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Apresentação

DOSSIÊ: REINVENTAR NORBERT ELIAS

Apresentação

Andréa Borges Leão; Edson Farias

A teoria da civilização de Norbert Elias, elaborada no curso do século XX, tem demonstrado a propriedade de se autorregular, atualizar e reinventar, ajustando-se aos desafios de um mundo cada vez mais interdependente e globalizado. A longevidade e o maior alcance da teoria da civilização tomam impulso com a diversidade não planejada e involuntária de seus usos e apropriações. A recepção da obra do sociólogo ante os problemas civilizatórios que se manifestam no século XXI, as transferências e adaptações às dinâmicas nacionais e transnacionais, acabam pondo-o à prova da historicidade de sua própria sociologia. Uma questão logo começa a orientar os textos reunidos no dossiê: qual é a ressonância de Norbert Elias no mundo contemporâneo?

As novas pistas de reflexão que se abrem ao estudo dos processos de simbolização contemporâneos são exemplos do longo alcance da teoria da civilização. Essas pistas ainda necessitam ser percorridas, complementadas e aprofundadas. Mas, um caminho promissor oferecido por Norbert Elias é o que articula os processos de aprendizagem social dos indivíduos aos domínios bem mais amplos dos processos naturais não apreendidos. A teoria da civilização aponta para os grandes entrelaçamentos entre a natureza e a cultura, articulando a diferenciação biológica e evolutiva à investigação dos processos psicogenéticos e histórico-coletivos.

Essa matriz teórica está na contrapartida da prioridade depositada por Norbert Elias no problema do desenvolvimento histórico de longa duração, o que ele denomina de dinâmicas históricas. Elias pertence a uma linhagem de cientistas sociais que constroem seus objetos de estudo nos arquivos e bibliotecas. Apoiado na composição e inventário de uma série de corpora documentais capazes de descrever os movimentos estruturados da história, Elias soube muito bem articular as experiências sociais que marcaram a singularidade greco-romana, medieval, renascentista e burguesa industrial à observação empírica e às matrizes de explicação sociológica de objetos construídos no presente. Sua compreensão dos processos de civilização não concebe os objetos a partir de mera localização em cronologias específicas ou reconstituições de experiências sociais, políticas e culturais fixadas no "passado". A abordagem processual privilegia a análise do desenvolvimento e da mudança. Elias nos conduz a um modo genealógico de pensar as condições de possibilidade das variações e permanências nas experiências sócio-históricas. Por isso, na companhia de livros como O processo civilizador, A sociedade de corte, Os alemães ou A sociologia dos indivíduos, entre outros, somos confrontados com o problema da formulação e controle de nossos modelos analíticos face às dinâmicas dos regimes de historicidade dos objetos de investigação. A noção de um "passado" fixo e invariante é reorientada pela categoria processual e figuracional do tempo, só possível de ser formulada e apreendida por uma teoria da civilização.

No final das contas, as interações e mudanças civilizatórias nas estruturas psíquicas dos indivíduos ainda se encontram em pleno desenvolvimento.

Norbert Elias nasceu em 22 de junho de 1897, na cidade alemã de Breslau. Os pais, Sophie e Hermann, formavam uma típica família burguesa de judeus alemães votados à disciplina do trabalho e à valorização das atividades intelectuais. Elias viveu, portanto, sua juventude no período de ascensão do nacional-socialismo e testemunhou a chegada de Adolf Hitler ao poder, o que significou a contingência da partida, em 1933. Primeiro para a Suíça e a França, depois para a Inglaterra.

Ainda jovem, serviu como soldado alemão na Primeira Guerra Mundial. Por esse tempo, iniciou seus estudos superiores em Medicina, interrompidos antes do final. Como sua vocação era a Filosofia, matriculou-se na Universidade de Breslau, onde defendeu sua dissertação, em 1924. O passo seguinte, no centro universitário de Heidelberg, foi dirigir-se a Alfred Weber, o irmão mais novo de Max Weber, a fim de preparar uma habilitação em sociologia. Antes, tentara habilitar-se em filosofia com Karl Jaspers, que o recusou. Elias, porém, não concluiu a orientação com Alfred Weber. Dirigiu-se a Karl Mannheim, de quem já se tornara amigo e assistente. Mannheim convida-o para trabalhar na Escola de Frankfurt. A oportunidade do convívio intelectual com um Privatdozent importante na sociologia alemã lhe proporcionou um considerável capital social de relações, útil para o resto da vida.

