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Democracia técnica e lógicas de ação: uma análise sociotécnica da controvérsia em torno da definição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital - SBTVD

Resumos

Este trabalho visa mapear as lógicas e interesses que perpassaram os processos de negociação sobre a definição do padrão tecnológico da TV digital no Brasil. Consideramos fundamental a interpretação dos resultados da controvérsia gerada a partir da incerteza tecnológica que se revelou nas manifestações argumentativas de atores que tomaram parte no debate público sobre as implicações sociotécnicas de um Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Propomos identificar a racionalidade das ações de atores sociais representativos de aspirações empresariais e industriais, por um lado, e de interesses públicos, por outro. Podemos inferir que a associação de interesses e lógicas distintas nesse contexto traduziu-se na definição de um modelo híbrido de televisão digital, uma rede sociotécnica, produto de convencimento, estratégias e relações de força. Um conjunto de operações de tradução por intermédio das quais são realmente fabricadas e definidas as tecnologias na contemporaneidade.

Controvérsias; redes sociotécnicas; lógicas de ação; democracia técnica; TV digital


This paper seeks to delineate the logics and interests that permeate the negotiation processes regarding the definition of a technological standard of Brazilian digital television. We considered essential the interpretation of the controversies results generated from the technological uncertainty that has been revealed through the argumentative manifestations of actors who took part on the public debate concerning the sociotechnical implications of a Brazilian Digital Television System. We proposed to identify the rationality of the actions of social actors that represent, on the one hand, entrepreneurs and industrial aspirations, and public interests on the other hand. It is possible to infer that the association of distinct interests and logics within this context has been translated as the definition of a hybrid model of digital television, sociotechnical network, persuasion product, strategies and strength relations. This network results from an array of translation operations from which are really fabricated and defined the technologies in the contemporaneity.

Controversies; sociotechnical networks; logics of action; technical democracy; digital television


ARTIGOS

Democracia técnica e lógicas de ação: uma análise sociotécnica da controvérsia em torno da definição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital - SBTVD

Sayonara LealI; Eduardo Raupp de VargasII

IProfessora Adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Coordenadora do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB (LaPCom). sayonaraleal@uol.com.br

IIProfessor Adjunto do Departamento de Administração da Universidade de Brasília (UnB). Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Inovação e Serviços (Linse). ervargas@unb.br

RESUMO

Este trabalho visa mapear as lógicas e interesses que perpassaram os processos de negociação sobre a definição do padrão tecnológico da TV digital no Brasil. Consideramos fundamental a interpretação dos resultados da controvérsia gerada a partir da incerteza tecnológica que se revelou nas manifestações argumentativas de atores que tomaram parte no debate público sobre as implicações sociotécnicas de um Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Propomos identificar a racionalidade das ações de atores sociais representativos de aspirações empresariais e industriais, por um lado, e de interesses públicos, por outro. Podemos inferir que a associação de interesses e lógicas distintas nesse contexto traduziu-se na definição de um modelo híbrido de televisão digital, uma rede sociotécnica, produto de convencimento, estratégias e relações de força. Um conjunto de operações de tradução por intermédio das quais são realmente fabricadas e definidas as tecnologias na contemporaneidade.

Palavras-chave: Controvérsias; redes sociotécnicas; lógicas de ação; democracia técnica; TV digital.

ABSTRACT

This paper seeks to delineate the logics and interests that permeate the negotiation processes regarding the definition of a technological standard of Brazilian digital television. We considered essential the interpretation of the controversies results generated from the technological uncertainty that has been revealed through the argumentative manifestations of actors who took part on the public debate concerning the sociotechnical implications of a Brazilian Digital Television System. We proposed to identify the rationality of the actions of social actors that represent, on the one hand, entrepreneurs and industrial aspirations, and public interests on the other hand. It is possible to infer that the association of distinct interests and logics within this context has been translated as the definition of a hybrid model of digital television, sociotechnical network, persuasion product, strategies and strength relations. This network results from an array of translation operations from which are really fabricated and defined the technologies in the contemporaneity.

Keywords: Controversies; sociotechnical networks; logics of action; technical democracy; digital television.

1. Introdução

Este artigo descreve e analisa movimentos políticos e técnicos pela implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital em dois momentos específicos: as controvérsias organizadas e expressas a partir do Decreto n. 4901/2003 e no Decreto n. 5.820/2006. O primeiro institui o Sistema Brasileiro de Televisão Digital - SBTVD - e o segundo dispõe sobre a implantação do SBTVD-Terrestre (SBTVD-T)1 1 O SBTVD-Terrestre não aborda as questões relativas ao padrão de transmissão digital via satélite que compõe, juntamente como a transmissão digital terrestre, o SBTVD. e estabelece diretrizes para a transição do sistema de transmissão analógica para o sistema de transmissão digital do serviço de radiodifusão de sons e imagens e do serviço de retransmissão de televisão. Nesses dois momentos, destacamos dois focos fundamentais de análise: a definição do padrão tecnológico2 2 Embora um sistema de TV digital seja integrado por diversos componentes, cada qual vinculado a determinados padrões tecnológicos, constituindo, portanto, um sistema tecnológico optamos, neste trabalho, por manter a expressão que se consagrou nos debates públicos, a de padrão tecnológico, recorrendo a uma definição mais ampla de padrão, voltada para o caso da TV Digital, como apresenta Freitas (2004, p. 15) "um padrão de televisão digital (ASTC, DVB-T ou ISDB-T) é um conjunto de padrões tecnológicos, correspondentes a cada camada da arquitetura, que otimiza os serviços de televisão digital em uma dada localidade". para TV digital brasileira e os incentivos públicos para o desenvolvimento de soluções tecnológicas nacionais a serem incorporadas ao novo modelo industrial da televisão brasileira. Nosso objeto de estudo é a reconstituição das etapas que levaram à construção de uma rede sociotécnica (CALLON, 2006a, 2006b; LATOUR, 2000) em torno do padrão tecnológico definido e da incorporação da pesquisa e desenvolvimento (P&D) empreendida por universidades e empresas privadas nacionais para a edificação de um modelo híbrido - nipo-brasileiro - de SBTVD.

Entendemos como rede sociotécnica, a partir de Callon e Latour (CALLON, 1989; CALLON, LATOUR, 1991; LATOUR, 2000; CALLON, 2006a), um conjunto de atores heterogêneos, humanos e não-humanos, associados no processo de concepção, produção e difusão de conhecimentos, dando origem a definições tecnológicas obtidas no processo de solução de controvérsias. Assim, tais contextos de conflitos e acordos são portas de entrada, nos termos de Latour (2000), para esta investigação.

Os dois documentos legais aos quais nos referimos foram produzidos a partir das associações entre forças que se manifestaram na esfera pública política (HABERMAS, 1997). São, portanto, intermediários que contêm e traduzem interesses advindos de distintas lógicas de ação que, em um dado momento, entraram em acordo e resultaram em consensos, ainda que provisórios. Por diferentes lógicas de ação, entendem-se as distintas orientações que motivam as ações dos atores no espaço público (HABERMAS, 1997), como parlamentares, empresários, representantes do Estado (ministérios) e segmentos organizados da sociedade civil, os quais se vinculam aos debates públicos sobre temas como a televisão digital, por meio de militância política, defesa de interesses privados e compromisso com o interesse público. Essas lógicas de ação podem ser do tipo cívica, quando relacionada aos interesses da coletividade; opinativa, relacionada à exposição de posturas críticas tornadas públicas visando reconhecimento pessoal ou a representação de interesses de uma coletividade; doméstica, manifestações de interesses familiares ou tradicionais, assentados na relação pessoal; empresarial, quando prioriza eficiência e competitividade; e industrial, quando voltada à inovação tecnológica de produtos e serviços. A referência à diversidade de lógicas de ação aqui se baseia nos conceitos de mundos sociais ou cités de Boltanski e Thévenot (1991) e Boltanski e Chiapelo (2009), e na categoria de ação plural de Thévenot (2006).

A pesquisa foi realizada a partir de dois procedimentos metodológicos fundamentais. Primeiro, para apreender os interesses dos atores participantes dessas controvérsias, empreendemos análise de documentos produzidos no âmbito do governo (especialmente pela Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações - CPqD, como instância oficial de apoio técnico e administrativo, responsável pelo acompanhamento das pesquisas produzidas em função do SBTVD), dos decretos já mencionados e de material produzido na esfera parlamentar e da sociedade civil, no período de 2003 a 2007. Nós analisamos os argumentos apresentados pelos diferentes atores sociais que se engajaram no processo de escolha do padrão tecnológico da TV Digital no Brasil, utilizando dois recursos: os documentos técnicos produzidos a partir de sessões públicas organizadas pelo poder público acerca do SBTD, durante sessões parlamentares especiais que tangenciavam a querela da TVD (BRASIL, 2007); as emissões temáticas realizadas pelo sistema público de televisão (Empresa Brasil de Comunicações - EBC) sobre a polêmica em torno do melhor modelo de televisão digital para os brasileiros (BRASIL, 2007, 2006). Nós participamos, igualmente, em 2006 e 2007 de fóruns públicos promovidos sobre o tema da TV Digital para o país.

Segundo, realizamos análise qualitativa de conteúdo, nos termos de Flick (2004), de entrevistas narrativas com representantes de segmentos de interesse distintos que se rivalizaram em contextos decisórios. Foram realizadas sete entrevistas, sendo duas com membros do governo, duas com representantes da sociedade civil, duas com representantes dos consórcios formados para pesquisa em componentes da TV Digital e uma com um representante da indústria que também atuou em consórcio em parceria com universidades.

A partir desses recursos metodológicos, foi possível observar e mapear o desdobramento da rede sociotécnica, articulada em torno dos processos e debates tecnocientíficos e políticos para definição do SBTVD. A porta de entrada para essa análise foi a identificação do confronto entre interesses mercadológicos e cívicos, acerca das prioridades e princípios para implementação da televisão digital brasileira, diante do mercado convergente das Comunicações no Brasil.

