Introdução
Até muito recentemente, o leitor da área de movimentos sociais no Brasil encontrava-se em uma situação, no mínimo, incômoda. Apesar da grande produção acerca do tema existente no país... permanecia no ar a sensação de que a bibliografia havia acompanhado a ação dos atores sociais sem conseguir institucionalizar um paradigma que desse conta dos diferentes movimentos sociais, da ascensão e declínio das suas formas de mobilização. Permanecia a sensação da ausência de um marco teórico próprio capaz de integrar o conjunto das especificidades dos movimentos sociais no Brasil... (Avritzer, 1997).
A frase de Avritzer, em epígrafe, foi escrita em 1995 para uma resenha do livro A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70, de Ana Maria Doimo, ao considerar que a autora havia proporcionado um paradigma para analisar os movimentos sociais, apaziguando, assim, a ansiedade da falta de um. Talvez a afirmação mais adequada seja a de que o texto de Doimo, entre outros, foi uma contribuição para amenizar essa falta de um marco teórico para uma leitura dos movimentos populares no Brasil dos anos 1970 e 1980. Em relação aos movimentos sociais e às manifestações coletivas, a afirmação de haver uma sensação de falta de um paradigma mantém e radicaliza seu sentido na atualidade nesse campo analítico, independentemente dos contextos geográficos. Se, por um lado, é possível reafirmar que nenhum paradigma tenha se institucionalizado, por outro, presencia-se um pluralismo tanto diante da multiplicidade de características, formas, atores quanto das perspectivas analíticas que compõem o campo de pesquisa nesta área. Esta multiplicidade, além de tornar impossível uma definição geral do que é um movimento social (Poletto, 2009), tornou este conceito insuficiente e restritivo, em decorrência de seu carámais premente e difícil. No entanto, a definição de parâmetros analíticos é imprescindível, devido ao risco de o pesquisador permanecer num nível descritivo, o que impõe escolhas que dizem respeito a pressupostos teóricos, metodológicos e implicações políticas.
Em função disso, no presente texto, num primeiro momento, busca-se arrolar um conjunto de questões pertinentes ao campo dos estudos sobre ações coletivas, desenvolvidas particularmente nos Estados Unidos, e sobre os movimentos sociais, desenvolvidas predominantemente na Europa. Tais referenciais teóricos foram incorporados e ampliados, nos últimos anos, em decorrência da exacerbação e multiplicação de manifestações coletivas em suas múltiplas formas, recursos e sentidos no campo político e social, bem como da pluralidade de perspectivas oriundas do debate e dos questionamentos recíprocos entre pesquisadores no campo da análise social. Isso não significa dizer que tal pluralismo não tenha existido no passado, seja no campo teórico, seja no campo social, mas houve, efetivamente, uma multifurcação tanto das identidades como das teorias sociais, num movimento de retroalimentação.
Não é objetivo deste texto buscar uma definição ou propor um modelo analítico sobre movimentos sociais. O que se pretende é colocar em evidência algumas questões, alguns princípios e conceitos, visando identificar um repertório a fim de construir caminhos para a análise de protestos sociais. Esses são definidos como uma forma de ação coletiva ou como momentos de visibilidade de um movimento social2.
Ao considerar esse conjunto de questões que balizam o debate contemporâneo no Ocidente, num segundo momento busca-se assinalar, mesmo que parcialmente, tendências e perspectivas presentes na tradição dos estudos sobre ações coletivas e movimentos sociais em África. Nesse sentido, leva-se em consideração a problematização, que daí emerge quanto à pertinência e aos limites teóricos dos referenciais produzidos em outros contextos particulares. Isso remete a um debate mais amplo sobre as especificidades das sociedades africanas e à adequação da aplicabilidade teórica e conceitual em contextos tradicionalmente colocados à margem do lugar hegemônico em que esse debate foi e continua, em grande parte, a ser proposto. Nessa direção e com o olhar voltado para sociedades do continente africano, estes questionamentos apresentam-se, ao mesmo tempo, como motes constitutivos das análises referentes àquelas realidades e como contribuições teóricas e metodológicas para o campo das ciências sociais.
O conjunto de questões, aqui tratado, resulta de uma determinada leitura condicionada, que possibilita e limita desdobramentos para um programa de pesquisa, o que é desenvolvido na parte final do texto. Não se trata de responder a tais questões, mas de, a partir delas, indicar possíveis caminhos analíticos orientadores para o desenvolvimento de pesquisa. Isso exige que se esclareçam os pressupostos na construção de um quadro analítico, mesmo que aberto, para propor uma leitura ou interpretação daquilo que está sendo produzido como conhecimento, bem como para proporcionar caminhos à análise de "protesto social", tendo como ponto de partida o legado teórico sobre ações coletivas e movimentos sociais.
