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Cinquenta anos do golpe militar no Brasil: memórias de um guerrilheiro

BENJAMIN,CidGracias a la vida. Memórias de um militante Rio de Janeiro José Olympio 2013

(BENJAMIN,Cid.Gracias a la vida. Memórias de um militante.Rio de Janeiro:José Olympio,2013).

O livro de Cid Benjamin, jornalista e líder estudantil em 1968, descreve e analisa a organização da guerrilha urbana no Brasil durante a ditadura militar, sua trajetória no exílio, o retorno ao Brasil, em 1979, a atuação na formação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, sua saída desse partido e o ingresso no Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em 2005. Benjamin trata, também, de um tema tabu para sociedade brasileira: a tortura. Ele conta, de forma detalhada, a rotina, os meios, as formas, os mecanismos, as condições, enfim, a "engrenagem" que viabilizou o funcionamento da tortura dentro dos aparelhos de repressão e controle do Estado brasileiro desde 1964 e explica como ela ficou mais dura e generalizada no final dessa década, quando da publicação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, ato que, entre outras barbaridades e inconstitucionalidades, proibia a concessão de habeas corpus para acusados de crimes políticos, dando, como destaca ou autor, "sinal verde para a tortura".

O livro tem prefácio de Milton Temer, apresentação feita por Benjamin e, cabalisticamente, 13 ensaios críticos. Um epílogo e dois importantes anexos - o manifesto lido nas emissoras de rádio e televisão e publicado nos jornais, quando do sequestro do embaixador norte-americano e o depoimento prestado por Cid ao Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro sobre a atuação do médico Amilcar Lobo nas seções de tortura a que foi submetido.

Ao longo do livro, Cid Benjamin alterna momentos em que relata episódios por ele vividos com reflexões teóricas sobre os rumos da guerrilha, dos agrupamentos de esquerda e da conjuntura política. Já na apresentação, entrega, para o leitor, ainda que entre linhas, sua postura em relação à luta armada: ela foi uma decisão errada. O autor parece advertir o leitor de que ele não vai encontrar no livro uma apologia daquela ação passada. Em outro momento, afirma que a luta armada foi uma estratégia equivocada e seria derrotada de qualquer forma, por não apresentar qualquer eficácia política (p. 99).

O terceiro ensaio do livro, intitulado "De tortura, torturados e torturadores", merece destaque, pois nele o jornalista apresenta uma rica e humanizada discussão sobre a tortura. Na sua percepção, ela não só vilipendia e maltrata o corpo, não é apenas desumana, tampouco é somente um ato de violência. O uso da tortura é uma tentativa de fazer com que o torturado negue seu sistema de valores, ela "é uma tentativa de fazer com que a pessoa negue a si mesma" (p. 69).

Benjamin lembra que a tortura é uma prática enraizada nas instituições de repressão e controle do Estado brasileiro, sendo amplamente usada, em diferentes contextos e períodos históricos, contra negros, pobres, favelados, ladrões, enfim, a população marginalizada. Na sua avaliação, a novidade trazida pelas ditaduras, a do Estado Novo (1937-1945) e a do regime militar (1965-1985), é que a tortura foi usada contra a classe média, o que fez crescer o repúdio contra essa prática.

Cid Benjamin teve papel central na ação revolucionária de sequestro do embaixador norte-americano, realizada em setembro de 1969, no Rio de Janeiro. Nesse período ele integrava o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e, em razão da sua atuação nessa ação e em outras realizadas pela guerrilha, foi preso em 21 de abril de 1970, ficando em poder do regime militar até o dia 16 de junho desse mesmo ano, quando seguiu, com outros 39 presos políticos, para o exílio na Argélia. A sua liberdade e a dos outros presos foi trocada pela vida do embaixador da Alemanha, sequestrado por militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização de esquerda que também participava da guerrilha contra a ditadura.