Este artigo está organizado em quatro partes, além desta introdução e das considerações finais. Inicialmente, apresentaremos o marco conceitual do trabalho, articulando o conceito de rede sociotécnica e de controvérsias à noção de lógicas de ação. Em seguida, é apresentado um breve histórico sobre o debate da implementação da TV digital no Brasil, resgatando o momento de discussão de três padrões hegemônicos de sistema de televisão de alta definição: norte-americano, europeu e o japonês. Em seguida, apresentaremos os argumentos a favor e contra a escolha pela adoção do padrão japonês para TV digital brasileira, revelando a controvérsia pautada nas dimensões sociotécnicas no contexto de manifestação dos atores dessa negociação. Ainda nesse ponto, nos debruçamos sobre a identificação de atores e interesses que se articulam em torno da implantação do SBTVD frente ao cenário de convergência tecnológica, tomando como parâmetro os conflitos sobre discussões que revelam insegurança tecnológica, interesse público, relações de força entre Estado, mercado e sociedade civil. Identificamos, assim, os principais atores constituintes do debate a partir de seus "porta-vozes" inseridos nos fóruns híbridos constituídos. Finalmente, analisamos as principais controvérsias presentes no processo de definição do SBTVD.

2. Rede sociotécnica, controvérsias tecnológicas e lógicas de ação

Na perspectiva mais recente da sociologia do conhecimento científico (KNORR-CETINA, 1982) e da tecnologia (CALLON, LATOUR, 1991; LAW, HASSARD, 1999), a concepção de artefatos científicos e tecnológicos tem sido estudada a partir da problematização do entendimento tradicional de sociedade. Esta passa a ser vislumbrada também como uma construção ou uma "performação" continuada, composta por seres sociais ativos que passam de um nível a outro, ao curso de seu trabalho, estabelecendo entre si laços sociais (STRUM, LATOUR, 2006). Opera-se, assim, um deslocamento das noções convencionais de sociedade para aquela que remete a um universo de ação e estrutura onde desaparece a nítida demarcação entre sujeito e objeto, homem e natureza, humano e não-humano, saberes profanos e científicos.

Este trabalho parte de certa redefinição da noção de social, entendendo a sociedade como um conjunto de associações entre atores heterogêneos em suas qualidades e formas (humanos e não-humanos), no sentido de enfatizar a centralidade dos artefatos técnicos na mediação das nossas relações sociais, realçando o quanto os objetos nos fazem agir, segundo diferentes propósitos. Nesse sentido, o social é uma forma de engajamento de elementos heterogêneos uns com os outros. O artefato técnico se singulariza menos pela sua natureza ou sua substância do que pela sua entrada em "associação" e sua significação. Os atores associados fazem agir os demais. Esse é um principio tardiano3 3 Latour (2007), reconhece que as considerações de Gabriel Tarde (1999) sobre o social abrem precedentes para a formulação da teoria do ator-rede porque "o social não constitui um domínio particular da realidade, mas um princípio de conexão; que não haveria nenhuma razão de separar o social humano de outras associações, como os organismos biológicos, veja os átomos; que, para tornar-se uma ciência social, a sociologia não havia necessidade de romper com a filosofia, e em particular com a metafísica; que a sociologia seria uma sorte de inter-psicologia; que o estudo de inovação e tudo particularmente da ciência e da técnica, seria um dos terrenos dos mais promissores da teoria social (...)" (LATOUR, 2007, p. 24-25). Tarde (1999), em sua visão pouco ortodoxa do social, insistia que na sociedade, como uma associação de formas heterogêneas, era preciso encontrar atos individuais dos quais os fatos sociais são feitos. fundamental da teoria da ação do construtivismo de Latour e Callon. As relações que se estabelecem entre diferentes atores (cientistas, políticos, civis) fazem fazer aos outros coisas inesperadas, somente discerníveis na reconstituição da ação situada.

A investigação acerca da construção da tecnologia se torna socialmente relevante quando dialoga com mudanças fundamentais da concepção clássica do lugar e do modo de se produzir conhecimento (científico) diante da atual importância dada pelos estudos sociais da C&T ao envolvimento de atores não científicos no desenho e na arquitetura funcional da tecnociência. O debate contemporâneo sobre a construção da tecnologia interessa ao presente estudo por dois aspectos: o primeiro diz respeito à discussão ontológica sobre a dimensão humana resguardada nos artefatos técnicos. Nessa perspectiva, ressalta-se, então, nos termos de Simondon (2008), a significação dos objetos técnicos4 4 Para Gilbert Simondon (2008), a maior causa de alienação no mundo contemporâneo reside nesse desconhecimento da máquina (enquanto artefato técnico) que não é uma alienação causada pela máquina, mas pelo não conhecimento de sua natureza e de sua essência por sua ausência do mundo das significações e por sua omissão no quadro de valores e de conceitos que formam a cultura. Na máquina está encerrado o homem, desconhecido, materializado, servil, mas segue sendo o humano. . O segundo é o reconhecimento dos atores heterogêneos envolvidos na construção da tecnociência, em especial a abordagem do construtivismo social. Ao nortear nosso estudo da tecnologia a partir dessas duas considerações damo-nos conta da complexidade dos sistemas tecnológicos, os quais envolvem valores, conhecimentos e atores diversos.

Collins e Pinch (2010) observam que os debates científicos e tecnológicos parecem ser muito mais simples e diretos quando são vistos a distância. De longe, não são visíveis as artimanhas que compõem seus contextos de fabricação5 5 Collins e Pinch lembram que a tecnologia, diferente da ciência, é demonstrada e utilizada em condições de menor controle do que nos laboratórios científicos. As incertezas da tecnologia não podem ser sempre solucionadas a partir do ambiente controlado da ciência. A ciência não poderia salvar a tecnologia das suas incertezas, porque em algumas descobertas as tecnologias têm vida independente da ciência (como a roda e o barril) (COLLINS & PINCH, 2010). . O distanciamento do lócus de construção da tecnologia pode gerar algumas imagens distorcidas sobre o problema da tecnologia, restringindo-o à competência do técnico ou do cientista. Um olhar mais atento, sob esse lugar, permite-nos observar conflitos de exigências funcionais acerca da estrutura da tecnologia, postuladas a partir de diferentes visões do papel que os artefatos técnicos cumprem para o mercado, Estado e sociedade. Dirigir nossa atenção para a construção da tecnologia e de artefatos técnicos é admitir que estes apresentam uma realidade humana e sentido porque são objetivações de valores que perpassam seu meio de fabricação.

Ao analisar um artefato estabilizado, tem-se a impressão que houve uma sequência linear de decisões racionais que levaram até ele, mas quando reconstituímos a rede da qual se origina uma inovação, percebemos que o processo de desenvolvimento de tecnologias também é socialmente construído. A esse respeito, Pinch e Bijker (1989) ressaltam a importância do estudo do significado que os grupos sociais envolvidos nessa construção atribuem a um dispositivo tecnológico, permitindo identificar querelas entre atores e também a evolução de significados no rumo da sua conclusão.

O estudo social do lócus da construção da tecnociência, nesses termos, diminui a "flexibilidade interpretativa" acerca dos direcionamentos dos sistemas tecnológicos, à medida que os significados atribuídos aos artefatos convergem e alguns ganham domínio sobre os outros e desse processo de construção social resulta o objeto técnico (PINCH & BIJKER, 1989). A investigação aqui colocada em prática sobre o lugar da produção da tecnologia pressupõe que o laço social entre os atores concernidos aparece, não como meramente um a priori, mas como uma força de aglutinação que se configura a partir das relações sociais estabelecidas entre entes oriundos de epistemes, mundos sociais e interesses distintos em uma rede sociotécnica.

Uma rede sociotécnica é o resultado da associação de atores6 6 O termo ator tem aqui o mesmo sentido atribuído por Callon (1986), e retomado por Latour (2005b), muito próximo da noção de actante oriunda da semiótica. Nessa perspectiva, os integrantes de uma rede são todos actantes, ao passo que os que de fato têm o atributo da agência são os atores. , humanos e não-humanos, articulados em torno de um processo de concepção, produção e difusão de conhecimentos, dando origem a definições tecnológicas obtidas no processo de solução de controvérsias. Na formação de uma rede, as associações se dão a partir de operações de tradução7 7 Optamos aqui por utilizar a expressão tradução, embora as traduções realizadas no Brasil, sobretudo dos trabalhos de Latour, utilizem também o termo translação, como também em publicações na língua inglesa. Tradução, no entanto, tem sido o termo privilegiado pelos autores em seu idioma de origem, como acontece em coletânea publicada em 2006 (AKRICH; CALLON; LATOUR, 2006). . A tradução, nessa perspectiva, expressa um processo contínuo ao longo do qual os atores se entredefinem, evoluem, modificam seus interesses, adotam posturas mais ou menos estratégicas. Expressa ainda a tentativa de um ator de interpretar e expressar os interesses do outro, de atraí-lo para um determinado ponto de vista numa controvérsia, buscando legitimar-se como "porta-voz" de outros atores e como "ponto de passagem obrigatório" para que possam atingir seus interesses8 8 Para uma análise detalhada das noções de porta-voz e de ponto de passagem obrigatório ver Callon (1986; 1991) e Latour (2000; 2005b). . É na condição de porta-voz da rede que um ator representa a própria rede, que ação e rede se constituem duas faces da mesma moeda - daí a noção de ator-rede (LATOUR, 2000; 2005a; 2005b, CALLON, 2006b). Isso permite, a partir de um determinado ator, identificar o emaranhado de operações de tradução que constituem determinada rede. A tradução, segundo Callon (1986, 1991, 1999), passa por quatro momentos distintos9 9 Embora fizesse referência a momentos da operação de tradução, Callon (1986) chama atenção que os mesmos não devem ser vistos como etapas de um processo, visto que podem ocorrer simultaneamente, o que é coerente com a ideia de que toda rede sociotécnica é provisória e, portanto, contestável a qualquer momento, em qualquer ponto. : a problematização, a atração, o envolvimento e a mobilização.

Inicialmente, na problematização, temos dois movimentos: a interdefinição dos atores e a definição de pontos de passagem obrigatórios. Os diferentes atores, ou um determinado ator, desenvolvem uma interpretação, uma hipótese sobre determinada controvérsia e procuram demonstrar que os interesses dos demais atores convergem para a problematização proposta. Assim, o momento da problematização "descreve o sistema de alianças, ou associações, entre entidades, portanto definindo a identidade e o que elas querem" (CALLON, 1986, p. 206).