Em Frankfurt, Elias encontrou um ambiente intelectual propício aos estudos comparativos e interdisciplinares entre sociologia, psicologia e história. Há razões para supor que, nessa ambiência intelectual, Elias tenha desenvolvido a disposição em satisfazer horizontes de expectativas transdisciplinares, confirmando a hipótese de Marc Joly (2012). Por essa época, foi fundado, na Universidade, o Instituto de Psicanálise, o que deve ter permitido a Elias o contato com a obra de Freud. O jovem sociólogo não deve ter se mostrado alheio aos debates travados nas rodas intelectuais, nem nas discussões informais e conversas nos intervalos das aulas. O interesse pelas estruturas psíquicas era comum a todos e casava bem com o futuro projeto das interdependências entre a psico e a sociogênese. Mas Elias acaba tomando distância das conceituações freudianas que postulam estruturas universais do psiquismo humano. O jovem Elias demonstrava interesse pelo desenvolvimento das estruturas mentais, entrando em contato com a psicologia de Jean Piaget e Heinz Werner, e com os estudos de Lucien Lévy-Bruhl sobre o pensamento primitivo, corforme referido em uma carta ao sociólogo Raymond Aron, em 1939 (WEILER, 2008).

No mesmo ano de 1939, já na Inglaterra, Elias passou por uma experiência social marcante, a internação, por oito meses, em um campo de refugiados situado na Ilha de Mann, o Central Camp Douglas. Lá, não se desfez da cultura acadêmica alemã e acabou ministrando cursos sobre história da arte, psicologia social e sociologia. Aproveitou a oportunidade e a condição de interno para aprender inglês.

Graças aos professores e aos intelectuais de Frankfurt, também exilados, que intervieram a seu favor junto às autoridades inglesas, e graças ao apoio da várias associações e comitês de ajuda exteriores, Elias não passou muito tempo em Camp Douglas. Após a Guerra, trabalhou como professor no programa de educação de adultos, em um curso organizado pelo Adult Education Centre, da Universidade de Londres. Elias se naturalizou cidadão inglês em 1952, mesmo ano em que participou, com S. H. Foulkes, da fundação do Group Analytic Society, estreitando os laços com a terapia de grupo, que talvez, para ele, estivesse mais próxima dos estudos das relações entre os indivíduos de que a sociologia.

Desde a sua chegada à Inglaterra, foram necessários mais 15 anos para que obtivesse o primeiro posto de professor de sociologia, em Leicester, em 1954, aos 57 anos. Durante a aposentadoria, em 1962, Elias ainda conseguiu ocupar um posto de Professor Emérito na Universidade de Gana, onde permaneceu por dois anos estudando a arte africana. No retorno de Gana, foi a vez de ocupar o posto de Professor Visitante na Alemanha. Em 1984, se instalou definitivamente em Amsterdã. Por esse tempo, o reconhecimento já havia chegado e seus livros ganhavam o mundo. Em 1977, recebeu o Prêmio Adorno e, em 1987, o Prêmio Amalfi de Sociologia.

Em 1990, Norbert Elias faleceu em Amsterdã.

Ao longo dessa trajetória, outra importante via de compreensão dos processos de simbolização aberta por Norbert Elias é o modo como aborda os problemas do conhecimento, supondo uma constante balança de equilíbrio entre posições afetivas de compromisso e distanciamento. Conhecer é comparar perspectivas e experiências em contínuos movimentos. As diversas balanças que orientam as relações entre os aliados e adversários de todos os tempos e formas da civilização chamou a atenção do sociólogo. Preocupavam-no os diferenciais de dominação entre indivíduos em situações de interdependência. Antes de tudo, o equilíbrio que mais o fascinava era o que regulava e articulava as forças de controle exteriores e as forças de autorregulação nos indivíduos, as repressões sociais aos afetos e pensamentos. É realmente digno de nota o modo como a dominação entre os grupos sociais, seja na forma de tensões e concorrências abertas, ou de disputas veladas, não invalida as dependências mútuas. Ao contrário, as interdependências se estruturam nas situações de dominação e nas lutas de poder.

