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Apresentação

DOSSIÊ PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO E LATINOAMERICANO

Apresentação

Mariza Veloso; Sergio B. F. Tavolaro

A cada onda de transformação que nos perpassa, recolocam-se na agenda de pesquisa e reflexão dos cientistas sociais brasileiros e latinoamericanos problemas que há muito animam e orientam nosso pensamento social: somos uma experiência social verdadeiramente singular? O que nos aproxima e nos afasta das "sociedades modernas centrais"? Quais aspectos poderiam explicar nossas pretensas especificidades? Que dilemas e desafios aguardam-nos? Quais alternativas temos diante de nós? Tudo leva a crer que as últimas duas ou três décadas avivaram muitas dessas questões em meio às aceleradas e profundas transformações que uma vez mais tomaram a sociedade brasileira de assalto: democratização, inserção da economia nacional no cenário global, ampliação da base social de consumo, nova tentativa de integração latino-americana, aprofundamento dos processos de "destradicionalização" e urbanização, expansão inédita do ensino superior, dentre outras expressivas mudanças, instigaram novas reflexões e questionamentos acerca de nossa identidade nacional. Somos, uma vez mais, levados e pensar sobre o lugar que ocupamos no globo, os caminhos e descaminhos da política brasileira, os contornos de nossa integração nacional, o próprio fôlego e direção dessas transformações bem como das respostas tentativamente elaboradas para elas.

Não é de se surpreender que, com notável freqüência, ao se debruçarem sobre essas grandes questões muitos de nossos cientistas sociais não hesitam em visitar os clássicos do pensamento social brasileiro. O motivo que os leva a assim proceder é evidente: em busca de chaves explicativas e interpretativas para decifrar o cenário social atual, aquelas figuras e suas obras revelam-se uma base de apoio segura e verdadeiramente repleta de valiosos insights. Revisitá-los em hipótese alguma resume-se a mero exercício de curiosidade intelectual, simples passeio a um museu de ideias estéreis. Trata-se, antes, do reconhecimento de que com eles - e por meio deles - esforços distintos de compreensão e explicação da sociedade brasileira contemporânea têm, de fato, maiores chances de alcançar êxito. O sentimento, bastante generalizado, é o de que a amplitude e variedade de questões, a diversidade temática, e a multiplicidade de perspectivas e olhares existentes entre as inúmeras "famílias intelectuais" que colorem o pensamento social brasileiro traduziram-se em recursos e ferramentas imprescindíveis às tentativas de deslindar velhos e novos dilemas.

Enganar-se-iam os que porventura achassem que essas figuras e obras caras ao nosso pensamento social fecharam-se sobre si mesmas, ruminando temas, questões e problemas exclusivamente brasileiros. Ao contrário disso, diálogo e intercâmbio com autores e reflexões "internacionais" são uma prática tão antiga quanto nossa própria tradição de pensamento. Dessa feita, somente de forma leviana poderiam acusações de "paroquialismo" ser imputadas a esse pensamento. Ademais, muito embora climas intelectuais fizeram-se sentir em "território nacional", nossos principais autores e perspectivas jamais se revelaram presas fáceis de modismos passageiros e superficiais. Sua postura ativa e crítica em relação às "ideias estrangeiras" que circulavam por aqui indicavam a constante preocupação quanto ao que hoje chamaríamos de "lugares de enunciação", quanto aos limites e possibilidades de referências aplicadas aos nossos próprios caminhos.

Não se quer com isso reservar aos nossos clássicos o status de oráculo, como se suas obras tudo fossem capazes de desvendar - como se suas reflexões prenunciassem integralmente o futuro que os aguardava. Leituras e aproximações condescendentes não lhes cabem. Inegavelmente, todos foram homens de seu tempo. Como tais, reproduziram preconceitos e estereótipos em virtude dos quais imagens projetadas acerca da sociedade brasileira posteriormente revelaram-se datadas - em inúmeros aspectos, até mesmo completamente equivocadas. Aliás, talvez a "realidade social brasileira" não fosse tão singular e excepcional como a maior parte desses autores a percebia. Ainda assim, muitas de suas visões permaneceram, "passaram pelo crivo da história". Sua perenidade é forte indício de que ainda hoje sustentam-se sobre suas próprias pernas. Por isso tornaram-se clássicos. Suas preocupações, perguntas e maneiras de interpretar não só o Brasil como a própria experiência moderna, amplamente considerada, traduziram-se em agendas de reflexão que continuam a indicar caminhos promissores em busca da compreensão desta sociedade.

