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O kuduro como expressão da juventude em Portugal: estilos de vida e processos de identificação

Resumos

O artigo em questão é fruto de uma pesquisa etnográfica realizada em Lisboa, no ano de 2010. O kuduro é um estilo de dança e música que surgiu em Luanda, nos anos 1990, e que chegou a Portugal logo em seguida, por meio das relações entre os imigrantes com o país de origem: a Angola. O objetivo é compreender como, ao lado de outras formas de expressão cultural juvenis, em Lisboa, o kuduro, assim como o hip-hop, o rap e o reggae, passou a fazer parte integrante do consumo e da produção cultural dos jovens da periferia. Em meio à música e à dança como formas de entretenimento, um universo de tensões sociais, étnicas e geracionais faz-se presente e faz emergir interessantes processos de identificação social. A escola, a rua e a Internet tornaram-se os principais espaços de socialização do kuduro, que perpassa um estilo de vida que parece constituir laços de afinidade entre imigrantes e descendentes, tendo como referência o país de origem ou mesmo uma África imaginada pela relação de solidariedade entre descendentes da imigração originária dos Países Africanos de Língua Portuguesa. A análise de tais questões está implicada pelas novas dinâmicas dos fluxos contemporâneos transnacionais de pessoas, de produtos culturais e de informações, em contextos metropolitanos e pós-coloniais.

Kuduro; Juventudes; Identidades; Estilos de Vida; Imigração; Africanos em Portugal


This article is an ethnographic research made in Lisbon, in the year 2010. The kuduro is a style of dance and music that emerged in Luanda, in the 1990s, which came to Portugal soon after, through relations established between immigrants with their country of origin: Angola. The objective is to understand how, alongside other forms of cultural expression for youth, in Lisbon, kuduro, as well as hip-hop, rap and reggae, has become an integral part of cultural production and consumption of young people from periphery. Between music and dancing, as forms of entertainment, the universe of social, ethnic and generational tensions is present and make emerge social identification processes. The school, the street and the Internet became the main spaces for socialization of kuduro, running through a lifestyle that seems to build ties of affinity between immigrants and descendants, with references to the country of origin or even an imagined Africa by the relationship of solidarity among descendants of immigration from Portuguese-speaking African countries. The analysis of such issues is implicated by the new dynamics of the contemporary transnational flows of people, information and cultural products, and post-colonial and metropolitan contexts.

Kuduro; Youths; Identities; Lifestyles; Immigration; Africans in Portugal


ARTIGOS

O kuduro como expressão da juventude em Portugal: estilos de vida e processos de identificação

Frank Marcon

Doutor em Antropologia Social, pela UFSC, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe e dos mestrados em Antropologia e em Sociologia da mesma universidade. Coordenador do Grupo de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas. E-mail: frankmarcon@oi.com.br, marconfrank@hotmail.com

RESUMO

O artigo em questão é fruto de uma pesquisa etnográfica realizada em Lisboa, no ano de 2010. O kuduro é um estilo de dança e música que surgiu em Luanda, nos anos 1990, e que chegou a Portugal logo em seguida, por meio das relações entre os imigrantes com o país de origem: a Angola. O objetivo é compreender como, ao lado de outras formas de expressão cultural juvenis, em Lisboa, o kuduro, assim como o hip-hop, o rap e o reggae, passou a fazer parte integrante do consumo e da produção cultural dos jovens da periferia. Em meio à música e à dança como formas de entretenimento, um universo de tensões sociais, étnicas e geracionais faz-se presente e faz emergir interessantes processos de identificação social. A escola, a rua e a Internet tornaram-se os principais espaços de socialização do kuduro, que perpassa um estilo de vida que parece constituir laços de afinidade entre imigrantes e descendentes, tendo como referência o país de origem ou mesmo uma África imaginada pela relação de solidariedade entre descendentes da imigração originária dos Países Africanos de Língua Portuguesa. A análise de tais questões está implicada pelas novas dinâmicas dos fluxos contemporâneos transnacionais de pessoas, de produtos culturais e de informações, em contextos metropolitanos e pós-coloniais.

Palavras-chave: Kuduro, Juventudes, Identidades, Estilos de Vida, Imigração, Africanos em Portugal.

ABSTRACT

This article is an ethnographic research made in Lisbon, in the year 2010. The kuduro is a style of dance and music that emerged in Luanda, in the 1990s, which came to Portugal soon after, through relations established between immigrants with their country of origin: Angola. The objective is to understand how, alongside other forms of cultural expression for youth, in Lisbon, kuduro, as well as hip-hop, rap and reggae, has become an integral part of cultural production and consumption of young people from periphery. Between music and dancing, as forms of entertainment, the universe of social, ethnic and generational tensions is present and make emerge social identification processes. The school, the street and the Internet became the main spaces for socialization of kuduro, running through a lifestyle that seems to build ties of affinity between immigrants and descendants, with references to the country of origin or even an imagined Africa by the relationship of solidarity among descendants of immigration from Portuguese-speaking African countries. The analysis of such issues is implicated by the new dynamics of the contemporary transnational flows of people, information and cultural products, and post-colonial and metropolitan contexts.

Keywords: Kuduro, Youths; Identities; Lifestyles; Immigration; Africans in Portugal.

Introdução

Atualmente, o kuduro é um dos modos de expressão de dança e música mais presentes na juventude da periferia em Lisboa, Portugal1 1 . No Brasil, embora timidamente, o kuduro também chegou a partir dos trânsitos de africanos estudantes, comerciantes e turistas, principalmente angolanos, por meio de cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. . É um estilo de dança e música eletrônica que surgiu em Luanda, Angola, nos anos 1990; aos poucos, difundiu-se para outras grandes cidades de vários países com recepção de imigrantes angolanos, ganhando dimensões que ultrapassam a questão da procedência, diluindo-se entre jovens com distintos perfis.

O que proponho analisar neste artigo são as questões de produção, consumo e estilo de vida, mas fundamentalmente atento aos sentidos de identificação e diferença que são manifestos por meio do kuduro, em Lisboa, pela particularidade e pelas especificidades do contexto em que a dimensão global desse estilo manifesta-se em Portugal. É interessante observar se há, entre a juventude que produz e ouve kuduro, a configuração de um estilo de vida específico atrelado ao kuduro, e até que ponto ocorre uma correlação entre sentimentos coletivos de afetos, de pertencimentos e de solidariedades por meio de tal expressão, num contexto de ampla imigração angolana e africana. Baseados em que critérios tais sentidos de solidariedade fundar-se-iam e quais os argumentos de apelo de identificação e diferença poderiam existir nesse caso?