Para que uma determinada problematização se viabilize, o ator cria dispositivos de atração. Esses dispositivos podem ser travestidos das mais diferentes formas: discursos, artigos científicos, documentos técnicos, fontes de financiamento, penalizações, etc. Os dispositivos de atração visam assegurar a fidelidade dos demais entes da rede à problematização proposta, agindo para que estes não sejam atraídos por outras problematizações. Cabe lembrar que a problematização contém uma hipótese (ou hipóteses) sobre a identidade dos atores, os quais podem confirmar, alterar, rejeitar a problematização, propondo outras hipóteses ou aderindo a problematizações concorrentes. É justamente esse caráter contínuo e provisório da tradução que traz à baila a necessidade de que o ator lance mão de dispositivos de atração, os quais estabelecem os primeiros laços sociais e constituem um sistema de alianças em torno do protagonista da problematização. É o êxito da atração que confirma a problematização proposta (CALLON, 1986).

A atração, por sua vez, só será bem-sucedida se a definição e a coordenação dos papéis na rede tiver resultado positivo. Esse momento da operação de tradução pode ser denominado como envolvimento e suas formas podem ser variadas. Callon (1986), sem o compromisso da exaustão, lista algumas formas de envolvimento bastante comuns: a violência física, a sedução, a transação (mercantil, por exemplo) e o consentimento sem discussão. São ações, portanto, que visam assegurar o processo de atração, a efetividade dos dispositivos lançados e, dessa forma, a hegemonia da problematização proposta.

Finalmente, a tradução se completa pela mobilização dos atores. A mobilização está relacionada com a representatividade dos atores envolvidos para falarem em nome dos demais integrantes da rede. Em síntese, se o processo de problematização teve como resultante uma interdefinição legitimada pela representatividade dos atores envolvidos e, assim, pelo reconhecimento do ponto de passagem obrigatório proposto, todo o sistema de alianças engendrado será representativo. Essa representatividade, no entanto, pode ser questionada a qualquer momento, o que pode ser evitado pelo processo de mobilização dos atores em torno da rede constituída.

Nesses termos, ao analisarmos as redes constituídas para a produção de artefatos tecnológicos, ou para a definição de determinados padrões tecnológicos, consideramos a tecnologia como uma construção eminentemente sociotécnica e "(...) nesta perspectiva, a explicação consistirá em levar o conjunto de escolhas técnicas, operadas na concepção do dispositivo, às determinações sociais, como meio de origem de inovações, sua formação, suas relações sociais, suas convicções religiosas, filosóficas ou políticas, o contexto no qual a idéia pegou corpo, etc." (AKRICH, 2006).

Esse tipo de análise permite caracterizar estilos e conteúdos técnicos, desenhar a gênese da forma assumida pelos dispositivos, ao partir da ideia segundo a qual a elaboração de objetos técnicos não obedece exclusivamente a uma racionalidade puramente técnica. Ao contrário, nesse processo intervêm fatores sociais, econômicos, industriais, políticos, culturais, os quais se encontram na origem da invenção. Nesse entrelaçamento entre fatores humanos e não humanos a distinção entre o social e o técnico não é óbvia. Na verdade,

(...) as categorias do social da técnica, do natural, etc. são produzidas para uma prova que visa determinar causas e instituir uma ordem numa realidade confusa e indiferenciada. No caso dos objetos técnicos, essa divisão entre diferentes ordens de realidade somente é definitivamente estabilizada quando nada e ninguém vem reivindicar, de uma maneira ou de outra, um lugar, uma vontade, competências, etc. diferentes daquelas que lhes são atribuídas no roteiro que constitui a máquina. (AKRICH, 2006, p. 121)

Para pensar a eficácia técnica e social de um dispositivo e sua relação física ou humana com o ambiente de sua concepção, é preciso entender seu universo de produção a partir da descrição da esfera socioeconômica na qual o objeto evolui e da controvérsia que lhe dá lugar. Interessa também saber a respeito do movimento e da lógica de ação de cada ator regido por um mundo social específico, no qual ele se ancora no desenvolvimento do projeto de concepção técnica redefinindo os contornos do objeto técnico.

Por diferentes lógicas de ação entendemos as distintas orientações que motivam as ações dos atores em contextos decisórios, no que nos interessa mais de perto, em uma controvérsia, os quais se vinculam ao projeto em questão por um regime de engajamento. Essas lógicas de ação, as quais se relacionam diretamente com regimes de engajamento dos atores, podem ser do tipo cívicas, quando relacionadas aos interesses da coletividade; empresarial e industrial, quando voltadas para a eficiência e profissionalismo; opinativa, quando prevalece a divulgação de ideias próprias. A tipologia da diversidade de lógicas de ação aqui utilizada baseia-se nos conceitos de mundos sociais ou cités de Boltanski e Thévenot (1991). Cada um desses mundos seria regido por diferentes orientações. Nesse sentido, as ações dos atores em cada um desses mundos ou cités são orientadas por princípios comuns. Essas ações podem ser tanto de natureza sistêmica (lógicas do mercado), como de caráter público (lógicas cívicas). A partir da contribuição desses autores, procurar-se-á aqui fazer uma correspondência entre Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) como rede sociotécnica que reúne diversas lógicas de ação. O SBTVD seria, assim, um mundo sociotécnico singular coabitado por diferentes lógicas de ação.

Nessa direção, para efeito deste trabalho, interessa a discussão sobre a efetividade do SBTVD como uma rede criada por atores, humanos e não-humanos, que se tornaram, então, suscetíveis e capazes de traduções. Os atores humanos são difusores de discursos competentes validados por coletividades a partir de seu grau de publicização e aceitação. Tal processo discursivo alimenta a controvérsia, nos termos de Callon (2006a) e Latour (2000), ao nos aproximar dos lugares onde são produzidos fatos e artefatos. A rede sociotécnica no que se refere aos atores produtores de documentos técnicos e discursos é também lugar onde se deparam e nem sempre entram em acordo diferentes lógicas de ações referenciadas em noções de "bem comum", definidas em cada um dos mundos sociais possíveis nos quais se inserem as pessoas que pautam suas atuações e julgamentos em processos quotidianos da vida social (BOLTANSKI & THEVÉNOT, 1991). A perspectiva convencionalista da pluralidade do mundo social10 10 Como avalia apropriadamente François Dosse, "(...) a realidade social não é uma, mas plural, e que é a partir dessa pluralidade dos mundos de ação que se articulam os processos de subjetivação" (DOSSE, 2003, p. 199). conduz ao registro dos engajamentos das pessoas a situações e processos da vida social, assim como suas intencionalidades, ao penetrar na subjetividade dos agentes, como elementos constitutivos de ações objetivas. Compreender a disponibilidade das pessoas em se engajarem a projetos pessoais e coletivos que dizem respeito ao tratamento de questões que remetem ao universo social local de uma "comunidade" é fundamental para definição de uma grade de leitura e interpretação, calcada nos princípios de equivalência dos mundos sociais, aqui especificamente, aplicado ao processo coletivo de construção de tecnologias e escolha de um padrão tecnológico para a televisão digital no Brasil.

A rede sociotécnica é, entretanto, uma construção provisória, objeto de controvérsias em sua formação e que podem surgir a qualquer momento, gerando novas configurações na rede ou mesmo a formação de novas redes (CALLON, 1999; LATOUR, 2005b). Com esse mesmo propósito, vale definir o que é uma controvérsia, como linha de interpretação para o debate transcorrido em torno da SBTVD no Brasil.

No contexto de uma rede sociotécnica, segundo Callon (1986), uma controvérsia será "toda manifestação pela qual a representatividade do porta-voz é questionada, discutida, negociada, rejeitada, etc." (p. 219). Em outras palavras, quando o processo de atrair, envolver e mobilizar um conjunto de atores numa rede é interrompido em algum ponto, fazendo com que a problematização proposta por um determinado ator, até então legitimada pelos demais, seja colocada em questão, estamos diante de uma controvérsia. Esta pode significar um rearranjo na rede existente ou o surgimento de redes totalmente diversas, orientadas por problematizações concorrentes. O interesse pelas controvérsias se justifica, portanto, também do ponto de vista metodológico. As controvérsias são portas de entrada para que se possa traçar uma rede, um conjunto de associações (LATOUR, 2005b). Uma vez que a controvérsia foi encerrada, temos um novo dispositivo sociotécnico, um novo padrão, uma "caixa-preta" que não permite identificar a rede que se erige na sua construção, a não ser pela decomposição de seus elementos11 11 A articulação entre a noção de rede sociotécnica e abordagens econômicas que se utilizam de uma decomposição funcional de bens e serviços tem sido desenvolvida, sobretudo, em estudos sobre inovação em serviços (GALLOUJ, 2002; VARGAS, 2009). (LATOUR, 2000).

3. Democracia técnica e racionalização democrática: quando os cientistas e a sociedade entram na controvérsia tecnológica

No estudo social do SBTVD, podemos afirmar que o desafio do projeto de desenvolvimento de uma tecnologia nacional e igualmente de seus dispositivos e aplicativos está em se construir um ambiente técnico e social no qual a TV digital vá se integrar, um artefato japonês em uma situação brasileira.

Cabe salientar que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009, no Brasil, 95,7% dos 58, 5 milhões de domicílios existentes têm aparelho de televisão (IBGE, 2010). A televisão no país é, inegavelmente, objeto de uma importante prática cultural. A dinâmica do mercado brasileiro de televisão se dá, em grande parte, em função da promissora economia de bens simbólicos proporcionadas pelo alto índice de consumo dos produtos culturais televisionados (telenovelas, filmes, etc.). O interesse industrial, mercadológico e político no setor da radiodifusão brasileira se dá em função da sua importância cultural para os brasileiros e é justamente pelo seu sucesso que a sua exploração é questionada pelos movimentos organizados da sociedade civil.

O debate público acerca da definição do padrão tecnológico do SBTVD se desenrolou em uma situação histórica de conflitos de interesses, que se rivalizam em torno de possibilidades técnicas que sediam decisões políticas e econômicas. O trabalho dos atores envolvidos nessa empreitada pode ser descrito como um processo de problematização que os conduz a formular uma hipótese para a solução desse arranjo sociotécnico e isso fazendo, a definir os atores concernidos pela resolução do problema para, enfim, colocar o projeto em posição de ponto de passagem obrigatório para todos esses atores. Constitui ponto de partida da corrente reflexão entender que o debate tecnológico não é neutro justamente porque decorre de processo social, envolvendo diferentes epistemes e interesses. Entre engenheiros, tecnocratas, cientistas, políticos, empresários, industriais, ativistas de movimentos sociais e entidades civis perpassam objetivos, funções sociais, econômicas, técnicas que devem ser atendidas por um artefato tecnológico.

