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A universidade em tempos de ricscos

RESENHAS

A universidade em tempos de ricscos

por Carlos Benedito Martins

Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris-V, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e diretor-científico do Núcleo de Estudos sobre o Ensino Superior da Universidade de Brasília (Nesub)

RIBEIRO, Renato Janine. A universidade e a vida atual: Felinni não via filmes. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 211 p.

O ensino superior brasileiro, num intervalo de quatro décadas, tem experimentado significativas mudanças em sua morfologia e funcionamento. No início dos anos de 1960, o sistema contava com aproximadamente uma centena de instituições, a maioria delas de pequeno porte, localizadas predominantemente em centros urbanos, voltadas basicamente para o ensino e desligadas da atividade de pesquisa, contando com um corpo docente que, em larga medida, desconhecia a prática da profissão acadêmica. Esses estabelecimentos orientados fundamentalmente para a reprodução da elite nacional, abrigavam pouco mais de 100 mil estudantes, com maciça predominância do gênero masculino. Esse quadro contrasta com a complexa rede de instituições públicas e privadas que se constituiu ao longo das últimas quatro décadas.

Os dados mais recentes, fornecidos pelo Inep/MEC, indicam que em 2003, o sistema de ensino superior brasileiro contava com 1.859 instituições, absorvendo 3,9 milhões de estudantes de graduação e 110 mil alunos na pós-graduação. No bojo desse processo de mudanças, houve a incorporação de um público mais diferenciado socialmente, um aumento significativo de estudantes do gênero feminino, a absorção de uma expressiva parcela de estudantes integrados ao mercado de trabalho, a interiorização e regionalização da oferta do ensino superior, a institucionalização da profissão acadêmica em diversas instituições, bem como a formação de um vigoroso sistema nacional de pós-graduação que tem contribuído para o desenvolvimento da pesquisa e da tecnologia no País.

Apesar das transformações ocorridas nas últimas décadas, e das que estão em curso, o ensino superior brasileiro apresenta inúmeros desafios que ainda merecem uma profunda reflexão e a constituição de uma nova agenda para equacioná-los. Constitui um dado de realidade que a expansão das instituições e das matrículas não eliminou o seu persistente caráter histórico de exclusão e de elitismo. Não é difícil constatar que os esforços de renovação dos currículos dos cursos de graduação nem sempre tem conduzido a um ensino mais comprometido com um padrão de qualidade acadêmica e de maior pertinência social. Percebe-se também que o significativo desenvolvimento da formação de recursos humanos e da atividade de pesquisa ainda tem um impacto bastante modesto na melhoria das condições de existência do conjunto da sociedade brasileira. Inúmeros outros problemas poderiam ser acrescentados, indicando a urgente necessidade de se repensar as relações entre a universidade e a sociedade brasileira.1 1 Entre outros trabalhos que abordam problemas e desafios do ensino superior, consultar: Doria, Francisco Antônio (Org). A crise da universidade. Rio de Janeiro: Revan, 1998; Cunha, Luis Antônio. Ensino superior e universidade no Brasil: uma história de crises. Brasília: Nesub/Universidade de Brasília, 1998; Martins, Carlos Benedito. Notas sobre o sistema de ensino superior brasileiro contemporâneo. Revista usp, São Paulo, n. 39, 1999; Trindade, Hélgio (Org). Universidade em ruínas na república de professores. Petrópolis: Vozes, 1999; Menezes, Luiz Carlos de. Universidade sitiada: a ameaça de liquidação da universidade brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999; Chauí, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo, Editora Unesp, 2000; Forgrad. Resgatando espaços e construindo idéias: Forgrad 1997 a 2003. Recife: Editora Universitária Ufpe, 2003.