A manifestação do kuduro permite-nos pensar em questões relacionadas aos jovens imigrantes, aos jovens afrodescendentes e, de modo mais amplo, na juventude em geral que vive nos arredores de Lisboa. Suas formas de expressão estão implicadas por condicionantes contemporâneos de percepção sobre inclusão e exclusão, no contexto das novas configurações sociais e políticas do cenário "pós-colonial", em que os significados de identificação e diferença são, muitas vezes, acionados e recontextualizados por meio de formas de diferentes expressividades relacionadas ao consumo e à produção de música e de vídeo2 2 . Destaco a importância demográfica e o impacto social da imigração angolana, caboverdeana, guineense, moçambicana e sãotomense na Região Metropolitana de Lisboa nas últimas décadas. Com exceção do período de fins dos anos 1990, quando a imigração ucraniana teve um forte impacto nos índices gerais da imigração em Portugal, os PALOPs e o Brasil, juntos, sempre foram os países com maiores número de imigrantes em Portugal, desde a década de 1970. Preocupados com a regulação dos fluxos migratórios, principalmente sobre o impacto do emprego versus mão de obra (lucros maiores com mão de obra de segunda), atualmente algumas medidas foram adotadas pelo governo português para regular imigração/emigração, mas segue-se cumprindo a diretriz ideológica da recepção preferencial e do estímulo de imigrantes oriundos das Comunidades de Países de Língua Portuguesa, na qual se incluem os países africanos destacados acima, o Brasil e o Timor Leste. .

Juventudes e os estudos sobre kuduro em Portugal

Alguns dos primeiros estudos sobre formas de expressões características dos contextos juvenis e periféricos em Lisboa foram publicados por Machado (1994),

Pais (2000), Contador (2001), Fradique (2003) e Gusmão (2004)3 3 . Sobre a relação entre juventude e imigração, em Portugal, vários trabalhos acadêmicos recentes estão publicados no endereço eletrônico do Alto Comissariado para Imigração e Diálogo Intercultural ( http://www.acidi.gov.pt/). . Tais estudos versavam sobre a presença da juventude no espaço público e suas expressividades, o consumo e o domínio das novas tecnologias por parte dos jovens, a presença e a relação destes com a escola, a participação no mercado de trabalho, o seu envolvimento na criminalidade, a construção social dos jovens como representação pública do Estado e da sociedade, além de estudos sobre os jovens em suas práticas de informalidade, de convivialidade e de solidariedade.

Surgiram também estudos sobre a juventude relacionada à experiência com a imigração africana em Portugal durante as últimas três décadas, que relacionavam mais especificamente o rap ao cotidiano de tais jovens e suas formas de expressão social (MACHADO, 1994; CONTADOR, 2001; FRADIQUE, 2003), procurando perceber as influências de tal estilo como elemento de distinção social entre as juventudes no País. Em relação ao kuduro, apesar de ser um estilo de dança e música presente em Lisboa desde fins dos anos 1990, muito pouco se escreveu a esse respeito4 4 . Recentemente, publiquei um artigo sobre o kuduro numa revista portuguesa, com várias das questões aqui levantadas, porém no qual me dedico de forma mais enfática a discussão sobre as implicações da imigração e a correlação com a juventude africana e o estilo de vida aqui em questão (ver MARCON, 2012a). . A dissertação de mestrado em Antropologia, de Maria Manuel da Costa Bringel (1998), com o título Kuduro, flamengo e rap: identidades culturais salientes num contexto escolar urbano, é o primeiro trabalho de pesquisa que envolveu algum tipo de abordagem sobre o kuduro, mesmo que de modo tangencial. Escrita em 1998, essa dissertação é um registro importante de que o estilo já estava presente nas escolas das freguesias do município de Amadora, na Região Metropolitana de Lisboa, em meados dos anos 1990. Esse trabalho trata do tema imigração-escola, utilizando-se de teorias da etnicidade e sua relação com o consumo para estudar as relações entre o uso de indumentárias, gostos e estilos musicais; e a expressão de identidades étnicas em sala de aula, a partir da relação entre diferentes influências culturais associadas à imigração no contexto escolar.

Só dez anos depois, em 2009, apareceu outra investigação acadêmica sobre o kuduro em Portugal, por meio da Dissertação de mestrado Os processos de negociações identitárias nas culturas expressivas juvenis. O caso do kuduro na área metropolitana de Lisboa, de Olivier Guiot (2009). O autor propôs-se a analisar como o kuduro está presente nas manifestações identitárias dos jovens em Lisboa. A ênfase dessa pesquisa concentrou-se na tensão entre um formato hegemônico de expressão do kuduro, mais como música eletrônica de um circuito mais amplo de consumo de música global, versus um formato expressivo caracterizado pelo envolvimento diário de jovens africanos e imigrantes com a dança e a sonoridade do kuduro nos bairros da Região Metropolitana de Lisboa, mais especificamente localizados no município da Amadora.

Outro estudo recente, e que menciona em alguns momentos a presença do kuduro, é a pesquisa de Marta Rosales (2009) para o Observatório da Imigração, denominado: Crescer Fora D'Água? Expressividades, posicionamentos e negociações identitárias de jovens de origem africana na Região Metropolitana de Lisboa, em que são escolhidas duas regiões periféricas para estudar as expressividades dos jovens de origem africana, entre as quais o kuduro aparece como sendo um dos elementos do cotidiano mais significativo entre eles, quando encontrado nas práticas de lazer e nas escolas dos municípios de Amadora, Loures e Odivelas.

A experiência com a literatura apontada acima e a posterior aproximação etnográfica que fiz junto aos municípios da Região Metropolitana de Lisboa (RML), durante o ano de 2010, possibilitou a constatação mais precisa sobre os bairros em que estão localizadas as principais áreas de residência dos imigrantes africanos e seus descendentes. Além disso, nessas áreas evidencia-se a presença de jovens envolvidos ativamente com o kuduro. Estive em algumas localidades à procura desse estilo e das pessoas que o praticam, como: o bairro Fetais, na freguesia de Camarate, município de Loures; o bairro Terraços da Ponte, na freguesia de Sacavém, município de Loures; o bairro Fundo Fomento, na freguesia Vale da Amoreira, município de Moita; o bairro Arroja, no município de Odivelas; e outros bairros de diferentes freguesias, no município Amadora, localizadas no percurso da chamada Linha de Sintra (linha de trem suburbano que faz a ligação entre Lisboa e o município de Sintra, atravessando municípios e freguesias).