Heranças teórico-analíticas sobre movimentos sociais e ações coletivas
Considera-se que "protestos sociais" são um fenômeno ubíquo na história, nas mais diversas sociedades e processos civilizatórios. Tais manifestações foram e são classificadas e nomeadas a partir de posições sociais, de interesses, de concepções de quem as classifica ou as nomeia. Há, assim, condicionamentos sociais, culturais, políticos e de concepções do real subjacentes à produção de conhecimento/desconhecimento sobre os fenômenos aqui referidos.
No campo das ciências humanas, em particular da sociologia, desde a sua formação esse tema se fez presente e adquiriu, ao longo do século XX, statusreconhecido, constituindo-se num campo temático específico e tema obrigatório da teoria social contemporânea. Esse conhecimento produziu diferentes interpretações, resultantes de diferentes momentos e diversos contextos sociais, políticos, econômicos e culturais. Nesse sentido, movimento social é considerado como forma historicamente situada que se tornou viável com a consolidação dos Estados nacionais modernos (Tilly, 1978; Tarrow, 1994; Mayer & Tarrow, 1998), o que limitou o uso do próprio conceito, perdendo-se de vista a pluralidade de fenômenos de difícil enquadramento naquelas perspectivas.
Sem negar as mudanças, as inovações, as atualizações e graus de presença de manifestações de caráter contestatório, há de se considerar as novas perspectivas de interpretação/explicação sustentadas pela episteme das ciências em relação às interpretações de períodos anteriores. No âmbito das ciências sociais, as interpretações também se distinguem no tempo. Assim, as distinções entre movimentos sociais tradicionais, novas e novíssimas dizem respeito fundamentalmente às abordagens, perspectivas e nomeações que emergiram e compõem este campo teórico em seus contextos sociais, políticos, culturais e ideológicos. Reafirma-se, para evitar mal-entendidos, que as formas, intensidade, motivações e o alcance das manifestações são dinâmicas e se atualizam permanentemente em consonância com as transformações sociais, políticas, culturais, tecnológicas etc. O que se pretende salientar é que as interpretações, classificações ou leituras também foram e são condicionadas por quadros teóricos que assumiram, geralmente, um caráter normativo e definidor de estratégias para a escolha do que e de como pesquisar. Estes quadros teóricos, por sua vez, foram também apropriados pelos protagonistas das ações coletivas (Plotke, 1995). Desta forma, tendeu-se a revogar qualquer relevância àquelas manifestações provenientes de categorias sociais que não cabiam na moldura teórico-conceitual. Assim, parece ser mais conveniente retomar o debate colocando em evidência categorias analíticas relativas aos processos das manifestações e sua inserção num campo de disputas, do que identificar modelos generalis-
tas baseados em conteúdo e formas definidas e imputadas a priori. Esse debate se situa, de antemão, num campo construído ao longo de mais de um século, marcado por ascendências, declínios, composições de diferentes "escolas", e é a partir deste campo que se situam semelhanças de família, oposições e rupturas.
Esse debate teórico resultou numa produção tão vasta quanto aquela produzida a partir do campo de pesquisa empírica. Inicialmente, demarcam-se três momentos desta produção teórica: do final do século XIX à primeira metade do século XX; dos anos 1960 ao final da década de 1980; e dos 1990 até a atualidade, respectivamente marcados pelas abordagens aqui denominadas clássicas, neoclássicas e contemporâneas.
Das abordagens consideradas clássicas, destacam-se as teorias psicológicas do final do século XIX, o funcionalismo, o interacionismo simbólico e o marxismo. Nas interpretações de cunho psicológico, presentes, por exemplo, em La psycologie des foules (Le Bon, 2002) e L'Opinion et la foule (Tarde, 2005), as manifestações coletivas são concebidas como expressão da irracionalidade e efeitos do sugestionamento psicológico da multidão. Em certa medida, a partir desta perspectiva os fenômenos coletivos tenderam a ser reduzidos a fenômenos destrutivos cuja "regra é sempre equivalente a uma fase bárbara" (Le Bon, 2002: xiii). É notório o espectro destas teorias na abordagem do funcionalismo parsoniano, quando este atribui características de irracionalidade e expressão caótica a insatisfações individuais e sem organização (Alonso, 2009: 76). Atribui-se, em ambas as perspectivas, uma negatividade ou, nos termos funcionalistas, tratar-se-ia de um comportamento desviante. No entanto, cabe salientar diferentes níveis dessa negatividade no interior do funcionalismo. Na perspectiva de Merton, há uma contraposição à concepção da ação coletiva simplesmente como comportamento desviante, concebendo-a como comportamento não conformista e colocando-a no mesmo patamar da análise do sistema social e não como patologia social (Melucci, 1996: 17) 3 . Agregue-se à afirmação da ação como comportamento não conformista a perspectiva de autores do interacionismo simbólico que compreenderam a ação coletiva como comportamento com significado (Blumer, 1995). Nessa perspectiva, destaca-se que
há uma lógica na ação coletiva que implica certas estruturas relacionais,a presença de mecanismos de tomada de decisão, a definição
de metas, a circulação da informação, o cálculo dos resultados,o acúmulo e o aprendizado de experiências do passado (Melucci,1996: 17).
