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O popular no Brasil numa fábula de costume francesa: estéticas e mediações transatlânticas

Resumo

O ensaio procura elucidar um possível delineamento literário do popular, enquanto tema e estética, voltando os olhos para trás e percorrendo os processos de circulação transatlântica da cultura, na perspectiva sociológico-processual. Para tanto, situa a descrição e interpretação da fábula de Topaze nas figurações sociais e nos cenários de interpenetrações civilizatórias entre a França e o Brasil do século XIX, que possibilitaram a publicação e leitura das Scènes de la vie privées et publique des animaux. O par estrutural animalidade-humanidade, em meio ao espanto diante das inovações tecnológicas, diz respeito aos padrões de autorregulação e autocontrole dos afetos no mundo moderno, sintetizando experiências baseadas em trocas civilizatórias sempre instáveis e que, por isso, não deixam de enfrentar impulsos de descivilização.

Palavras-chave:
popular no Brasil; circulação transatlântica da cultura; estéticas e mediações; interpenetrações civilizatórias; sociologia processual

Abstract

The essay seeks to elucidate a possible literary design having common people’s lives and values as theme and aesthetic, reviewing the transatlantic processes of culture circulation, in a sociological-procedural perspective. To this end, it locates the description and interpretation of the fable of Topaze in the nineteenth century’s social figurations and cenarios of civilizatory interpenetration between France and Brazil, which made possible the publication and readings of Scènes de la vie privées et publique des animaux. Amidist an atmosphere of astonishment before the technological innovations, the structural pair animality-humanity synthesizes the modern world self-regulatory and emotional control standards in the context of unstable civilizatory exchanges.

Keywords:
Popular in Brazil; transatlantic circulation of culture; aesthetic and mediations; interpenetrations civilizing; procedural sociology

Rotas transatlânticas do popular

No prefácio do livro Brésil littéraire. Histoire de la littérature brésilienne, o autor, o romanista austríaco Ferdinand Wolf, observa que a vida social no Império do Brasil atraía a atenção dos europeus. Na segunda metade do século XIX, naturalistas, etnógrafos e historiadores elegem a natureza e a sociedade do país como objetos de estudos dos quais resultam importantes obras descritivas e analíticas.

Publicada em francês, a língua intermediária entre as nações banhadas pelo Oceano Atlântico, em 1863, em Berlim, a antologia de Ferdinand Wolf se pretendia a primeira a tratar de uma história da literatura no Brasil. O romanista comenta a presença de obras de escritores brasileiros nas bibliotecas de Lisboa e Coimbra, mas também a formação de uma coleção na Biblioteca Imperial de Viena, onde era funcionário1 1 . A respeito dos dados biográficos de Ferdinand Wolf, consultar o artigo de Carlos Augusto de Melo (2008). . Wolf chega a falar da influência do Império Tropical na vida intelectual europeia. Pouco importa se sua avaliação é desmedida, porque conhecia o Brasil somente por leituras. Ou se 37 anos antes Ferdinand Denis já tivesse publicado, em Paris, o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil, no qual também se ocupava do desenvolvimento de uma incipiente vida literária brasileira.

O que mais chama a atenção é que Ferdinand Wolf torna visível a atuação de uma rede intelectual de mediadores entre o Brasil e os países europeus. Uma rede de circulação vinculada ao mundo oficial - não por acaso dedica sua antologia ao imperador Pedro II -, mas também formada por viajantes e divulgadores de conhecimentos, como os escritores, tradutores e livreiros-editores. As tramas densamente entrelaçadas desta rede estendiam-se entre espaços e sistemas de trocas culturais diferenciados, alargando públicos de leitores e novos e rentáveis mercados, estimulando interpenetrações civilizatórias no que toca a processos de formação dos padrões de economia emocional. No Rio de Janeiro, os escritores Domingos Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto-Alegre e Ernesto França igualmente se empenhavam em contribuir com as bibliotecas alemãs, enviando livros.

