological proposal a documentary analysis of atheorical experience, the author instigate us to rethink the process and the given treatment on the interpretation of cultural objects. In a moment in which we present the action and discourse of informations diffusion, in which the instantanity of time would annihilate the space and homogenize the culture, Mannheims's article is propositive and invite us to rethink the building of analytical instruments which can give shape and map the singularity of concrete experiences, that need a theorical analysis.

World view theory; documentary method of interpretation; Sociology of Knowledge


ARTIGOS

Karl Mannheim e o método documentário de interpretação: uma forma de análise das visões de mundo

Wivian WellerI; Gislene SantosII;Rogério Leandro Lima da SilveiraIII ;Adilson Francelino AlvesIV;Vera Simone Schaefer KalsingV

IDoutora em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim (Alemanha); professora recém-doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC.

IIGeógrafa e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFSC.

IIIGeógrafo e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFSC; professor da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC/RS.

IVSociólogo e doutorando do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas UFSC; professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTEPR.

VSocióloga e mestre em Sociologia pela UFRGS.

RESUMO

O presente artigo retoma a contribuição de Mannheim na construção de um método interpretativo de pesquisa, com base no trabalho escrito originalmente em 1921/22 Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation (Contribuições para a teoria da interpretação das visões de mundo). O texto discute as reflexões metodológicas e o desenvolvimento de um método de análise das visões de mundo para as ciências sociais, denominado método documentário de interpretação. Ao trazer como proposta metodológica a análise documentária das experiências ateóricas, o autor instiga-nos a repensar o processo e o tratamento dado à interpretação dos objetos culturais. Num momento atual, em que presenciamos a ação e o discurso da velocidade da difusão de informações, no qual a instantaneidade do tempo aniquilaria o espaço e homogeneizaria as culturas, o artigo de Mannheim é propositivo: nos convida a repensar a construção de instrumentos analíticos capazes de mapear e dar forma à singularidade de experiências concretas, que carecem de uma análise teórica.

Palavras-chave: visões de mundo, método documentário de interpretação, sociologia do conhecimento.

ABSTRACT

This article resumes Mannheim's contribution in the construction of interpretative research methods based in the work originally written in 1921/1922 "Beiträge zur Theorie der Weltanschungsinterpretation" (Contributions for the interpretation of world view theory). The text discusses about the methodological reflections and development of a method of analysis of world views for the social sciences, called documentary method of interpretation. By bringing a methodological proposal a documentary analysis of atheorical experience, the author instigate us to rethink the process and the given treatment on the interpretation of cultural objects. In a moment in which we present the action and discourse of informations diffusion, in which the instantanity of time would annihilate the space and homogenize the culture, Mannheims's article is propositive and invite us to rethink the building of analytical instruments which can give shape and map the singularity of concrete experiences, that need a theorical analysis.

Key-words: World view theory, documentary method of interpretation, Sociology of Knowledge.

RÉSUMÉ

Cet article reprend la contribution de Mannheim dans la construction d'une méthode interprétative de recherche, avec de la base dans le travail écrit originellement en 1921/22 "Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation" (Les contributions pour la théorie de l'interprétation des visions du monde). Le text discute les réflexions méthodologiques et le développement d'une méthode d'analyse des visions du monde pour les sciences sociales nommé La méthode documentaire d'interpretation. Apportant comme proposition méthodologique l'analyse documentaire des expériences pas theoriques, l' auteur nous motive à repenser le proccès et le traitement conferé sur l'interpretation des objets culturels. À ce moment, dans lequel on voit l'acte et le discours de la vitesse de difusion des informations, dans laquelle la instantanéité du temps annhilerait l'espace et homogénéiserait les cultures, l'article de Mannheim nous donne la proposition: invite à repenser à la construction des instruments analytiques capables de cartographier et donner la forme la singularité d'expériences concrets, qui demandent une analyse theórique.

Mots-clé: visions du monde, méthode documentaire d'interpretation, Sociologie de la Coinnaissance.

Introdução

Nascido em 1893, na Hungria, filho de mãe judia-alemã e pai judeu-húngaro, Karl Mannheim iniciou seus estudos de filosofia em Budapeste, participando na época do grupo de estudos coordenado por Georg Lúkacs, que, por sua vez, integrava o gabinete de governo dirigido pelo partido comunista. Embora Mannheim não estivesse filiado ao partido, foi obrigado a deixar o país após a queda do regime, indo inicialmente para Viena e Freiburg até chegar a Heidelberg, cidade em que viveu na década de vinte do século passado. Em 1930, Mannheim assume a cadeira de Sociologia na Universidade de Frankfurt, tendo Norbert Elias como seu assistente. Com a ascensão do regime nacional socialista e a introdução de leis que proibiam o exercício de cargos públicos por judeus, Mannheim é demitido da Universidade de Frankfurt e vê-se novamente obrigado a emigrar.

De acordo com Bohnsack (1999a), os trabalhos do autor podem ser divididos em três fases, que não estão apenas relacionadas aos diferentes contextos geográficos ou países em que viveu, mas que apresentam produções diferentes. Na Hungria, Mannheim dedicou-se principalmente a temas literários e filosóficos. O período em que viveu na Alemanha corresponde à fase sociológico-filosófica, abrangendo trabalhos conhecidos, como O Problema das Gerações ou Ideologia e Utopia, assim como outros trabalhos que Mannheim nunca chegou a publicar e que só chegaram ao conhecimento do público na década de 1980 com a organização do livro Strukturen des Denkens (Estrutura do pensamento). Já na Grã-Bretanha, onde veio a falecer em 1947, Mannheim se dedica a análises político-pedagógicas relativas a temas emergentes naquela época, o que não deixa de ser de certa forma fruto de seu trabalho na área de Educação na London School of Economics and Political Science.1 1 Uma compilação dos principais escritos de Mannheim foi organizada por Sanchez de la Yncera (1993, p. 245-253).