Há de se reconhecer, no entanto, a pertinência em considerar uma dimensão emocional - irracional - presente nas ações coletivas. A questão que se coloca é quanto à generalização dessa perspectiva dicotômica de análise - racionalidade versus irracionalidade -, e não reconhecer diferentes graus e níveis e diversidade de situações e formas das manifestações coletivas.
Paralelo a essas abordagens, situa-se a tradição marxista, a qual não oferece propriamente uma teoria das ações coletivas e dos movimentos sociais. Estes são analisados como produtos necessários do processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista, fundamento para uma teoria da revolução (Calhoun, 1982; 1993)4. Como afirma Ernesto Laclau,
a determinação da identidade dos agentes era feita através de categorias pertencentes à estrutura social; o tipo de conflito era determinado em termos de um paradigma diacrônico-evolucionário; e a pluralidade de espaços do conflito social era reduzida, na medida em que os conflitos se politizavam, a um espaço político unificado, onde a presença dos agentes era concebida como uma "representação de interesses" (Laclau, 1986: 41).
Por outro lado, há de se considerar a importância atribuída pelo marxismo à análise das relações estruturais e dos conflitos sociais, que podem assumir caráter antagônico ( Melucci, 1996: 17).
Essas abordagens, muito distintas, tinham como ponto de partida fenômenos históricos localizados e temporalizados nas sociedades ocidentais "modernas" (euro-americanas), com base num discurso da modernidade. É deste lugar que afirmam uma tendência universalizadora para os comportamentos coletivos. A utilização de diferentes conceitos para se referirem às manifestações coletivas indica um campo no mínimo polêmico desde quando a temática é incorporada como questão nas ciências sociais. Dessa forma, comportamento coletivo, ações coletivas e movimento social são conceitos que identificam essas distintas tradições. Considerando, aqui, o funcionalismo e o marxismo, apesar de perspectivas distintas e conflitantes, podem-se identificar um pressuposto comum, uma concepção da sociedade como ordem fechada, uma unidade que se perdeu, mas que teria como destino a sua plenitude, isto é, um retorno a sua natureza última.
Destacam-se, aqui, dois desdobramentos:
do ponto de vista teórico-metodológico, construiu-se uma identidade entre conceito e unidades empíricas do fenômeno, isto é, a redução do fenômeno ao conceito. Utilizando a expressão de Alberto Melucci, isso resultou numa "miopia do visível", em que as manifestações foram inferidas como desdobramento de fatores estruturais, independentemente dos agentes, pois concentrou toda a atenção sobre os aspectos mensuráveis da ação coletiva, isto é, a relação com os sistemas políticos e os efeitos sobre as políticas, ignorando a produção de códigos culturais, que constitui a principal atividade das redes submersas do movimento, além da condição para a sua visibilidade (Melucci, 2001: 26). Em outros termos, não foram tomados em conta os processos da construção e constituição de identidades coletivas.
O pretendido caráter universal das teorias implicou também subsumir, sob tais conceitos, os mais diferentes protestos numa homogeneização, passando a ser algo que não eram - uma totalidade - ou, ainda, levou à exclusão de protestos que não tinham lugar em tais modelos. Isso significou o esvaziamento e a perda da eficácia explicativa dos próprios conceitos. Por outro lado, há de se reconhecer o caráter fundacional que tais perspectivas assumiram, a partir das quais se orientaram os debates posteriores.
A crise dos paradigmas clássicos, pela insuficiência de seu poder explicativo e seus reducionismos, abriu espaço para a emergência e visibilidade de outras abordagens analíticas, aqui denominadas neoclássicas, cujo foco se direcionou, preponderantemente, ao campo da ação social, da cultura e dilatação das relações de poder para além do poder instituído. No campo empírico, os protestos sociais da década de 1960 são emblemáticos das mudanças sociais, cujos protagonistas não foram os partidos políticos e/ou as organizações "proletárias", nem comparáveis a multidões comovidas. As análises tenderão a dar destaque aos "novos atores" (estudantes, mulheres, grupos étnicos, setores da classe média etc.) e suas demandas, que já não se restringiam às condições de vida/redistribuição, mas trouxeram à esfera pública demandas "pós-materiais", segundo a definição de Ronald Inglehart (1971)5. Além disso, muitos desses movimentos reivindicavam a participação direta na ação política, distante das perspectivas de movimentos políticos que tinham como objetivo a tomada do poder (Alonso, 2009; Gohn, 2008).