A partir de contatos previamente estabelecidos com alguns líderes de associações de moradores de diferentes bairros, fui estabelecendo uma importante rede de informantes para a pesquisa. Primeiramente, por meio de conversas esporádicas com os representantes da Associação Mointense dos Amigos de Angola (AMAA) e da Associação dos Residentes Angolanos de Odivelas (ARACODI), cheguei a alguns jovens envolvidos com o kuduro. que estão articulados a tais associações, por meio das quais são chamados para realizar apresentações em escolas, em festas de freguesias e em festivais. A partir destes, fui ampliando o acesso a outros jovens envolvidos com o estilo. Eles vivem em bairros diferentes, mas, muitas vezes, conhecem-se e têm contato uns com os outros, mesmo entre os que residem mais distantes de seu bairro ou localidade de moradia. As redes de contato entre eles são estabelecidas por amizade, por parentesco, por encontros fortuitos ou por outros elos sociais que revelam diferentes modalidades de sentimentos de afinidade compartilhados5 5 . Trata-se de um programa de ocupação de tempo livre, denominado de "Programa Escolhas", que está vinculado ao governo português, por meio do ACIDI. Subsidia os projetos vinculados às associações que mantêm contato com os jovens interessados em algum tipo de envolvimento com a dança, a música e outras modalidades de ocupação. O "Programa" auxilia iniciativas para ocupação dos jovens em atividades extraescolares. .

Para além dos círculos familiares, os encontros entre eles acontecem por intermédio das escolas ou de lugares de entretenimento e lazer, como os centros comerciais, bares, discotecas ou festas frequentadas pelas juventudes da periferia, bem como pelos meios de comunicação eletrônicos, oportunizados pela rede mundial de computadores, principalmente plas redes sociais (Myspace, Facebook, hi5, entre outras), dos blogs e dos sites de compartilhamento de vídeos e músicas, por meio dos quais difundem suas músicas e vídeos6 6 . Em outra oportunidade, desenvolvi uma reflexão específica sobre a relação entre as TICs, os jovens e o kuduro (ver MARCON, 2012b). .

Os espaços do kuduro em Lisboa

Alguns desses jovens nasceram na África; outros são filhos de imigrantes africanos. Também há os que mantêm algum tipo de afinidade com ambos, mesmo não tendo uma relação familiar direta com a imigração. Em casa, na escola, nas festas e na rua, diferentes estilos de música estão presentes no cotidiano desses bairros de considerável densidade demográfica, oriunda das experiências da população imigrante, vinda de países africanos, mas também do Brasil e do leste da Europa, mas também da própria população portuguesa empobrecida, que se acomodou nos chamados bairros sociais. Ou seja, ouvir estilos de música como: funaná, coladeira, quizomba, semba, kuduro, mas também samba, funk e flamengo, entre outros, é uma experiência comum que remete ao repertório musical que é reproduzido nos espaços sociais de convívio da imigração africana, em Lisboa – embora não exclusivamente desse grupo. A partir de tal repertório, esses jovens socializam-se e mantêm um senso de experiências coletivas próprias, que reproduz os sons, a linguagem oral e corporal dos países de origem ou de ideias generalizadas que se constroem sobre as origens nacionais ou sobre a África.

Entre os jovens que se consideram dançarinos, músicos ou produtores de kuduro, com os quais tive contato mais direto, alguns destes são nascidos em Portugal, outros chegaram ainda crianças. O interessante é que, em nossos diálogos, eles definiram-se como: angolanos, caboverdeanos, guineenses e sãotomenses, o que demonstra que um dos aspectos de sua identificação social está pautado pela experiência da imigração. Muitos começam muito cedo, ainda na escola, trazendo músicas gravadas nos celulares ou noutros suportes eletrônicos. Pelo domínio de tais suportes, eles compartilham a música com outros colegas ou fazem apresentações de passos de danças, que aprendem com familiares e amigos ou mesmo por meio dos vídeos que acessam na Internet, postados por grupos angolanos de kuduro. Nos anos 1990, antes da profusão de suportes eletrônicos individuais, o kuduro chegava por fitas K-7, de áudio e vídeo, e era ouvido e reproduzido entre esses jovens, chegando, ainda assim, às escolas, mesmo que numa dinâmica temporal menos veloz que nos dias de hoje.

Vários dos jovens que hoje têm grupos de kuduro ou atuam sozinhos começaram ainda crianças, dançando na rua e na escola, passando a se apresentar em eventos culturais na Região Metropoliana de Lisboa (RML), contatados pelas associações de imigrantes e de moradores nas freguesias ou municípios em que vivem. As associações têm, nesses casos, um papel de articulação que possibilita certa visibilidade para muitos desses grupos.

Além dos encontros fortuitos no espaço público do bairro, os principais lugares de expressão e difusão do kuduro são as escolas públicas, durante o intervalo das aulas, durante as campanhas das chamadas "listas", que elegem os grêmios estudantis, ou durante eventos, que são festas promovidas pela própria escola ou por associações comunitárias, o que coloca o kuduro como uma das expressões cotidianas de lazer, que tem como ápice as apresentações em dias escolares de festividades, quando há também apresentações formais para as quais os grupos de kuduro do próprio bairro ou dos bairros vizinhos são convidados. Quase nunca há remunerações significativas para tais apresentações; por vezes, eles ganham o lanche ou a bebida durante a festa. Apenas em alguns casos específicos recebem algo em dinheiro pelas apresentações.

Outros eventos são as festividades de apelo cultural, patrocinadas e programadas por algumas freguesias da RML. Vários desses eventos culturais propõem reunir e mostrar a expressão diversificada dos grupos populacionais residentes em seus territórios. Nos eventos realizados nas freguesias em que há a presença de imigração africana, as crianças e os jovens que fazem kuduro são também parte das atrações, chamadas de culturais, como referências a uma composição demográfica típica, ideal da representação de um multiculturalismo à portuguesa7 7 . Como é o caso das "Festas Multiculturais do Vale da Amoreira", que ocorrem na freguesia da Câmara Municipal de Moita, na margem sul do Tejo, durante as chamadas "festas populares" em Portugal. .