Entretanto o leitor deverá estar se perguntando sobre o objetivo deste artigo e retomada de um autor pertencente a corrente da "sociologia clássica" (cf. Foracchi, 1982). Segundo Bohnsack (op. cit.), existem pelo menos três razões que justificam a necessidade de reconsiderar o pensamento de Mannheim no início deste século:

- a associação do conhecimento e do pensamento ao contexto local (Standortgebundenheit oder Verbundenheit des Wissens und Denkens), que o autor denomina como "conhecimento conjuntivo" (cf. Kettler et al. 1982);

- desenvolvimento de reflexões metodológicas e de um método de análise da ação e/ou das práticas cotidianas, que vai além da teoria do indivíduo sobre a sua ação e suas intenções. Nesses escritos o autor aponta os tipos de interpretação sociológica e apresenta o método documentário de interpretação como essencial para a transcendência da postura imanente para a postura sociogenética (cf. Mannheim, 1952 e 1982, p. 77-80 e 242-255);

- sua contribuição na definição de conceitos como geração,meio social (milieu), estilo e habitus (ibid. 1952 e 1982).

Garfinkel (1967) foi o primeiro autor a reconhecer a importância do artigo "Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation" (Contribuições para a teoria da interpretação das visões de mundo) para a sociologia interpretativa, trazendo o método documentário de interpretação de Mannheim para a Etnometodologia e para a pesquisa social empírica (cf. Coulon, 1995, p. 55-69; Heritage, 1999, p. 338-345). Dessa forma o movimento etnometodológico resgatou um autor que, de certa forma, havia caído no esquecimento e instigou um novo olhar sobre os escritos de Mannheim da década de 1920. Na Alemanha, o sociólogo Ralf Bohnsack (1999b, 2001), retomou e atualizou o método documentário de interpretação, tanto do ponto de vista do método como da metodologia, transformando-o num instrumento de análise para a pesquisa social empírica. Bohnsack coloca a reconstrução do sentido documentário no centro da análise empírica, o que significa que, ao invés da reconstrução do decurso de uma ação, passaremos a analisar e reconstruir o sentido dessa ação no contexto social em que ela está inserida.

Sob a forma de uma síntese comentada da proposta metodológica de Karl Mannheim, apresentada num trabalho praticamente desconhecido no Brasil, pretendemos oferecer ao leitor uma forma de análise das visões de mundo e ações coletivas do meio pesquisado, apontando um caminho para a análise e interpretação.2 2 A elaboração desse artigo teve como fonte principal o artigo "Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation" em versão original (1964) e sua tradução para o inglês (1952). A tradução das citações para o português foi realizada com base nas duas versões, tratando-se de uma livre traducão na qual adotamos o seguinte critério: o número da pág. da tradução para o inglês, seguido do número da pág. do texto original.

A tarefa de explicar as visões de mundo

Mannheim (1952) apresenta em seu artigo um método de análise das visões de mundo (Weltanschauungen) e procura determinar a estrutura metodológica e o lugar desse conceito no interior das ciências históricas e culturais. Ao invés de propor uma definição substantiva do conceito, o autor levanta as seguintes questões: 1) Que tarefa teria o pesquisador do campo da história da cultura (historiador da arte, historiador da religião ou mesmo o sociólogo) ao determinar as visões de mundo de uma época, ao tentar explicar as manifestações parciais de sua área de estudo a partir dessa totalidade (pressuposta no conceito de visão de mundo)? 2) Será que essa totalidade nos é dada, e se nos é dada, como nos é dada e de que forma a realidade de um campo se relaciona com a realidade de outros campos da história da cultura? (p. 33/91). Mas esses questionamentos não são suficientes, já que algumas "coisas" ou visões de mundo nos são dadas sem que possamos apresentá-las ou explicá-las de forma teórica. Para o autor a questão que se coloca então é a seguinte: existem métodos que possam transpor essas "coisas", que como veremos mais tarde foram apreendidas num nível pré-teórico (vortheoretisch) para um nível teórico e científico? Ou seja: essas "coisas" podem vir a ser um objeto válido no processo de verificação do conhecimento científico? (ibid).

Antes de entrarmos nessa discussão, consideramos importante esclarecer o que Mannheim entende por visão de mundo: Weltanschauung é o resultado de "uma série de vivências ou de experiências ligadas a uma mesma estrutura que, por sua vez, constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos" (1980, p. 101). Todavia,

não podemos confundir visões de mundo com imagens de mundo ou com algo que tenha sido pensado ou produzido teoricamente: as visões de mundo são construídas a partir das ações práticas e pertencem ao campo que Mannheim definiu como sendo o do conhecimento ateórico. Assim sendo, a compreensão das visões de mundo e das orientações coletivas de um grupo só é possível a partir da explicação e da conceitualização teórica desse conhecimento ateórico. (Weller, 2003a, p. 3)

As visões de mundo estão situadas entre os níveis social e espiritual. Elas não consistem, portanto, nem na totalidade das formações espirituais presentes em uma determinada época nem na soma dos indivíduos que pertencem a essa época, mas na totalidade de uma série de vivências/experiências interconectadas estruturalmente que podem derivar, tanto da formação de grupos sociais como das criações espirituais. As visões de mundo não se apresentam como um volume perceptível, mas podem ser compreendidas quando analisadas transversalmente e em relação a um problema específico, constituindo-se dessa forma como objeto teórico (cf. Mannheim, 1980, p. 101s).