As reflexões contidas no livro de Renato Janine Ribeiro representam uma contribuição para uma ampla e revigorada discussão visando à criação de um novo pacto entre o sistema de ensino superior, e particularmente a instituição universitária, com a sociedade nacional. O seu trabalho é o resultado de um conjunto de artigos escrito no período 1996/2002 que tem como eixo integrador as diversas facetas constitutivas da vida acadêmica nacional (ensino, extensão, pesquisa, política científica, etc.) diante dos diversos desafios constitutivos do um tempo histórico atual, cada vez mais marcado por constantes transformações sociais e da subjetividade dos atores sociais, pelo desabamento dos grandes sistemas de explicação do mundo, etc. Sua perspectiva analítica baseia-se no âmbito das Ciências Humanas, o que lhe permite, no presente livro, transitar nos campos da filosofia, antropologia, sociologia, ciência política, psicanálise, literatura, etc.

Ao longo de suas páginas, percebe-se a preocupação do autor em discutir estratégias que permitam à universidade melhorar o impacto de suas múltiplas atividade diante da sociedade. Em seu ponto de vista, o ensino superior não pode ser entendido e reduzido ao simples apelo do mercado econômico, e inclui outros níveis de complexidade, tais como: os movimentos sociais, a vida sindical, as organizações comunitárias, as organizações políticas, religiosas, etc.

O presente livro constitui também o resultado de observações e intuições do autor a respeito do cotidiano da vida universitária brasileira, advindas de sua experiência enquanto docente, pesquisador, consultor de agências de fomento, etc. Desde as primeiras páginas, Janine procura deixar claro que não constitui seu objetivo apresentar uma visão totalizante da vida acadêmica na qual cada peça que a constituiu se enquadra uma com as outras, nem propor soluções detalhadas para enfrentar as múltiplas questões abordadas. Mais importante do que projetar uma vida universitária na qual tudo se encaixa, o livro pretende convidar o leitor a rever uma série de convicções que têm sustentado vários discursos sobre a universidade e tirar proveito intelectual do clima de descompasso e de instabilidade que marcam a vida atual nos mais diversos planos para desencaixar as visões recorrentes sobre a vida acadêmica.

A análise desenvolvida caracteriza o tempo atual como potencialmente sujeito a riscos de acidentes, ou seja, à possibilidade cada vez maior de ocorrerem acontecimentos imprevistos em nossa existência individual, devido à própria instabilidade que adquiriu a vida social contemporânea. A modernidade, na apreensão do autor, trouxe também, entre outros fenômenos, uma constante ameaça de destruição de tudo o que temos, tudo o que sabemos e de tudo o que somos. Nessa perspectiva, cresce o número de pessoas cujas relações amorosas estáveis são devastadas por uma separação inesperada, assim como aumenta o contingente daqueles que perdem o emprego ao qual se dedicaram por um longo período na vida e, pior ainda, anulam a chance de conseguir novo emprego caso não mudem de forma significativa sua rota e perfil profissional. Desta forma, a incidência de diversos riscos, seja nas relações amorosas, seja nas atividades de trabalho, converteu-se em um dado constitutivo da vida contemporânea. Diante disso, na perspectiva do autor, um dos grandes desafios a ser enfrentado pela universidade nos dias atuais é produzir indivíduos que tenham capacidade de inovar diante do crescente caráter imprevisível que se encontra subjacente nas várias dimensões da sociedade contemporânea e os seus impactos na constituição de nossas subjetividades.2 2 A noção de risco e imprevisibilidade da sociedade contemporânea vem sendo discutida de forma recorrente no âmbito das diversas ciências humanas. No domínio da sociologia contemporânea, ver por exemplo: Beck, Ulrich. Risk society: towadrs a new modernity. Londres, Sage, 1992; Giddens, Anthony. Self and society in the late modern age. Oxford: Polity Press, 1999; Bauman, Zygmunt. Liquid modernity. Oxford, Polity Press, 2000.

O livro de Renato Janine fornece, ao longo de suas páginas elementos para se repensar a complexa relação existente entre educação e mercado de trabalho que, geralmente, tem sido apresentada na bibliografia especializada de maneira naturalizada e unívoca. Um dos mantras que aparece na imprensa diária, assim como nos discursos empresarial, político e dos administradores universitários, tende a enfatizar que uma das tarefas prioritárias da educação superior é a formação de indivíduos para o mercado de trabalho. Esse discurso é incorporado em larga medida pelas famílias dos estudantes, uma vez que elas estão preocupadas com o futuro profissional de seus filhos, medido em termos de prosperidade econômica, uma vez que a sociedade contemporânea torna-se cada vez mais mensurada por padrões materialistas e hedonistas.

