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Por uma sociologia sem ilusão

ARTIGOS

Por uma sociologia sem ilusão

Lourdes Bandeira

Doutora, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).

Este número da revista Sociedade e Estado é dedicado à socióloga e professora Sylvia Ostrowetsky. Centra-se, em parte, na divulgação de alguns fragmentos de sua obra e representa uma homenagem daquelas e daqueles que tiveram a oportunidade de conviver acadêmica ou pessoalmente com ela.

É importante declarar as razões desta homenagem. A primeira é o valor e a contribuição profissional de sua carreira e a exemplaridade intelectual, a importância de sua reflexão no campo sociológico e, também, de ter tido o privilégio de testemunhar e de conviver com uma amiga e colega, que em seus momentos de euforia ou de profunda angústia nunca deixou ninguém indiferente ao seu redor.

Sylvia Ostrowetsky não se constitui em uma autora clássica do pensamento sociológico; ela foi uma pesquisadora pluridisciplinar que trabalhou com objetos polêmicos e análises inovadoras no contexto da Sociologia francesa. Suas pesquisas e escritos concentraram-se nos espaços, cenários e atores urbanos, mais particularmente naqueles(as) cuja visibilidade e inclusão eram escassas. Era possuidora de um olhar de quem vive nas bordas.

Outra razão deve-se à natureza pioneira e criativa como abordava certos temas do fazer sociológico, combinando a teoria da prática e a prática da teoria, as quais lhe eram irredutíveis. Recorria, sistematicamente, à História, Estética, Psicanálise e Semiologia. Esta combinação complexa constituía-se em uma prática pouco usual à Sociologia francesa de cunho mais tradicional. Por assumir uma tal postura, Sylvia tanto recebia severas críticas como fartos elogios.

Uma última razão refere-se à contribuição especial trazida por Sylvia Ostrowetsky à Sociologia brasileira por meio da publicação de textos instigantes, que nos conduzem a refletir para além de nossos paradigmas mais habituais, como orientadora de um grupo significativo de estudantes brasileirios, que realizaram seus doutorados entre 1985-1995, na França, e pelas várias missões acadêmicas e visitas que fez às universidades brasileiras, ministrando cursos, realizando conferências, seminários. Muitas dessas atividades foram registradas e publicadas em artigos e ensaios.

Por causa do seu engajamento no Convênio Capes-Cofecub, esteve em algumas universidades das Regiões Norte e Nordeste, além de passar pela USP, na qual reencontrou um de seus caros amigos, o professor Rui Coelho. Também esteve na UFRJ. Porém, sua presença foi marcante nas muitas vindas à Universidade de Brasília. O profundo encantamento pela capital federal ultrapassava, de longe, sua condição de socióloga do espaço e do urbanismo. Em Brasília, mergulhava em suas expressões estéticas, e dizia: "... é uma cidade de tamanha profusão de formas e de diversidades estéticas, que me atinge direta ou indiretamente... nas profundezas do meu íntimo..."

Embora Sylvia Ostrowetsky tenha abordado tantos objetos de estudo e de análise com perspectivas teóricas próprias, seu olhar nunca deixou de ser o de uma esteta. Fez da dimensão estética uma relação social. A estética era uma verdadeira obsessão em sua vida. Desde a forma de se vestir, de ordenar os objetos, os móveis, os quadros, as cadeiras, os livros, os textos, a disposição das louças na mesa do jantar... tudo era estetizado, passando por um ritual intenso. O registro estético e semântico constituiu-se, na sua reflexão, em dois elementos irredutíveis, como é irredutível a idéia cara retomada por Henri Lefèbvre, seu orientador de tese: "le nombre et le drame", "le cardinal et l'ordinal". Chez elle, cette vision dyadique de l'esthétique et du sémantique constitue la trame de fond de sa réflexion depuis les vingt dernières années (apud Marouf, 1998, p. 13).

Tive o privilégio de conhecê-la em janeiro de 1987, quando frequentei seu curso sobre Identidade e Espaço-Espacialidade, ministrado para os estudantes de doutorado no Programa de Sociologia, na Université de Picardie, em Amiens, França. Fiquei imediatamente cativada pela reflexão insurgente que realizava, por sua performance teatralmente acadêmica e crítica. Embora nossos intinerários e interesses acadêmicos nem sempre convergissem, em mim despertou um denso interesse por sua reflexão sobre a questão da identidade e do espaço.