Na perspectiva crítica da tecnologia, a questão central do ponto de vista tanto filosófico como sociológico é a supremacia da administração tecnocrática e a ameaça que a tecnocracia representa para a agência humana. A abordagem da tecnologia e suas relações com os sistemas sociais, as quais nos interessa neste texto, transita entre as perspectivas instrumental da técnica e o paradigma construtivista. Entre um e outro, encontramos a inegável apropriação sistêmica da tecnologia, assim como sua concepção como fonte de poder público. Nos dois casos, a tecnologia se apresenta como instrumento para análise sociológica, inclusive como vetor para mobilização de processos sociais de interação entre interesses que nem sempre se associam entre si (CALLON, 1998). Os laços sociais que se estabelecem nesses processos podem ser identificados a partir da reconstituição da rede sociotécnica e da fase da manifestação de fóruns híbridos (no sentido de espaço de negociação e ação política entre atores humanos) em contexto de democracia técnica (CALLON, LASCOUMES, BARTHE, 2001).

Na democracia técnica, operam-se negociações de formas e conteúdos de proposições no espaço público, onde atores sociais que não participam do mesmo universo cognitivo e de interesses, mas estão implicados nos resultados das controvérsias de abrangência coletiva, assumem suas posições em um exercício de reconstrução do laço social do qual resulta a coprodução de saberes e reformulações de demandas (CALLON, LASCOUMES, BARTHE, 2001).

Como observa Habermas (2006), a relação entre democracia e técnica está sujeita a interferências daqueles que detêm o "poder de disposição técnica" e controlam saberes tecnocientíficos. O mínimo de convergência entre técnicas e democracia exige que atores políticos julguem, atentos ao interesse público, sobre a proporção em que os cidadãos querem dispor de tecnologias no futuro e em que direção desejam que as mesmas sejam desenvolvidas. A história recente das trajetórias tecnológicas mostra que a introdução de obrigações cívicas nas ordens técnica e mercantil se fez a fórceps. A preservação do interesse público é tema fundamental para se pensar a relação entre democracia, mercado e técnica, diante de movimentos históricos na esfera política de colonização de interesses públicos por interesses sistêmicos, para usarmos a gramática habermasiana, ou de intervenções de lógicas de ação mercantil sobre o campo da ação cívica, no sentido de Boltanski e Thévenot (1991).

A convergência de saberes em função da prática tecnocientífica pode ser pensada não somente no sentido utilitário e mercantil do uso de possibilidades tecnológicas, mas também a partir da perspectiva de redução de assimetrias sociais, já que entendemos a tecnologia, nos termos de Feenberg (2003), não somente como controle racional da natureza, mas como construção social voltada para a sociedade. A questão técnica não pode apenas se referir ao acesso às novidades tecnológicas, mas também deve contemplar a problematização de sua decomposição funcional, nos termos de uma "racionalização democrática"12 12 O conceito de racionalização democrática, tal como formulado por Feenberg e Bakardjieva (2002), se refere ao entendimento ampliado de tecnologia que sugere a noção de racionalização baseada na responsabilidade para o contexto humano e natural da ação tecnológica. (FEENBERG, 2003). A tecnologia aparece como uma das maiores fontes de poder social das sociedades contemporâneas, mesmo se considerarmos a forte intersecção entre valores econômicos e imperativos técnicos (FEENBERG, 2003; FEENBERG & BAKARDJIEVA, 2002).

Portanto, quando tratamos das soluções tecnológicas para TV digital no Brasil, na perspectiva coletiva da rede sociotécnica, estamos falando não apenas de suas implicações técnicas em termos de alta definição, multiplicação de canais, oportunidades de novos negócios, mas fundamentalmente da dimensão social e cultural subjacente à tecnologia, desde sua concepção, como as benesses da interatividade e do acesso a serviços públicos para promoção da inclusão social, diversidade cultural, educação a distância. As possibilidades são muitas e se referem ao entendimento da tecnologia como construto social.

4. Antecedentes da TV digital no Brasil: uma breve incursão

Nesta seção apresentamos o histórico da constituição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, com a finalidade de realizarmos o mapeamento dos principais intervenientes em sua constituição. Partimos de uma rápida revisão sobre o surgimento da TV Digital e dos principais sistemas tecnológicos que a viabilizam. Em seguida, apresentamos a trajetória do debate da definição do padrão de TV Digital no Brasil, a partir da identificação de três momentos distintos.

4.1. O surgimento da TV Digital e o estabelecimento de padrões

O processo de desenvolvimento da televisão digital teve seu início ainda nos anos 1980, quando a emissora pública japonesa NHK (Nippon Hōsō Kyokai) se propôs a desenvolver um sistema de televisão de alta definição. Ao longo do desenvolvimento de tal tecnologia, a transmissão desse sistema se mostrou incompatível para transmissões terrestres por ser inviável alocar o tamanho do sinal dentro do espectro eletromagnético. Por tal razão, o projeto foi abandonado para as transmissões terrestres, prosseguindo seu desenvolvimento para transmissões via satélites.

Apesar do projeto japonês não ter alcançado seu objetivo nas transmissões terrestres, acabou pondo em alerta os Estados Unidos e Europa quanto à ameaça da supremacia da indústria tecnológica japonesa no setor das telecomunicações, o que fomentou o início de suas pesquisas na área de transmissões radioelétricas de alta definição.

Nos Estados Unidos, o processo de desenvolvimento de um sistema de televisão digital teve início em 1987, quando 58 organizações televisivas do país fizeram uma petição à FCC (Federal Communications Commission), agência governamental independente ligada ao Congresso americano, responsável pela administração do setor de comunicações, para que fossem iniciados estudos visando explorar novos conceitos no serviço de televisão. Em 1993, o MIT (Massachusetts Institute of Technology) e grandes empresas do setor de tecnologia da informação e indústrias de eletrônicos, como AT&T, Phillips, Sarnoff, Thomson e Zenith, uniram-se, formando um consórcio para o desenvolvimento de um padrão tecnológico proposto a romper com o paradigma analógico vigente.

Em 1996, a FCC adotou o padrão ATSC (Advanced Television System Committee), que faz uso do sistema MPEG para a compressão de imagens e Dolby para áudio. O desenvolvimento do ATSC foi concebido para ser um padrão de transmissão digital que prioriza as transmissões em alta definição (HDTV). Aquele consórcio acabou se ampliando para cerca de 140 empresas relacionadas às telecomunicações, entre fornecedores de equipamentos e emissora de televisão.

O consórcio para o desenvolvimento do padrão ATSC é formado exclusivamente por empresas do setor privado, daí a vertente de seu desenvolvimento para a alta definição com objetivos de exploração do serviço de radiodifusão televisiva digital como negócio privado, de forma a oferecer aos usuários um produto de consumo de alta definição, capaz de produzir grandes lucros e a possibilidade da continuidade do modelo de negócio da radiodifusão adotado naquele país. O padrão norte-americano foi assimilado pelo Canadá e Coréia do Sul.

Na Europa, as discussões sobre TV digital despontam em 1991, com a criação de um consórcio que hoje conta com mais de 260 empresas. O mesmo foi chamado de DVB (Digital Vídeo Broadcast), nome que foi estendido ao padrão tecnológico desenvolvido e lançado em 1997.

Em contraste ao consórcio americano, o europeu, além de contar com as empresas do setor privado, tem forte presença do Estado e de universidades, os quais operam a partir de lógicas mais compatíveis com o interesse público. Resultado disso, por exemplo, foi a ênfase dada às tecnologias que permitissem o aumento da quantidade de programas simultâneos (multiprogramação), assegurando, assim, uma maior variedade de canais e conteúdos para os usuários. O padrão europeu foi adotado pelos países da União Europeia, além da Austrália, Malásia, Índia e África do Sul. Ambos sistemas, ATSC e DVB, tiveram suas transmissões iniciadas em 1998.

O Japão decidiu em 1997 investir em um sistema totalmente digital baseado no sistema DVB europeu. Em 2000, foi lançado no país o ISDB (Integrated Services Digital Broadcasting). O ISDB é uma evolução do sistema DVB e, portanto, também um sistema multiportador, que permite, assim, a transmissão de vários canais SDTV no lugar de um único canal analógico. O sistema ISDB terrestre (ISDB-T) entrou em operação comercial em Tóquio somente em 2003, devido a dificuldades na alocação espectral. Podemos dizer que a preocupação dos japoneses era a definição de um padrão que contemplasse, fundamentalmente, alta definição, por estarem de olho no mercado norte-americano, e portabilidade. Os três padrões de TV digital, aqui sucintamente descritos, não apresentam como características interatividade, acesso à Internet e nem inclusão digital, esses três aspectos são tanto marcantes como desafios na constituição de um Sistema Brasileiro de TVD (SBTVD), como veremos adiante.

4.2. A evolução do debate sobre a TV Digital no Brasil: dos primeiros testes à definição do padrão

No Brasil, a evolução do debate em torno de um sistema digital de televisão pode ser compreendida em três momentos: de 1998 a 2000, quando os debates se concentravam, essencialmente, na escolha do padrão tecnológico a ser adotado; de 2001 a 2003, quando novos atores passaram a integrar o debate e a possibilidade de uma alternativa nacional aos padrões estrangeiros passou a ser ventilada; e de 2003 a 2006, quando a criação de um Sistema Brasileiro de Televisão Digital entrou definitivamente em pauta

Na verdade, o começo do debate sobre a TV Digital no Brasil se deu em 1991, com o envolvimento da Comissão Assessora para Assuntos de Televisão (COM-TV), ligada ao Ministério das Comunicações, a quem foi incumbida a avaliação das possibilidades da inserção de tal tecnologia na radiodifusão brasileira. Entretanto, até 1998, pouco se avançou nesse sentido. Foi somente com a criação do grupo formado pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão e pela Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão, Abert/SET, em parceria com a COM-TV, cujo objetivo era acompanhar e propor soluções para o processo de digitalização da televisão brasileira, que se produziram resultados mais expressivos em um período de tempo menor.