A busca de um método adequado a essa tarefa de transformação do conhecimento apreendido no nível pré-teórico em conhecimento científico, não deve constituir-se como "construção vazia" ou especulação gratuita. Segundo o autor, as ciências culturais já iniciaram a tarefa de determinar a estrutura metodológica e o lugar que o conceito de visão de mundo ocupa no interior das ciências históricas e culturais. No entanto, não avançaram suficientemente e não estão em condições de oferecer uma resposta definitiva. Sendo assim, Mannheim inverte a ordem e parte do ponto de vista do pesquisador ou do cientista para chegar à análise do conceito. Para o autor, a verificação dos procedimentos ou caminhos percorridos, a lógica envolvida nas soluções tentadas pelos pesquisadores ou cientistas, se apresenta como único caminho nessa difícil tarefa (p. 33s/91s).

Em busca de uma síntese

O problema da "visão de mundo" ser ou não compreensível em uma dada época, leva o autor a questionar sobre a possibilidade de se determinar a visão de mundo de uma época de maneira objetiva e científica (p. 34/91). Esse questionamento, que por longo tempo foi negligenciado em razão do limitado desenvolvimento da pesquisa analítica e do incremento da especialização do conhecimento, passou então (década de 1920) a atrair o interesse dos especialistas diante da necessidade de uma nova abordagem sinóptica, especialmente em relação às disciplinas históricas e culturais. Nessa nova abordagem sinóptica vamos ter a valorização do historicismo: passa-se a valorizar o processo histórico como um todo, em que o conhecimento de cada fenômeno da realidade não pode prescindir de uma prévia investigação de suas partes. Ou seja, em relação à natureza existencial de um dado sistema de visões de mundo não podemos considerar idéias ou crenças de maneira isolada, mas compreendê-las como partes integrantes e mutuamente interdependentes de uma totalidade sistêmica.

Até então, essas sínteses disciplinares vinham sendo realizadas de forma apressada e acrítica, apresentando uma mistura de pontos de vistas, métodos e categorias incongruentes. Segundo Mannheim, nessas sínteses prematuras, a reflexão analítica sobre a realidade implicou o desenvolvimento de um duplo processo de especialização. Num primeiro momento, vários campos culturais, como a ciência, a religião, a arte, etc., foram isolados uns dos outros e estudados separadamente. Em um segundo momento, os domínios isolados, dentro dos quais a totalidade da cultura foi distribuída, não foram vistos integralmente como eles se apresentam na experiência pré-teórica, mas submetidos a várias operações de abstração, realizadas a partir de um número de diferentes pontos de vista teóricos (p.35/92).

Tal procedimento já amplamente utilizado pelas ciências naturais mostrou-se também metodologicamente fértil nas disciplinas históricas e culturais, possibilitando a formulação e a generalização de questões, assim como a construção de conceitos bem definidos. Além disso, esse tipo de especialização permitiu a aplicação consistente e uniforme de procedimentos abstrativos específicos em várias dessas disciplinas levando-as, em virtude dessa orientação metodológica, a constituírem seus próprios objetos de pesquisa.

Entretanto, a despeito dessa similaridade, Mannheim assinala que os estudos no campo das ciências humanas também diferem essencialmente das ciências naturais pela relação de seus objetos lógicos respectivos com os correspondentes objetos pré-científicos da experiência diária. A esse respeito, ele cita como exemplo o caso do estudo da evolução histórica dos estilos, em cuja análise estética o objeto é dado enquanto pré-teoria, fruto de nossa experiência concreta, anterior à análise de determinada obra.

[...] nós podemos, temporariamente, ignorar o conteúdo e a forma dos trabalhos individuais de períodos sob investigação, nós podemos ainda negligenciar o que é excepcionalmente expressivo nesse ou naquele trabalho, e considerar isso simplesmente como um ponto de passagem em um processo de transformação, alcançando para trás e para frente o que está para, além disso, nesse tempo, precisamente o que nós chamamos estilo. Mas, todos os elementos únicos da forma e do conteúdo que nós ignoramos quando nosso interesse está concentrado no estilo, todavia, permanece um problema a ser resolvido pela história da arte. (p. 35/92)

Nas ciências humanas, o fato do conjunto das experiências concretas serem negadas no âmbito da abstração se configura como um problema que se mantêm. Nesse aspecto, ainda que nenhum conhecimento da realidade seja possível fora de uma prévia investigação de suas partes, isso não implica que tenham que ser estudadas primeiramente de forma isolada, como um processo de especialização. Por exemplo, quando os domínios da ciência, da arte, e da religião são isolados uns do outros, e estudados separadamente, acabam contribuindo para que a cultura seja vista e apreendida de maneira compartimentada. Dessa forma, as manifestações culturais são passíveis de serem tomadas como experiências pré-teóricas, sujeitas a várias operações de abstração, e formadas por diferentes pontos de vista teóricos. Entendemos que a própria maneira como o cientista aborda o objeto isoladamente faz com que o objeto/produto cultural se apresente como ateórico.