Após três meses de curso, tornamo-nos grandes amigas, por quase vinte anos; hábito incomum entre os franceses. Várias vezes convivemos pessoal e intelectualmente. Em Paris, ficava em seu apartamento, de uma estética impecável, com suas imensas estantes de livro e obras de arte. Assistimos juntas a muitos espetáculos culturais, teatrais e filmes, assim como fizemos visitas a museus e caminhadas pela Paris não turística, a qual ela me apresentava com detalhes estéticos, históricos e arquitetônicos. Viajamos pelo sul da França percorrendo inúmeras igrejas e catedrais, castelos e sítios históricos, que remontavam, alguns, ao século XV. Todos aquele momentos eram plenos de comentários e de críticas pertinentes, pois Sylvia tinha o conhecimento não apenas da História, mas da História da Arte, dos autores, dos artistas, conhecia a história das cidadezinhas, tinha acompanhado por várias décadas as mudanças cartográficas e arquitetônicas das novas paisagens.

No Brasil, em João Pessoa, durante suas vindas à universidade, além das atividades acadêmicas restritas, fizemos vários passeios pela arquitetura colonial das belas igrejas, a da São Francisco, especialmente. Pelas ruas estreitas de pedras pontiagudas das calçadas colonias que desciam ladeira abaixo. Sylvia também conheceu o barroco mineiro, passando alguns dias entre as cidades coloniais de Minas Gerais.

De Brasília conhecia toda a história mítica-mística, arquitetônica e política. Os passeios incluíam desde os monumentos, museus, palácios, feiras, mercados existentes nas cidades satélites, até a invasão da Estrutural, cujas imagens se transformaram em uma linguagem de dor, pois, via de regra, a repetição obrigatória da miséria avizinha-se constantemente com a morte para ela.

Tinha um olhar forasteiro e sempre etnográfico na busca das singularidades, não lhe escapando os detalhes, fazendo comparações com outras cidades européias que conhecia, com outros monumentos ou situações. Jamais ficava indiferente diante de qualquer edificação ou paisagem. Era uma pensadora que pulsava constantemente, como o tic-tac de um relógio.

Este talvez seja um lado menos conhecido e pessoal de Sylvia que conheci e com o qual tive intensa convivência. Intensa porque ela nos questionava, sistematicamente, sobre nossa responsabilidade e compromisso como socióloga.

Sylvia era uma pessoa profundamente angustiada, inquieta e intimamente errante. Como se estivesse atuando em uma cena permanentemente, movia-se por uma dramaticidade cotidiana. Alimentava-se por esses sentimentos e pelos inúmeros conflitos advindos seja dos desafios de seus opositores, seja de suas buscas intelectuais incessantes que a mobilizavam para uma racionalidade muito rígida. Qualquer outra experiência ou crença era, de imediato, descartada.

Por que uma Sociologia sem ilusão? Sylvia Ostrowetsky trabalhou com muitos temas, alguns considerados "malditos" para uma Sociologia mais conservadora, como, por exemplo, sua tese: La dimension esthétique dans la relation sociale: une Sociologie de la laideur, cujas publicações principais são: "L'héroisation romanesque de la laideur", "La beauté et la laideur: stigmate ou banalité"?

Foi prisioneira de si própria, em sua trajetória acadêmica e pessoal, por ser judia. No convívio mais próximo e pessoal, podia-se observar a luta interior e permanente com sua condição de ser uma mulher judia e de origem humilde. Nunca conseguiu exorcizar esses fantasmas de sua vida, o que, em parte, influenciou decisivamente suas escolhas intelectuais e, em certo sentido, alimentou a exacerbação de sua prática de racionalidade. Destaco algumas das temáticas e questões sobre as quais trabalhou, pois estas a fizeram pulsar mais profundamente.

Espaço público, vínculo social e identidade

Para a professora Sylvia, seu objeto de estudo permanente foi a presença do espaço público nas pesquisas realizadas nas ruas, praças, cafés, nos espetáculos de rua, nas manifestações teatrais públicas, assim como nas rápidas cenas representadas pelos artistas nos metrôs parisienses. Para ela, todas estas expressões ou manifestações das "arts de la rue" eram maneiras de tornar vivo ou de fazer viver o espaço público: "les artsde la rue représentent un des derniers bastions de cette utopie fraternelle que l'on peut espérer le temps d'un attroupement émerveillé" (Ostrowetsky, 1999, p. 119).1 1 Grande parte de sua produção sobre este tema deriva também das pesquisas apresentadas no seminário organizado por Sylvia: Espaces public: quels lieux communs? Les arts de la rue et les autres arts et métiers de l'espace urbain: pratiques et points de vue, Amiens, Université de Picardie, nov. 2001. Tentava mostrar a rua como uma linguagem e uma "atuante" (actant), e não o simples cenário neutralizado para a publicidade.