Em 1998, o CPqD, tendo a Abert/SET como consultora, foi autorizado pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) a iniciar testes em laboratórios da Universidade Mackenzie, na cidade de São Paulo, com os padrões de televisão digital existentes (ATSC, americano e DVB, europeu). Somente em abril de 2000, os experimentos puderam contar com a participação do padrão japonês (ISDB) e, desde lá, estabeleceram-se os comparativos entre os padrões, sobretudo levando em conta algumas funcionalidades desejáveis (ver quadro 1).


O segundo momento é marcado pelo ingresso dos acadêmicos e dos movimentos sociais no debate. O CPqD produziu um relatório ao final dos testes que foi colocado em consulta pública entre 12 de abril de 2001 e 23 de Julho de 2001. Essa foi a porta de entrada que deu origem a contribuições de representantes das tecnologias envolvidas, de universidades, sociedade civil e mercado. O relatório indicava uma superioridade técnica dos padrões DVB e ISDB frente ao ATSC, de acordo com as necessidades previamente requeridas referentes, principalmente, à recepção móvel dos sinais da TV digital (portabilidade) (CPQD, 2001). Cerca de 104 instituições de pesquisas, dentre elas 73 universidades, puderam participar dos debates por meio de consultas públicas.

A partir desse ponto, os rumos do processo de implantação da TV digital passam a tomar uma nova amplitude, com a inevitável diversidade de atores envolvidos no debate. O movimento pela implantação da televisão digital no Brasil havia sido iniciado com a orientação da Abert, uma representante das empresas de radiodifusão. Com o ingresso das universidades e da sociedade civil se cogitou sobre a possibilidade de desenvolvimento de um padrão brasileiro levando em consideração não apenas os aspectos mercadológicos, mas também a inclusão social e a democratização da comunicação.

Inaugura-se, assim, um terceiro momento que tem como ponto de partida a promulgação do Decreto n. 4.901/2003, que instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão Digital, o SBTVD, a partir do qual a perspectiva de um modelo nacional foi ganhando contornos. O Decreto define os princípios pelos quais a televisão digital deveria ser desenvolvida, as instituições envolvidas, o modelo de gestão do sistema e as origens de recursos para o financiamento de pesquisas13 13 Os recursos necessários foram oriundos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (FUNTTEL) que, instituído pela Lei 10.052/2000, conta com recursos oriundos de dotações consignadas na lei orçamentária, meio por cento da receita bruta das empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, nos regimes público e privado, e um por cento sobre a arrecadação bruta de eventos participativos realizados por meio de ligações telefônicas. . O texto legal lista onze objetivos para o SBTVD. Esses objetivos apontam claramente para a necessidade de que o sistema contribua para a inclusão social e a diversidade cultural, para a criação de uma rede universal de ensino a distância, para o estímulo à Pesquisa e Desenvolvimento na área de tecnologias da informação e da comunicação e para o estímulo à indústria regional e local. No que diz respeito à transição do sistema analógico para o digital, o decreto define parâmetros para a transição que fossem compatíveis com as condições econômicas dos usuários e com a realidade empresarial brasileira, assegurando meios para a evolução das atuais prestadoras dos serviços de difusão de sons e imagens analógicos para sua inserção no novo sistema (BRASIL, 2003; FREITAS, 2004).

A gestão do sistema passa a ser organizada em três instâncias: o Comitê de Desenvolvimento, vinculado à Presidência da República e composto por 10 órgãos do executivo; o Comitê Consultivo, integrado por 25 entidades da sociedade civil, e o Grupo Gestor, composto por 8 órgãos do executivo, uma instituição de pesquisa e pela Anatel. Tanto o Comitê de Desenvolvimento quanto o Grupo Gestor ficaram sob coordenação do Ministério das Comunicações.

O governo passa a organizar e fomentar os estudos e a participação de representantes da comunidade científica em direção a ações de pesquisa e desenvolvimento que oferecessem alternativas tecnológicas compatíveis com a realidade brasileira. Foram envolvidas 103 instituições científicas, públicas e privadas, que se organizaram em 20 consórcios, que se concentraram nas áreas de transmissão e recepção, codificação de canal e modulação; camada de transporte; compressão; codificação de sinais fortes; middleware e canal de interatividade (BRASIL, 2006a). Em agosto de 2004, as instituições de pesquisa receberam recursos da ordem de 50 milhões de reais do FUNTTEL, sob gestão do Ministério das Comunicações. Na condução do processo de seleção de propostas, contratação e desenvolvimento das pesquisas, o governo contou com o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e da Fundação CPqD (HOBAIKA, 2007).

Ao final, dos trabalhos de pesquisa, precipitados pela decisão do governo de definir o padrão tecnológico ainda em 2006, o CPqD apresentou o modelo de referência para implantação SBTVD, indicando que deveria contemplar: a alta definição, a interatividade (de maneira obrigatória), a monoprogramação ou a multiprogramação, a mobilidade e a portabilidade como opcionais, além de prever a figura do operador de rede, para compartilhamento da infraestrutura, e o triplecasting (transmissão simultânea de sinal analógico, em definição padrão e em alta definição). O modelo aponta, ainda, à necessidade de que sejam negociadas contrapartidas de transferência de tecnologia e à possibilidade de inclusão de tecnologia brasileira, sobretudo no middleware14 14 O middleware é um software que interage com o sistema operacional e com o hardware do receptor, permitindo a execução de aplicativos enviados pelo produtor de conteúdo. Em outras palavras, é a plataforma que de fato assegura a interatividade. No Brasil, o grande avanço nesta área é o middleware Ginga, criado pelo Laboratório Telemídia da PUC do Rio de Janeiro, com a colaboração do Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital da Universidade Federal da Paraíba. Esse software foi recentemente outorgado pela União Internacional de Comunicações, estando apto a ser inserido em qualquer dos padrões existentes. Para mais detalhes consultar http://www.ginga.org.br . O grupo de trabalho responsável concluiu que o desenvolvimento de um padrão brasileiro de televisão digital totalmente novo consumiria demasiados recursos e seria razoavelmente insensato. "Mais inteligente seria aproveitar as tecnologias já desenvolvidas, incorporando o know how e adaptando-as às necessidades nacionais" (HOBAIKA, 2007, p. 71). Resguardou-se, ainda, a ideia de manutenção do modelo de difusão da TV aberta brasileira, ou seja, com acesso gratuito dos telespectadores ao sinal, desde que os mesmos tenham os equipamentos necessários para isso. Em linhas gerais, o modelo de exploração e implantação enfatiza, em termos de benefícios:

• A possibilidade de multiprogramação num canal de 6 Mhz, incluindo a alta definição, possibilitando a inclusão de programações educativas e serviços de cidadania, aferidos como de alta relevância por pesquisas de mercado;

• A interatividade através de um canal de retorno, possibilitando a inserção de aplicativos capazes de ampliar as oportunidades de inclusão social e conferindo maior flexibilidade aos emissores para compor modelos de exploração;

• A mobilidade (aparelhos instalados em ambientes móveis, carros, ônibus, trens) e a portabilidade (aparelhos que o usuário transporta consigo) foram consideradas fatores importantes para disponibilizar programação livre e diretamente ao público, sendo também uma característica importante para a flexibilização do modelo de exploração.

De acordo com estas características desejáveis e avaliado os resultados dos testes realizados pelo CPqD com os três padrões (ATSC, DVB e ISDB), o padrão japonês ISDB foi considerado como o mais capacitado a atender as necessidades brasileiras. Porém a escolha do padrão ISDB não significa sua incorporação completa, pois a disponibilidade dos detentores dessa tecnologia em transferir e flexibilizá-la às necessidades brasileiras foi um fator decisivo. A intenção foi a de implementar o que seria um modelo nipo-brasileiro, incorporando tecnologias desenvolvidas pela comunidade científica brasileira ao sistema digital.

De acordo com o resultado de estudos científicos e negociações econômicas, o Poder Executivo Federal edita, em 29 de junho de 2006, o Decreto 5820 (BRASIL, 2006), referente à adoção do padrão de imagens ISDB-T como o padrão a ser utilizado pelas concessionárias e autorizadas nas transmissões de televisão digital terrestre. Suas disposições principais são:

Art. 5º O SBTVD-T adotará, como base, o padrão de sinais do ISDB-T, incorporando as inovações tecnológicas aprovadas pelo Comitê de Desenvolvimento de que trata o Decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003.

Art. 6º O SBTVD-T possibilitará:

I - transmissão digital em alta definição (HDTV) e em definição padrão (SDTV);

II - transmissão digital simultânea para recepção fixa, móvel e portátil; e

III - interatividade.

A possibilidade de inserção de tecnologias nacionais no novo padrão - as inovações tecnológicas mencionadas no decreto - levou o padrão a ser denominado com um padrão (ou modelo) híbrido, nipo-brasileiro. Logo após a publicação do decreto, o Ministério das Comunicações estabeleceu o cronograma para a implementação da televisão digital através da Portaria n. 652 de 10 de outubro de 2006. As transmissões seriam iniciadas pela região metropolitana de São Paulo, em dezembro de 2007, e a previsão de sua implementação em todo território nacional até 2013.

5. Controvérsias em torno da definição do SBTVD-T15 15 A partir do decreto 5820, de 2006, a regulamentação da TV Digital no Brasil centrou-se na definição do padrão tecnológico para transmissões digitais via terrestre (por isso, a expressão SBTVD-T), não tendo sido definido o padrão para transmissões via satélite.

A análise do histórico do Sistema Brasileiro de TV Digital que acabamos de apresentar pode passar a ideia de que a decisão adotada no Brasil seguiu critérios eminentemente técnicos, que passou ao largo das ações estratégicas dos envolvidos, centrando-se, finalmente, na definição do melhor padrão tecnológico possível. O processo evolucionário que caracteriza o progresso técnico seria o grande artífice da opção governamental.

Entretanto, ao analisarmos qual a relação entre o codificador de vídeo MPEG 4, em lugar do MPEG 2 e as possibilidades de universalização do ensino a distância, entre a possibilidade de transmissão simultânea em canais analógico e de alta definição e a realidade econômica da população brasileira, entre o papel da indústria nacional de televisores e o desejo de acessar o email pela televisão, entre a inclusão social e o espectro eletromagnético, entre o middleware e o modelo de negócio das radiodifusoras e operadoras de telecomunicações, nos deparamos com uma imbricada rede de associações, com atores heterogêneos e seus intermediários, com toda uma rede sociotécnica articulada em torno de um problematização, de uma controvérsia.