Assim, o esforço de Mannheim consiste em considerar que todo produto ou manifestação cultural deva ser compreendido em sua totalidade, cujas experiências diárias, imediatas, não são partes de um todo claro/racional, mas são constitutivos do real/racional

(p. 36/95).

Por sua vez, isso deve igualmente estar presente na definição e no desenvolvimento de cada objeto científico. Se, por um lado, os objetos concretos são relevantes para os diferentes ramos das ciências humanas, por outro, cada ramo deve sua existência a uma operação abstrativa, o que significa que pode explicar plena e validamente seus objetos apenas dentro dos limites de sua própria estrutura conceitual, devendo também, em algum momento, referir-se à sua totalidade concreta.

Nesse aspecto, Mannheim destaca, como exemplo, que:

Dentro da história do estilo nós temos certas ferramentas analíticas que nos possibilitam afirmar como os estilos mudam, mas se nós quisermos explicar a causa da mudança, nós deveremos ir além da história do estilo enquanto tal, e invocar alguns conceitos como o de "art motive" (Kunstwollen), definido por Riegel, como as mutações que explicam as mudanças no estilo. (p. 36/95)

A essência do procedimento de interpretação consiste em considerar os vários estratos da vida cultural e a relação de cada um com o outro, penetrando o máximo em direção à totalidade fundamental, através da possibilidade de entendimento das interconexões dos vários ramos dos estudos culturais.

Assim, mesmo uma disciplina especializada dentro das ciências humanas não pode prescindir da totalidade pré-científica de seu objeto, visto que ela não pode compreender mesmo seu limitado tópico sem recorrer àquela totalidade. É isso que explica o interesse despertado pelo problema da visão de mundo, nos esforços de síntese histórica.

A disputa entre o Racionalismo e o Irracionalismo

Antes de tudo, é necessário registrar que esse debate epistemológico, apresentado por Mannheim, sobre a importância científica e teórica do conceito de visão de mundo, na verdade se origina, se estrutura e se desenvolve a partir do que Gomes (1996, p.26) identifica como sendo "os dois pólos epistemológicos da modernidade". Ou seja, a modernidade constrói sua identidade a partir de duas grandes orientações científicas. De um lado, o racionalismo de origem iluminista enquanto território da razão, das instituições, do saber metódico e da busca da normatização da ciência. De outro lado, as diversas "contracorrentes" que se opõem ao poder exclusivo da razão no processo de conhecimento, aos modelos e aos métodos da ciência institucionalizada e ao espírito científico universalizante, defendem a valorização do que é particular, através da compreensão do conteúdo dos fenômenos.

Para Mannheim, a dificuldade e a natureza paradoxal do conceito de visão de mundo derivam do fato da idéia situar-se externamente à província da teoria.3 3 Na sua opinião, Dilthey foi o primeiro a reconhecer que "as visões de mundo não são produzidas pelo pensamento" (p. 37s). No racionalismo, a visão de mundo de uma época ou de um criador individual está inteiramente contida em sua expressão filosófica e teórica. Assim, precisamos somente coletar essas expressões e arranjá-las, então, em um padrão, e teremos capturado a influência de uma dada visão de mundo (p. 38/97).

Somente a partir da expansão do movimento anti-racionalista na Alemanha que teve em Dilthey um de seus principais impulsionadores a filosofia teórica deixa de ser concebida como fonte criadora e/ou como principal veículo da visão de mundo de uma determinada época. Na realidade, ela é somente um dos canais através do qual um fator global se manifesta.

Mannheim lembra-nos que essa totalidade denominada Weltanschaung é entendida por ser, de certo modo, ateórica, e, simultaneamente, a fundação de todas objetivações culturais, tais como a religião, o costume, a arte e a filosofia. Além disso se admitirmos que essas objetivações podem ser ordenadas em uma hierarquia de acordo com sua distância respectiva em relação a essa irracionalidade, então "o teórico pode parecer ser precisamente uma das mais remotas manifestações de sua entidade fundamental" (p. 38/97).

Ele assinala que enquanto Weltanschaung é considerado como algo teórico, todas as vastas províncias (campos, dimensões) da vida cultural podem estar inacessíveis para a síntese histórica. Por outro lado,

se definirmos a totalidade da Weltanschaung como algo ateórico, considerando a filosofia apenas uma de suas manifestações e não a única, nós poderemos ampliar nosso campo de estudos culturais de uma dupla maneira. Por um lado, estaremos adquirindo a possibilidade de acesso aos múltiplos campos da cultura e de síntese [desses campos]. (p. 38s/98)

Assim, as artes plásticas, a música, os costumes, os hábitos e usos, os rituais, o tempo de vivência, os gestos expressivos e o comportamento todos esses não menos que as comunicações teóricas podem tornar uma linguagem decifrável, esboçando o conjunto unitário subjacente da visão de mundo.

Por outro lado, além da ampliação dos campos da análise sintética, essa abordagem pode permitir-nos ver nosso objeto de um ângulo inteiramente novo. Passaremos a comparar os campos da cultura não somente a partir do conteúdo, mas principalmente a partir da forma. Para nós, então, devemos estar em uma posição de comparar, não somente expressões discursivas, mas também elementos formais não-discursivos. (p. 38s/98)

Na medida em que a investigação científica da cultura em si pertence ao domínio da teoria e ao se considerar que a unidade global da cultura é concebida como algo ateórico, então, uma questão fundamental se coloca: como algo ateórico pode ser transplantado para dentro da teoria? Este, para Mannheim, é o problema central da filosofia e igualmente crucial para a metodologia das ciências humanas.