O trabalho salienta também que, no contexto da sociedade contemporânea, ocorreu uma mudança significativa no processo de transmissão de valores de uma geração para outra, mediatizada pela instituição familiar. Nesse sentido, até algumas décadas atrás os pais constituíam um modelo legítimo de comportamento no qual os filhos poderiam se apoiar. No entanto, gradativamente esse processo de identificação social e profissional com os pais sofreu um significativo processo de erosão, cedendo espaço para a irrupção de manifestações de diferenças irredutíveis quanto à formulação dos projetos e estilos de vida e de profissão esboçados pelos filhos. De certa maneira, a emergência da psicanálise e sua difusão cultural para um público cultivado, ao permitir uma compreensão mais clara dos desejos dos indivíduos tem contribuído para essa mudança de comportamento. Com isso, no plano dos anseios mais íntimos, entre os quais incluem-se a vida sexual, afetiva e profissional, os jovens deixaram de perseguir os mesmos caminhos trilhados pelos seus pais.3 3 O trabalho clássico de David Riesman ( The lonely crowd. Yale university Press, 1953) ao analisar a passagem do que ele denominava sociedade introdirigida para a alterdirigida, apreendeu com brilhantismo a erosão da autoridade familiar no limiar da modernidade.

O que o trabalho procura destacar é que num contexto de sociedade de riscos, a instituição universitária não possui mecanismos capazes de garantir a expectativa social de conversão de títulos escolares em empregos exitosos, uma vez que nem mesmo os especialistas de mercado de trabalho têm certeza quanto à previsão dos destinos dos profissionais que são atualmente formados pelo ensino superior. Já nas páginas iniciais, o trabalho suscita no leitor a indagação imediata: diante da enorme instabilidade reinante no funcionamento do mercado de trabalho nos dias atuais - no qual profissões aparecem e desaparecem ao sabor das conjunturas -, que garantias as instituições de ensino superior podem oferecer para que esses jovens estudantes obtenham sucesso profissional daqui a três décadas? Em vez de a universidade despender energias em promessas sobre as quais não tem controle de sua realização efetiva, seria mais profícuo formar intelectualmente indivíduos para a mudança, capacitando-os intelectualmente para enfrentar os diversos riscos de acidente. Na perspectiva do autor, um dos equívocos dos administradores universitários e de outros atores sociais consiste em sinalizar uma segurança e uma certeza quanto ao futuro profissional para os estudantes universitários. Daí deriva que, em larga medida, nem a academia, nem o colo materno, nem as diversas instituições sociais no mundo contemporâneo encontram-se em condições de fornecer um sentimento de segurança existencial e de êxito profissional.

Sua análise procura salientar que os cursos universitários encontram-se numa situação de refém da lógica das profissões, que tendem a comandar, na maioria das vezes, o funcionamento das instituições universitárias, tal como a divisão dos diversos departamentos de ensino e pesquisa bem como a existência das faculdades e institutos. Ao invés de permanecer refém das imaginárias necessidades do mercado de trabalho, na visão do autor, seria necessário que a universidade repensasse a pesada rotina que vem impregnando suas atividades de formação acadêmica e de produção cultural. Nesse sentido, para Renato Janine, a universidade, respeitando as especificidades das diferentes áreas do conhecimento, deveria formar academicamente seus estudantes sem entrar muito no detalhe daquilo que a vida profissional ou o mercado de trabalho pode estar eventualmente exigindo.Com isso, o livro procura ressaltar que a universidade não deveria sacrificar sua razão de ser e sua especificidade institucional, que é justamente a de propiciar uma ampla formação acadêmica aos estudantes e engendrar a criação cultural. No entendimento do autor, os cursos de graduação, ao invés de propiciar uma estreita formação especializada, fadada a se tornar irrelevante em curto prazo, deveriam propiciar a gestação de um espírito inquieto, consciente que o saber específico de uma determinada profissão e o conhecimento científico jamais se congelam e se totalizam.