Com tudo isso, Elias renova o estilo dos sociólogos acostumados a dividir o mundo em dois sob o prisma da objetividade e da subjetividade.

Nos dias que correm, fala-se muito e com certa nostalgia retrospectiva dos desequilíbrios e crises sociais, do embrutecimento dos costumes, da perda da gentileza, das várias formas de violência e processos de descivilização, do habitus de jovens que vivem às margens das sociedades e ditam novos pactos entre as gerações. Hoje em dia, muito se fala dos processos de emancipação dos filhos em relação a seus pais. Mas o exame das contradições e incertezas contemporâneas nas relações adultos/crianças implica situá-las no longo processo de civilização. O rumo das mudanças no relacionamento entre pais e filhos ocupou, sobremaneira, a atenção de Norbert Elias. Em 1989, nas comemorações do ano internacional da infância, Elias realiza a conferência de abertura de um colóquio organizado em Berlim, intitulada "Eltern und Kinder. Gestern, heute, morgen"1 1 . Tomamos, para tradução, a versão em espanhol intitulada " La Civilización de los Padres". In: La Civilización de los Padres y Otros Ensayos. V. Weiler (Compilación y presentación). Bogotá: Grupo Editorial Norma, Editora Universidad Nacional, 1998. , que ora oferecemos aos leitores brasileiros com o título de "A civilização dos pais". Ainda inédito em português, esse texto traz uma interessante discussão das formas históricas de constituição das representações mentais e sensibilidades no processo de formação das relações entre pais e filhos. Apesar das aparências e dos afetos que mobiliza, trata-se de uma relação de dominação "caracterizada por uma balança de poder fortemente desigual", que ora pende mais para a autoridade dos adultos, levando-os ao exercício de poderes absolutos, ora para uma maior autonomia das crianças, possibilitando relações mais igualitárias e de maior confiança entre elas e seus pais. Se os filhos exercem poderes é porque desempenham funções e satisfazem certas necessidades e desejos dos adultos. Com isso, Elias chama a atenção para o olhar anacrônico sobre o passado da infância e o risco das projeções de critérios contemporâneos sobre sociedades tão diferentes das nossas. As alteridades radicais na história podem ser de longa duração.

Em "A civilização dos pais" encontramos um debate com a historiografia social e cultural da infância e da família, nas vertentes anglo-saxã e francesa. Desde a Escola dos Annales, os historiadores vêm problematizando diferenças, trocas e aproximações com as construções conceituais de outras disciplinas, como a sociologia, a antropologia e a ciência política. Os pertencimentos sociais dos indivíduos, os sistemas das representações coletivas, as permanências e rupturas nas instituições e relações sociais, entre outros temas e objetos, orientam as reflexões e as práticas dos historiadores do social, do político e do cultural. Elias trava uma discussão com a perspectiva romantizada de Phillippe Ariès e a abordagem psicogenética de Lloyd de Mause. O primeiro se volta para a procura de uma idade de ouro da infância, datando o aparecimento de um sentimento de preocupação com os pequenos, entre os séculos XVII e XVIII, desconhecendo por completo os termos de um problema que se constituiu lentamente. O segundo desconecta uma abordagem psicogenética da infância, que o leva a denúncias das atrocidades cometidas no passado, de um estudo sociogenético, impossibilitando-o de esclarecer as estruturas do processo histórico. Se Ariès e de Mause mobilizaram um grande número de fontes sobre a história da infância não souberam o que fazer com elas e muito menos relacionar as diferentes temporalidades em um processo de desenvolvimento.

Trabalhando praticamente com os mesmos documentos, os manuais renascentistas de regras de etiqueta e de moralidade, embora com outro programa de investigação em mente, Elias considera que o aumento da distância entre o nível de regulação individual das pulsões nos adultos e a espontaneidade "animal" da expressão pulsional dos jovens é o que orienta a modificação das relações entre pais e filhos. O sociólogo ainda se refere à interação do processo social de civilização ao processo biológico de maturação no crescimento das crianças. Tornar-se e agir como adulto requer um grau elevado de autocontrole das pulsões e afetos. Não podemos perder de vista que toda essa dinâmica psíquica corresponde ao aumento da complexidade das interdependências sociais. A direção do processo de civilização dos pais acaba por individualizar e separar o mundo cultural dos adultos do mundo cultural das crianças. Muitos dos problemas atuais na relação entre pais e filhos são questões de civilização.