Estilo kuduro: a música e a dança

A música eletrônica do kuduro é rápida e pode atingir entre 130 e 150 BPMs (batidas por minuto). Elaborada com toques fortes e compassos fragmentados, é produzida em microcomputadores pessoais, com programas de produção digital de música. Por cima das batidas eletrônicas, é acrescida a cantoria veloz do Mc, que declama versos repetitivos, nem sempre compreensíveis na primeira vez que se ouve. As narrativas iniciam com apresentações e agradecimentos aos amigos, aos produtores, aos DJs ou aos possíveis ouvintes. A velocidade das batidas é acrescida de sonoridades exóticas, ruídos e estímulos que objetivam envolver os ouvintes e fazê-los pôr o corpo em movimento.

A base da dança kuduro são as formas de balanço do quadril associadas a uma variedade de passos e acrobacias, que procuram acompanhar a batida forte e rápida da música. Em alguns casos, o kuduro é composto de passos solos; em outros, os passos são coordenados em conjunto por um dado grupo. Durante a dança, observam-se alguns aspectos lúdicos nas expressões corporais, quase sempre relacionadas às caretas elaboradas pelos dançarinos e às formas de movimento corporal que testam ou brincam com os limites do corpo, por meio de coreografias inusitadas. Tais características estão ainda recheadas de sensualidade e sarcasmo, o que sempre atrai muitos curiosos, mesmo os alheios ao kuduro, quando se trata de exibições públicas em eventos nos quais alguns jovens apresentam-se.

Nos anos 1990, as músicas ouvidas e utilizadas nas apresentações e competições de dança de rua, em Lisboa, eram produzidas em Angola. As músicas do momento, que mais faziam sucesso em Luanda, quase instantaneamente apareciam tocando também em Portugal. Se a comunicação entre os imigrantes e os países de origem já era de certa maneira fluída, recentemente, principalmente entre os jovens, tornou-se muito mais veloz e eficaz, a partir da popularização da Internet. Músicas e vídeos são postados em sites de redes sociais e de compartilhamento de arquivos em Angola e acessados instantaneamente em Portugal, tornando-se a novidade do momento nas escolas, discotecas e espaços de entretenimento e de lazer de tais jovens.

Somente na última década, alguns grupos de kuduro começaram também a compor e a produzir música em Lisboa, como é o caso, entre outros, dos grupos: BF, K.55, Nova Geração, N'Gapa, N&S e Staff Estraga. Com o acesso facilitado à compra de computadores pessoais e à aquisição de programas de edição e produção de áudio e vídeo, vários desses jovens passaram a experimentar outras formas de envolvimento com o kuduro. Assim como já ocorria com o kuduro em Angola, as músicas produzidas por eles começaram a circular eletronicamente pelas suas redes sociais, pelo face a face (a família, a vizinhança, a escola, os amigos do trabalho e das festas) ou pelos contatos virtuais (das comunidades em que participam na Internet). Os espaços de difusão coletiva das suas produções musicais são os mesmos da dança, pois muitos agregaram o valor da novidade, de sua atuação como músicos, aos grupos de dançarinos dos quais já participavam.

Outro contexto em que os jovens envolvidos com o kuduro ganharam expressão pública foi na atuação como DJs em festas e discotecas, ou como produtores musicais, quando gradativamente começaram a dominar as tecnologias de criação e produção de música eletrônica. No que diz respeito à atividade dos DJs, eles passaram a atuar comandando a música das festas arranjadas por grêmios escolares e grupos de amigos; alguns foram sendo chamados para animar discotecas famosas, reconhecidas como espaços de música africana, em Lisboa.

Muitos jovens envolvem-se com a cena do kuduro simplesmente como ouvintes ou em busca do entretenimento ocasional em encontros com os amigos e em festas, mas outros envolveram-se mais efetivamente, investindo boa parte de seu tempo livre na criação de coreografias de danças, na composição ou na produção de música. De qualquer modo, o que se constata é que em espaços de residência e socialização das juventudes africanas em Lisboa, como nas localidades de Terraços da Ponte (Sacavém), Fundo Fomento (Vale da Amoreira), Massamá (Amadora), Fetais (Loures) e Arroja (Odivelas), o lazer desses jovens está associado ao envolvimento com estilos musicais específicos e com alguma associação às experiências dos países de origem. Entre os jovens, o kuduro é o estilo que atrai o perfil etário mais novo da juventude, em fase de escolarização básica: moradores de bairros da periferia, com baixo poder aquisitivo, mas atuantes no impulso ao consumo e ao acesso de informação associada a tal estilo musical.

Os que se consideram artistas na cena do kuduro usam cortes de cabelo exóticos, roupas e sapatos coloridos, além de adereços, como: brincos, correntes no pescoço e pulseiras. A inovação parece ser uma marca da performance dos dançarinos e músicos. A maioria dos jovens que entrevistei está numa faixa etária entre 16 e 23 anos de idade, sendo que parte desses está estudando em alguma escola secundária ou concluindo algum curso técnico, mas a maioria já não estuda; trabalha em serviços temporários ou está desempregada8 8 . Vários desses jovens trabalham na entrega de jornais promocionais de redes de supermercados; outros trabalham na construção civil, caracterizadas como atividades de pouco prestígio social. Apenas um deles, entre todos os meus contatos, realizava naquele momento um curso universitário. . Independentemente de suas atividades escolares ou de trabalho, uma boa parte do tempo livre desses jovens pode ser considerada como de envolvimento com a música e com o lazer.

Nos encontros em que tive a oportunidade de estar com alguns desses jovens, eles enfatizavam formas de falar, ressaltando os sotaques dos países africanos de origem. Algumas palavras são gírias angolanas ou caboverdeanas usais, marcando um lugar de afirmação pela linguagem. Há um vocabulário, um gestual e um modo de ser particular que é cada vez mais expressivo. Vivenciar isso na cena do kuduro implica em prestígios locais entre os amigos da escola e do bairro, acesso aos ambientes e aos recursos culturais e sociais, que muitas vezes são restritos à maioria destes jovens, bem como à possibilidade de levantar alguma renda por meio das atuações, ao mesmo tempo em que ampliam as suas possibilidades de diversão, como estratégias que demarcam uma forma de existência coletiva e diferenciada com relação a outras.