Uma controvérsia tecnológica, segundo Callon (2006a), possui algumas características, tais como a concorrência entre ciência e tecnologia, as múltiplas soluções possíveis, os variados grupos de interesse e o equilíbrio dessas forças ao longo da controvérsia. Nesse sentido, a definição do SBTVD-T, certamente, contém elementos de uma controvérsia tecnológica. Entretanto, o mesmo autor chama atenção, quando nos deparamos com tecnologias definidas, em que não há mais dúvidas sobre este ou aquele conhecimento a ser incorporado, em que a escolha se dá num universo finito de soluções ou de um pacote tecnológico, que a controvérsia se desenrola num momento posterior ao da definição tecnológica; logo, ela seria pós-tecnológica.

A análise do SBTVD-T permite identificar elementos tecnológicos definidos: o padrão de codificação de vídeo, por exemplo, o hardware do terminal de acesso, outro exemplo. Nesse sentido, a escolha entre os padrões americano, europeu e japonês seria uma controvérsia pós-tecnológica. Mas há, como vimos, elementos do sistema ainda em aberto, sobretudo no que diz respeito à interatividade e à produção de conteúdos. Aqui temos as características de uma controvérsia tecnológica. Podemos, no entanto, ir mais além e, com base na identificação dos diferentes atores, sustentar que a definição do SBTVD-T foi uma controvérsia ainda mais ampla, que envolveu traduções sobre o que pensa o cidadão brasileiro, o que deseja para a "nova televisão", qual o melhor modelo de educação para atingir este país continental, o que é direito à comunicação, qual o papel da indústria nacional num mundo de players globais. Podemos sustentar, finalmente, que se trata de uma controvérsia híbrida, pois permeada por múltiplas lógicas de ação e atores que problematizam a todo momento sua inserção.

Para a análise dessa controvérsia, esta seção está alicerçada em dois pontos: a organização da controvérsia e a sua multiplicidade, ilustrada por alguns dos principais debates identificados na pesquisa.

5.1 A controvérsia organizada

Em sua análise bastante conhecida das controvérsias tecnológicas em torno do desenvolvimento do veículo elétrico na França (VEL), Callon (2006a) demonstra como um ator, no caso a EDF (Eletricité de France), consegue agrupar todos os envolvidos nos debates e, de certa forma, coordenar sua atuação na busca de um consenso. A esse processo, o autor designou como uma controvérsia organizada, isto é, com um objeto definido, em que o trabalho de identificar os atores, sua motivação e sua atuação se torna mais simples.

A promulgação do Decreto 4901 (BRASIL, 2003), que institui o Sistema Brasileiro de Televisão Digital - SBTVD, traduz-se em uma tentativa do governo de organizar uma controvérsia que se tornou pública. Como vimos, a evolução do debate sobre a TV Digital no Brasil permite identificar três momentos, que se diferenciam, dentre outros aspectos, pela crescente incorporação de novos atores ao debate. O Decreto reflete o desejo do governo de organizar a controvérsia, estabelecendo objetivos, forma de gestão e mecanismos de implementação de estudos, pesquisas e do próprio debate.

Nesse sentido, o Decreto 4901 também expressa uma problematização proposta pelo governo: o debate sobre o SBTVD deve ter como objetivo a inclusão social e a diversidade cultural, deve viabilizar a universalização e estímulo ao ensino a distância, deve valorizar a indústria nacional, assim como assegurar uma transição do sistema analógico para o digital equilibrada para os usuários e para os radiodifusores que exploram os serviços de televisão analógica. No caso dos radiodifusores, estes devem ser preservados e estimulados a evoluir tecnologicamente no novo modelo, sem o prejuízo da entrada de outros atores. O governo16 16 A título de simplificação, mencionamos aqui o governo como um ator uno. Entretanto, vários representantes governamentais, do executivo e da base de apoio no Congresso Nacional, apontaram posições contraditórias em relação ao Ministério das Comunicações, sobretudo no que diz respeito ao timing da decisão e à necessidade de um debate anterior do marco regulatório, ponto que tocaremos em seguida (BRASIL, 2007). A posição hegemônica do Ministério das Comunicações, entretanto, levada ao fim e ao cabo dos debates, nos permite tratá-lo aqui como um ator-rede que representa o governo nesses debates. apresenta, assim, uma visão do que deve ser o sistema, de quais são os atores fundamentais e apresenta sua tradução dos interesses dos usuários, da indústria, do meio acadêmico, dos radiodifusores, dos possíveis entrantes no mercado, como as operadoras de telecomunicações. Em outras palavras, o governo se coloca como ponto de passagem obrigatório para a construção de um SBTVD que reflita os interesses desses atores.

Para se afirmar, nessa condição, o governo lançou mão de seus dispositivos de atração. Ao meio acadêmico e industrial sinalizou com os editais que formaram os consórcios de pesquisa e desenvolvimento, valendo-se de fundos atrativos para a pesquisa17 17 Em seminário realizado na Câmara dos Deputados em 2006, o Prof. Luiz Fernando Gomes Soares, ao se referir a um comentário do representante do padrão europeu que havia criticado os resultados das pesquisas feitas no Brasil, do Laboratório de Multimídia da PUC-RJ, afirmou, sobre os recursos liberados: "pode parecer pouco, mas para a universidade e os pesquisadores não é" (BRASIL, 2007, p. 129). . Outro dispositivo de atração identificado pelas empresas privadas que se lançaram ao desafio do SBTVD foi a oportunidade de obter reconhecimento e expertise em P&D, ao participarem de um esforço coletivo na construção de um sistema digital para televisão brasileira. "Na verdade, a Brisa entrou nesse projeto de TV digital com dois objetivos. O primeiro foi aprender. Criamos uma nova área de competência, o que eu acho que foi bem construtivo e o segundo tem a ver em nos tornarmos referência na área. Acumulamos capital científico", diz um dos coordenadores de consórcio, representante de uma empresa de tecnologia da informação. Um conjunto expressivo de instituições públicas e privadas, com desenvolvimentos relacionados aos diferentes componentes tecnológicos de um padrão, situadas de norte a sul do país, se apresentaram às chamadas públicas realizadas pela FINEP e coordenadas pelo CPqD.

À indústria e ao meio acadêmico acenou ainda com a sua capacidade de negociar mecanismos de transferência de tecnologia, independentemente do padrão adotado, e para a indústria nacional, especificamente, com a possibilidade de modernização e inserção em cadeias produtivas globais. Para os movimentos sociais e associações civis vinculadas à luta pelo direito à informação, órgãos de defesa do consumidor, associações empresariais e sociedades científicas, ofertou a participação no Conselho Consultivo. Aos representantes dos usuários sinalizou ainda com a necessidade de interatividade, capaz de dar acesso, ao mesmo tempo, a uma série de serviços governamentais, incluindo a educação a distância e ao mercado de consumo. Mesmo que a atuação de algumas entidades tenha sido muitas vezes contestatória em relação às posições governamentais, sua participação no conselho consultivo mostra a capacidade do governo de se colocar como ponto de passagem obrigatório, mesmo que alguns segmentos possam se considerar excluídos do debate18 18 Callon (2006a, p.153) chama atenção para o fato de que "a existência de uma controvérsia não é necessariamente sinônimo de democracia, pois as controvérsias são, antes de tudo, lugares de exclusão de atores e imposição de problemas legítimos". Para uma descrição e análise dos "excluídos" nesse debate ver Bolaño e Brittos (2007). . Aos radiodifusores, o governo sinalizou com a garantia de um modelo de TV Digital que preservasse o modelo da TV aberta e gratuita, financiada pela publicidade. Como demonstram as palavras do Secretário Nacional de Telecomunicações, essa questão foi preservada na atuação do governo:

Eu acho o seguinte: este padrão, ele dá uma facilidade que o radiodifusor não teria com os outros padrões, que é essa questão da mobilidade e da portabilidade, principalmente a questão da portabilidade; com os outros padrões, as emissoras ficariam quase que amarradas às empresas de telecomunicações, com esse padrão você continua recebendo do jeitinho que você recebe lá na sua casa, mas só que você também vai receber no seu celular, não passa, não tem nenhum vínculo com empresas de telecomunicações, o vinculo é zero, então acho que nesse sentido fortalece a radiodifusão, em vez de chegar apenas aos domicílios, ele chega a todos os automóveis, ônibus, trem, metrô que tenham essa recepção e chega assim, hoje no Japão são 40 milhões de celulares, são 40 milhões de caras que tem televisão indo pro [sic] trabalho, voltando, na hora do almoço, eu posso escrever lá o programa e o cara liga lá o celular e vê o programa, então eu acho que, sobre esse ponto de vista, é um padrão que foi desenhado pensando no radiodifusor.

Em relação às operadoras de telecomunicações, o governo apontou, no Decreto, a possibilidade de contribuir com a convergência tecnológica dos serviços de telecomunicações. Embora esse processo ainda não esteja de todo definido, regulado, o padrão escolhido não exclui o desenvolvimento de novos serviços de telecomunicação tendo como plataforma a TV Digital.

O sucesso desses dispositivos de atração se manifesta no envolvimento dos atores ao longo de todo o processo, de sua participação e da inexistência de maiores contestações por parte dos seus representados ao longo da controvérsia. O que não quer dizer que não houve ajustes na problematização, reinterpretações, reposicionamentos, como as controvérsias ressaltadas abaixo permitem identificar, até a definição do padrão.

5.2 A multiplicidade das controvérsias

Ao longo da constituição da rede sociotécnica que deu origem ao SBTVD-T, alicerçado no padrão nipo-brasileiro, e, sobretudo, a partir do momento em que o governo procura assumir o papel de protagonista desta rede, organizando as controvérsias, um conjunto de negociações pode ser verificado. Segundo o marco teórico adotado neste trabalho, essas controvérsias manifestam tentativas correntes de tradução dos atores na rede e foram decisivas na legitimação da escolha efetuada. Sem o compromisso de exauri-las, destacamos algumas delas pela sua relevância na definição do padrão.