Nesse sentido, não podemos aceitar essa manifestação irracional que domina certos fatos culturais que embora não sejam puramente ateóricos, são radicalmente desprovidos de qualquer análise racional. Para Mannheim, as "experiências" estéticas ou religiosas não são totalmente desprovidas de forma; mas o são sui generis e radicalmente diferentes daquelas teóricas. Cabe ao pesquisador refletir sobre o real conteúdo destas formas, sobre o que elas informam, sem violar seu caráter individual, mas "traduzi-las" para o interior da teoria, ou mesmo "abrangê-las" através das formas lógicas. Essa é a finalidade da pesquisa teórica, um processo de apreensão da realidade que aponta de volta para os estágios iniciais pre-teóricos, para o nível da experiência diária (p. 39/99).

Nesse aspecto, ele assinala que:

A teorização não começa com a ciência; a experiência cotidiana pré-científica também está permeada de teoria. A vida vivida (gelebte Leben), é um fluxo constante, que oscila entre um pólo teórico e um pólo ateórico, envolvendo uma constante mistura e rearranjo de diferentes categorias de origens distintas. E assim, também o "vivido" originalmente no campo ateórico teve sua função teórica, sua justificação, seu sentido e possibilidade. (p. 40/100)

Entretanto, essa "coisa" ainda não identificada a visão de mundo concentra-se, num sentido ainda mais radical, no campo ateórico, na medida em que não pode ser concebida como de interesse lógico e teórico, nem ser integralmente expressa através de teses filosóficas ou de qualquer tipo de comunicação teórica. Todavia, mesmo as realizações não-teóricas, como os trabalhos de arte, os códigos de ética ou os sistemas de religião, são dotados de racionalidade e expressam um sentido explicitamente interpretável. Nesse sentido, podemos dizer que se as manifestações estéticas e espirituais presentes, respectivamente, nos trabalhos de arte e nos sistemas religiosos são ateóricas e alógicas, não o são, contudo, irracionais.

A visão de mundo, entretanto, não está propriamente localizada em nenhum destes campos nem no teórico nem em outro campo mas praticamente em todos eles; por esta exata razão, não é totalmente compreendida [ou apreendida erfassbar] dentro de qualquer um deles. A unidade e a totalidade do conceito de visão de mundo nos desafia a compreender que devemos ir não somente além da teoria, mas além de qualquer objetivação cultural. (p. 41s/101)

Modos de apresentação das visões de mundo: os três tipos de sentido

Para tornar a visão de mundo objeto de análise científica, Mannheim apresenta um método de interpretação, que caracteriza como documentário. Nessa abordagem, o objeto de estudo passa a ser um documento, que será analisado metodologicamente. Segundo o autor, qualquer produto cultural somente pode ser inteiramente compreendido sob as seguintes condições: antes de tudo, deve ser apreendido como um "algo em si mesmo", independentemente de sua função mediadora, seguida da análise de seu caráter mediador nos dois sentidos definidos (expressivo, de um lado, e documentário, de outro). Sendo assim, encontraremos sempre três níveis de sentido (Sinnschichten) em qualquer produto cultural:

a) um nível objetivo ou imanente, dado naturalmente (por exemplo, num gesto, num símbolo ou ainda na forma de uma obra de arte);

b) um nível expressivo, que é transmitido através das palavras ou das ações (por exemplo, como expressão de ou como reação a algo);

c) e um nível documentário, ou seja, como documento de uma ação prática.

Buscando esclarecer as diferenças entre os três níveis de sentido de um produto cultural, Mannheim comenta que:

Inicialmente é necessário apontar as diferenças e o lugar em que se encontram. Se olharmos para um "objeto natural", veremos à primeira vista, aquilo que o caracteriza (...) Um produto cultural, por outro lado, não pode ser compreendido em seu próprio e verdadeiro sentido se nos atermos simplesmente sobre aquele "nível de sentido" que ele transmite quando o olhamos inteiramente em seu sentido objetivo. É necessário considerar seu sentido expressivo e documentário, se quisermos esgotar inteiramente seu significado. (p. 44/104)

Dessa forma todo produto cultural apresenta em sua totalidade os três níveis ou estratos distintos de significação, passíveis de serem revelados pelas análises científicas. Diferentemente do objeto natural, no qual é possível perceber ou intuir uma caracterização bastante próxima de sua constituição real num primeiro olhar, o produto cultural necessita de uma análise que considere os três níveis de interpretação. Não é possível compreender uma obra de arte se percebermos apenas o nível objetivo ou imanente; temos que compreender também os sentidos expressivo e documentário se quisermos esgotar as possibilidades de análise e transcender sua significação imediata. Segundo Mannheim também poderíamos fazer uma leitura transcendente da natureza, mas cairíamos numa interpretação metafísica e na tentação de compreender a natureza como um documento de Deus.