Notas sobre a trajetória de um kudurista

Sandro, de codinome Nenuco, nasceu em Bissau, na Guiné-Bissau, no ano de 1987, e foi com a família para Lisboa, em 1993, aos cinco anos. Sua família morou primeiramente na região de Chelas, periferia de Lisboa. Hoje, vivem em Queluz, na chamada Linha de Sintra. Seu pai é músico profissional e toca guitarra em apresentações internacionais de outros músicos. Nenuco disse-me que as primeiras vezes que tivera contato com o kuduro fora na rua e na escola, aproximadamente no ano de 1996, quando já vivia em Queluz. Com nove anos, ele e outros garotos tinham acesso a fitas k-7, depois CDs, que vinham de Angola pelos colegas que viajavam para visitar parentes em Luanda, ou por meio de novos imigrantes que chegavam a Lisboa. A partir daí, juntavam-se para ouvir e dançar kuduro. Antes de ter seu próprio grupo de dançarinos, o Mil Mambos, Nenuco dançou com os Garimpeiros (para ele, o primeiro grupo de kuduro de Portugal). Aproximadamente no ano 2000, criou o grupo Máquinas do Kuduro, juntamente com outros garotos inspirados num músico angolano chamado Máquina do Inferno. Aproximadamente em 1998, conheceu os dançarinos Gasolina e Multibanco, na localidade de Damaia, também na Linha de Sintra. Ambos atuavam nas apresentações de um músico já consagrado em Angola, Rei Helder, quando este apresentava-se em Portugal.

Nenuco significa pequeno chorão, numa alusão a um famoso boneco de brinquedo vendido para crianças. Sandro ganhou o apelido por ser o menor da turma quando começou a dançar. Como está há algum tempo envolvido com o estilo, apresentou-me uma série de contatos em vários bairros de Lisboa, com os quais tive a oportunidade de acessar outros. Foi quando entendi que as conexões entre os jovens de bairros distantes são extremamente dinâmicas em vários aspectos, mais especificamente quando o assunto é a música, nesse caso o kuduro, ou nas festas e em outras atividades de entretenimento. Por meio de Nenuco encontrei alguns dos jovens há mais tempo ligados ao estilo, como Ticho, do grupo K-55, em Terraços da Ponte; e os DJs Valdo, Fofucho, Marfox e Pausas, que vivem todos em diferentes bairros da RML; atuam em festas e discotecas e reconhecem-se como integrantes de uma mesma ambiência social e musical.

Se, primeiramente, Nenuco apenas dançava, recentemente ele começou a criar letras e batidas, interagindo com a tecnologia eletrônica de composição e produção da música. Com 23 anos, ele diz que atuar só na dança é algo para os mais jovens, ou "putos" (garotos). Gravou um CD em 2009, com cinco faixas, fazendo dupla com Sanha, denominando-o de N&S. Diz que apesar de não fazer o que os Buraka Som Sistema fazem, também não faz aquele kuduro de Angola, porque não há sentido fazer algo que não é propriamente angolano em Portugal9 9 . As produções do N&S circularam restritamente em CD e amplamente na Internet pelo Youtube. Ver, por exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=SayOJT8w_uE&feature=related , pois não são os angolanos os únicos que fazem kuduro no país. Ou seja, ele entende que é preciso fazer algo que se adapte ao público de Lisboa, que inclui os africanos, mas também outros jovens. Hoje, Nenuco vive economicamente da dança e da música, além de outros trabalhos temporários. São poucos os jovens desse contexto que sobrevivem exclusivamente do kuduro. Por exemplo, quando começou a ser chamado para apresentações em público, Nenuco ganhava 25 euros, mas diz que, pelo reconhecimento que foi conquistando, chegou a ganhar 400 euros por uma apresentação, o que é raro nesse meio. Já fez apresentações em várias cidades portuguesas; são apresentações sazonais, com mais demanda em alguns períodos do anos. Mais recentemente, também passou a vender as chamadas "batidas" (beats) que ele mesmo produz para outros músicos ou DJs. As batidas são músicas, sem a adição da voz, criadas eletronicamente em programas de computador, a partir das quais o MC, o DJ e o dançarino poderão acrescentar as suas formas de expressão.

Por fim, Nenuco vê-se como um dos difusores do kuduro em Lisboa. Para ele, os garotos mais novos de hoje espelham-se nele, dando a entender que conhece muito do que atualmente circula nesse meio. Em nossas conversas, ele requisita certa autoridade sobre o assunto e alguma legitimação para falar em nome do estilo, também querendo se colocar num lugar privilegiado de referência. Ele reconhece, no entanto, que o kuduro nasceu marginal, também em Portugal (como em Angola), e que antes não acreditava que o estilo tornar-se-ia tão difundido. Para ele, atualmente o kuduro têm mais espaço e expressão entre os jovens africanos de Lisboa, do que o rap, que há pouco mais de dez anos era um estilo de música que representava a expressão e a visibilidade de tal juventude nesse país. Exagero ou não, é certo que, além do rap, predominam diferentes estilos musicais entre tais jovens; o kuduro certamente tem aí uma representatividade significativa.

Produção e circulação

Como vimos, os grupos são conhecidos nos próprios bairros, entre os contatos realizados na escola, e também se tornam evidentes entre outros grupos que fazem o estilo em outras freguesias da RML. Além disso, eles tornam-se mais ou menos conhecidos quando postam seus trabalhos em som ou vídeo na Internet e este circula pelas redes sociais. Com raríssimas exceções, como veremos adiante com o caso paradoxal do Buraka Som Sistema, não há grupos que chegaram a um amplo circuito comercial de rádio e televisão ou à grande escala da indústria fonográfica. O estilo acontece mais como prática cultural, e menos como indústria.