É fato inegável que, a essa altura, o campo de estudos em torno do pensamento social brasileiro encontra-se solidamente consolidado seja na produção científica, seja nas inúmeras atividades de ensino de ciências sociais (tanto na graduação quanto nos cursos de pós-graduação). Observa-se, nesse campo, indiscutível maturidade intelectual não só em instituições do país como também em vários centros estrangeiros. Ademais, a produção de teses, dissertações e artigos científicos na área aumentou de maneira substantiva. Ao mesmo tempo, as principais associações de pesquisa e fóruns de divulgação científica brasileiras, nas três subáreas das ciências sociais - ANPOCS, SBS, ABCP, ABA - há um bom tempo contemplam grupos de trabalho, seminários e mesas-redondas voltados a essa temática. Por suas hostes já se sucederam inúmeras gerações de pesquisadores que ajudaram a sedimentar e renovar, a cada encontro, o interesse por figuras-chave de nosso pensamento social. Algo similar começa a ter lugar também em algumas associações internacionais - tais quais BRASA, LASA e ALAS.

O presente dossiê de Sociedade e Estado foi originalmente concebido como um espaço para se exercitar a atualidade e valor dos autores e obras caros a esse campo de investigação. Conforme será possível constatar, o dossiê abrange reflexões em torno da experiência da modernidade no Brasil e na América latina, seus dilemas e especificidades, os processos de construção e desconstrução da nação, bem como a força desse pensamento ante o desafio de se compreender questões e fenômenos sociais contemporâneos. Foram aqui reunidos trabalhos de autores que pesquisam e debatem o pensamento social brasileiro e latino-americano com a desenvoltura de quem quer conhecer de perto e perceber com acuidade não só a nossa realidade, mas também, como a mesma tem sido interpretada e representada.

Justamente com o propósito de avaliar a atualidade de nosso pensamento social, Elide Rugai Bastos sustenta que "várias questões atualmente colocadas no âmbito das ciências humanas para o entendimento da sociedade foram, de vários modos, objeto da reflexão dos autores brasileiros ao longo dos anos". Exemplos disso, segundo a autora, são "a problemática da emancipação, do direito à diferença, dos limites à liberdade, da definição de dignidade como projeto social, do reconhecimento, da exclusão/excludência", todos eles assuntos e questões que, de acordo com a autora, mostram-se recorrentes nas investigações acerca da formação nacional brasileira. Assim, o artigo de Elide, "Atualidade do pensamento social brasileiro", é inteiramente consoante com nossos propósitos, ao interrogar sobre a atualidade e capacidade de renovação do pensamento social brasileiro, não só quanto as suas novas articulações e aproximações com o pensamento social latino-americano, mas com outras latitudes. Nesse sentido, um dos pontos ressaltados pelo artigo refere-se à sintonia, ou melhor, ao diálogo com a produção e reflexão internacional, que se acentuou nas últimas décadas, alcançando uma densidade cada vez maior em tempos atuais. Ao lado disso, o artigo destaca um fato significativo neste campo disciplinar, que, ao mesmo tempo, revela sua consistência. Trata-se da existência de uma tradição relativamente sólida, no interior do campo, o que demonstra o permanente diálogo intra e intergerações de cientistas. Esta "conversa" constante, não raro, se desdobra em novos caminhos analíticos e, por vezes, em trilhas não percorridas.