O fenômeno da evasão de alunos, que perpassa inúmeros cursos de graduação na sociedade brasileira, é percebido como uma reação inevitável dos jovens estudantes à crescente especialização e segmentação do saber acadêmico. A análise da questão da evasão, geralmente centrada num enfoque individual, tende a responsabilizar cada aluno pela desistência de um curso específico, estigmatizando-o como irresponsável ou pouco persistente. Nesse sentido, esse enfoque pode, lamentavelmente, contribuir para minimizar a prevalência de fatores estruturais que se encontram subjacentes a esse fenômeno. A evasão pode constituir uma resposta manifesta ou latente dos estudantes à exposição de programas de ensino envelhecidos e desinteressantes. No entendimento do autor, se esses fatores mencionados podem contribuir para a existência do fenômeno da evasão, a sua explicação estrutural repousa num modelo universitário que privilegia a formação acadêmico-profissional definida de uma vez por todas. Em sua percepção, a evasão pode constituir-se num fato saudável e evidencia a necessidade de se repensar de forma profunda o funcionamento da vida universitária que se encontra submetida à estreita lógica do mercado profissional, consubstanciada na regulamentação dos diplomas que dão acesso aos postos de trabalho. Dessa forma, o livro apresenta um questionamento do fechamento das diferentes áreas do conhecimento sobre si mesmas e uma crítica da crença que pressupõe que a melhor formação acadêmica estaria baseada numa maior delimitação de um determinado terreno de exploração do saber. Na visão do autor, ao invés do ensino superior organizar-se sob o signo da especialização ele ganharia em dinamismo se fosse estruturado de forma mais interdisciplinar e mais aberta às constantes transformações da vida atual.

A estruturação da vida acadêmica nacional, construída em termos de especializações de áreas de saber, além de encontrar-se presente nos cursos de graduação, na opinião do autor, manifesta-se também na atividade de pesquisa desenvolvida no interior das universidades. Dessa forma, o trabalho conduz a indagar qual o sentido que a pesquisa de uma determinada temática, que mantém interface com diversas áreas do saber, seja desenvolvida no interior de um departamento e/ou faculdade específica e, mais do que isso, que seja comandada no plano intelectual pela ótica da respectiva área do conhecimento a que se encontra ligada. Temas potencialmente interdisciplinares, na maioria das vezes, não têm propiciado o diálogo com outras disciplinas afins. O alvo de sua crítica dirige-se ao excessivo fechamento das atividades de pesquisa às suas respectivas áreas de conhecimento que, em função dessa atitude, tem manifestado sérias dificuldades em dialogar com áreas correlatas ou com outras linguagens. Nesse contexto, a referência a Fellini, que ocupa o subtítulo do livro é central: o cineasta italiano não se inspirava em filmes para filmar, mas ao contrário, dedicava-se à atividade de leitura para construir suas imagens cinematográficas, ou seja, migrava constantemente de uma forma de percepção para outra. Na perspectiva do autor, uma série de mecanismos que se encontram intimamente conectados com a vida universitária, tais como a existência das revistas especializadas e o funcionamento das associações nacionais de pesquisa e de pós-graduação - se por um lado permitem avanços positivos na atividade de pesquisa - por outro lado, tendem a fechar diversas áreas de conhecimento sobre si mesma numa lógica de funcionamento interna corporis. Dessa forma, a vida acadêmica acaba por se condenar a concentrar-se demais sobre suas respectivas áreas de conhecimento, perdendo uma rica relação com o mundo externo.

Um dos motes centrais do presente trabalho diz respeito à necessidade de uma maior abertura da vida acadêmica vis-à-vis ao mundo externo. Mas para que isso ocorra, na perspectiva do autor, inicialmente, torna-se necessária a quebra de rotinas acadêmicas, a perda de determinados hábitos intelectuais por parte dos pesquisadores que contribuem para a construção de verdadeiros muros internos que separam os pesquisadores e suas respectivas especializações no interior de suas instituições. Isso implica intensificar o diálogo intelectual dentro da própria instituição universitária, bem como aumentar a circulação e discussão das idéias e das investigações entre os docentes-pesquisadores, de tal modo que cada um deles possa se beneficiar dos resultados das pesquisas que são realizadas no conjunto da instituição. Para Renato Janine, uma maior abertura do mundo acadêmico e um rompimento com seus muros internos passam por uma inevitável discussão sobre quais são os atores sociais que eventualmente poderão ser beneficiados pelos resultados das pesquisas realizadas no interior das instituições universitárias.