É possível que cada uma das coleções europeias de livros brasileiros tivesse sua própria comunidade de leitores, científicas e mundanas. Wolf conta a história do geólogo Ferdinand de Hochstetter, passageiro da fragata Novara, que regressava a Viena de uma expedição que aportara no Brasil. Hochstetter tinha sido contratado pela Biblioteca Imperial para comprar livros durante a estadia no Rio de Janeiro. Outro importante artífice da circulação cultural foi o diplomata alemão Jean-Jacques de Tschudi. De volta a Berlim, colocou sua rica biblioteca à disposição das pesquisas para a antologia Brésil littéraire, conta o autor.

Da parte dos exploradores e cientistas que visitavam o Brasil, a publicação dos resultados das viagens ensejava debates críticos acalorados nos países de origem2 2 . Sobre a participação dos intelectuais brasileiros nas revistas francesas, consultar Katia Camargo (2012). , e não apenas nas instituições e associações científicas que, via de regra, patrocinavam as viagens. Uma vasta e não menos difusa opinião pública ia sendo formada com a leitura dos relatos nos jornais e revistas já de grande circulação, ampliando o debate crítico sobre os problemas enfrentados no mundo colonial. Os artigos de Ferdinand Denis, Auguste de Saint-Hilaire e Adolphe d’Assier nos periódicos franceses Revue des Deux Mondes e Journal des Débats são ilustrativos do quanto as questões construídas no Brasil alcançavam dimensões transatlânticas. Ao abrirem debates sobre os temas polêmicos da campanha abolicionista e da imigração de trabalhadores europeus para a América do Sul, entre as teses da influência moral dos homens brancos sobre os de outras raças, os artigos atraíam a curiosidade de leitores médios, virtuais imigrantes, desejosos de se informar sobre as atualidades nas antigas colônias portuguesas e espanholas. Com o incremento do comércio de livros, as publicações em fascículos das viagens e o advento da leitura massiva dos jornais de vulgarização científica, os problemas que concerniam ao Brasil universalizam-se numa cultura política ampliada.

Por volta de 1840, as livrarias francesas abrem filiais no Rio de Janeiro. Os novos comerciantes oferecem coleções de clássicos europeus e, com elas, mitos de fundação da nacionalidade, sortimentos de romances, compêndios escolares, além de traduções portuguesas dos livros de viagens3 3 . Sobre livrarias francesas que se instalaram no Rio de Janeiro, ver Márcia Abreu (2012). . Como não havia passado literário a partir do qual inventar uma identidade nacional, a difusão da literatura estrangeira teve um lugar e um papel a cumprir na estruturação das letras brasileiras. Não se pode afirmar que este cenário fosse marcado tão somente pela influência de uma matriz cultural europeia já consolidada sobre outra em formação. O ângulo do sentido único da dependência cultural dos países periféricos em relação aos países centrais leva a pistas falsas quando se trata de estudar os contatos e as influências além das geografias nacionais, como relações identitárias em movimento. Tudo indica que o projeto de criar novos mercados para o livro francês na América do Sul, ainda que alicerçado no desequilíbrio das trocas entre um país hegemônico e ex-colônias periféricas, acabou por desenvolver espaços transnacionais de cultura. Para que a formação de espaços nacionais fosse possível, a partir da invenção de tradições literárias, foi decisivo o trabalho dos mediadores que operavam a exportação e importação de livros entre línguas geográfica e culturalmente diversas, somado aos fluxos das traduções. Vista por este ângulo, a atuação dos livreiros estrangeiros no Brasil revela a complexidade das trocas, dos empréstimos e das apropriações que estruturavam o mundo da cultura. Se o Brasil despertava curiosidades e desejos de conhecimento por suas questões sociais e políticas emergentes, as transferências literárias com a França jamais ocorreriam em pé de igualdade, visto que as relações de força eram linguisticamente favoráveis à França (Sapiro, 2008SAPIRO, Gisèle. Mesure du littéraire. Approches sociologiques et historiques. Histoire et Mesure, Année XXIII, n. 2, p. 35-68, 2008.). Enquanto a cidade de Paris procurava sua afirmação como potência simbólica, a nação francesa pretendia ser um império cultural, lembra Mollier (2001____. La construction de système éditorial français et son expansion dans le monde du XVIIIème au XXème siècle. In: MOLLIER, Jean-Yves. Les mutations du livre et de l’édition dans le monde du XVIIIème siècle à l’an 2000. Paris; Québec: L’Harmattan; Presses de l’Université Laval, 2001.).