Durante a pesquisa de campo, realizei um levantamento sobre a expressão "kuduro" nos principais jornais de Lisboa, como: Público, Correio da Manhã e Diário de Notícias. Em todos os casos, os jornais fornecem a possibilidade de uma busca eletrônica de palavras-chave, aproximadamente, dos últimos dez anos. Destaco o Jornal Público, por meio do qual consegui retroceder ao ano de 1998. No levantamento, apareceu a palavra kuduro associada a 74 notícias. A primeira é numa notícia de 23 de maio de 1999, em que se estava tratando de um tema sobre uma escola localizada na freguesia da Buraca, município de Amadora, ao mesmo tempo em que se mencionava que os ritmos que circulam entre os alunos daquela escola são o funaná, a quizomba e o kuduro. Tratou-se de um aparecimento muito circunstancial e sem muitos esclarecimentos relacionando os estilos de dança e música em um espaço de residência africana. Depois de algumas poucas notícias esparsas e associadas a diferentes temas, envolvendo jovens e principalmente imigrantes africanos e o kuduro, só a partir do ano de 2005 é que aparecem a notícias associadas a tal palavra nos jornais, relacionando-a diretamente a um grupo, o "Buraka Som Sistema". Logo depois do seu surgimento, no mesmo ano, o grupo apareceria inúmeras vezes na mídia impressa, quase sempre associado ao kuduro. Notícias da participação do grupo em festivais e dos inúmeros prêmios que eles vieram a receber, "representando a música portuguesa jovem", como repetidamente trataram os jornais, demonstram que o caso do grupo é particular e, ao mesmo tempo, paradoxalmente ambivalente. Não há outros grupos que apareçam no mesmo período associados da mesma forma ao kuduro10 10 . Com a exceção do grupo Makondo, surgido recentemente, e do Coletivo Fazuma, que produziu um projeto denominado Batida, com experiências com a música urbana de raiz ou inspiração afro, incluindo o kuduro. Nos dois casos, não se trata aqui de grupos de kuduro, mas de experiências musicais eletrônicas com estilos africanos. . A maior atenção da mídia é dada às apresentações do Buraka Som Sistema (BSS) – principalmente em grandes eventos nacionais e internacionais –, bem como à trajetória do grupo e às biografias de cada um dos seus membros, enfatizando que o grupo representa a "renovação da música jovem portuguesa".

Utilizando o kuduro como um diferencial rítmico para um projeto de música eletrônica comercialmente mais amplo que o próprio contexto periférico em Lisboa, o grupo BSS estabeleceu-se muito para além dos bairros de imigrantes e da cena das discotecas ligadas aos estilos considerados como de música africana. Assim, a sonoridade eletrônica inspirada no kuduro parece ser um diferencial experimental do grupo e uma estratégia que lhe abriu as portas de outros espaços de atuação e de público no cenário internacional da Europa e dos Estados Unidos da América11 11 . De qualquer modo, vale ressaltar que Kalaf, Konductor e Petty têm vivências anteriores em Angola e narram algum tipo de contato com esse estilo musical em Luanda ou dizem que o acessavam em Portugal, por meio de amigos. Kalaf e João parecem ser os idealizadores do projeto BSS, assim como foram os idealizadores da criação da produtora Enchufada, que hoje é a produtora do grupo e de outros grupos de música eletrônica, não necessariamente de kuduro. .

A relação que existe entre a exposição do grupo BSS e o kuduro consumido e produzido nos bairros de Lisboa é que as referências dos membros do grupo BSS saíram de experiências musicais e sociais semelhantes das que tenho tratado até agora: jovens africanos, imigração e periferia. Embora exista uma distância enorme entre o que é o kuduro, em Lisboa, e no que se tornou o grupo BSS para os portugueses, todos os jovens dos grupos com os quais estive na periferia de Lisboa foram unânimes em fazer algum tipo de referência ao BSS, como um representante da música produzida por jovens africanos, em Portugal. Esses jovens afirmam que, com tal grupo, houve uma espécie de reconhecimento social da presença dessa juventude no país, embora se demonstrem reticentes em concordar que o que grupo faz é kuduro. A maior parte desses, afirmou que o Buraka faz o estilo house, com alguma influência do kuduro e de outros estilos de música eletrônica. Talvez, por isso, seja interessante entender o BSS como uma expressão à parte, embora significativa para percebermos as facetas da absorção de uma influência africana como produto cultural português. O grupo tornou-se um fenômeno de vendas, está presente em várias campanhas publicitárias dirigidas aos jovens na mídia portuguesa; é associado a uma ideia de cosmopolitismo pós-colonial da lusofonia12 12 . A noção de lusofonia expressa a ideia de uma comunidade linguística em torno da língua portuguesa, mas também tem sido utilizada para exprimir uma ideia de comunidade de afinidades culturais e históricas. Ideia que é propagada ideologicamente pelo Estado português, quando faz referência a a tais afinidades entre Portugal e os países que foram suas colônias, como se existisse um modo português de estar em qualquer lugar do mundo. .