A questão que norteia as reflexões de Elias diz respeito aos problemas gerados pela transição de uma forma de relação autoritária dos adultos com as crianças, característica das sociedades do antigo regime, para o desenvolvimento de formas de convívio mais igualitárias, que caracterizam sociedades como a nossa. No que concerne ao papel civilizador dos pais, importa conhecer as funções e significações que os filhos vão adquirindo, tanto na regulação das emoções por parte dos adultos em relação às crianças e a eles mesmos, quanto na participação de ambos nos processos sociais mais amplos. A observação dos rumos descritos pelas mudanças sociais e psíquicas de longo prazo acaba por nos apresentar uma sociologia histórica da infância e da família.

Com a publicação de "A civilização dos pais", nosso objetivo foi oferecer aos leitores brasileiros uma pequena parte da obra de Norbert Elias ainda praticamente desconhecida no Brasil, ou de acesso restrito aos círculos dos especialistas e admiradores. Muitos dos artigos e estudos dispersos de Elias, enfatiza Vera Weiler (1998), foram produzidos nos anos 1970, o período dos mais criativos de sua carreira. Entre esses escritos, inclui-se a "A civilização dos pais".

O conjunto de artigos que compõem o dossiê traz um Elias reinventado. Como os processos de conhecimento e controle dizem respeito à balança de equilíbrio do distanciamento e compromisso, buscamos saber de que modo os conceitos podem ser elucidados nos entrelaçamentos dos processos civilizatórios brasileiro, colombiano, francês, alemão, inglês e norte-americano.

Uma das facetas dessas intervenções está na possibilidade de reunir estudiosos e pesquisadores dedicados à obra eliasiana ou que fazem dela um ponto de partida para propor novas problemáticas, delinear outros objetos e acionar meios outros de investigação e análise.

Um viés eliasiano a respeito da ontogênese e da psicogênese comparece na proposta de virada na sociologia da literatura desenvolvida pela pesquisadora brasileira Andrea Borges Leão, no texto "Vamos ao Brasil com Jules Verne? Processos editoriais e civilização nas Voyages Extraordinaires". Escudada na maneira como Roger Chatier – já respaldado em Elias e também em Bourdieu– tem redefinido a história cultural do texto pela ênfase nos percursos de leitores e leitoras, Andréa Leão acrescenta ao debate a figura do leitor infantil nas tramas, envolvendo autores, editores, contextos institucionais e estruturas sociais. Com isso, a educação sentimental das crianças mediante escritos, mas em consideração às suas trajetórias de vida, familiar e de classe, em sociedades nacionais específicas, faz-se fundamental à análise e interpretação de como se conformam disposições literárias distintas, em termos da divisão funcional do campo de produção e recepção textual, mas também para compreender a delimitação tanto de pautas temáticas, quanto de escolhas e legitimação de possibilidades expressivas nesse mesmo espaço social. No texto que compõe este dossiê, a autora imerge na circulação internacional disposta na contrapartida da expansão das interdependências sociofuncionais transatlânticas, para encontrar, nos usos literários de um Brasil evocador de aventuras, presente em uma das viagens ficcionais elaboradas por Jules Verne, parte de mecanismos educacionais acionados na elaboração de emoções de gerações de leitores franceses do século XIX. Modulação de afetos esta com implicações nos modos ulteriores desses jovens de lidar com a natureza, com eles mesmos e com a relação entre o mesmo e a alteridade. A contribuição do texto de Andrea Borges Leão se estende para além da inserção do recurso metodológico de se voltar à ontogênese e psicogênese do leitor infantil. Formada no contexto acadêmico e científico brasileiro das últimas décadas, ela traduz a matriz eliasiana para o âmbito das interpenetrações culturais e civilizatórias, em que questões acerca do colonialismo, dos imperialismos, dos nativismos se rebatem sobre a triangulação leitor-autor-formas de escrituras, alertando à necessidade de abertura para aceder à pesquisa e ao estudo de processos culturais que contenham, não apenas, os trânsitos intercontinentais, mas, sobretudo, como esses tráfegos se coagulam em novas sensibilidades, novos formatos expressivos e, certamente, em outros dispositivos que tanto restringem quanto positivam a simbolização humana.