Assim, dinâmicas históricas de interpenetrações civilizatórias iam acompanhando o tramado da circulação cultural e alimentando os circuitos europeus de difusão de livros e impressos para a América do Sul. Todo esse cenário encontra expressão em projetos de escrita sobre os povos coloniais. As estratégias do editor Pierre-Jules Hetzel para a publicação da coletânea juvenil Scènes de la vie privées et publique des animaux - études des mœurs contemporaines4 4 . “Topaze, peintre de portraits”, de Louis Viadort (1840), integra a coletânea organizada por Pierre-Jules Hetzel Scènes de la vie privées et publique des animaux - études des mœurs contemporaines. ilustram, em detalhes, os fluxos nos espaços transnacionais da cultura.

Neste ensaio, organizamos uma discussão sobre as estéticas e mediações do popular na fábula de costumes “Topaze, peintre de portraits”, um dos capítulos das Scènes, escrito por Louis Viardot. O enredo, ambientado entre a França e o Brasil, desenha os horizontes do popular no deslocamento transatlântico de um macaco ex-escravo, que faz o trajeto Floresta Amazônica → Paris → Floresta Amazônica. “Topaze, peintre de portraits” é uma sátira construída no deslocamento do herói e na mobilidade do livro. No primeiro tempo, procuramos mostrar como as alegorias do popular nas aventuras de um macaco metamorfoseado no duplo artista-fotógrafo conduzem às classificações do olhar francês sobre indivíduos que circulam por zonas de não reconhecimento no mundo colonial. Ou melhor, a figura do artista europeu racializado no personagem macaco apresenta ao leitor não apenas o exotismo de uma espécie de zoo humano, mas coloca em debate quais indivíduos seriam passíveis de moralização. Por um lado, se a selvageria animal poderia vir associada à transgressão humana da arte, por outro, as aventuras do macaco-homem mostrariam as dificuldades dos europeus em ajustar-se às modernas inovações tecnológicas. A hipótese que norteia o argumento é a de que, na cartografia imaginária das viagens, o resultado da inevitável mestiçagem entre índios, negros e colonos brasileiros inicia a composição de um vasto acervo da alegoria plebeia nos trópicos, lúdica e telúrica, dona de exacerbada vitalidade.

No segundo tempo, a fábula de Topaze é situada nos debates travados na rede transatlântica de interdependências sociofuncionais em torno das questões do duplo, da autenticidade e da singularidade individual. Tais problemas são levantados na medida em que a semântica do popular contracena com a intervenção da técnica, atravessando valores conferidos às concepções de arte e de ciência no quadro da matriz europeia de valores institucionalizados da civilização burguesa industrial. Interessa a figuração social de uma antropologia popular na qual os limites do humanismo europeu são violados no perfil desmesurado de bárbaros cujo teor de violência embute as marcas corporais dos estigmas de raça na incompletude tornada estilo.

A apropriação editorial da fábula, no século XIX, como gênero já praticado por Jean de La Fontaine na corte de Luís XIV, torna-se oportuna para um debate que entrecruza raça e moral. Na fábula, as relações com os sentimentos nos padrões individuais de autocontrole são tratadas como fatos morais. Ao falar sobre as diferenças naturais do reino animal, as fábulas problematizam as diferenças individuais nas disposições sociais. A expectativa dos editores especializados em livros juvenis era a de que os leitores reconhecessem seus retratos no espelho das narrativas.

Sob o ângulo da teoria da civilização, de Norbert Elias (1993____. O processo civilizador. Uma história dos costumes. v. I. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.), procuramos elucidar um possível delineamento literário do popular, enquanto tema e estética da transgressão, voltando os olhos para trás e percorrendo os processos de circulação transatlântica da cultura. O par estrutural animalidade-humanidade, em meio ao espanto diante das inovações tecnológicas, dizia respeito aos padrões modernos de autorregulação e autocontrole dos afetos, sintetizando experiências baseadas em trocas civilizatórias sempre instáveis e que, por isso, civilização e descivilização se fazem contínuos cúmplices socioestruturais.