Nesse contexto, diversos autores, a partir de diferentes perspectivas, buscaram outros caminhos para uma teorização que desse conta da emergência dos "novos movimentos sociais", ora estabelecendo certa aproximação, ora definindo diferentes graus de ruptura com o marxismo e o funcionalismo. Dessa forma, as abordagens neoclássicas, que passam a ocupar o debate a partir dos anos 1960, buscaram responder a questões formuladas e não respondidas, seja pelos funcionalistas, marxistas, seja pela "teoria" da psicologia das multidões. Em outras palavras, pensam dentro, a partir e para além de uma doxa estabelecida e questionada no campo das ciências sociais. Adiante, procura-se demonstrar as dicotomias entre estrutura e ação, racionalidade e emoções, determinação e contingência, tradição e moderni-
dade, bem como categorias a exemplo de identidade, cultura, política, que definiram os recortes analíticos destas abordagens.
Não se pretende aqui construir uma tipologia pormenorizada de tais abordagens6. Parte-se de uma caracterização geral de três tendências reconhecidas na literatura - a teoria da mobilização de recursos, a teoria do processo político e a teoria dos novos movimentos sociais - para salientar contribuições e questões analíticas, cujos desdobramentos estão presentes no debate contemporâneo.
A teoria da mobilização de recursos contrapôs-se, inicialmente, às abordagens que concebiam as manifestações coletivas como sendo comportamentos desviantes que acentuaram o seu caráter irracional, para afirmar a racionalidade das ações coletivas, tendo como ponto de partida pressupostos da sociologia das organizações. Em outros termos, o eixo das análises deslocou-se das estruturas para os aspectos estratégicos racionais da ação e para a mobilização de recursos materiais, humanos e simbólicos (McCarthy & Zald, 1977). A despeito das distinções7, as análises partem de uma lógica da interação estratégica e do cálculo de custos e benefícios (Cohen, 1985: 675). As pesquisas realizadas a partir dessas perspectivas ampliam-se e incorporam, posteriormente, a dimensão simbólica e os processos de composição e disputa de quadros de referência(frame), ou quadros interpretativos que possibilitam o seu alinhamento num conjunto congruente de interesses, valores, objetivos e atividades como condição necessária para a participação, qualquer que seja a sua natureza ou intensidade (Snow et alii, 1986; Laraña & Gusfield, 1994). A relevância da TRM está no reconhecimento do papel ativo dos agentes na avaliação das ações, considerando recursos, estratégias e táticas.
As análises históricas realizadas por Charles Tilly (1978), apesar de sua proximidade com a perspectiva da mobilização de recursos, centram-se na disputa política. Seu modelo de análise - ao qual denomina "modelo de mobilização" - privilegia os interesses, a organização, a mobilização de recursos e as oportunidades políticas. Este autor considera, no entanto, que os interesses, a organização e a mobilização, que criam a capacidade da ação e não sua efetivação, estão subordinados à avaliação dos custos e benefícios resumidos sob o frontispício da repressão ou facilitação, do poder e das oportunidades ou ameaças. Há um investimento nos processos políticos, o que caracteriza a teoria do processo político. É a partir da efetivação de ações oportunas que os atores recorrem e inovam o repertório de ações coletivas (Tilly, 1978: 55 e 98). No âmbito da teoria do processo político, Sidney Tarrow fez grandes investimentos no desenvolvimento teórico, o qual desloca a questão da ação coletiva do "como" para uma análise estrutural, isto é, na intervenção crucial das variáveis políticas ou oportunidades políticas (Tarrow, 1994: 84). Apesar de Charles Tilly e Sidney Tarrow incorporarem categorias da teoria da mobilização de recursos, eles se distanciam ao enfatizarem o papel do Estado, as oportunidades externas em detrimento das oportunidades internas e da organização. Tanto a teoria da mobilização de recursos como a teoria do processo político, além da ênfase dada aos recursos (materiais, organizacionais, humanos e simbólicos), colocaram em relevo os processos de mobilização, favorecendo as análises das oportunidades e as formas de participação, particularmente, no âmbito das instituições formais (Sherer-Warren, 2010: 20). Os autores da teoria do processo político também se aproximam da teoria dos novos movimentos sociais à medida que incorporam questões de identidade e a dimensão da cultura como recurso para a construção de quadros de referência que possibilitam a leitura e processos de identificação ( McAdam, 1994; Gohn, 1997: 100).