Sua intenção, e conseqüentemente seu trabalho de pesquisa, caracterizava-se pela desneutralização dos espaços e dos lugares, no sentido de evidenciar que as ruas, os espaços públicos não podem vir a se tornar um espaço privado, nos quais a publicidade se dirige apenas ao indivíduo. Também exacerbava a segregação que representam certos espaços públicos nas grandes cidades, onde se acentua mais a segregação entre os grupos sociais, interditando as sociabilidades, as inter-relações, as trocas, assim como as confrontações. Afirmava que a dimensão psíquica se estrutura em função de sua inserção na rede simbólica, que, no caso a rua, possibilita uma inclusão, mesmo que precária e/ou uma inclusão no precário. Essa inclusão na rua, para todo o sujeito, seja precária ou não, constitui um lugar. É desse lugar que interpelará/escutará a si próprio, ao outro e ao conjunto das redes de significantes no qual se encontra imerso.

Por várias vezes se defrontou com dúvidas a respeito da indefinição de fronteiras claras em relação à natureza do conhecimento que produzia e que não se classificava nos compartimentos tradicionais do saber sociológico, registrados como especializações nas universidades francesas e estrangeiras. Seria uma Sociologia da Cultura? Seria uma Sociologia da Arte? Seria uma socióloga do espaço urbano? Embora com todas essas dúvidas, Sylvia sempre se construiu como socióloga e retirou da teoria sociológica os elementos analíticos para configurar os quadros de referência para a organização dos dados/informações e das interpretações que propôs para os diversos aspectos dos fenômenos urbanos que estudou.

Fez da reflexão e da estética sua própria vida; sempre defendeu os desiguais como premissa básica de sua existência e fundamento da liberdade do ser humano. Foi esse o fio condutor de sua existência e de seus trabalhos, pois para ela o humano da rua não planta e não espera: cata a sobra que encontra provinda do mundo dos cidadãos.

Outra forma de pensar a cidade: la Sociologie de la ville

Seus escritos sobre a cidade uma Sociologia da cidade e do espaço , partem do pressuposto que o espaço da cidade é elástico, sua plasticidade é mais construída sobre a capacidade de viver-se citadino do que como cidadão. Sylvia Ostrowetsky caracterizava la ville :

Ces deux figures qui symbolisent la cité grecque: Hestia et Hermès, montrent assez combien la ville se situe à une croisée: celle du rassemblement, de l'enracinement comme on dit communément, d'un côté; celle de l'ouverture, du départ, du déracinement, comme on ne le dit pas assez, de l'autre.

Hestia, celle qui, au moment historique de la création du citoyen grec, se déplace de la maison familiale à l'espace collectif, construisant cette formidable synthèse qui consiste à faire d'un espace public un foyer, d'une figure de la vie privée le symbole de la politique et publique; Hestia ne se déplace pas seulement, comme j'ai pu l'écrire, du privé au public, elle exhausse, métaphoriquement, le lieu à la hauteur du lien le plus solide que soit: celui du sang. Un espace construit, artificiel, qui emprunte sa force à une institution tutélaire (Ostrowetsky, 1993, p. 79)

Essa dinâmica dialética que caracteriza a existência da cidade e a aderência dos indivíduos a essa geografia particular, na reflexão da autora, é pensada como um jogo simbólico de sentidos e de significados: jogo com o limite, jogo com o paradoxo, jogo com o passado e o futuro, o segredo e a transparência.

Assim, suas reflexões nos remetem a pensar sobre a constituição e as condições de existência da/na grande cidade, de como as subjetividades existentes se intercruzam e se interpenetram, e também nos levam a refletir sobre a noção de território e a questão da marginalização social. Por extensão, nossas concepções de democracia, cidadania, estética e alteridade categorias que são fundamentais à formação de um tecido social que nos possibilite melhores condições de vida , são postas à prova.