Circulação da cultura. Domínios e práticas do popular

O enfoque da fábula coloca, no primeiro plano, a problemática da circulação, ao mesmo tempo em que descortina e confere sentido ao modo como as descrições do exótico se articulam às representações do popular. A seguir, apresentamos uma nota metodológica sobre a figuração do popular na circulação da cultura.

Em primeiro lugar, a edição francesa do chamado livro pitoresco, como suporte de paisagens e modos de vida originais, ressignificava as fisionomias e os costumes dos habitantes de zonas distantes do globo, conferindo-lhes capital de visibilidade. Desse modo, a mestiçagem racial como produto brasileiro é assimilada pela indústria editorial do entretenimento que toma corpo em Paris5 5 . A respeito da indústria editorial do entretenimento e do nascimento de uma cultura de massa na França do século XIX, consultar Jean-Yves Mollier (2008). na segunda metade do século XIX, em consequência da instrução universal e da alfabetização em massa. Muito provavelmente, a leitura do livro pitoresco contribuiu para as representações que os franceses tinham de si ao se apropriarem de textos sobre as alteridades tropicais.

Em narrativas como a de Topaze, o popular circunscreve um conjunto de práticas que compreendem os domínios do socialmente não reconhecido e ainda marcado por uma ambiguidade ontológica. Ou melhor, a temática do popular acaba demarcando uma cartografia do ilegítimo articulada tanto à circulação da cultura quanto às modalidades de apropriação. Objetos marginais podem adquirir nobreza e consagração, a depender dos mecanismos classificatórios e dos usos que deles façam indivíduos e grupos mais ou menos legítimos. É submetido aos regimes de historicidade que o termo popular ganha ou perde força. Roger Chartier (1995CHARTIER, Roger. Cultura popular. Revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, v. 8, p. 179-192, 1995.) aborda um importante aspecto da circulação cultural ao situar o popular nos processos de difusão e apropriação de livros e impressos, relativamente independentes das intenções iniciais dos produtores e dos locais de produção. O historiador discute como livros cujos textos foram classificados como eruditos tornam-se populares a depender de intervenções editoriais - o recurso às ilustrações que acompanham as narrativas, a diminuição dos capítulos e parágrafos e o tipo das fontes empregadas na impressão com a finalidade de facilitar o entendimento. É preciso levar sempre em conta que o erudito e o popular são categorias definidas nos vários espaços e direções das trocas entre bens, ideias e agentes mediadores e, por isso, modulações da cromática cultural brasileira foram tão bem interpretadas nos debates ocorridos na França. Ao se deslocar entre os polos restritos e ampliados da produção simbólica, o popular qualifica um tipo de relação socialmente produzida, “um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade” (Chartier 1995: 184), e que, lembrando Norbert Elias (2008____. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.), segue enlaçando os indivíduos em figurações de dependências recíprocas.

No debate que anima o século XIX em torno do pitoresco e do exótico, o popular entra como expressão das tradições culturais, instaurando áreas específicas de conhecimento, observa Renato Ortiz (1992ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas. Cultura popular. São Paulo: Olho d’Água, 1992.). O tema é caracterizado por grupos de escritores românticos nacionalistas, que o inventam, sob o prisma da pureza e da autenticidade, e de intelectuais folcloristas, que o dotam de valor científico. A legitimidade conceitual adquirida pela ideia de cultura popular (ou tradicional) com a disciplina do folclore enquanto acervo de tradições resulta do esforço em sistematizar e controlar a dispersão de significados e práticas de resistência às culturas clássicas. É por esta via que indivíduos recriados como selvagens e naturais são apreendidos como populares e ilegítimos, ao mesmo tempo em que os relatos de seus modos de vida tornam-se modelos e contramodelos comportamentais, cognitivos e estéticos. Se um viajante estrangeiro olhava para um índio ou um negro africano do Brasil, transcrevia nos relatos os signos de suas representações estéticas. Como diz Michel de Certeau (2000CERTEAU, Michel de. A escrita da história. São Paulo: Forense Universitária, 2000.), no sistema ocidental moderno, a relação com as alteridades tropicais é uma operação escriturária. Para além da tradução, o procedimento cognitivo implica renomear os significantes no movimento em que os codifica numa cosmologia cuja certeza de universalidade lhes confere visibilidade, mas os posiciona num patamar inferior de glória, qualificando-os como locais, regionais, extraordinários ou vulgares, até mesmo como menores e/ou marginais.