Se a teoria da mobilização de recursos e a teoria do processo político voltaram-se para as estratégias e processos políticos, a teoria dos novos movimentos sociais voltou-se para decifrar a identidade dos novos atores emergentes no contexto dos anos 1960. O adjetivo "novo" tem diferentes significados e, segundo Alberto Melucci (1996: 5), configura ainda uma questão aberta, mesmo na atualidade8. A tendência foi a de contrapor os novos movimentos aos movimentos tradicionais, sejam agrários ou operários. Na América Latina, acentuou-se a novidade ante a crise do desenvolvimentismo e do populismo, com a emergência de regimes militares, passando a se acentuar o caráter espontâneo, democrático e a desvinculação dos partidos tradicionais (Foweraker, 1995: 40; Cardoso, 1996). Neste contexto, o foco voltou-se tanto para as novas formas de organização de caráter descentralizado, flexível, hierarquicamente fluidas e participativas, como também para novos conteúdos (cidadania, valores e significados). Há uma ênfase na afirmação de identidades não mais como expressão de uma classe ou categoria socioprofissional, mas expressão de um conjunto variado de princípios de identidade (Foweraker, 1995; Neveu, 1996; Gohn, 1997; Melucci 1996).
Os vários autores, adotando o termo "novos movimentos sociais"9, sublinharam os aspectos culturais e ideológicos, assim como as lutas do cotidiano (mundo da vida) e a solidariedade como constitutiva de novas identidades. Isso evidenciou ainda a complexidade simbólica e o amplo leque de orientações políticas presentes nas múltiplas manifestações coletivas em sua diversidade de pontos de identificação (nacionalismos, gênero, etnia/raça, religião, localismo, cidadania etc.). Há, nesse sentido, um reconhecimento de uma conformidade entre a heterogeneidade da sociedade civil e a heterogeneidade dos atores coletivos, caracterizando um campo plural e dinâmico em que identidades se redefinem nos processos de articulação10. Daí a recuperação e a relevância dada ao conceito de sociedade civil nos estudos dos adeptos desta perspectiva a partir dos anos 1990. Assim, o pensamento universalista de um sujeito único e central, próprio do marxismo, deu lugar a uma interpretação da multiplicidade de lutas e contingência das identidades (Scherer- Warren, 2010).
De certa forma, pode-se afirmar que essas três abordagens tinham, inicialmente, uma perspectiva unidimensional, ou seja, buscaram um eixo para definir e analisar as manifestações coletivas - recursos, oportunidade políticas e identidade -, levando-os a reconhecer sua insuficiência e a incorporarem elementos, sinalizando uma aproximação entre elas. Como observa Alonso (2009),
uma convergência mínima entre os enfoques "objetivista" e "subjetivista" se estabeleceu em torno da tese de que movimentos sociais não surgem pela simples presença de desigualdade, nem resultam diretamente de cálculos de interesses ou de valores. As mobilizações envolvem tanto a ação estratégica, crucial para o controle sobre bens e recursos que sustentam a ação coletiva, quanto a formação de solidariedades e identidades coletivas (Alonso, 2009: 72).
A apropriação mútua de conceitos e a inclusão de novas questões, vislumbradas com as transformações sociais e políticas nos anos 1990, não resultaram numa síntese, apesar das tentativas, mas em acentuações díspares. Essa "dispersão", ou pluralidade e complexificação, do debate, caracteriza as abordagens contemporâneas. Autores da teoria dos novos movimentos sociais, a partir das teses sobre "sociedade da informação", "sociedade de redes", "esfera pública", deslocam o foco das análises dos movimentos sociais, atrelando-os ao tema da sociedade civil, pensado em nível nacional ou de uma "sociedade civil global"11. Por outro lado, autores da teoria do processo político centrar-se-ão nos "confrontos políticos", incluindo partidos, guerrilhas, terrorismo, guerras civis etc., em que os movimentos sociais seriam apenas uma forma de confronto (McAdam, Tarrow & Tilly, 2009).
Na última década, houve ainda um encantamento e uma acentuação dos processos de ativismo transnacional, bem como uma ênfase no papel das novas tecnologias da informação, tanto nos processos de mobilização como na difusão de ideias e práticas sociais de solidariedade internacional (Mato, 2004; Tarrow, 2005; Della Porta & Tarrow, 2005). Há de se considerar dois aspectos, em relação a esse encantamento: primeiro, cabe lembrar que o ativismo transnacional e a difusão de ideias não são novos, o que muda é a velocidade; segundo, apesar do caráter transnacional, o Estado nacional continua exercendo um papel fundamental nos conflitos de caráter local e global. A questão é observar como essas dimensões são absorvidas, incorporadas nos diferentes contextos sociais e culturais. Estudos têm demostrado a ambiguidade desses processos mediáticos: se, por um lado, afirmam seu potencial, por outro, sugerem que esses novos meios podem ser fator de aprofundamento de desigualdades, ampliando o abismo entre organizações da sociedade civil (Clark, 2003: 174).