Para o autor a grande maioria da sociedade encontra-se excluída do ensino superior. Não se trata de nutrir a falsa expectativa que se possa expandir a universidade, de tal modo a torná-la capaz de absorver todos os cidadãos de um país, haja vista que nenhuma sociedade existente realizou tal feito. Em sua perspectiva, trata-se de discutir quais são os usos possíveis da atividade de formação e de pesquisa, ou seja, dos cursos de graduação e de pós-graduação, de suas pesquisas para o conjunto da sociedade. Nesse sentido, as universidades brasileiras, tanto públicas quanto privadas, deveriam assumir o compromisso de lutar contra a injustiça social. Isso implicaria colocarem para si a mesma como concebem e visam a sociedade à sua volta, mas também quais ações estratégicas podem desenvolver para enfrentar o problema da aguda injustiça existente na sociedade brasileira. Isso não significa partidarizar a universidade. Ao contrário disso, a universidade deve permanecer como uma instituição crítica de ideologias prontas e acabadas, e deve, até mesmo quando recebe pessoas ou grupos ligados a determinados interesses sociais específicos, contrapô-los a uma outra visão contrária às suas crenças muito precisas. Dessa forma, a universidade pode sugerir procedimentos técnicos e/ou oferecer cursos, por exemplo, para movimentos sociais de esquerda ou para executivos de empresas privadas, contradizendo, ate certo ponto, as crenças e convicções desses públicos específicos. O fundamental é que a universidade coloque para si o desafio - a partir de sua contribuição intelectual e institucional - específica de lutar contra a existência de uma sociedade marcadamente injusta e excludente.

Não se trata também de converter a universidade em ONGs. Na análise do autor, o trabalho próprio da universidade encontra-se localizado na esfera do pensamento e da criação intelectual. Certamente, existem cursos de perfil mais técnico, nos quais o próprio ensino pode incluir ações efetivas contra manifestações da desigualdade social reinante na sociedade brasileira. No entanto, não deveria ser essa a tônica dos cursos de formação acadêmica que poderia beirar a procedimentos demagógicos, mesmo porque talvez boa parte dos cursos existentes não tenha condições específicas de lutar contra a injustiça social. No entanto, o autor vislumbra um grande campo aberto quanto às possibilidades de uma interação mais efetiva entre a universidade e a sociedade, principalmente no domínio das ciências humanas. Seu trabalho chama a atenção para a existência de uma significativa demanda de opinião pública dirigida para a universidade, que se expressa na recorrente solicitação aos seus docentes de proferirem palestras em diferentes círculos sociais, em escrever artigos na imprensa diária, em opinar à partir de entrevistas sobre variados temas de interesse coletivo. Uma vez que toda essa demanda vem de fora da universidade, surge a indagação: não seria o caso das diferentes áreas do conhecimento se programarem com vistas a definirem o que seria relevante socialmente transmitir para o conjunto da sociedade.

Um dos alvos visados pela análise é abrir uma ampla discussão a respeito dos procedimentos pelos quais o acervo de ensino e pesquisa, acumulado no interior da universidade, possa romper sua estrita circulação interna, voltada insistentemente sobre si mesma e destinada basicamente para os pares. Trata-se de envidar esforços criativos para que a produção intelectual realizada pela universidade não seja circunscrita aos pares, mas que possa atingir um público mais extenso. Para o autor, no campo das ciências humanas essa comunicação com um público maior é mais viável, uma vez que elas utilizam uma linguagem natural, raramente lançando mão de procedimentos de linguagem formalizada. Além de seus objetos de estudos serem razoavelmente próximos uns dos outros, elas versam a respeito da próprio ser humano. A combinação desses fatores permite a construção de um discurso que tenha ao mesmo tempo qualidade intelectual e facilidade de compreensão ao se dirigir para um publico não especializado. O que o texto sugere é que as diversas ciências humanas formulem uma pauta de temas socialmente pertinentes sobre os quais elas possam trabalhar intelectualmente, comunicando seus resultados para o conjunto da sociedade, visando fornecer sua contribuição específica para a melhoria das condições sociais de existência.