Benjamin narra seus trânsitos por países como Argélia, Chile, México, Cuba e Suécia nos nove anos e três meses de exílio. Nesse período, casou, separou, teve filhos, exerceu atividades profissionais, divertiu-se, ou seja, construiu um cotidiano. O seu exemplo é indicativo do que ocorreu com toda uma geração de jovens militantes que foram obrigados a construir sua maturidade política fora do Brasil. As histórias que ele conta desse período são todas emblemáticas de como era ver o país como um estrangeiro e ser um estrangeiro. Foi nessa condição que ele refletiu sobre conjuntaras locais, como a que viveu no Chile, quando lá foi instaurada a ditadura do general Pinochet e como, naquele mesmo país, viveu momentos de descontração no bar de Isabel e Angel Parra, filhos de Violeta Parra, autora da canção que inspirou o título de seu livro.

Integram a obra informações sobre a tensão que existia entre as organizações de esquerda, que participaram da guerrilha, e as orientações do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na perspectiva do autor, o PCB fez uma leitura cega da conjuntura política que viabilizou o golpe militar em 1º de abril de 1964, pois apostou em um pretenso caráter democrático e anti-imperialista da burguesia nacional, na suposta tradição legalista das Forças Armadas e no poder de João Goulart.

Sobre o PT dos anos de 1980, Benjamin faz a seguinte declaração: "era, na época, uma experiência política riquíssima" (p. 218). Como integrante da direção do PT, em 1989, quando da disputa para o cargo de presidente da República, com o confronto, no segundo turno, entre Collor e Lula, apresenta uma avaliação contundente sobre a atuação do líder petista: "Lula se acovardou". O jogo sujo de Collor era previsto, a ação da mídia a serviço da candidatura burguesa também o era, o que fugiu do controle foi o medo de Lula. Cid Benjamin conta como as três derrotas eleitorais de Lula, uma contra Collor e duas contra o sociólogo tucano Fernando Henrique Cardoso, mexeram com Lula e com seus apoiadores no PT, que movimentaram uma guinada nos rumos do partido, estimulando uma luta interna que tinha por objetivo diminuir e controlar o poder dos grupos mais a esquerda. O autor recupera, ainda, as informações sobre os escândalos de corrupção nas prefeituras do PT e expõe os resultados de sua investigação, como jornalista, do assassinato de prefeito da cidade de Santo André, em 2002, Celso Daniel.

No último ensaio do livro, "Navegar é preciso", empreende uma avaliação dos governos Lula e Dilma, destacando que os acordos políticos por eles firmados para garantir a governabilidade não foram transparentes e nem republicanos, entregando parcela do Estado em troca de apoio em eleições ou no dia a dia do Congresso. Estabelece uma lúcida percepção da função do PSOL e arrisca a projetar um futuro para esquerda, depois de o PT sair do comando do Executivo federal:

[...] Serão criadas, então, as condições para uma reorganização partidária geral. Dela participarão, além do PSOL e de filiados do próprio PT, militantes de outras legendas que têm funcionado como satélites do lulismo (p. 282).

O livro Gracias a la vida. Memórias de um militante é oportuno por dois motivos, essencialmente:

  1. ao falar de tortura, torturadores, torturados, guerrilha urbana, militância em organizações políticas que funcionavam de forma clandestina, o autor apresenta cuidadoso resumo do contexto histórico, político e social brasileiro desde a ditadura militar até os dias de hoje, disputando a memória dos fatos e revelando os trânsitos efetuados por diferentes agentes sociais no processo de construção da democracia no Brasil.

  2. ao narrar o cotidiano da ação política e seu papel em um processo político concreto, mostra a força avassaladora da luta pelos ideais libertários da esquerda mundial, principalmente o da construção do socialismo democrático e pluripartidário. Evidência que os jovens integravam a expressiva maioria dos que foram presos e barbaramente torturados durante a ditadura militar, fato importante a ser considerado quando lembramos que, 50 anos após o golpe militar, a truculência policial, nas recentes manifestações de rua, no Brasil, é direcionada, sobretudo, contra a juventude.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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