Figura 1


a. Tecnologia nacional vs padrão internacional

Um dos principais embates na construção do SBTVD reside na análise da alternativa de construção de um padrão brasileiro de TV Digital. Embora a tradição de instituições de pesquisa brasileiras em vários componentes do padrão de TV Digital e o interesse de vários setores empresariais - indústria eletro-eletrônica, produtores audiovisuais e desenvolvedores de software - a hipótese de um desenvolvimento autóctone do padrão só ganha força a partir do decreto 4901 de 2003. Até então, como relatado na seção anterior, a questão colocada girava em torno da escolha e adoção de um dos padrões internacionalmente consolidados.

Com a instituição dos consórcios de pesquisa e desenvolvimento, o governo articulou a academia e o meio empresarial no esforço de mapear e desenvolver capacidade tecnológica nacional. Essa posição esteve presente no debate até as vésperas da escolha do padrão. Foi só em 2005, com a mudança na gestão do Ministério, que o governo passou a defender a adoção rápida de um dos padrões internacionalmente estabelecidos, sob pena de aumentar custos na implantação do sistema e de atrasá-lo em demasia (BOLAÑO & BRITTOS, 2007). Como afirma um pesquisador que integrou um dos consórcios, o processo foi abruptamente interrompido e, se havia atraso, boa parte dele se devia a problemas na liberação do fomento: "O deadline dado foi de 10 meses, e o dinheiro entrou na conta depois de uns 3 a 4 meses de projeto. Foi insano tentar fazer algo sério nesse contexto". Outro pesquisador, responsável pela coordenação do projeto nacional de maior êxito até aqui, o Ginga, afirmava, pouco dias antes do anúncio da decisão governamental, ao falar em nome dos consórcios que "a melhor solução para o Brasil é o brasileiro. As nossas propostas acrescentam várias inovações aos três padrões. O sistema brasileiro deve levar em conta as peculiaridades políticas e sociais do País e de seu povo" (BRASIL, 2007, p. 129).

A conclusão da controvérsia dos padrões foi expressa no Decreto 5820, de 2006. A instituição do SBTVD-T prevê o que o governo chama de modelo híbrido, com a opção pelo padrão japonês (ISDB-T), mas com a possibilidade de incorporação das inovações desenvolvidas pelos consórcios e de outras que venham a ser geradas no Brasil. Nos termos de Callon (1986), o modelo híbrido pode ser considerado a tradução estabelecida pelo governo para os interesses das instituições científicas e da indústria nacional.

b. Cidadão ou Consumidor

As discussões em torno do SBTVD, sobretudo da definição de seu padrão tecnológico, foram perpassadas, a todo o momento, por tentativas de tradução sobre as preferências do brasileiro em relação ao seu serviço de televisão. Por um lado, temos a interpretação que pode ser identificada como a da sociedade civil organizada, por outro, uma visão de mercado que, com algumas divergências importantes, articula os radiodifusores e as operadoras de telecomunicações.

Representantes da sociedade civil, sobretudo do movimento de defesa do direito à comunicação, postularam a necessidade de que antes da definição do padrão tecnológico fosse debatida a configuração do serviço. A tecnologia deveria vir depois da norma, uma vez que as condições de acesso ao serviço estivessem definidas, contemplando as preocupações com a inclusão social e a diversidade cultural. Nessa direção, o padrão a ser escolhido deveria propiciar o acesso gratuito ao sinal da TV Digital, a interatividade e a possibilidade de multiprogramação ou outro mecanismo de distribuição das frequências que viabilizasse a ampliação dos canais e o ingresso, assim, de atores excluídos, como associações, sindicatos, e a ampliação do espaço para TVs públicas e universitárias. A configuração do serviço deveria prever, igualmente, mecanismos para a disponibilização de conteúdo audiovisual produzido de forma independente e representativo das especificidades locais e das diversas manifestações culturais brasileiras. Em síntese, há a tradução de um cidadão preocupado com um modelo de televisão aberta, baseado no conceito de serviço público, ao qual o padrão tecnológico deveria corresponder. Transparece, nas entrevistas e documentos, a ideia de que um padrão com componentes nacionais poderia ser melhor compatibilizado com estas preocupações, ainda que não haja a defesa de um padrão específico.

O meio empresarial aposta em uma interpretação do ponto de vista do consumidor. Nesse caso, a tradução realizada indica que o brasileiro quer ter alta definição, que o mercado exige alta definição. Que o consumidor quer ter acesso ao sinal da TV Digital em todas as possibilidades oferecidas pela tecnologia de ponta - no carro, no ônibus, no celular, etc. - requerendo, portanto, alta definição, portabilidade e mobilidade. A questão em jogo, portanto, seria a de definir um modelo de negócio que se viabilizasse para oferecer a mais alta performance tecnológica. O padrão a ser definido teria que responder a essa demanda.

O SBTVD-T definido contempla decididamente a visão do consumidor levantada pelo meio empresarial. A pressa na definição do padrão, inclusive, foi várias vezes sustentada, como já mostramos em excerto da entrevista do Secretário Nacional de Telecomunicações, na ideia de que o país não poderia ficar para trás e deveria ter a oferta do que tecnicamente fosse considerado mais avançado.

c. Radiodifusoras vs operadoras de telecomunicações

Ainda que a tradução do consumidor seja partilhada pelos radiodifusores e pelas operadoras de telecomunicações, incluída aí a necessidade de que o processo de definição do padrão fosse mais rápido, a visão desses atores sobre o modelo de negócio da TV Digital foi bastante divergente.

Para os radiodifusores, o SBTVD-T deveria guardar os princípios básicos do modelo da TV aberta: gratuidade do sinal com remuneração dos serviços pelos anunciantes. Nessa interpretação, a discussão da TV Digital é uma discussão pontual, um avanço incremental na forma de transmissão do sinal. As possibilidades decorrentes da transmissão digital - como a portabilidade e a mobilidade - deveriam seguir o mesmo modelo e, embora mais canais fossem possíveis com a tecnologia digital, o acesso a esses deveria ser exclusividade dos radiodifusores. A plataforma tecnológica definida deveria portanto, responder ao essencial para a melhoria do serviço de TV aberta: a capacidade de oferecer alta definição.

Ao contrário, as operadoras de telecomunicações procuram trazer para o debate a questão da convergência tecnológica, o questionamento da exclusividade dos radiodifusores na produção de conteúdo e, para isso, até mesmo argumentos no sentido da democratização das comunicações são reivindicados. Nessa perspectiva, a alta definição não é a prioridade, mas uma plataforma que permita o maior número possível de emissores (produtores e distribuidores de conteúdos). A portabilidade e a mobilidade seriam negócios decorrentes das possibilidades tecnológicas e não seriam necessariamente intrínsecos ao serviço de radiodifusão.

Essas posições levaram os radiodifusores a alinharem-se ao padrão japonês. Como foi visto, o padrão japonês incorpora as tecnologias mais avançadas e possibilita que o radiodifusor transmita sua programação em alta definição para aparelhos fixos residenciais e em definições um pouco inferiores para aparelhos móveis e celulares, sem precisar passar pela infraestrutura. Já as operadoras de telecomunicações identificavam no padrão europeu o modelo de exploração mais conveniente. A possibilidade de ampliação do número de canais nesse padrão passa pelo compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações, com a introdução da figura do operador de rede. Em outras palavras, para difundir seus conteúdos para receptores móveis e portáteis, os radiodifusores teriam que contratar os serviços das operadoras de telecomunicações. As características do SBTVD-T, como definidas no decreto 5820 de 2006, incorporam a tradução dos radiodifusores e mantêm a nítida separação entre o serviço de radiodifusão e os serviços de telecomunicações. Separação que os avanços da convergência tecnológica já estão colocando em xeque.

O curso de implantação do SBTVD-T vem demonstrando que as controvérsias podem ser reabertas. Se, por um lado, a plataforma tecnológica da TV Digital terrestre foi definida, outros atores se inserem no debate. A convergência tecnológica, por exemplo, traz novos elementos para a problematização da TV Digital, interferindo no modelo de negócio, na possibilidade de inclusão social, enfim, propondo o repensar de uma série de aspectos fragilmente explorados na controvérsia organizada do SBTVD. Novos atores reclamam seu protagonismo, procuram se estabelecer como pontos de passagem obrigatório e precisam ser seguidos para que a dinâmica da rede que identificamos possa ser analisada.

6. Considerações Finais

Como se observou, o ponto central que mobilizou a formação e a dinâmica da rede sociotécnica em torno do SBTVD foi menos a escolha do melhor padrão para a televisão digital a ser adotado pelo governo brasileiro e mais as possibilidades técnicas de incrementos a qualquer um dos sistemas possíveis e sua adequação às expectativas do governo, do mercado, dos cientistas, do cidadão e do consumidor. O Decreto 4.901 proporcionou a possibilidade de operações de tradução que apontassem o significado e motivações dos actantes partícipes da rede e a manifestação do ator-rede fundamental que, de fato, protagonizou a escolha tecnológica da qual decorrem outras decisões como modelo de negócios e valores agregados ao sistema eleito.

O exercício de compreender as lógicas que perpassam os mundos sociais dos atores envolvidos diretamente na controvérsia pública sobre o SBTVD-T no Brasil nos leva a tecer duas considerações à guisa de conclusão. A primeira delas diz respeito à sujeição das lógicas cívica e inspiracional aos imperativos dos mundos mercantil e industrial. Ao partir dos princípios republicanos postos pelo Decreto 4.901, os quais contemplam o interesse público e põem ênfase na função social da TV digital para o brasileiro, depreendemos que tais preocupações não prevaleceram no resultado final da controvérsia e de seus múltiplos desdobramentos, em função de atrativos da tradução hegemônica do consumidor, expressa em conceitos como portabilidade e alta definição. A prematura conclusão dos trabalhos dos consórcios mobilizados, com a retirada do fomento governamental, significou frustração para as instituições públicas e privadas que apostaram recursos financeiros e humanos na empreitada do SBTVD. Os entrevistados, pesquisadores e gestores dos projetos foram unânimes em afirmar que a capacidade nacional para P&D precisava, para gerar tecnologias de ponta, além de fomento, tempo para maturação dos projetos. A escolha do padrão japonês, antes da finalização dos trabalhos dos consórcios, dialogou com os propósitos mercantis dos empresários de radiodifusão, além de se dar como se fosse independente do processo de convergência tecnológica em curso, sendo, na verdade, parte deste. Com a decisão, a perspectiva de um modelo de negócios para TV aberta brasileira mais inclusivo e menos centralizado, acalentada pelos movimentos sociais que lutam pela democratização das comunicações no país, foi comprometida.