Editar o pitoresco. A comédia humana dos animais

Um interessante aspecto da circulação sugere que os livros franceses que se apoderavam ou recriavam ficcionalmente a vida social brasileira eram lidos simultaneamente na França e no Brasil6 6 . Consultar a publicação dos resultados do projeto de cooperação internacional “A circulação transatlântica dos impressos - a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Márcia Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, e Jean-Yves Mollier, do Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines, Université de Versailles - Saint Quentin en Yvelines: <http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br>. . É provável que tenha sido o caso dos volumes da Scènes de la vie privées et publique des animaux - études des mœurs contemporaines, postos à venda na Livraria de Baptiste-Louis Garnier, no Rio de Janeiro, como anuncia o catálogo para o ano de 18587 7 . Este título consta na lista de obras do catálogo de vendas da Livraria de Baptiste-Louis Garnier para o ano de 1858, como parte da coleção juvenil da editora parisiense. , ilustrando o que Nathalie Heinich (2011HEINICH, Nathalie. La consommation de la célébrité. L’Année Sociologique, v. 61, n. 1, p. 103-123, 2011.) considera popular por difusão massiva.

Em Paris, Pierre-Jules Hetzel, editor responsável pela publicação, debutou no comércio de livros em 1835. De acordo com Jean-Yves Mollier (1988____. L’Argent et les lettres. Histoire du capitalisme d’édition. 1880-1920. Paris: Fayard, 1988.), Hetzel, natural de Chartres, ao contrário de seus concorrentes irmãos Calmann-Levy, irmãos Garnier e Louis Hachette, não representa o modelo do homem de negócios do capitalismo editorial. Basta lembrar que Hachette conquistou o monopólio da venda de livros nos quiosques das estações de trem parisienses, inaugurando as chamadas bibliotecas ferroviárias destinadas a quem queria se distrair enquanto viajava (Mollier, 1999). Hachette constrói uma ruptura no mundo do livro por meio de um projeto liberal que impõe tanto a universalização da instrução como a livre concorrência. Baseadas nas estratégias de investimento multimídia em vários domínios, como jornais e casas de espetáculo, acumulando capital com o negócio dos impressos, mas também em aquisições imobiliárias, as dinastias familiares do capitalismo editorial estavam empenhadas em defender a ordem estabelecida, pouco se arriscando a fazer crítica social com o negócio do livro. Em nada se assemelhavam a Hetzel, exilado na Bélgica após o golpe de Estado de Luiz Napoleão Bonaparte, em 1851. Republicano convicto e romântico no gosto, Hetzel foi perdendo autores para outros editores - a exemplo de Honoré de Balzac e Victor Hugo. Fazia a figura do empreendedor do passado, complementa Mollier (1988), incapaz de construir uma sólida empresa econômica e expandir os negócios para além do mercado Europeu. Suas edições jamais veriam a luz dos trópicos sem o trabalho de exportação levado a cabo pelo clã Garnier, cujo irmão mais novo, Baptiste-Louis, fez do Rio de Janeiro entreposto comercial do livro europeu na América do Sul. No momento em que a mundialização da cultura tomava impulso sob a vocação expansionista do comércio francês, Hetzel exilava-se na Bélgica. Preferiu investir na ornamentação dos textos e capas dos volumes, contratando artistas famosos.