A partir dos anos 1990, o processo de institucionalização de movimentos e sua especificidade acarretaram, em certa medida, uma especialização dos movimentos e das próprias análises, identificado também como processo de fragmentação analítica (McAdam, Tarrow & Tilly, 2009). É também nesse período que houve uma invisibilidade da temática sobre movimentos sociais nos fóruns e congressos na área das ciências sociais. O tema ressurge nos inícios do novo milênio, relacionado à presença crescente de confrontos políticos e ao enfrentamento das consequências e promessas não realizadas da nova ordem mundial sob a hegemonia neoliberal12. Em nível geral, surgem os movimentos antiglobalização13 e, em nível local, protestos e mobilizações em face das demandas ou efeitos locais dos processos globais. Inclua-se a tentativa de acelerar o cumprimento de demandas postergadas, excluídas ou impulsionadas pelas novas políticas públicas (Della Porta, 2009; Tarrow, 2005, Bringel & Muñoz, 2010; Gohn, 2011; Mayo, 2005). Outro elemento que se considera relevante, nesse novo contexto, diz respeito ao ambiente político que dá visibilidade às divergências em torno dos mesmos significantes, tais como democracia, participação, cidadania, desenvolvimento, entre outros (Dagnino, 2004; Poletto, 2009; Mutzenberg, 2010; 2012). As análises têm apontado, como já afirmado acima, para mudanças na esfera pública a partir da inclusão das novas mídias ao repertório das ações coletivas (Thorburn, Barrett & Jenkins, 2003). Se as manifestações coletivas de protesto são ubíquas às sociedades, isso constitui uma característica permanente das sociedades contemporâneas e faz parte constitutiva das dinâmicas sociais (Mayer & Tarrow, 1998; Mutzenbeg, 2010).
O legado teórico-metodológico sobre as ações coletivas e os movimentos sociais tem sido referência para o desenvolvimento de pesquisas fora do contexto histórico e espacial de origem. Foi também nesse desenvolvimento que emergiram revisões críticas quanto ao alcance temático desses referenciais. A América Latina, nas últimas décadas, tem sido palco de debates epistemológicos, teóricos e metodológicos a evidenciarem que
as teorias referenciavam-se aos legados da modernidade e da modernização, ainda que, em muitos casos, com uma visão crítica, determinando-o como "legado civilizatório eurocêntrico" (Scherer-Warren, 2010: 19)14.
Dessa forma, diante dos desafios contemporâneos, além da releitura do legado construído, particularmente nos anos 1980 e início dos anos 1990, colocam-se as contribuições das "teorias pós-coloniais", que propõem outra lógica de interpretação dos processos sociais. Estas retomam o problema da desigualdade e suas raízes históricas no colonialismo, e sua atualização nos processos contemporâneos; as múltiplas formas de dominação e violência; o debate sobre a concepção ocidental de desenvolvimento e a tentativa de impor esse modelo como universal; a reescrita da história da colonização e dos processos de descolonização. Numa perspectiva mais ampla, põe-se em questão a construção de conhecimento sobre as manifestações coletivas de contestação a partir das chaves de leitura presentes na produção europeia e norte-americana (Kassam, 1994; Mignolo, 2000; Wallerstein, 2007; Grosfoguel, 2008; Sherer-Warren, 2010; Amin, 2011).
O conjunto conceitual das abordagens contemporâneas, com suas aproximações e distanciamentos, caracteriza-se por um amplo leque plural formado pelas contribuições das teoria da mobilização de recursos, teoria do processo político, teoria dos novos movimentos sociais, da crítica pós-colonial, além dos aportes das teorias feministas (Butler, 2007), da sociologia das emoções (Scribano, 2009; Flam & King, 2005; Mouffe, 2000a), proposições vindas de outras disciplinas, a exemplo da geografia, com as noções de espaço e território (Bringel, 2007; Poletto, 2009).
A miríade de abordagens e manifestações, a partir das quais é identificada uma diversidade de atores, de motivações, de orientações, de formas de organização, de níveis de articulação, que vão do local ao global, proíbe a sua redução a um conceito ou a uma teoria sociológica particular (Santos, 2001; Poletto, 2009). Isso não impossibilita a análise sociológica: sugere, por um lado, o questionamento de modelos analíticos generalizáveis a diferentes situações e contextos históricos e, por outro lado, o desafio de superar o nível descritivo.
Traçado esse quadro geral, tem-se como objetivo particular, no item a seguir, situar o debate sobre o tema no continente africano.