Dessa forma, a universidade, sem se tornar um partido político e resguardando sua identidade institucional, pode propiciar, através do trabalho desenvolvido pelas diversas áreas do conhecimento, uma compreensão mais clara dos principais problemas da sociedade nacional e oferecer alternativas possíveis para o seu equacionamento. Para tanto, segundo o autor, ela deve assumir uma atitude mais ativa, utilizando seus órgãos de comunicação, como rádios, tvs, sites de departamentos e/ou de seus docentes, como instrumentos pelos quais o conhecimento que ela produz chegue à sociedade e a um público leigo. Para o autor, a extensão universitária é aquele momento da vida acadêmica em que a comunidade interna deixa de tratar as pessoas como mero objeto de pesquisa e do discurso acadêmico, divulgando para um público leigo os resultados de suas diversas atividades acadêmicas.

Como conciliar o elogio do risco, que implica privilegiar mais uma formação intelectual ampla do que a simples transmissão de conteúdos, perturbando as consciências mais que formatando quadros para o mercado de trabalho, com a exaltação da responsabilidade social da universidade? O que o livro procura sugerir ao longo de suas páginas é que existe algo em comum entre a melhor pesquisa e a melhor extensão universitária, de tal modo que a pesquisa cresce muito quando recebe impactos externos e que a extensão é a maneira pela qual a universidade pensa sua relação com o mundo de fora. Nesse sentido, se se deseja desenvolver uma pesquisa de qualidade e estabelecer uma relação dinâmica com a sociedade, a contradição entre as duas é menor do que se imagina. O mundo acadêmico deve sair de si mesmo, abrindo-se mais para sociedade: eis uma das mensagens centrais do livro. Isso implica, na visão do autor, a realização de pesquisas mais interdisciplinares, o desenvolvimento de uma curiosidade mais aguda imbricando o trabalho intelectual com as vivências sociais e um maior cuidado com a área da extensão universitária, geralmente considerada como a parte menos nobre do mundo universitário. As conexões externas da universidade, na verdade, dizem respeito à sua intimidade, pois, na verdade, as relações que a academia mantém com a sociedade constituem o que ela tem de mais interno. Por isso, no limite, falar em universidade e sociedade pode constituir-se num equívoco, uma vez que o conectivo e pode insinuar a existência de dois atores que se encontram separados e que, a certa altura, se relacionam. Para o autor, esses dois atores jamais estiveram separados.

A discussão que o livro elabora a respeito das ciências humanas, enquanto uma das áreas do saber abrigada no interior da universidade, é ilustrativa de sua preocupação em vislumbrar uma interação mais dinâmica entre a academia e a sociedade. Inicialmente, o trabalho parte do pressuposto da distinção epistemológica entre as ciências humanas e as ciências exatas e biológicas, uma vez que nas primeiras inexiste uma separação radical entre sujeito e objeto de conhecimento, ou seja, entre o homem que conhece e os seres vivos a quem conhece. Para o autor, o sentimento de piedade ou de compaixão que aproxima o investigador do ser humano que sofre constitui uma das bases das ciências humanas. Nesse sentido, se as ciências galilaico-cartesianas permitiram o advento da tecnologia, as ciências rousseaunianas, ou seja, as ciências humanas, têm permitido as práticas do homem sobre o próprio homem. Para o autor, a aplicação automática de determinados critérios, vigentes na organização e funcionamento das ciências exatas e biológicas, para avaliar o desempenho das ciências humanas não é satisfatório. Além disso, não se pode deixar de levar em consideração que um dos aspectos cruciais na pesquisa em ciências repousa na gestação de um saber que, por definição, tende a contrariar as ilusões que os seres humanos constroem sobre si mesmos e sobre a vida social.