A segunda consideração é de ordem mais filosófica, ao partir da reflexão ética sobre as condutas, posturas discursivas assumidas pelos atores envolvidos no debate, a respeito da função social da técnica na vida do cidadão, não como instrumento de opressão, mas de autonomia e inclusão. O que a tecnologia pode nos proporcionar para além das experiências estéticas ou sensoriais, mas também políticas, culturais, sociais, quando é pensada como construção social a serviço da sociedade. A oportunidade para o exercício da reflexividade em trocas intersubjetivas entre os atores concernidos na controvérsia sobre o SBTVD foi dada com o Decreto 4.901 e a instituição do Conselho Consultivo, no qual tinham assento representações da sociedade civil. No entanto, sabemos que as traduções do cidadão, feitas pelas representações da sociedade civil e pesquisadores dos consórcios, foram relegadas ao segundo plano e segmentos da sociedade ficaram de fora da controvérsia pública e organizada referente ao SBTVD no Brasil. Isso restringe a efetividade de uma democracia técnica operada a partir de uma racionalização democrática. em que o elemento do interesse público ganha relevância privilegiada. Além disso, em termos tecnocientíficos, o Brasil interrompeu um processo, em pleno vapor, de pesquisa e desenvolvimento, reunindo esforços coletivos, em uma iniciativa que muitos cientistas e gestores públicos apontam como uma das maiores expressões das potencialidades da coletividade científica brasileira em parceria com saberes técnicos, burocráticos e senso comum (como conhecimento prático esclarecido).

O quadro de monopólio que caracteriza o setor de radiodifusão no Brasil nos dá a medida exata dos interesses políticos e econômicos que motivam a disputa dos atores movidos por lógicas mercantis, industriais e domésticas em torno do controle da produção de conteúdos culturais apreciados pela população. Ao mesmo tempo, esse mesmo cenário de centralização da propriedade de meios de comunicação no Brasil aguça as reações de setores organizados da sociedade civil, movidos por lógicas opinativas e cívicas, que se engajam no debate público, problematizando a relação entre padrão tecnológico para a televisão digital no Brasil e fabricação de conteúdos culturais com forte caráter ideológico. O estudo da controvérsia em torno do SBTVD nos revela, a partir do quadro teórico-metodológico desenvolvido, que a querela em torno de uma tecnologia adequada ao progresso técnico da televisão sinaliza uma situação social em que valores sociais e cognitivos são objetivados na forma da tecnologia adotada. Assim, o padrão tecnológico em si se traduz em uma "caixa preta" que só pode ser decifrada a partir de uma abordagem que contemple sociedade, artefatos técnicos e lógicas de ação no entendimento da complexidade da construção social da tecnologia.

Recebido em 04/07/11

Aprovado em 27/09/11

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  • 1
    O SBTVD-Terrestre não aborda as questões relativas ao padrão de transmissão digital via satélite que compõe, juntamente como a transmissão digital terrestre, o SBTVD.
  • 2
    Embora um sistema de TV digital seja integrado por diversos componentes, cada qual vinculado a determinados padrões tecnológicos, constituindo, portanto, um sistema tecnológico optamos, neste trabalho, por manter a expressão que se consagrou nos debates públicos, a de padrão tecnológico, recorrendo a uma definição mais ampla de padrão, voltada para o caso da TV Digital, como apresenta Freitas (2004, p. 15) "um padrão de televisão digital (ASTC, DVB-T ou ISDB-T) é um conjunto de padrões tecnológicos, correspondentes a cada camada da arquitetura, que otimiza os serviços de televisão digital em uma dada localidade".
  • 3
    Latour (2007), reconhece que as considerações de Gabriel Tarde (1999) sobre o social abrem precedentes para a formulação da teoria do ator-rede porque "o social não constitui um domínio particular da realidade, mas um princípio de conexão; que não haveria nenhuma razão de separar o social humano de outras associações, como os organismos biológicos, veja os átomos; que, para tornar-se uma ciência social, a sociologia não havia necessidade de romper com a filosofia, e em particular com a metafísica; que a sociologia seria uma sorte de inter-psicologia; que o estudo de inovação e tudo particularmente da ciência e da técnica, seria um dos terrenos dos mais promissores da teoria social (...)" (LATOUR, 2007, p. 24-25). Tarde (1999), em sua visão pouco ortodoxa do social, insistia que na sociedade, como uma associação de formas heterogêneas, era preciso encontrar atos individuais dos quais os fatos sociais são feitos.
  • 4
    Para Gilbert Simondon (2008), a maior causa de alienação no mundo contemporâneo reside nesse desconhecimento da máquina (enquanto artefato técnico) que não é uma alienação causada pela máquina, mas pelo não conhecimento de sua natureza e de sua essência por sua ausência do mundo das significações e por sua omissão no quadro de valores e de conceitos que formam a cultura. Na máquina está encerrado o homem, desconhecido, materializado, servil, mas segue sendo o humano.
  • 5
    Collins e Pinch lembram que a tecnologia, diferente da ciência, é demonstrada e utilizada em condições de menor controle do que nos laboratórios científicos. As incertezas da tecnologia não podem ser sempre solucionadas a partir do ambiente controlado da ciência. A ciência não poderia salvar a tecnologia das suas incertezas, porque em algumas descobertas as tecnologias têm vida independente da ciência (como a roda e o barril) (COLLINS & PINCH, 2010).
  • 6
    O termo ator tem aqui o mesmo sentido atribuído por Callon (1986), e retomado por Latour (2005b), muito próximo da noção de actante oriunda da semiótica. Nessa perspectiva, os integrantes de uma rede são todos actantes, ao passo que os que de fato têm o atributo da agência são os atores.
  • 7
    Optamos aqui por utilizar a expressão tradução, embora as traduções realizadas no Brasil, sobretudo dos trabalhos de Latour, utilizem também o termo translação, como também em publicações na língua inglesa. Tradução, no entanto, tem sido o termo privilegiado pelos autores em seu idioma de origem, como acontece em coletânea publicada em 2006 (AKRICH; CALLON; LATOUR, 2006).
  • 8
    Para uma análise detalhada das noções de porta-voz e de ponto de passagem obrigatório ver Callon (1986; 1991) e Latour (2000; 2005b).
  • 9
    Embora fizesse referência a momentos da operação de tradução, Callon (1986) chama atenção que os mesmos não devem ser vistos como etapas de um processo, visto que podem ocorrer simultaneamente, o que é coerente com a ideia de que toda rede sociotécnica é provisória e, portanto, contestável a qualquer momento, em qualquer ponto.
  • 10
    Como avalia apropriadamente François Dosse, "(...) a realidade social não é uma, mas plural, e que é a partir dessa pluralidade dos mundos de ação que se articulam os processos de subjetivação" (DOSSE, 2003, p. 199).
  • 11
    A articulação entre a noção de rede sociotécnica e abordagens econômicas que se utilizam de uma decomposição funcional de bens e serviços tem sido desenvolvida, sobretudo, em estudos sobre inovação em serviços (GALLOUJ, 2002; VARGAS, 2009).
  • 12
    O conceito de racionalização democrática, tal como formulado por Feenberg e Bakardjieva (2002), se refere ao entendimento ampliado de tecnologia que sugere a noção de racionalização baseada na responsabilidade para o contexto humano e natural da ação tecnológica.
  • 13
    Os recursos necessários foram oriundos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (FUNTTEL) que, instituído pela Lei 10.052/2000, conta com recursos oriundos de dotações consignadas na lei orçamentária, meio por cento da receita bruta das empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, nos regimes público e privado, e um por cento sobre a arrecadação bruta de eventos participativos realizados por meio de ligações telefônicas.
  • 14
    O middleware é um software que interage com o sistema operacional e com o hardware do receptor, permitindo a execução de aplicativos enviados pelo produtor de conteúdo. Em outras palavras, é a plataforma que de fato assegura a interatividade. No Brasil, o grande avanço nesta área é o middleware Ginga, criado pelo Laboratório Telemídia da PUC do Rio de Janeiro, com a colaboração do Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital da Universidade Federal da Paraíba. Esse software foi recentemente outorgado pela União Internacional de Comunicações, estando apto a ser inserido em qualquer dos padrões existentes. Para mais detalhes consultar
  • 15
    A partir do decreto 5820, de 2006, a regulamentação da TV Digital no Brasil centrou-se na definição do padrão tecnológico para transmissões digitais via terrestre (por isso, a expressão SBTVD-T), não tendo sido definido o padrão para transmissões via satélite.
  • 16
    A título de simplificação, mencionamos aqui o governo como um ator uno. Entretanto, vários representantes governamentais, do executivo e da base de apoio no Congresso Nacional, apontaram posições contraditórias em relação ao Ministério das Comunicações, sobretudo no que diz respeito ao
    timing da decisão e à necessidade de um debate anterior do marco regulatório, ponto que tocaremos em seguida (BRASIL, 2007). A posição hegemônica do Ministério das Comunicações, entretanto, levada ao fim e ao cabo dos debates, nos permite tratá-lo aqui como um ator-rede que representa o governo nesses debates.
  • 17
    Em seminário realizado na Câmara dos Deputados em 2006, o Prof. Luiz Fernando Gomes Soares, ao se referir a um comentário do representante do padrão europeu que havia criticado os resultados das pesquisas feitas no Brasil, do Laboratório de Multimídia da PUC-RJ, afirmou, sobre os recursos liberados: "pode parecer pouco, mas para a universidade e os pesquisadores não é" (BRASIL, 2007, p. 129).
  • 18
    Callon (2006a, p.153) chama atenção para o fato de que "a existência de uma controvérsia não é necessariamente sinônimo de democracia, pois as controvérsias são, antes de tudo, lugares de exclusão de atores e imposição de problemas legítimos". Para uma descrição e análise dos "excluídos" nesse debate ver Bolaño e Brittos (2007).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      04 Jul 2011
    • Aceito
      27 Set 2011
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