Radicada na Colômbia, onde faz parte do quadro docente da Universidade Nacional, em Bogotá, a historiadora alemã Vera Weiler constrói uma trajetória de estudos em que vasculha as retomadas, as referências e os diálogos intelectuais que estão no fundamento do projeto intelectual eliasiano. Particularmente, nos últimos anos, ela tem se interessado em revisar e redefinir a perspectiva psicogenética, na medida em que coloca entre parênteses o peso da influência da psicanálise freudiana na maneira como Elias concebe a construção/evolução da psique humana. Assim, no artigo aqui editado, "Norbert Elias ante el venerado 'sujeto'", Weiler realça o quanto a vertente alemã-austríaca da psicologia do desenvolvimento jogou um papel importante na relação estabelecida pelo autor entre ontogênese e formação das condições humanas para conhecer e fazer usos desses conhecimentos no prosseguimento das experiências do indivíduo e da espécie. É justo salientar que a autora é sensivelmente eliasiana aos efeitos sobre o esquecimento dessa tradição intelectual da Europa central em função da alteração na balança de poderes interna ao espaço social das ciências, mas com inalienáveis vinculações com os remanejamentos no equilíbrio de forças na sistemática dos Estados nacionais, depois da II Guerra Mundial. Período este marcado pela ascensão da hegemonia da produção científica estadunidense. Ou seja, a autora assinala como se entrelaçam modos de acesso e emprego aos estoques simbólicos de saberes humanos intergeracionalmente elaborados, com o desenho de novos perfis psíquicos, mas sem abrir mão da atenção das consequências não programadas da dinâmica das interdependências sócio-humanas de integração e repulsão, de luta e consenso, sobre as competências cognitivas dos indivíduos, mas também sobre os protocolos institucionais de pesquisa.

Assistente de pesquisa de Elias, Cas Wouters volta originalmente ao legado eliasiano sobre as dinâmicas de transformações dos costumes, mediante etnografias históricas, ao enfatizar a relação estabelecida entre as problemáticas em torno do aumento no gabarito de autocontrole, próprio aos processos civilizadores, e os desideratos dos fenômenos de democratização funcional, em que é observada a redução dos gradientes de desproporção, na retenção de recursos simbólicos e materiais entre dominantes e dominados. Embora seja um aspecto que percorre a obra de Elias e adquire destaque tanto no tratamento dado à Revolução francesa, em A Sociedade de Corte, quanto à ascensão de Hitler e do nacional-socialismo, em Os Alemães, Wouters o retoma a partir de certa passagem de O processo civilizador, onde os gestos intrínsecos à negação tanto do ascetismo quanto da procrastinação, emblemáticos da ordem burguês-produtivista, por parte da atitude contracultural, naturalista e vitalista dos hippies, são interpretadas, por Elias, à luz de um patamar bem elevado de autocontenção sintetizado no lema "paz e amor". Em "Como os processos civilizadores continuaram: rumo a uma informalização dos comportamentos e a uma personalidade de terceira natureza", Wouters sublinha o que a princípio seria um paradoxo, afinal registra a intimidade histórica e eletiva estabelecida entre constrangimento e o que denomina de "informacionalização" dos comportamentos, ao longo do século XX, sobretudo nas sociedades industrializadas do Ocidente. Cada vez mais, nota ele, desde a "revolução expressiva" da década de 1960, pessoas e grupos admitem viver e experimentar situações "perigosas" sem temerem por em risco suas respectivas dignidades. Contudo, em lugar de supor um vácuo individualista de regulação, Wouters atenta para as condições sócio-históricas em que avança esta outra economia psíquica, capaz de aliar incremento da autorregulação com a prerrogativa do prazer.

