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A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones?

RESENHAS

Rafael Salatini

Doutor em Ciência Política pela USP. Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas Unesp - Marília. rsalatini@yahoo.com.br

de Robert Castel, A Discriminação Negativa - Cidadãos ou Autóctones? (Petrópolis, Rj: Vozes, 2008)

O racismo possui muitas faces. No Brasil e nos EUA predomina o racismo - velado no primeiro e aberto nos segundos - contra a população negra, herança do passado escravagista presente em ambos os países (no Brasil por quase quatro séculos, enquanto nos EUA por quase um século). A Europa, entretanto, que não conheceu modernamente a escravidão em seu território (embora a tenha promovido, entre outros lugares, nos dois países mencionados), não conhece no mesmo grau essa forma de racismo. Não obstante, duas outras formas de racismo são bastante frequentes no velho continente (em grau menor que no continente americano): o antissemitismo e a xenofobia. A bibliografia europeia sobre o antissemitismo não é apenas extensa, mas bastante profunda, incluindo textos de Sartre a Arendt, de Adorno a Vidal-Naquet, de Bauman a Morin, etc. (grande parte escrita justamente por autores judeus). A bibliografia europeia sobre a xenofobia, todavia, vem ganhando volume e profundidade aos poucos. O pequeno livro A discriminação negativa (2008), do sociólogo francês R. Castel, recentemente publicado na França e simultaneamente traduzido no Brasil, contribui importantemente para esta segunda discussão. Dedicado à análise do racismo francês contra os cidadãos de origem estrangeira, em especial de ex-colônias da república de Rousseau, o livro distingue duas formas de discriminação, uma chamada positiva e outra, negativa:

Existem formas de discriminação positivas que consistem em fazer mais por aqueles que têm menos. O princípio destas práticas não é contestável na medida em que se trata de desdobrar esforços suplementares em favor de populações carentes de recursos a fim de integrá-las ao regime comum e ajudá-las a reencontrar este regime. (p. 13)

O livro é dedicado, entretanto, à segunda forma de discriminação, que Castel define da seguinte forma:

Mas a discriminação negativa não consiste somente em dar mais àqueles que têm menos; ela, ao contrário, marca seu portador com um defeito quase indelével. Ser discriminado negativamente significa ser associadoa um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que os outros no-la devolvem como uma espécie de estigma. A discriminação negativa é a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da exclusão. (p. 14)

Esses cidadãos discriminados negativamente, citados pelo sociólogo, são, sobretudo, os jovens das periferias francesas, em grande parte filhos de imigrantes argelianos ou da África Subsaariana, que, no outono de 2005, ofereceram às autoridades francesas (e, pela TV, aos espectadores de todo o mundo), um festival de violência urbana. Sua falta de escopo reivindicatório, contudo, lembrava as revoltas populares pré-industriais, sem organização coletiva, sem liderança clara, sem objetivos declarados, etc. Entretanto, a pura criminalização também não oferece uma compreensão inteligente desse processo. Para o autor, "a vergonha da discriminação negativa não será banida por medidas de política policialesca, mas podemos desejar que uma reflexão política e sociológica um pouco mais exigente apresente algumas orientações para combatê-la" (p. 15). O livro trata de temas caros à recente urbanização das metrópoles francesas, como a transformação das periferias urbanas em cidades-dormitório, cuja configuração social inclui dois processos inicialmente não previstos por seus idealizadores: a etinização (que surge da mudança da política da imigração de trabalho dos anos 1950-1960, para a imigração de povoamento dos anos 1980) e a pauperização (que surge da passagem do período de desenvolvimento econômico do pós-guerra para um período de acentuado desemprego que se inicia nos anos 1970), que transformam esses lugares, segundo o autor, em "espaços de desterro".