Aplicada a noção do popular ao mundo das edições, pode-se afirmar que Pierre-Jules Hetzel foi um grande editor de romances populares8 8 . A revista Rocambole consagra a edição dos n. 68-69, do outono-inverno de 2014, a um dossiê inteiramente dedicado ao editor, “Hetzel, éditeur populaire”, sob a direção de Daniel Compère e Robert Soubret. . Émile Erckmann e Alexandre Chatrian, ao lado de Victor Hugo, Jules Verne, Charles Nodier e Alexandre Dumas, são exemplos da disposição em oferecer livros baratos em fascículos a um público ampliado beneficiário das reformas educacionais, bem como às famílias da burguesia liberal do Império, ressalta Roger Ballet (1980BALLET, Roger. De Hetzel éditeur à P.-J. Stahl journaliste. Europe, p. 13-30, v. 619-620, 1980.). A popularidade da editora Hetzel vem definitivamente em 1864 com a “Bibliothèque Illustrée des Familles” e o periódico Magasin d’Éducation et de Récréation, em colaboração com Jean Macé. Esses dois empreendimentos editoriais abriram caminho para a coleção que deu estabilidade à editora, gravando-a nos anais da literatura universal de vulgarização científica, os Voyages extraordinaires da obra de Jules Verne. Além do mais, o editor beneficiava-se do fato de o livro já ser produto popular na França, o que o levou a estimular um consumo de massa a viabilizar conexões transatlânticas. Como bem observa Gisèle Sapiro (2008SAPIRO, Gisèle. Mesure du littéraire. Approches sociologiques et historiques. Histoire et Mesure, Année XXIII, n. 2, p. 35-68, 2008.: 38), a partir de dados da Bibliographie de la France, entre o Primeiro e o Segundo Império, as tiragens de títulos quadruplicaram, passando de 3.000, em 1814, a mais de 13.800 títulos, em 1866.

Para o biógrafo do editor Hetzel, Jean-Paul Gourévitch (2005GOURÉVITCH, Jean-Paul. Hetzel. Le bon génie des livres. Paris: Éditions du Rocher; Le Serpent à Plumes, 2005.), nos anos de 1840, o tema dos animais falantes não era bem uma inovação na literatura francesa. O projeto de publicação das Scènes de la vie privées et publique des animaux, ao seguir a tradição de estudo dos costumes em fábula, satisfazia uma linha editorial propícia à indústria do entretenimento - educar e divertir -, e atendia às expectativas de um público massivo já concebido como “o povo”. Logo no prólogo do livro, Hetzel, com o pseudônimo de P. J. Stahl, assume a voz do narrador e imagina a figuração social de um grupo de animais domésticos e selvagens, herbívoros e carnívoros, saídos de suas tocas do Jardin des Plantes, em Paris. Numa noite de primavera e enquanto a cidade dormia, reunidos em assembleia geral e transnacional − havia representantes de Viena, Berlim e de Nova Orleans −, atuando como homens, os bichos formam uma interdependência afetiva, nos termos de Norbert Elias (2008____. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.). A palavra de um determina a resposta do outro, o que era necessário ao equilíbrio das tensões ocasionadas pelo debate sobre seus direitos em face da espécie humana. Exatamente no dia do aniversário da morte de La Fontaine, os bichos decidem revoltar-se contra a brutalidade civilizatória dos homens e proclamar suas independências, escrevendo uma história popular (no sentido mais democrático possível), nacional e ilustrada da comunidade dos animais (Gourévitch, 2005: 40). Afinal, o grupo se questionava sobre a razão de os selvagens estarem sempre prontos para a guerra e os domésticos conformarem-se com o status quo. Uma convenção foi estabelecida pela assembleia: na escrita de suas vidas, a ação de cada animal traria características da própria espécie. Um macaco tropical nacionalizado francês tomou a palavra, discorreria sobre a macaquice, uma representação da aparência nas artes da imitação. A narrativa de Topaze falaria das tensões entre a originalidade da arte e a reprodução na fotografia.