A proposta de "Não existe pecado abaixo do Equador? Algumas Considerações sobre o Processo de Formação da Sociedade de Corte no Brasil (1808-1889)", de Enio Passiani, volta ao esquema teórico-analítico sobre os processos civilizadores de Norbert Elias não somente para aplicá-lo à experiência histórica brasileira, mas com a finalidade de verificar os limites mesmos dessa atualização, ao se considerar as determinações sócio-estruturais presentes no desembarque da família real portuguesa no país, em 1808, com repercussões sensíveis na montagem e desenvolvimento do ordenamento estatal imperial. Escudado nas formulações de Florestan Fernandes acerca do "antigo regime" brasileiro, em que as facetas patriarcal-latifundiária e escravocrata do sistema econômico agrário-ruralista perpetraram os contornos do Estado-nação do Brasil, Passiani articula sua análise à luz dos dois seguintes pontos. De um lado, o papel desempenhado pela literatura de "bons costumes" no sentido de promover a divulgação e internalização dos códigos de comportamento afinados aos parâmetros de contenção dos impulsos primários – levando em conta serem fundamentais tanto essa homogeneização de comportamentos, quanto tal comedimento para a consolidação da sociedade de corte como representativa do processo de centralização estatal, à maneira do que ocorreu na Europa ocidental. Porém, de outro, há os impasses de propagação pelo conjunto da sociedade, sobretudo entre os quadros dos segmentos dominantes, desse modelo civilizatório, na medida em que as características localistas do poder dos terratenentes iam à contramão do enlace entre pacificação da violência pelo monopólio estatal da força bruta e composição de uma economia psíquica movida pelo refreio do recurso à brutalidade para lidar com as contradições inerentes ao mundo cotidiano.

Diante de igual possibilidade de ampliar o repertório temático e teórico-analítico da sociologia da cultura pela incorporação e tradução da matriz eliasiana, considerando as modulações necessárias ao se voltar a desenvolvimentos e texturas sócio-históricas fora do contexto europeu, o artigo "Personalidade Artística nos Negócios Mundanos: A celebração do 'gosto do povo' em Joãosinho Trinta", de Edson Farias, enfoca a problemática a respeito da conexão entre modos de simbolização, formatos e expressivos, dinâmicas históricas, estruturas sociais e economias psíquicas, em meio a movimentos de interpenetrações civilizatórias, atravessando e aproximando diferentes continentes. Leva-se em conta como os processos de expansão de interdependências sociofuncionais transladam, da Europa, os princípios ao perfil subjetivo da personalidade artística para a América e esta se incorpora a práticas lúdicas e diversionais variadas, mas acoplando elementos mnemônico-simbólicos de diásporas africanas à acomodação possível de traços culturais ibéricos. O eixo argumentativo por onde o texto se desloca aborda a figura histórica do carnavalesco, consagrada como o modelo do artista do carnaval, mas a partir da formação e intervenção estética de Joãozinho Trinta no desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro. Problematizando como se ajustam e conflitam, na obra do autor – e assim deixam entrever uma economia psíquica singular –, expectativas de autonomia de criação e atendimento de demandas externas, Farias propõe discutir a dubiedade contida na ideia de "gosto popular" como sintoma de um fazer artístico caracterizado pela pressão em aliar materialização do ideal de beleza, com imperativo de fomentar e cativar audiências consumidoras do mercado dos bens de diversão.

A expectativa dos coordenadores é que este dossiê, além de divulgar a obra de Norbert Elias, contribua para vicejar objetos, protocolos e meios de fazer sócio-antropológicos afáveis a traduzir os processos humanos sob a perspectiva articulada do simbólico com a natureza, do biológico com a cultura. E, sob esse ponto de vista, tome a história ou as historicidades e, nelas, o próprio social, considerando desejos, ilusões, fantasias, projeções quiméricas e afetos como elementos indissociáveis da experiência humana, em suas dimensões objetivas e subjetivas. Parece-nos ser esse o princípio motor do exercício intelectual eliasiano, o qual nos permite, hoje, desfrutar e propor reinvenções do seu legado.

  • JOLY, M. Devenir Norbert Elias. Histoire croisée d'un processus de reconnaissance scientifique: la réception française. Paris: Librairie Arthème Fayard, 2012.
  • WEILER, V. Presentación. La Civilización de los Padres y Otros Ensayos Bogotá: Grupo Editorial Norma, 1998.
  • __________. "Lucien Lévy-Bruhl visto por Norbert Elias". Revista Mexicana de Sociologia, v. 70. n. 4 (octubre-diciembre, 2008).
  • 1
    . Tomamos, para tradução, a versão em espanhol intitulada "
    La Civilización de los Padres". In:
    La Civilización de los Padres y Otros Ensayos. V. Weiler (Compilación y presentación). Bogotá: Grupo Editorial Norma, Editora Universidad Nacional, 1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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