Teve como um de seus autores favoritos e inspiradores Walter Benjamin, sobretudo nas suas narrativas como flâneur. Para ela, à semelhança de Benjamin (1989, p. 185), " a rua conduz o flanador a um tempo desaparecido". Algumas vezes refizemos juntas, a seu convite, os passeios pelas passagens parisienses que foram descritos por Benjamin, pelo canal Saint Martin e, também, pelo Jardin des Plantes. Tal e qual para Benjamin, também para Sylvia:

Aquela embriaguez anamnéstica em que vagueia o flâneur pela cidade não se nutre daquilo que lhe atinge o olhar; com freqüência também se apossa do simples saber, ou seja dos dados mortos, como algo de experimentado e vivido. Esse saber sentido se transmite sobretudo por notícias orais... (Benjamin, 1989, p. 186)

A condição de ser judia: produtora de identidade

"Tu choisiras la vie". Era um apelo lançado pelos sábios do povo judeu. Sylvia escolheu seu próprio caminho, mas a marca de ser judia jamais a abandonou; era, em parte, o gás que a alimentava e pelo qual era movida. Filha de judeus poloneses não letrados e humildes, cuja família era oriunda do burgo rural situado nas imediações entre Lodz e Varsóvia, seus pais Moishe e Czarna migraram ilegalmente para a França, em 1920, sem falar a língua francesa; traziam o nome e um endereço marcado em um papel. Mas, no início dos anos 1920, a França tinha necessidade de imigrantes, por isso acolhia-os. Seu pai tornou-se vendedor de velharias, bugigangas e roupas velhas (chiffonier et brocanteur), sua mãe, dona-de-casa.

Em 1925 nasceu seu único irmão, Henri, e, em 1933, nasceu Zissl, dita Sylvia, em Paris. Em 1939, com a idade de seis anos e meio, Sylvia presenciava o início da Segunda Guerra. Certamente não entendia a complexidade do conflito, mas a memória da ofensa contra o povo judeu ficou gravada para sempre. Sylvia jamais se libertou da identidade judia, pois, em maio de 1942, foi obrigada a portar a estrela amarela de cinco pontas no braço esquerdo. Já em 1941, parte de seus tios e tias foram deportados, sobrando apenas um primo-irmão, Riri, que acabou sendo criado pela mãe de Sylvia. A família Ostrowetsky conseguiu passar a linha de demarcação e refugiar-se na Corrèze, que abrigava outros tantos refugiados judeus. Mas, impossibilitados de se manter na cidade, Moishe muda-se para a vila Roche-aux-Nids, onde passa a trabalhar como paysan. Ainda em 1942, um agente da SS nazista passou pela pequena vila à procura das crianças judias que frequentavam a escola. Seus pais esconderam o filho mais velho Henri, que ficou semi-enterrado por três dias, e Sylvia foi escondida pelas suas colegas de escola. Apesar desta "chance", como afirmou, no livro que escreveu sobre a biografia de imigrante de seu pai: "Quelqu'un, ou lelivre de Moishe" (1995), Sylvia ficaria marcada por toda sua vida pela angústia de uma infância perturbada frente aos acontecimentos incompreensíveis para uma menina que chegava, em 1944, a idade de 11-12 anos. Esse encontro com a morte jamais se apagou de seu coração.

Sylvia foi mobilizada por três grandes obsessões: primeiro, pelo fato de seus pais não serem cultivados intelectualmente. Isso significou uma incansável e obsessiva busca pelo conhecimento. Lutou pelo seu reconhecimento como intelectual e, a partir dos anos 1990, passou a fazer parte da lista dos sociólogos franceses mais importantes, ao lado de Pierre Bourdieu, Alain Touraine e Luc Bultanski. Segundo, pela sua identidade judia, da qual foi refém, pelo pensamento, nos escritos, na história pessoal e pela memória. Por sua origem judaica-polonesa, cuja família, em parte, foi morta pelos atrozes acontecimentos do Holocausto, com o extermínio de 1,5 milhão de judeus poloneses no campo de Auschwitz, em seu próprio território, Sylvia dedicou grande parte de sua obra a essa memória. Terceiro, por ser considerada sempre uma estrangeira mesmo tendo nascido em Paris, não se sentia plenamente em sua terra.

Além do extermínio do povo judeu, "o Holocausto significou também o extermínio de nossa cultura", lembrava Sylvia Ostrowetsky, pois era uma carga pesada e irremovível de sua existência. O nazismo eliminou a cultura de um povo, afirmava. Auschwitz estava presente na história, na sua vida, na sua família, como na memória de sua geração. Era uma sombra longa e escura em sua vida, que desde a sua infância, a angustiava terrivelmente e que ela tentou exorcizar por meio de seus escritos, traduzindo-a, concretamente, em grande parte do conjunto dos trabalhos que realizou sobre a Rue des Rosiers, quartier parisiense, tipicamente judaico, localizado na área central de Paris, o qual correu sérios riscos de ser descaracterizado pelo poder imobiliário e por outros modismos urbanísticos. Pesquisou sobre a identidade judia e escreveu sobre a monumentalização do gueto de Varsóvia.