No interior dessa mesma tradição que se consolida ao longo do tempo, ocorrem rupturas, continuidades e descontinuidades, além de regularidades, como a temática da mudança social e dos processos de modernização desenvolvidos nas sociedades latino-americanas. Também se destaca neste cenário e, comentado pelo artigo de Elide Rugai Bastos e de outros autores presentes neste dossiê, à aguda consciência por parte dos intelectuais brasileiros e latino-americanos e africanos da complexidade e diversidade de nossas "nações", assim como da seletividade discursiva presente nas várias representações sobre a nação e seus processos subjacentes de inclusão e exclusão de grupos sociais. Tais questões demonstram sobejamente a atualidade do pensamento social brasileiro e latino-americano, que hoje apontam para outras travessias no diálogo sul - sul.

Assim, observar a atualidade de tais reflexões significa também perceber suas modulações históricas e a introdução de categorias analíticas que passam a ser construídas de forma a permitir um refinamento teórico cada vez mais sofisticado na observação de novos fenômenos, como ocorreu com o conceito de sociedade civil na perspectiva gramsciana na década de 70 do século XX, e com a ênfase no conceito de diversidade cultural, de gênero, nos últimos anos, conforme salienta Elide Rugai Bastos, dentre outros tantos exemplos. Essas discussões evidenciam o "descentramento" da teoria sociológica contemporânea, movimento no qual se insere o pensamento social brasileiro, e revela sua maior autonomia em relação às teorias produzidas em contexto europeu ou americano do norte.

Os artigos aqui publicados revelam, pois, um amadurecimento da reflexão e dos procedimentos analíticos que, igualmente garantem-lhes capacidade produtiva na formulação de novos conceitos e categorias que buscam articulação com a realidade das sociedades não-européias, ou cujo processo de implantação da modernidade assume uma dinâmica histórica singular.

A discussão ainda nos leva à problemática de uma geopolítica do conhecimento em geral e, da produção sociológica em particular, o que tem provocado o estabelecimento de novas conexões e traduções do local e do nacional conforme discute João Marcelo E. Maia, no artigo "Ao Sul da Teoria: A atualidade teórica do pensamento social brasileiro". Aliás, os trabalhos João Maia e Eliane Veras têm em comum o fato de trazerem à luz alguns dos cruzamentos e intersecções observáveis entre o pensamento social brasileiro e a produção sociológica internacional. João Maia, interessado na possibilidade de se discutir teoria a partir das contribuições de nosso pensamento social, argumenta que "extrair dos estudos de pensamento brasileiro ferramentas teóricas relevantes demanda que se inscrevam esses estudos num campo mais amplo, relativizando seus limites exclusivamente nacionais". Chamando atenção para o vigor e ousadia da obra de Guerreiro Ramos, o autor defende ser possível identificar entre os anos 1950 e 1970 um campo intelectual verdadeiramente transnacional, compreendendo cientistas sociais e economistas, que "buscavam questionar o estatuto eurocêntrico das ciências sociais tal como praticada s nos países do Atlântico Norte". O artigo de Eliane Veras, por sua vez, também se insere dentro dessa nova perspectiva, ao analisar as relações entre Brasil e África, não em termos de influências unilaterais, mas de fluxos culturais e cruzamentos de idéias, e "estruturas de sentimento", entre diferentes contextos sócio-históricos, além de permitir ressaltar o papel produtivo da literatura na configuração das práticas culturais e da construção de novos arranjos simbólicos. Eliane revela a existência de diálogos entre Brasil e Moçambique mediados por figuras e obras emblemáticas da construção de identidades nacionais em ambos os contextos. São dois os momentos investigados: o primeiro deles, a partir da década de 1940, forja-se em meio à luta anti-colonial africana, ocasião em que se fortalece "um fluxo da literatura brasileira em direção aos países de colonização portuguesa". De acordo com a autora, predominava, naquelas circunstâncias, certo "sentimento da mestiçagem harmoniosa". Já o segundo momento, delineado no período imediatamente posterior à independência dos países africanos, é marcado, conforme Eliane, pela "estrutura de sentimento afirmativa", com reverberações interessantíssimas na sociedade brasileira.