O paradoxo é que o kuduro era e é maior que o Buraka Som Sistema, em Portugal, com uma forma muito própria de envolvimento dos jovens imigrantes, circunscritos em um espaço periférico de atuação local e vinculado a redes de contato pessoal. Se o kuduro primeiramente foi consumido, para depois ser produzido pelos jovens imigrantes, interessa também entender as facetas dessas formas de consumo e circulação. Primeiramente, 1) destaco que a audiência e a produção de tal estilo estão também associadas às outras formas musicais e plásticas de expressões juvenis, como o rap, o hip-hop, o reggae, a quizomba, a tarraxinha, o funaná e o afrobeat. Em segundo lugar, 2) que boa parte da audiência do kuduro também se realiza em festas de amigos, nos eventos culturais e nas discotecas africanas13 13 . Alguns destes espaços: discoteca Mussulo, discoteca Kaombo, discoteca Ondeando, Bar Kretcheu e Bar Bons Amigos. , onde a música é reproduzida e é difundida, ganhando uma visibilidade mais difusa na ideia de "música africana contemporânea". Em terceiro, 3) que existe uma circulação local e transnacional, por meio dos canais de rádio (Antena 3 e África) e TV fechada (RTP África; Afro-Music e TPA Internacional) com programas específicos, em que se ouvem kuduro e músicas africanas produzidas por artistas angolanos, caboverdeanos, moçambicanos, guineenses e sãotomenses, com certa hegemonia dos dois primeiros14 14 . Em vários dos canais de rádio e tevê mencionados, é mais comum a presença de músicos caboverdeanos e angolanos do que dos outros países africanos. Os estilos musicais provenientes desses dois países também são mais comuns entre os imigrantes africanos em Portugal. . Esse contexto está diretamente articulado com o das discotecas. A especificidade das discotecas é que nelas a audiência é compartilhada, muitas vezes com certa euforia, agregando à audiência um senso de identificação coletiva pelo que se ouve e se vê em grupo. 4) Outro meio de reprodução é a rede mundial de computadores, por meio de canais como Youtube, de redes de relacionamento e de compartilhamento de arquivos, de múltiplas estratégias de difusão e de acesso por email, em que as músicas e vídeos são compartilhados – embora não afeitos à euforia – por uma cumplicidade coletiva. Por último, 5) a música circula também de mão em mão por quem produz e reproduz o kuduro, com a exceção dos trabalhos do grupo Buraka Som Sistema, que são comercializados em suporte de CD, por distribuidoras internacionais, e estão nas estantes das grandes lojas do país15 15 . Numa das maiores megastores do país, as divisões de oferta de música são realizadas em alguns casos por seções de "gênero" ou "estilo" e em outros casos por procedência de países diferentes, organizados cada qual em ordem alfabética por artista. Por exemplo, pelo estilo, estão: rock, punk, hip-hop, jazz, clássica, dance. Mais especificamente ainda, em alguns casos, como para o hip-hop, há uma seção específica para o hip-hop português. Outra forma de classificação são as procedências, como:música portuguesa, música brasileira, música dos PALOPs, música Africana, música Búlgara, entre outras. Na sessão dos PALOPs, encontram-se vários exemplares de diferentes músicos de funaná, quiizomba e semba. Num outro espaço, definido como de Música Dance, encontrei três títulos do Buraka Som Sistema (Enxufada/Sony). Na seção hip-hop português, encontrei o único CD do Makondo (Angola KungFu). . Entre a maioria dos jovens envolvidos com o kuduro em Portugal, não há a gravação nesse tipo de suporte para cópias comerciais e revenda. Os suportes mais utilizados são as memórias dos próprios equipamentos eletrônicos portáteis em que sua música é reproduzida. Isso implica mencionar a marca da efemeridade com que as composições aparecem e desaparecem de circulação, na medida em que são substituídas por outras músicas em equipamentos de memória digital.

Como já disse Arjun Appadurai (2004), os meios de comunicação e os movimentos migratórios de massa da contemporaneidade apresentam questões antropossociológicas que devem nos fazer pensar na relação das comunicações, das solidariedades, das trocas econômicas, das hierarquias, das produções, dos consumos, das identidades, das tensões com os fenômenos de desterritorialização financeira, étnica, midiática, técnica e ideológica. Em tal contexto, o consumo contemporâneo da música e dança por meio de suportes como walkman, mp3, celulares, entre outros, possibilitam que a produção, a reprodução e a circulação da música e de vídeos sejam redefinidas por um contexto de fluidez de micronarrativas, ao mesmo tempo pessoais e articuladas numa rede de audiência com experiências sociais mais ou menos compartilhadas16 16 . A velocidade da comunicação e como a informação em tempo real, o diálogo e o debate permitem que vários indivíduos separados territorialmente formem, perpetuem ou re-elaborem noções sobre comunidades de imaginação e interesse dirigidos por experiências da diáspora (APPADURAI, 2004, p. 258). Com isso, comunidades são criadas ou mediatizadas por meio do acesso ao software e ao hardware, necessários para se ligar as grandes redes internacionais de computadores. Informação e opinião fluem concomitantemente. .

As práticas de produção, de consumo e de relacionamento com a música e a dança por parte desses jovens abrem possibilidades para percebermos alguns contornos sobre os processos de identificação (CONTADOR, 2001) nos quais estão envolvidos. A presença da denominada música africana (kuduro, morna, koladera, funaná, quiizomba, entre outras) entre os jovens da RML remete a um processo de identificação que passa pelo sentido de referência a um coletivo etnicizado, e que envolve a família, a vizinhança e os amigos. É como se a música tornasse-se uma etnoreferência mimética dos significados da diáspora para os descendentes e imigrantes africanos (CONTADOR, 2001), assim como para outros que se constroem como parte desse mesmo sentimento coletivo por meio do qual compartilham o estilo da juventude que ouve e dança kuduro.

De tal perspectiva, temos uma relação interessante entre os estudos sobre culturas jovens, estilo de vida, produção e consumo cultural, associados aos processos de identificação, mesmo que estes sejam caracterizados por certa efemeridade. São possibilidades de compreensão sobre um dado conjunto de características mais ou menos similares nas práticas e discursos de um determinado grupo, marcado pela faixa etária aproximada, pelo convívio com a experiência da imigração, pela distinção social, às vezes pelo fenótipo e às vezes pelas referências de uso de objetos e espaços comuns, gostos e práticas.

Algumas considerações finais

O kuduro é uma referência de identificação entre os jovens em Lisboa, porque implica não só um público com um perfil social similar, que pode ser reconhecido pelos espaços que frequenta, pelo gestual e pela indumentária, mas também porque é um estilo musical e de dança marcado por uma dinâmica de produção, circulação e consumo que se confundem com as práticas cotidianas: a casa, a família, o encontro com os amigos na rua, a escola e o entretenimento juvenil. Trata-se de uma forma de ser e estar que caracteriza uma rotina que tem momentos de auge, como as apresentações em escolas e festas, as animações em discotecas e as gravações públicas de vídeos, envolvendo tanto os que são considerados os mais habilidosos e que produzem algo na dança ou na música, expondo-se por meio do estilo, mas também pelos que eventualmente consomem o kuduro, incorporando a linguagem oral e corporal da dança e da música ao seu dia a dia.

Essa é expressão de um estilo que surge caracterizado por um novo contexto tecnológico de produção, reprodução e difusão independente de gravadoras e de distribuidoras, marcado pela circulação nuclear e centrípeta (que irradia de um grupo de amigos para uma rede maior e, dali, para grupos de amigos que vivem distantes), por meio dos suportes de arquivo virtual de música, chegando aos diferentes bairros, cidades e países, sem delimitação de fronteiras específicas (por meio de computadores, mp3, celulares), sem um mecanismo de controle comercial formal sobre sua circulação e consumo.