O grande interesse sobre essa forma de discriminação descrita por Castel consiste em se tratar de uma útil especificação na teoria da xenofobia, pois os jovens das atuais periferias francesas não são de fato imigrantes estrangeiros, mas filhos de imigrantes estrangeiros e, portanto, pelo clássico ius soli, legítimos cidadãos franceses. Todavia, a grande rejeição que encontram na sociedade francesa se deve ao fato de serem socialmente considerados como "nem dentro nem fora" (mais próximos - diria - da situação "diaspórica" descrita por S. Hall, que pela situação de "estrangeiro" descrita por G. Simmel ou de "outsiders" descrita por N. Elias). Castel adverte que não se trata da mesma discriminação observada nos guetos norte-americanos ou no apartheid sul-africano, que pressupõem homogeneidade étnica, enquanto as periferias francesas são etnicamente heterogêneas. Curiosamente, a discriminação negativa também não descreve, segundo o autor, uma exclusão, o que pressuporia, por sua vez, a falta de acesso a todos os direitos - civis, políticos e sociais - concedidos ao restante da população (o que descreve a miséria em muitos países africanos, nas favelas brasileiras e nos guetos norte-americanos), enquanto os franciliens possuem e usufruem de todos os direitos franceses. Ao mesmo tempo, são culturalmente franceses, tampouco podendo ser considerados excluídos no sentido de separados da cultura francesa. A situação é, portanto, paradoxal, como se descreve no livro: "É precisamente desta situação paradoxal que precisamos nos inteirar: eles são cidadãos, eles estão inscritos no território francês e, no entanto, recebem um tratamento diferenciado, que os desqualifica" (p. 40).

Substancialmente, a questão é social, remontando à nova problemática operária que se caracteriza pelo desemprego em massa, pela desqualificação da mão de obra, pela precarização das condições de trabalho, pela pauperização dos trabalhadores, pelo crescimento da insegurança social, etc. Com um complicativo negativo para os imigrantes e filhos de imigrantes das ex-colônias:

Mas à desgraça de ser pobre e abandonado às incertezas do porvir soma-se um profundo sentimento de injustiça: eles constatam que não são tratados com paridade no enfrentamento destas situações. Um fator etnorracial reforça a aflição social, inscrevendo-a numa lógica de discriminação negativa. (p. 41)

O racismo propriamente dito se afigura em diversas situações (descritas rapidamente por Castel), como a discriminação policial e judiciária, a discriminação empregatícia, o bloqueio escolar e o estigma religioso, que respondem, em conjunto, pelo porquê da raiva dos jovens das periferias francesas contra a sociedade que apregoa a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Nesse sentido, os tumultos sociais do outono de 2005 se travestem de um aspecto político inaudito, ainda que incompreensível sob as classificações das formas de ação política já estabelecidas: "No mínimo - argumenta o autor - deveríamos acrescentar que existem práticas que aparentemente parecem estar aquém de qualquer reivindicação coletiva e, no entanto, estão nitidamente carregadas de significação política, já que expõem publicamente um problema crucial e evidenciam injustiças profundas" (p. 62). Tais práticas expõem, segundo Castel, a escalada da insegurança ao mesmo tempo social e civil - tema que o autor já havia exposto em seu L'insécurité sociale (2003) - na sociedade francesa contemporânea. A não compreensão dessa dimensão política da situação das periferias poderia levar à sua identificação (persecutória) com as velhas classes perigosas, "que consiste - escreve-se - em atribuir a certos grupos as ameaças que em seu conjunto a sociedade traz" (p. 65), grupos que, sob esse aspecto, deveriam ser considerados antes (e sem "angelicalismo") vítimas sociais: contradizendo os princípios do republicanismo francês, a discriminação negativa se alimenta da estigmatização que os descendentes das ex-colônias francesas sofrem ao serem inseridos, por imigração ou mesmo por nascença, na ex-metrópole, assim como os vagabundos da sociedade pré-industrial ou o proletariado da sociedade industrial outrora o foram (ou ainda são). Em comum, esses grupos possuem o fato de carregarem em si o mal funcionamento da organização social do trabalho em suas sociedades. O estigma nada mais faz do que oferecer bodes expiatórios que permitem a constituição dos "discursos e (...) práticas para impôr uma 'tolerância zero' e partir para a reconquista das 'zonas sem lei', entregues à insegurança", escreve o pesquisador, "mesmo se com esses métodos chegássemos a erradicar a delinqüência, o que é mais do que duvidoso, não teríamos com isso controlado os fatores que alimentam a insegurança social" (p. 72), a qual está atrelada a questões de ordem estrutural (e não conjuntural) da sociedade francesa.