Uma das últimas vezes que estivemos juntas, na primavera de 2002, caminhávamos, no final da tarde pela Rue des Rosiers, onde, a cada passo, Sylvia revivia, em sua memória, um fragmento de suas lembranças juvenis e contava, cheia de emoção e de dor, sobre como era ter ficado escondida dentro de um armário fechado, por quase um dia, ou ainda como um grupo de crianças judias foi escondido no subsolo da igreja, pela professora. De como os soldados alemães blasfemavam e pichavam as paredes das casas judias, muitas das quais abandonadas. Caminhávamos e lá vinham outras histórias e outras lembranças. Escutava e me mantinha sempre atenta e calada, pois, para mim, diante dos relatos dolorosos e de tamanho sofrimento, era também uma viva aula de história sobre aqueles episódios que, certamente, de outra forma, jamais teria conhecido. Longas horas passei escutando suas memórias e histórias familiares, sobre seu pai e sobre sua mãe, assim como de outros membros da família que haviam sofrido com o nazismo.

Os seus escritos sobre identidade judaica, mais precisamente, sobre os judeus laicos que sobreviveram e aqueles que vivem a condição de diáspora, em Paris e na Europa, fizeram parte de suas últimas reflexões. Um de seus últimos trabalhos, do qual participei ajudando-a a tabular os dados de um longo questionário sobre as identidades judia, foi L'identité des juifs "laïcs" en France aujourd'hui. Trabalhávamos nas tardes frias, com a chuva caindo sem cessar, e só interrompíamos para uma xícara de chá, acompanhada de lembranças e reminiscências. Paradoxalmente, seu entusiasmo era tanto sobre o trabalho que sempre me dizia: "será que terei tempo de escrever tudo o que gostaria antes de morrer sobre a identidade judia?" Naquela época já se encontrava com a saúde muito abalada, o que, aliás, nunca a impediu de trabalhar permanente e sistematicamente até seus últimos momentos de vida, conforme me foi dito pelo seu único filho. Nos últimos dois anos de sua vida, lutava contra o tempo e contra a doença e fez do trabalho a prorrogação de sua existência.

Um de seus últimos escritos que recebi, um mês antes de sua morte, a versão final, foi La monumentalisation du ghetto de Varsovie, que reflete a importância e centralidade que dava ao papel social da memória. Para ela a monumentalização não representava apenas um ato de reparação. Mais do que isto, representa uma "síntese entre memória e história", na qual os judeus mortos são reconhecidos como um povo, uma identidade, uma cultura.

Foi com ela que conheci a obra de Hannah Arendt, Eichemann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal (1989), assim como o livro de Primo Levi, Les naufragés et les rescapés: quarante ans après Auschwitz (2001). O autor não analisa sua experiência de ter vivido no campo de concentração como um acidente da história, mas como um fato exemplar que permite compreender até que ponto pode ir um homem, seja no papel de torturador, seja no papel de vítima. Em outras palavras, analisa quais eram as estruturas de um sistema profundamente autoritário e as técnicas usadas para anular a personalidade de um indivíduo. Reflete sobre a natureza das relações criadas entre os torturadores e os torturados.

Sylvia evocava, a propósito da obra de Arendt, a relação entre a responsabilidade coletiva e a responsabilidade individual. A seu ver, o título do livro Eichemann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal revela, de imediato, uma posição contraditória de Arendt: seja porque o mal é banal e todo o regime nazista compartilha uma responsabilidade coletiva, seja porque o indivíduo Eichemann foi julgado pelos seus atos e Arendt evidencia o quanto é difícil julgar. Para a autora, Eichemann, ao mesmo tempo, era responsável ou culpado e não o era.

Por fim, vale dizer que Sylvia cumpriu seu "dever da memória" em relação à sua dor individual e ao sofrimento do povo judeu, uma vez que a memória do Holocausto poderá impedir a reprodução de outros crimes semelhantes, porque pode armar moralmnente os povos contra os regimes totalitários. Embora a memória em si não seja suficiente, mas para ela o fundamental era contribuir para a reflexão sobre as grandes crises, pois se constituem no fermento de inomináveis tragédias.