Transpor os métodos ' naturais' para as análises culturais implicaria na redução da compreensão dos sentidos da produção cultural, uma vez que a manifestação física e/ou natural compõe apenas uma dimensão imanente da obra de arte. Como exemplo, o autor apresenta a análise de uma estátua de mármore: a textura, coloração do mármore, pureza da rocha, ou seja, todas as propriedades físicas do mármore pertencem a planos distintos da beleza do trabalho do escultor que tem como resultado a obra de arte. Da mesma forma, o tratamento do espaço arquitetônico em que se encontra a obra pertence a planos diferentes. Esses aspectos (bem como a beleza da escultura) podem ser apreendidos imediatamente pelo expectador, mas não revelam nada além de algo em si, ou seja, do sentido objetivo. Alcançar os outros níveis de sentido é tarefa fundamental para compreender as manifestações de qualquer produto cultural em sua totalidade (p. 44/105).

Os diferentes níveis de sentido estão presentes não somente nos produtos culturais tradicionalmente prestigiados como a arte ou a religião, mas também nas ações cotidianas comumente despercebidas. Mannheim apresenta um exemplo trivial, tomado do cotidiano:4 4 O poema, ' Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa' de Fernando Pessoa (mais precisamente de um de seus heterônimos Álvaro de Campos), ilustra de modo claro e intensamente vivo este exemplo dado por Mannheim.

Estou caminhando com um amigo por uma rua em cuja esquina se encontra um mendigo: meu amigo dá uma esmola. Não interpreto seu ato de forma alguma como um fenômeno físico ou fisiológico, mas como portador de um sentido, que nesse caso significa "ajuda". Nesse processo de compreensão é atribuído ao ato um sentido, que na esfera sociológica é fixado ou definido teoricamente como "ajuda social". Se analisado no contexto social, o senhor que estava à nossa frente passa a ser um "mendigo", meu amigo um "ajudante" e o objeto de metal em suas mãos vira uma "esmola". O objeto cultural nesse caso é o sentido identificado ou definido sociologicamente como "ajuda"; meu amigo não é visto como um indivíduo fisiológico com características próprias, mas apenas como um "ajudante", como parte de uma situação apreendida, que em si só seria a mesma se no seu lugar estivesse uma outra pessoa. (p. 45/105s)

Segundo o autor, a compreensão do sentido "ajuda" que nesse caso seria o sentido objetivo não pressupõe o conhecimento do mundo interior (Innenwelt) do amigo nem da vida do mendigo, mas apenas o conhecimento do contexto social objetivo, através do qual e no qual existem "mendigos" e "senhores de bem". Um sentido objetivo dessa natureza existe em qualquer produto cultural e a sua compreensão não exige o conhecimento dos atos intencionais do ator individual e do produto da manifestação (p. 45s/106).

No entanto prossegue Mannheim , é possível e provável que o amigo não tenha tido apenas a intenção de ajudar, mas também de demonstrar ao observador ou ao mendigo um gesto de "compaixão". Nesse caso o portador do sentido objetivo também passa a ser portador de um sentido totalmente novo, que nem sempre pode receber um nome fixo, mas que poderia ser definido como "misericórdia", "bondade" ou "pena". O gesto de "dar uma esmola" recebe aqui um outro sentido além do sentido objetivo denominado como "ajuda". Essa segunda motivação sentido expressivo diferencia-se do primeiro, por não poder ser interpretado independentemente do sujeito e de seu contexto, ou seja: a verdadeira razão do ato de "dar esmola" só será compreendida se tivermos acesso ao mundo interior do sujeito que a ofereceu e ao meio social ao qual pertence (p. 46/107s).

Poderíamos pensar que as possibilidades de interpretação deste exemplo tenham se esgotado, mas o exemplo acima revela ainda uma outra dimensão: É possível que a análise da situação observada tome uma direção totalmente diferente, levando por exemplo à conclusão de que a esmola oferecida tenha sido um ato de "hipocrisia". Nesse nível de interpretação o sentido objetivo, assim como as intenções embutidas na ação não são relevantes para a análise: o que interessa nesse terceiro nível de interpretação é a descoberta do sentido documentário da ação, ou seja, a análise do que esse ato, mesmo sem querer, documenta ou revela sobre o amigo que ofereceu a esmola. A partir do momento que a ação passa a ser um documento para a interpretação teórica, ou seja, a partir do momento em que o ato de dar esmolas foi interpretado teoricamente como "hipocrisia", o sentido da ação continua sendo objeto de interpretação, mas de forma distinta àquelas realizadas até o momento. A mesma técnica de interpretação pode ser aplicada na análise de outras manifestações de sua personalidade, tais como: suas expressões faciais, seus gestos, seu modo de andar, seu ritmo de discurso. Assim sendo, a interpretação não deve permanecer no nível da análise das intenções de quem ofereceu a esmola (sentido expressivo) ou ainda no nível da análise do caráter proposital da esmola (sentido objetivo). Todo processo de interpretação passa a ser uma espécie de comprovante ou documento para a avaliação sinóptica da pessoa que ofereceu a esmola, abrangendo não somente aspectos relativos ao caráter moral mas também ao habitus (1964, 108s5 5 " Gesamtgeistigen habitus" (habitus espiritual total) foi traduzido para o inglês como "global orientation" (cf. 1952, p. 47). Perde-se com a tradução as reflexões de Mannheim sobre o conceito de habitus, tomado pelo autor a partir de Panofsky. ). É preciso salientar que esse método de análise dos produtos culturais ou de situações da vida e ações cotidianas é constantemente utilizado, lembrando que o último nível de interpretação (documentário) oferece uma forma de compreensão imprescindível e que não pode ser confundido com os dois primeiros níveis.