Nesse sentido, as ciências humanas devem abandonar uma postura defensiva e assumir claramente que os critérios epistemológicos e metodológicos elaborados em outras áreas de conhecimento não são aplicáveis a elas. Nessa perspectiva, a possibilidade de um maior impacto das ciências humanas na sociedade passa, necessariamente, pelo reconhecimento das especificidades de suas bases fundacionais. Para o autor, se a fundação e o funcionamento das ciências humanas são diferentes das ciências exatas e biológicas, o efeito prático do saber produzido por elas será também diferente das demais. Não se trata de utilizar as pesquisas humanas para dominar a natureza;. o que está em jogo é seu uso para um conhecimento sobre o próprio ser humano, mesclando em seu cerne conhecimento e ação, não no plano da produção das coisas, mas no da construção do mundo humano, indo desde o plano subjetivo até o mundo social. A eficácia do saber sobre o homem é relevante, efetuando-se em diversos campos. No entanto, a sua relevância prática tem sido pouco valorizada, justamente em função da utilização de modos de compreensão científica derivados das ciências exatas e biológicas. Para as ciências humanas galgarem uma maior aplicação prática, torna-se necessário romper o campo fechado de sua interlocução interna alimentada pelo diálogo mantido e voltado basicamente para pares. Concomitantemente, os resultados alcançados pelas ciências humanas devem ser conhecidos pela maior parte das pessoas, de tal forma que uma sociedade tome conhecimento dos trabalhos que foram realizados sobre elas pela Ciência Política, Sociologia, Antropologia, etc.

Uma das novidades do livro consiste em salientar que além dos tradicionais usuários dos conhecimentos das ciências humanas o Estado e as ONGs - elas deveriam também considerar um outro destinatário, certamente um pouco mais difuso, que seria a formação de uma opinião pública democrática alimentada pelas suas respectivas descobertas. Para o autor, isso não implica estabelecer uma relação direta entre a comunidade científica envolvida na área de humanas e a opinião pública. Na verdade, essa relação é mediatizada por uma série de intermediários localizados primordialmente nos meios de comunicação, indo desde os rádios, jornais, canais de televisão, até as editoras acadêmicas mais comerciais. O autor procura ressaltar que até o presente momento, a difusão dos conhecimentos gerados pelas ciências humanas tem sido, em larga medida, comandada pela lógica do mercado de comunicação e pelos seus intermediários. Nesse sentido, um dos desafios a ser enfrentado pelos cientistas das ciências humanas consiste em encontrar mecanismos para emancipá-las do controle da lógica do mercado de comunicações, bem como formular uma política científica de transferência de seus conhecimentos ao conjunto da opinião pública, de maneira mais consciente e deliberada. Em se tratando de uma sociedade democrática essa transferência de conhecimento jamais deve assumir um caráter impositivo, mas pode constituir programas de contribuição dessa área do conhecimento à sociedade.

Num momento em que se discute a reforma do ensino superior no País, o trabalho de Renato Janine apresenta uma oportuna reflexão sobre o sentido público do ensino universitário. Inicialmente, o autor assinala que existe um erro recorrente na forma pela qual vem sendo debatido o ensino público no País - inclusive pelos seus mais combativos defensores - que consiste em assimilá-lo primordialmente à sua dimensão de gratuidade. Essa perspectiva, em seu entendimento, é estreita, uma vez que o ensino público, além de ser um dever do Estado, deve estar baseado em certos valores republicanos que englobam a laicidade, o respeito à pluralidade de opiniões e a igualdade de acesso de todos os cidadãos. Para o autor, o ensino é público, sobretudo porque seus resultados devem difundir-se por toda a sociedade e serem apropriados por ela, pertencendo, portanto à esfera do direito, que é potencialmente universal, e não ao âmbito do privilégio que é limitado. À medida que o trabalho ressalta a apropriação social do conhecimento como uma das dimensões constitutivas do ensino público, minimiza-se nessa discussão a centralidade do princípio jurídico das instituições (a quem pertence o estabelecimento?) e privilegia mais o seu funcionamento sociológico, ou seja, que grupos e/ou classes sociais beneficiam-se com os conhecimentos produzidos pelas instituições. O que se propõe é a substituição do paradigma jurídico-constitucional da universidade para avaliar o seu conteúdo público e sua substituição pelo efetivo exame da repartição dos benefícios advindos da universidade para a sociedade.