Na Região Metropolitana de Lisboa, tal estilo tornou-se um aglutinador das sociabilidades juvenis entre as experiências da imigração africana, compartilhadas com outros grupos demográficos de residentes nos mesmos bairros da periferia. Em torno da música e da dança, estabelem-se formas de identificação coletiva, por meio das quais se manifestam também sentidos de alteridade com relação a outras formas de expressões culturais das juventudes na metrópole portuguesa.

Recebido: 26.08.11

Aprovado: 28.09.12

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  • 1
    . No Brasil, embora timidamente, o kuduro também chegou a partir dos trânsitos de africanos estudantes, comerciantes e turistas, principalmente angolanos, por meio de cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.
  • 2
    . Destaco a importância demográfica e o impacto social da imigração angolana, caboverdeana, guineense, moçambicana e sãotomense na Região Metropolitana de Lisboa nas últimas décadas. Com exceção do período de fins dos anos 1990, quando a imigração ucraniana teve um forte impacto nos índices gerais da imigração em Portugal, os PALOPs e o Brasil, juntos, sempre foram os países com maiores número de imigrantes em Portugal, desde a década de 1970. Preocupados com a regulação dos fluxos migratórios, principalmente sobre o impacto do emprego versus mão de obra (lucros maiores com mão de obra de segunda), atualmente algumas medidas foram adotadas pelo governo português para regular imigração/emigração, mas segue-se cumprindo a diretriz ideológica da recepção preferencial e do estímulo de imigrantes oriundos das Comunidades de Países de Língua Portuguesa, na qual se incluem os países africanos destacados acima, o Brasil e o Timor Leste.
  • 3
    . Sobre a relação entre juventude e imigração, em Portugal, vários trabalhos acadêmicos recentes estão publicados no endereço eletrônico do Alto Comissariado para Imigração e Diálogo Intercultural (
  • 4
    . Recentemente, publiquei um artigo sobre o kuduro numa revista portuguesa, com várias das questões aqui levantadas, porém no qual me dedico de forma mais enfática a discussão sobre as implicações da imigração e a correlação com a juventude africana e o estilo de vida aqui em questão (ver MARCON, 2012a).
  • 5
    . Trata-se de um programa de ocupação de tempo livre, denominado de "Programa Escolhas", que está vinculado ao governo português, por meio do ACIDI. Subsidia os projetos vinculados às associações que mantêm contato com os jovens interessados em algum tipo de envolvimento com a dança, a música e outras modalidades de ocupação. O "Programa" auxilia iniciativas para ocupação dos jovens em atividades extraescolares.
  • 6
    . Em outra oportunidade, desenvolvi uma reflexão específica sobre a relação entre as TICs, os jovens e o kuduro (ver MARCON, 2012b).
  • 7
    . Como é o caso das "Festas Multiculturais do Vale da Amoreira", que ocorrem na freguesia da Câmara Municipal de Moita, na margem sul do Tejo, durante as chamadas "festas populares" em Portugal.
  • 8
    . Vários desses jovens trabalham na entrega de jornais promocionais de redes de supermercados; outros trabalham na construção civil, caracterizadas como atividades de pouco prestígio social. Apenas um deles, entre todos os meus contatos, realizava naquele momento um curso universitário.
  • 9
    . As produções do N&S circularam restritamente em CD e amplamente na Internet pelo Youtube. Ver, por exemplo:
  • 10
    . Com a exceção do grupo Makondo, surgido recentemente, e do Coletivo Fazuma, que produziu um projeto denominado Batida, com experiências com a música urbana de raiz ou inspiração afro, incluindo o kuduro. Nos dois casos, não se trata aqui de grupos de kuduro, mas de experiências musicais eletrônicas com estilos africanos.
  • 11
    . De qualquer modo, vale ressaltar que Kalaf, Konductor e Petty têm vivências anteriores em Angola e narram algum tipo de contato com esse estilo musical em Luanda ou dizem que o acessavam em Portugal, por meio de amigos. Kalaf e João parecem ser os idealizadores do projeto BSS, assim como foram os idealizadores da criação da produtora Enchufada, que hoje é a produtora do grupo e de outros grupos de música eletrônica, não necessariamente de kuduro.
  • 12
    . A noção de lusofonia expressa a ideia de uma comunidade linguística em torno da língua portuguesa, mas também tem sido utilizada para exprimir uma ideia de comunidade de afinidades culturais e históricas. Ideia que é propagada ideologicamente pelo Estado português, quando faz referência a a tais afinidades entre Portugal e os países que foram suas colônias, como se existisse um modo português de estar em qualquer lugar do mundo.
  • 13
    . Alguns destes espaços: discoteca Mussulo, discoteca Kaombo, discoteca Ondeando, Bar Kretcheu e Bar Bons Amigos.
  • 14
    . Em vários dos canais de rádio e tevê mencionados, é mais comum a presença de músicos caboverdeanos e angolanos do que dos outros países africanos. Os estilos musicais provenientes desses dois países também são mais comuns entre os imigrantes africanos em Portugal.
  • 15
    . Numa das maiores megastores do país, as divisões de oferta de música são realizadas em alguns casos por seções de "gênero" ou "estilo" e em outros casos por procedência de países diferentes, organizados cada qual em ordem alfabética por artista. Por exemplo, pelo estilo, estão: rock, punk, hip-hop, jazz, clássica, dance. Mais especificamente ainda, em alguns casos, como para o hip-hop, há uma seção específica para o hip-hop português. Outra forma de classificação são as procedências, como:música portuguesa, música brasileira, música dos PALOPs, música Africana, música Búlgara, entre outras. Na sessão dos PALOPs, encontram-se vários exemplares de diferentes músicos de funaná, quiizomba e semba. Num outro espaço, definido como de Música Dance, encontrei três títulos do Buraka Som Sistema (Enxufada/Sony). Na seção hip-hop português, encontrei o único CD do Makondo (Angola KungFu).
  • 16
    . A velocidade da comunicação e como a informação em tempo real, o diálogo e o debate permitem que vários indivíduos separados territorialmente formem, perpetuem ou re-elaborem noções sobre comunidades de imaginação e interesse dirigidos por experiências da diáspora (APPADURAI, 2004, p. 258). Com isso, comunidades são criadas ou mediatizadas por meio do acesso ao software e ao hardware, necessários para se ligar as grandes redes internacionais de computadores. Informação e opinião fluem concomitantemente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      26 Ago 2011
    • Aceito
      28 Set 2012
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