Voltando para o campo da arte no qual Mannheim busca exemplos para a interpretação sociológica e para o sentido expressivo de um determinado produto cultural, veremos que este aponta para além da apreensão da obra em si, requerendo, por exemplo, uma análise da época histórica em que viveu o artista, o que significa que a compreensão do conteúdo expressivo de um quadro ou de uma estátua só é possível de forma receptiva. Somente o conhecimento da estrutura histórica permitirá uma "compreensão aproximativa" do sentido expressivo do objeto cultural. Essa compreensão é possível porque o sentido expressivo de uma determinada época histórica e de seus objetos culturais, com os quais mantivemos uma continuidade histórica, foram preservadas e/ou são passíveis de uma análise das transformações ocorridas. Ou seja, é possível estabelecer um contato com a "consciência histórica" de determinada época e apropriar-se de um pano de fundo do período e da obra do artista que permita captar o posicionamento do artista e de sua obra.

Contudo, como já visto anteriormente, Mannheim destaca que é necessário "transcender" os sentidos objetivo e expressivo, uma vez que ambos incorporam um esforço consciente do artista. O sentido objetivo compreende um complexo auto-suficiente de significados dados e facilmente observáveis; o sentido expressivo necessita a verificação de pontos para além do trabalho técnico em si, entrando em aspectos que revelam o fluxo histórico e experiências psíquicas do artista: nas palavras de Mannheim, no centro da análise, está o ' homem por detrás do trabalho realizado'. Já o sentido documentário avança numa outra dimensão, que não é intencional para o artista, estabelecendo-se como uma questão e não como um processo histórico temporal, em que certas experiências são atualizadas. Aqui interessa o ' caráter, o ethos, a natureza essencial que se manifesta na criação artística'. A diferença entre o sentido expressivo e documentário pode ser entendida se imaginarmos a nós mesmos vivendo com o artista, gastando cada minuto vivo nesta tarefa, levando em conta os humores e os desejos do artista. Procedendo dessa forma compreenderíamos a "dimensão expressiva" de sua obra e teríamos um quadro adequado do fluxo de dados disponíveis, mas ainda assim faltaria o acesso à perspicácia da personalidade do artista ou ao ethos e visão de mundo do artista (p. 55s/119s). Entretanto, outro pesquisador com menor familiaridade e acesso aos dados e ações do artista, mas possuidor de um "agudo senso documentário", poderia reconstruir com um pequeno material efetivo à sua disposição uma caracterização das visões de mundo e aspectos da vida e obra do artista.

O sentido expressivo e o sentido objetivo não são excludentes, mas metodologicamente, são etapas para se apreender o sentido documentário este é o instrumento de verificabilidade científica. O pesquisador deve sempre levar em conta esses diferentes níveis de sentido, a fim de apreender o sentido documentário. Mannheim destaca ainda uma diferença fundamental entre o sentido documentário e os outros níveis de interpretação. Segundo o autor, a interpretação documentária não é estática. O estudioso da cultura ao se lançar sobre um determinado período o faz a partir da perspectiva na qual está inserido (Jetzt-Perspektive), desenvolvendo um trabalho de aproximação entre sucessivas temporalidades (p. 61/126).

A estrutura ateórica dos procedimentos culturais

Na última seção do artigo, explicitados os procedimentos do método documentário, Mannheim apresenta duas conclusões propositivas: 1) a necessidade e importância do pesquisador voltar sua atenção sobre experiências cotidianas submersas, mas que integram o sentido de toda interpretação sociológica; 2) a operacionalização de um sistema de conceitos para as ciências culturais que atravessem diferentes tempos e experiências históricas.

Em relação à primeira, segundo Mannheim, toda experiência merece ser interpretada, e esse caminho é dado pelo método documentário de interpretação. Essa tarefa - alerta Mannheim -, não é nada fácil. Muitas experiências não configuram uma forma estratificada, entretanto são elementos constitutivos de uma estrutura social, ainda que se encontrem no nível ateórico. Seu ofuscamento ou a negligência dessas experiências pertencentes ao campo ateórico implica um conhecimento parcial do próprio meio social ou de um determinado período histórico. As experiências, por mais imediatas, não são abstraídas de uma temporalidade e de uma dada estrutura social. Ao contrário, a singularidade é conferida por mediações entre diferentes tempos e lugares.

Não obstante, a busca de uma síntese na proposição metodológica de Mannheim não se realiza mediante um acúmulo ou adição de partes ou fatos, nem tampouco com a visão de método cartesiana pautada numa escala hierárquica de valoração dos fenômenos dos mais simples aos mais complexos. A busca de uma síntese, como postulado e objetivo de seu projeto metodológico, implica, sobretudo, reconhecer que cada elemento de observação integra e constitui uma totalidade cultural.

Em relação à segunda proposição, Mannheim compreende primeiramente cultura como um processo histórico evolutivo. Assim, um sistema de conceitos deve ser operacionalizado para "cruzar várias esferas da atividade cultural e também cruzar sucessivos estágios culturais" (p. 75/143). Nesse ponto, é preciso ainda mais cautela reflexiva. O uso dos conceitos em Mannheim se processa da mesma maneira como em seu procedimento metodológico, ou seja, de forma derivativa e não acumulativa. Como há experiências e fatos observados que carecem ainda de nomeações, inadmissível seria para Mannheim "fixar a gênese de uma forma de experiência no momento quando o conceito que a define é concebido" (p. 66/131). Nesse sentido, seria metodologicamente válida a apropriação e interdependência de conceitos entre diferentes campos disciplinares, não com o propósito de se moldurar aquilo que ainda é ateórico em um seguro quadro conceitual, mas que, por um exercício de derivações, conceitos sejam construídos para fatos e experiências carentes ainda de significação.