A questão da discriminação negativa implica, portanto, na questão da cidadania da população, em destaque os jovens das periferias francesas: enquanto a discriminação positiva poderia estabelecer sua cidadania plena, baseada na igualdade, a discriminação negativa acentua sua condição de autóctones (indigènes, no original), calcada na desigualdade. Contudo, se a política anti-imigração do governo d'Estaing, nos anos 1970, fez piorar a situação, a política socialista de Mitterrand, nos anos 1980, em grande medida pró-imigração, não foi suficiente para para reverter a situação. O crescimento do partido conservador Front National, de J.-M. Le Pen, e suas vitórias nas eleições municipais dos anos 1990, como consequência desse processo, tendeu a minar a participação beur na política e espalhar o medo na população de origem imigrante. Ademais, uma se-quência de ocorrências internacionais, chamando a atenção para a renovação do Islã no mundo (a guerra do Golfo, a segunda Intifada palestina, os atentados nos EUA, a guerra do Iraque, os atentados na Europa, etc.), originou uma "islamofobia" no mundo ocidental, gerando inclusive sentimentos contraditórios entre os próprios imigrados.

Por trás dessas questões espinhosas se projeta, por fim, para o autor, a delicada questão do estigma da raça. Todavia, não se trata mais da concepção biológica de racismo que grassou na Europa do final do século XIX, ao fim da Segunda Guerra (presente no regime nazista, por exemplo), mas numa concepção culturalista: "A diferença racial reside aqui nas diferenças culturais, tornadas absolutas" (p. 88). É com base nesse racismo culturalista, suficiente para instituir duas categorias de cidadania, que se processou todo o projeto colonial francês, cuja dinâmica perversa, ainda que desformalizada, subsiste até hoje com relação às populações pós-coloniais, fora e dentro da França. Segundo Castel, "A questão é saber se a sociedade francesa conservou, reciclando, um determinado número de traços de um passado colonial que estariam na base do tratamento que ela dispensa a uma parcela de sua população" (p. 90).

Para o sociólogo da École des Hautes Études en Sciences Sociales, a solução para esse problemas passaria pela constituição de uma república multicultural: "No intuito de superar esta separação fatal para a unidade da nação, um reconhecimento aberto do pluralismo cultural e um estrito tratamento paritário das populações portadoras de especificidades étnicas e culturais se impõem" (p. 97). O fato de cerca de 15% da população francesa atual possuir origem autóctone, somada à perspectiva de crescimento demográfico exclusivamente devido à imigração, já apontariam para essa realidade social. O que coloca, dessa forma, para a França, não a opção entre multiculturalismo ou não-multiculturalismo, mas sim, assevera o autor, entre multiculturalismo harmonioso ou não-harmonioso, o primeiro dos quais precisaria ser construído superando-se as simplicações ideológicas.

Sem considerar a necessidade da política repressiva, quando necessário, Castel afirma o seguinte: "O que discrimina as minorias étnicas é a dupla desvantagem da raça e da classe, que devem ser combatidas simultaneamente" (p. 102). Daí a importância do expediente inverso, as políticas de discriminação positiva, no sentido da luta contra o fracasso escolar, o desemprego, a precariedade, a insegurança social, etc., cujo objetivo direto é desfazer a desigualdade em função da igualdade social obtida, da qual todas as formas de discriminação, inclusive a positiva, poderiam ser abolidas.

Não deixam de ser questões de difícil resolução mesmo para a nação que promoveu a maior revolução - ao mesmo tempo política, social, jurídica, cultural, etc. - moderna. O pequeno trabalho de Castel deve ser considerado imprescindível para debate em que se encerra, não apenas entre os cientistas sociais, mas também comunicadores, políticos, operadores de segurança, militantes sociais, políticos e culturais e todos mais interessados nos mais contemporâneos problemas sociais que são fruto não apenas da mais recente fase da globalização, mas de todo um passado de inglórias desigualdades que comprometem, caso não sejam seriamente revistas, o futuro dos princípios igualitários que normatizam a vida social, ao menos desde as revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII, no Ocidente. Ademais, a nós, resta o fato de que a questão francesa serve, inescapavelmente, de ensejo para a discussão das questões sociais brasileiras, que não são menos complexas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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