Subjetividades e estética: la laideur et la beauté

Sabe-se que, para Kant, o belo não pode ser estritamente definido. É um julgamento universal e sem definições. Ou seja, é "o que agrada universalmente e sem conceitos" e insistia na independência do prazer do belo acima de qualquer interesse, tanto sensível, quanto racional. Esta proposição kantiana fundamentou a estética sobre um acordo coletivo quase injustificável o do senso comum. Ou seja, ela se fundamentou sobre um sentimento e não reivindicou nenhuma outra legitimidade que sua própria afirmação.

Esta entrada da estética no mundo social deixou entrever, a propósito dos "julgamentos" de uns sobre os outros, o drama de cada um de se ver julgado negativamente ou rejeitado. Neste sentido, para Sylvia, é possível sustentar a idéia de que estamos diante de um vínculo social classificador, que pode integrar ou excluir, que hierarquiza os indivíduos, uns em relação aos outros não de forma diversas aos indicadores tradicionais de classificação social. Assim, a dimensão estética também pode estar no coração da organização social, daí a proposição de que há uma dimensão estética na relação social, e a autora afirmava que:

Les hommes sont gouvernés par leurs passions, non pás égoïsme, dit Hume, mais par partialité. Pour la société, il n'y a qu'une façon de canaliser lês passions, en créant des extensions artificielles du jugement qui permet de lês canaliser. La coquetterie, l'art, sont des productions nécessaires. Leur arbitraire se voit justifié si comme un instrument indispensable de socialisation. L'esthetique mais aussi le plaisir qui l'accompagne ne peuvent être separés de la morale. Entre bien-beau, mal-laid, lês frontières ne sont pas distinctes. (Ostrowetsky, 1999a, p. 2)

Pode-se observar, portanto, que o gosto assim como a beleza e a feiúra se definiam também na base do vínculo social. Hoje, com uma outra moral vigente, novos processos de integração social se avistam, e podem ser medidos também pelas horas passadas na academia, em quantidades de potes de creme, na alimentação controlada, nas diversas sessões de psicoterapia, além de outras práticas similares. Tudo voltado para a busca de um equilíbrio físico e psíquico. Assim, pode-se compreender que a insidiosa cumplicidade dos saberes com o novo senso comum mediatizado, transforma a singuralidade e a felicidade de cada indivíduo na promessa de chegar à condição de ser belo(a).

Sylvia tinha uma relação quase existencial com a experiência da prática de pesquisa: para ela, esta era que fundamentava e produzia a qualificação do social. Foi uma mulher extremamente generosa, dadivosa, certamente por ter sofrido tantas constrições durante sua vida.

Por fim, Sylvia, por onde andares, talvez tenhas encontrado a forma invisível de habitar e de ter paz, deixando de ser uma estrangeira na tua própria terra. Assim como tão bem nos ensinou Nietzsche (1878), a quem te assemelhavas tanto....

Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra, senão como andarilho embora não como viajante em direção a um alvo útil: pois este não há. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo: por isso não pode prender seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tende a ver nele próprio algo de errante: que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade.

Notas

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Eichemann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: Charles Baudelaire, um lírico no auge do Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

LEVI, Primo. Les naufragés et les rescapés: quarante ans après Auschwitz. Paris: Gallimard, 2001.

MAROUF, Nadir (Ed.). Pour une sociologie de la forme: mélanges Sylvia Ostrowetsky. Paris: L'Harmattan, 1999.

OSTROWETSKY, S. La dimension esthétique dans la relation sociale: Sociologie de la laideur. Paris, 1999a. (mimeogr.).

_______. Civilités passageres. Revue Interuniversitaire de Sciences et Pratiques Sociales, Paris, n. 3-4, sept./déc. 1993.

_______. Les dispositifs spatiaux de la vie culturelle et sociale. In: MAROUF, Nadir (Ed.). Pour une sociologie de la forme: mélanges Sylvia Ostrowetsky. Paris: L'Harmattan, 1999b.

Artigo recebido em 23 nov. 2004; aprovado em 14 dez. 2004.

  • 1
    Grande parte de sua produção sobre este tema deriva também das pesquisas apresentadas no seminário organizado por Sylvia:
    Espaces public: quels lieux communs? Les arts de la rue et
    les autres arts et métiers de l'espace urbain: pratiques et points de vue, Amiens, Université de Picardie, nov. 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
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