Abordagens sobre ações coletivas e movimentos sociais em África
No caso das sociedades africanas, em particular, põe-se a questão quanto à pertinência daquele legado para os estudos sobre ações coletivas e movimentos sociais, considerando suas particularidades, e contrapõe-se, ao mesmo tempo, à noção de sua "alteridade absoluta" construída para a afirmação do Ocidente como diferentes em relação ao resto do mundo - West/Rest (Mbenbe, 2001), reproduzindo uma visão excêntrica, como se as sociedades africanas tivessem uma lógica própria e especial, ditada por um contexto tão radicalmente diferente que impediria qualquer comparação global (Ellis & Kessel, 2009). Em que medida as abordagens desenvolvidas no mundo ocidental condizem com aquelas realidades ou em que medida levam a uma visão míope das dinâmicas e particularidades das manifesta-
ções coletivas? Quais os questionamentos e limites apontados pelas pesquisas no contexto das sociedades africanas em relação às abordagens construídas no campo acadêmico fora da África?
Pode-se considerar, inicialmente, que as análises voltadas para as ações coletivas e os movimentos sociais começam a ser introduzidas, fundamentalmente, a partir da década de 1990. Conforme exame bibliográfico elaborado por Mahmood Mamdani, Thandiko Mkamdawire e Ernest Wamba-Dia-Wamba (1992)15, no período das lutas pela independência e no pós-independência, a questão central que orientou o debate e a pesquisa girou em torno da "construção nacional", centrada no Estado, este concebido como sujeito do desenvolvimento. Foram raros os estudos sobre movimentos sociais; estes estavam restritos a determinadas categorias sociais, em particular à classe operária. Os autores consideram que isso levou a uma compreensão muito parcial não só sobre movimentos sociais, mas também sobre a sociedade civil como um todo (Mamdani, Mkamdawire & Wamba-Dia-Wamba, 1992).
Os autores acima referidos identificam três escolas que concorreram tanto para conceituar como para orientar as experiências africanas na construção dos Estados nacionais. A Escola Africanista, de inspiração norte-americana, e sua aproximação posterior às teorias da modernização, é identificada como a primeira escola a orientar análises, assumindo também caráter de receituário. Esta forma de africanismo centrou-se na análise histórica da formação do Estado pré-colonial, tendo como alvo a constituição de Estados fortes no pós-independência. A visão de história subjacente é a de uma história das classes dirigentes (Mamdani, Mkamdawire & Wamba-Dia-Wamba, 1992: 66). Entre os autores africanistas norte-americanos havia aqueles que teriam compreendido a construção nacional como projeto a ser realizado em aliança com as antigas potências coloniais. Daí, no pós-independência, uma convergência destes pontos de vista com o programa das "teorias da modernização". A despeito das diferentes abordagens no interior da Escola da Modernização - funcionalista, dos processos sociais de tendência psicológica e a perspectiva institucionalista -, acentuou-se a necessidade de um Estado forte em relação à sociedade civil, a fim de garantir a estabilidade e levar a cabo a tarefa da modernização, papel atribuído às elites. A identificação desta elite é ponto controverso; para alguns seria a classe administrativa, para outros as Forças Armadas, e para outros ainda, os partidos. Essas perspectivas explicativas assumiram um caráter prescritivo. Significaram, ainda, a identificação das mobilizações como problema em que
as reivindicações populares eram consideradas irrelevantes, uma amálgama de ativismo e utopia. Pensava-se que eram o fruto da combinação de valores tradicionais (particulares, tribais) e do "efeito do mimetismo internacional" próprio do mundo moderno, que engendrara a aberração "dos Estados pré-industriais", vergados sob o peso de valores e exigências "pós-industriais" [...]. Considerava-se que estas reivindicações sociais minavam as novas estruturas estatais ainda precárias, que eram, por conseguinte, "disfuncionais" ou "pretorianas" (Mamdani, Mkamdawire & Wamba-Dia-Wamba, 1992: 69).
Naquele contexto, os intelectuais africanos, adeptos da Escola da Modernização, teriam desempenhado papel secundário e marginal, tendo uma contribuição mínima para a análise das sociedades africanas. Outra consequência, apontada pelos autores, foi a atribuição da crise dos anos 1980
às classes dirigentes que não conseguiram fazer reinar a ordem na sociedade civil, nem sequer entender-se entre si. Há quem diga que o "tribalismo" é a verdadeira maldição de África (Mamdani, Mkamdawire & Wamba-Dia-Wamba, 1992: 71).
Em outros termos, a crise teria resultado da incapacidade do Estado de criar as condições para uma decolagem efetiva, em decorrência da má gestão e da corrupção endêmica dos funcionários, sufocando a iniciativa privada. O que se coloca como relevante, aqui, é a observação do lugar - ou não lugar - ocupado pelos atores da sociedade civil nessas abordagens. Daí a ausência de estudos conhecidos relacionados às manifestações coletivas e/ou aos movimentos sociais.