O ensino público, enquanto dever do Estado, deve desenvolver estratégias para minimizar a apropriação privada e patrimonialista da formação fornecida aos seus estudantes nas diversas áreas profissionais, buscando maximizar os resultados sociais da atuação dos seus egressos. Nesse contexto, torna-se fundamental reexaminar a pertinência social dos currículos das universidades públicas de tal modo que a formação de recursos humanos possa beneficiar o conjunto da sociedade. A universidade deve também propiciar aos seus alunos uma sólida formação ética capaz de diminuir um senso de realidade bastante egoísta e privatista, incentivando-os a assumir um senso de responsabilidade social diante da vida social. O caráter público da universidade encontra-se associado à recepção social de seus diversos produtos, seja a formação de recursos humanos/profissionais e/ou de suas pesquisas. O processo pelo qual os atores sociais recebem os produtos da universidade constitui uma nova produção social, pois o que lhe for transmitido é incorporado e transformado em diversas modalidade de práticas sociais.

A sociedade contemporânea através de uma série de processos sociais ampliou de forma considerável o grau de liberdade dos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, tem produzido riscos e incertezas nas mais diversas esferas da vida, tanto no plano individual quanto no plano social. Este livro, além de abordar com propriedade um tema oportuno e relevante, convida a nos libertarmos da utilização de discursos rotineiros sobre a universidade e a vida atual, geralmente calcados numa nostalgia de tempos de maior estabilidade social e cognitiva. Ele nos incita a exercer a liberdade de pensamento aliada à ousadia de criar novas formas de relação entre a universidade e a sociedade, capazes de apreender a instabilidade, a crise e o risco como elementos constitutivos da vida atual. Sem apresentar fórmulas salvacionistas e messiânicas - o que constitui um de seus inúmeros méritos - ele nos alerta que a universidade precisa escutar as demandas dos diversos atores e grupos sociais e, dessa forma, estabelecer uma relação mais profícua com a totalidade da sociedade brasileira contemporânea.

Notas

  • 1
    Entre outros trabalhos que abordam problemas e desafios do ensino superior, consultar: Doria, Francisco Antônio (Org).
    A crise da universidade. Rio de Janeiro: Revan, 1998; Cunha, Luis Antônio.
    Ensino superior e universidade no Brasil: uma história de crises. Brasília: Nesub/Universidade de Brasília, 1998; Martins, Carlos Benedito. Notas sobre o sistema de ensino superior brasileiro contemporâneo.
    Revista usp, São Paulo, n. 39, 1999; Trindade, Hélgio (Org).
    Universidade em ruínas na república de professores. Petrópolis: Vozes, 1999; Menezes, Luiz Carlos de.
    Universidade sitiada: a ameaça de liquidação da universidade brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999; Chauí, Marilena.
    Escritos sobre a universidade. São Paulo, Editora Unesp, 2000; Forgrad.
    Resgatando espaços e construindo idéias: Forgrad 1997 a 2003. Recife: Editora Universitária Ufpe, 2003.
  • 2
    A noção de risco e imprevisibilidade da sociedade contemporânea vem sendo discutida de forma recorrente no âmbito das diversas ciências humanas. No domínio da sociologia contemporânea, ver por exemplo: Beck, Ulrich.
    Risk society: towadrs a new modernity. Londres, Sage, 1992; Giddens, Anthony.
    Self and society in the late modern age. Oxford: Polity Press, 1999; Bauman, Zygmunt.
    Liquid modernity. Oxford, Polity Press, 2000.
  • 3
    O trabalho clássico de David Riesman (
    The lonely crowd. Yale university Press, 1953) ao analisar a passagem do que ele denominava sociedade introdirigida para a alterdirigida, apreendeu com brilhantismo a erosão da autoridade familiar no limiar da modernidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2005
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