É necessário ainda reconhecer dois procedimentos: i) transformar em documento aquilo que é ateórico; ii) ter em mente que o sistema de conceitos utilizados não se processam separadamente. Mannheim caminha na proposição de uma dialética do conhecimento positiva e para um movimento de integração entre a teoria e empiria. Assim, não há valoração das experiências como intencionalmente portadoras de significados, e nem da teoria como capaz de, sozinha, responder e dar significado às experiências. Para cada elemento da observação, conceitos são invocados e formulados para mediar a interpretação de cada experiência. Propõe ainda a verificabilidade de sua teorização de cunho, segundo ele, estritamente racional: deseja que a intuição seja responsável por uma objetiva verificação verificabilidade que pode ser assegurada em dois caminhos: 1) confirmação empírica no material histórico; 2) uma atenção para estabelecer ligações conectando vários fenômenos documentários (p.77/146). Todavia, para Mannheim, essa racionalização não se procede como uma dedução lógica de princípios teóricos.

Nós podemos usar um produto individual de uma época como instância corroborativa de algumas hipóteses sobre as "visões de mundo" somente na condição quando capazes de representar o ato específico de apreensão do nível ateórico exibido pelo produto em questão (...)" (p.77/145).

É necessário também atentar que essa ligação com outros documentos e fenômenos históricos não implica a determinação e nem o privilégio de uma seção temporal sobre outra. O procedimento do método documentário implica, como escreve Mannheim, uma "análise temporal longitudinal", ou seja, a experiência histórica em questão não se explica sozinha, mas requer para sua compreensão uma sobreposição de temporalidades e, para tanto, um sistema de conceitos deve ser invocado.

Esses dois procedimentos de verificabilidade são uma tentativa de Mannheim em assegurar que o campo do conhecimento seja racional, e essa razão, diga-se de passagem, é tão substantiva quanto formal. Nesse sentido, poderíamos inferir que se o próprio critério de racionalidade submete experiências classificadas como irracionais à margem de todo conhecimento racional, o autor propõe uma inversão do uso da razão. Primeiro, relembrando, Mannheim não usa o termo irracional, mas ateórico, ou seja, experiências ainda não conceituadas e teorizadas. Segundo, que toda experiência para Mannheim possui sua própria história.

As formas de experiências originam-se e são configuradas por uma sociedade na qual ou retêm formas existentes previamente ou as transformam em um modo no qual o historiador pode observar. (55/118)

As experiências não são "meros eventos na vida", mas estão profundamente enraizadas na história da sociedade da qual fazem parte.

Considerando como o mais importante não a análise do que é uma realidade social mas como ela é constituída, o artigo de Mannheim investe sobre um outro processo do pensar e confere uma proposição para as ciências culturais: volta-se para a fina e fluida camada entre a experiência, intuição e teoria; para aquilo que, à primeira vista se aparenta como obscuro, caótico, simples, banal, ateórico,desprovido de qualquer sentido e significação histórica. Faz assim um apelo ao uso da razão, pela confiabilidade em que a razão possa ser o instrumento analítico capaz de fazer emergir as experiências submetidas ao campo ateórico com uma diferença: não mais como caóticas, mas cunhadas por conceitos, legítimas na ordem do mundo, portanto comunicadas, interpretadas e partilhadas em comum.

Finalizando, o artigo de Mannheim, ao trazer como proposta metodológica a documentação das experiências ateóricas, instiga-nos a pensar sobre essa difícil tarefa do pesquisador social. No momento atual, no qual presenciamos a ação e o discurso da velocidade da difusão de informações, no qual a instantaneidade do tempo aniquilaria o espaço e homogeneizaria as culturas, o artigo de Mannheim é propositivo. Nos convida a repensar a elaboração de instrumentos analíticos capazes de dar forma e mapear a singularidade de experiências concretas, mas que ainda carecem de interpretação.

Notas

Artigo recebido em 30 jul 2003; aprovado em 30 ago. 2003.

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  • 1
    Uma compilação dos principais escritos de Mannheim foi organizada por Sanchez de la Yncera (1993, p. 245-253).
  • 2
    A elaboração desse artigo teve como fonte principal o artigo "Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation" em versão original (1964) e sua tradução para o inglês (1952). A tradução das citações para o português foi realizada com base nas duas versões, tratando-se de uma livre traducão na qual adotamos o seguinte critério: o número da pág. da tradução para o inglês, seguido do número da pág. do texto original.
  • 3
    Na sua opinião, Dilthey foi o primeiro a reconhecer que "as visões de mundo não são produzidas pelo pensamento" (p. 37s).
  • 4
    O poema, '
    Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa' de Fernando Pessoa (mais precisamente de um de seus heterônimos Álvaro de Campos), ilustra de modo claro e intensamente vivo este exemplo dado por Mannheim.
  • 5
    "
    Gesamtgeistigen habitus" (habitus espiritual total) foi traduzido para o inglês como "global orientation" (cf. 1952, p. 47). Perde-se com a tradução as reflexões de Mannheim sobre o conceito de habitus, tomado pelo autor a partir de Panofsky.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Aceito
      30 Ago 2003
    • Recebido
      30 Jul 2003
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