A segunda escola situa-se no âmbito das teorias da dependência. Se a Escola da Modernização teve o seu foco no Estado, as teorias da dependência, segundo os autores, privilegiaram a análise estrutural centrada na relação centro-periferia. Apesar da crítica ao dualismo, entre tradicional e moderno, ao elegerem como foco as relações de dominação, base para a tese do subdesenvolvimento, mantiveram um dualismo ao centrar suas análises na relação centro - periferia. Atribuem, assim, um papel ativo ao centro e um papel passivo à periferia, obscurecendo fatores históricos de resistências e as relações internas. Essa abordagem, ao privilegiar fatores "objetivos" e conferir pouca relevância aos fatores subjetivos, teria contribuído para despolitizar as análises, uma vez que, ao se centrar, por exemplo, na teoria da "troca desigual", teria levado a considerar o capitalismo como o verdadeiro sujeito do processo histórico. Segundo os autores, essa escola não desenvolveu uma análise das relações de classes complexas na periferia, inviabilizando uma compreensão do modo de reprodução da relação de dependência, bem como não teria proposto meios para a transformação social. Isto também se refletiria na tese sobre a crise em África como sendo uma crise exógena, decorrente da crise da relação centro - periferia. Em outros termos, os autores buscam demonstrar que, de forma similar unidade contingente. Nessa direção, colocam-se questões sobre valores, quadros de referência, a partir dos quais carências são definidas como demandas, recursos são mobilizados e há a criação de um espaço de negociação de caráter conflitivo ou mesmo antagônico. Seguindo este raciocínio, os protestos sociais seriam decorrentes de um processo interativo de construção no interior de um campo político, onde atores se articulam, compondo diferenças e semelhanças, intermediadas pelo discurso, tornando-se participantes potenciais ou efetivos, diretos ou indiretos, do "jogo" de forças, e com possibilidade ou não de influir nas próprias regras desse "jogo" político, como processo ativo de construção do social.
Os protestos sociais se inserem, assim, num campo de conflitos, entre possibilidades e limites, entre o instituído e a sua transformação, enfatizando os processos de significação. Essa ação, por sua vez, ainda que imprevisível, não se move no vazio, senão no interior de contextos cristalizados, decorrente de processos decisórios anteriores. No confronto de fixações por meio de práticas articulatórias, estabeleceram parcialmente uma determinada ordem social (Laclau & Mouffe, 1989).
A partir dessas considerações, são propostas quatro considerações gerais para a pesquisa e a análise de protestos sociais:
Ao se considerar que os protestos sociais se situam numa determinada configuração social, marcada pelas experiências pretéritas e fixações que definem uma determinada ordem social, como padrões de práticas ou sistema de regras que definem um horizonte dentro do qual alguns objetos são representáveis e outros excluídos, pergunta-se: como os agentes definem seus contextos, que lógicas estão subjacentes na definição e interpretação destes? As interpretações e práticas podem estar referidas a distintas lógicas que se confrontam nas práticas sociais. Podemos considerar aqui, por exemplo, que a lógica de mercado, a lógica de parentesco etc. adquirem o seu significado em contextos relacionais temporários e precisos. Essas lógicas serão sempre seguidas por outras lógicas, muitas vezes contraditórias. Nenhuma delas tem uma validade absoluta que defina um espaço ou momento estrutural factível de ser subvertido (Laclau & Mouffe, 1989: 243).
Determinados eventos, não controláveis, confrontam e rompem com formas espaciais de representação e estruturas discursivas. A partir deles surgem possibilidades de articulações que oferecem uma (re)descrição da realidade, proporcionando um princípio de leitura de uma situação e de identificação. Nesse sentido, um discurso de gênero ou de base étnica, entre outros, apresenta outras possibilidades de centramento. Os confrontos políticos, nesta definição, decorrem de determinados processos que se articulam em torno de uma produção de sentidos, que remete a valores/quadros de referência, a partir dos quais se estabelecem identidades, fronteiras e demandas. Assim, cabe indagar como, que valores e quais quadros de referência são mobilizados em cada protesto social.
Todo enfrentamento político demanda mobilização de recursos (materiais e imateriais), mecanismos, repertório de ações, níveis de solidariedade ou redes (locais, nacionais, regionais ou transnacionais). Tais aspectos precisam ser identificados pelo pesquisador.
Por fim, todo enfrentamento político suscita reações do poder instituído, não restrito ao Estado. É necessário identificar quais são os atores envolvidos e quais as reações, os conflitos e os posicionamentos que emergem nesses confrontos (negociação, repressão etc.).
Nesta perspectiva, a análise dos protestos sociais leva a reconhecer o legado teórico e metodológico referente à análise das ações coletivas e dos movimentos sociais, bem como oferece a possibilidade de identificação de temas e questões que emergem dos contextos sociais não problematizados no campo teórico. Retomando Paulin Hountondji (1989), ao referir-se à investigação extrovertida em África, trata-se de buscar caminhos de investigação a partir de dentro, num esforço de responder a problemas articulados nos protestos sociais, direta ou indiretamente, por seus agentes.