As contribuições de Adelia Miglievich Ribeiro e Márcio Ferreira de Souza, por sua vez, refletem a respeito das contribuições de duas figuras-chave do pensamento social brasileiro, cujas produções situam-se em contextos históricos bastante distintos. No caso de Adelia, o leitor terá a oportunidade de acompanhar uma avaliação criativa e atual das principais obras de Darcy Ribeiro. A autora levanta a hipótese segundo a qual "há questões presentes na obra darcyniana capazes de gestar ainda hoje uma 'crítica descolonizadora nas ciências sociais latino-americanas', impactando a geopolítica do conhecimento que historicamente apartou as culturas que investigam daquelas que são investigadas". Nesse sentido, para Adélia, o pensamento de Darcy Ribeiro logra vislumbrar a experiência social brasileira de maneira não-essencializada, tanto em relação a aspectos comumente tidos como positivos quanto também em relação a traços frequentemente tomados como negativos. Assim, Adélia Miglievich, no artigo "Darcy Ribeiro e o enigma Brasil: um exercício de descolonização epistemológica" enfatiza não apenas a riqueza e a forte personalidade de Darcy Ribeiro, mas também sua capacidade de inovação, reinvenção e ou mesmo antecipação de problemáticas contemporâneas, como por exemplo, a necessidade de pensar a América Latina como totalidade histórica, na qual o Brasil está inserido, e onde ocorrem experiências de organização social diferenciadas, que poderiam ser tomadas como referências para se pensar outras modernidades, outras possibilidades de constituição dos processos de interação social entre os diferentes grupos sociais que compõem nossas nações.

Já Márcio, no trabalho "Gilberto Amado: a obra memorialística como instrumento de análise metateórica", realiza uma avaliação da obra memorialísitca de Gilberto Amado. Seu propósito é mostrar que ao mesmo tempo em que suas narrativas autobiográficas retratam a riqueza e vastidão das experiências pessoais de Amado, proporcionam também um amplo painel da sociedade brasileira do início do século XX, quando a república dava seus primeiros passos. O leitor perceberá, aqui, uma discussão sempre viva e necessária entre história e memória, inclusive apontando para as possibilidades e os limites do memorialismo, assim como sobre personagens esquecidos ou marginalizados pelas interpretações canônicas da história e da sociologia dos intelectuais.

Vemos, assim, que o pensamento social brasileiro é propulsor de seu próprio movimento, que estabelece pontes e novas articulações com a realidade e com as mais diversas teorias e reflexões de diferentes países e continentes.

Nesse sentido, a reflexão proposta por João Marcelo, no artigo já citado, adverte sobre a necessidade de "evitar abordagens excessivamente limitadas ao Estado-nação, uma vez que estudar outros contextos permite comparações mais ricas e produtivas que podem aclarar aspectos não considerados, permitindo, assim "desprovincianizar" o pensamento e a perspectiva analítica".

O artigo de Mariza Veloso analisa a trajetória de José Martí, pensador cubano que buscou fundar uma identidade latino-americana, ancorada em um NÓS, que inclui índios, brancos, negros, mestiços de todos os matizes, enfim todos os grupos sociais que compõem "Nuestra América". A autora analisa como José Martí, através de sua produção literária e jornalística buscou refletir sobre projetos alternativos de modernidade e modernização os quais poderiam ser viabilizados na América Latina, o que demonstra a contemporaneidade de suas reflexões.

Em suma, o dossiê ora apresentado, cumpre seu propósito de buscar introduzir uma discussão renovada, que procura ampliar a reflexão sobre o pensamento social brasileiro em direção a outras possibilidades teóricas e empíricas, outras geografias e histórias que possam ampliar nosso universo comparativo e cognitivo. Além disso, este dossiê também se propõe a reafirmar a importância do pensamento social brasileiro e latino-americano, que além de contribuir para maior conhecimento sobre realidade que vivenciamos permite ainda, conforme propõe João Marcelo "contribuir para aprofundar o conhecimento sobre a sociedade civil, o que poderia fortalecer a esfera pública e, assim, redefinir o papel que coube tradicionalmente ao Estado na implementação de um processo modernizador".

Dessa forma, espera-se que o presente dossiê possa contribuir para ampliar e problematizar o conhecimento sobre a nossa realidade social e para a incorporação de novas possibilidades de pesquisa e análise, enriquecendo a própria teoria social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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