Scènes de la vie privée et publique des animaux, obra coletiva assinada por autores célebres como Balzac, Charles Nodier e George Sand, e por outros menos conhecidos nos dias atuais, a exemplo do estudioso da pintura e tradutor de literatura espanhola Louis Viardot9 9 . Colaboraram na coletânea Scènes de la vie privée et publique des animaux, Honoré de Balzac, Louis Baude, Émile de la Bédollière, Pierre Bernard, Gustave Droz, Benjamin Franklin, Jules Janin, Édouard Lemoine, Alfred de Musset, Paul de Musset, Mme. Ménessier-Nodier, Charles Nodier, Georges Sand, P. J. Stahl (pseudônimo de Pierre-Jules Hetzel) e Louis Viardot. . A obra foi publicada por Pierre-Jules Hetzel e Paulin, de 20 de novembro de 1840 a 17 de dezembro de 1842, em dois volumes ilustrados por Jean-Jacques Grandville. A intenção moralizadora e pedagógica do projeto é evidente, razão pela qual a obra foi inserida no catálogo juvenil. No prefácio do livro, Sthal diz que os animais, após a escrita dos contos em nome da espécie, decidiram ir a uma livraria conhecida no mundo pitoresco. Afinal, Hetzel e Paulin eram livreiros sem preconceitos em publicar um livro escrito por eles. A segunda edição sai com o título Les animaux peints par eux-mêmes, reforçando as semelhanças entre os homens e os animais. Se o leitor aceitasse o pacto proposto, poderia entrar na pele de um sagaz coelho, de um crocodilo, de um galante gato inglês ou de uma manhosa gata francesa, um cavalo puro sangue também inglês, um rato filósofo, um leão da África. O macaco do Brasil provocaria risos, mas também uma boa dose de reflexão sobre as diversidades, as desigualdades e a dominação entre os humanos.

A importância das Scènes pode ser medida por duas publicações similares e quase simultâneas. Para Ségolène Le Men (2002: 74), foram dois projetos em sintonia com a publicação juvenil de Hetzel: Les français peints par eux-mêmes - Encyclopédie morale du XIXème siècle (1840-1842, editado em Paris por Curmer) e La comédie humaine (1842-1848, inicialmente coeditado por Hetzel, Paulin e Jacques-Julien Dubochet). Tanto o primeiro - obra-prima do livro romântico ilustrado - quanto o segundo - verdadeira enciclopédia moral moderna - tornaram célebre Balzac. O escritor investiu tempo e dinheiro na chamada edição do pitoresco e na imprensa satírica. Na concepção de publicar a grande comédia humana na perspectiva dos animais, seguindo o gênero da obra que consagraria Balzac, o exótico como expressão do popular se impunha na pele do herói Topaze, que se viu aprendiz de artista em Paris, mas que acabaria reproduzindo retratos na floresta amazônica, como um estrangeiro em face de seus iguais.

O homem tropical como um macaco revela a presença de teorias racistas na edição juvenil francesa. Desde a segunda metade do século XVIII, o pensamento naturalista europeu vinha tentando formular explicações sobre as diferenças entre os povos, ora baseadas nos estágios de civilização ou barbárie, ora por meio de uma gama de causalidades que iam da geografia e do clima à cor da pele etiquetada como raça. Estas teorias - dentre as quais se destaca, no universo simbólico juvenil, a do cientista natural do Jardin des Plantes Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, autor de compêndios de histórias gerais dos homens e dos animais - referendam o lugar de inferioridade ocupado pelos negros nas sociedades coloniais. Uma das expressões mais fortes das valorações negativas dos naturalistas a respeito dos negros - mostra Eneida Sela (2008SELA, Eneida Maria Mercadante. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora Unicamp, 2008.), em seu livro sobre o imaginário científico dos viajantes europeus - associava-os aos macacos. Assim, uma ideia de zoo humano é construída como recurso ao enquadramento dos africanos em etapas evolutivas de padrões morais. É interessante notar como mais uma questão classificatória se sobrepõe à da raça moralizada no projeto de Hetzel e Viardot. Nas cenas de costumes da vida parisiense, a figura surpreendente do macaco-homem e da prática da “macaqueação”, usando a expressão de Maria Lúcia Pallares-Burke Garcia (1996), é a contraimagem do artista romântico europeu. Ou melhor, o macaco-homem é o inverso da personalidade única do artista que reivindicava autoridade como gênio criador. O escritor Louis Viardot e o gravurista Jean-Jacques Grandville, aproveitando-se das sutilezas do pensamento racial, criaram à francesa10 10 . No texto, não há referências ao autor espanhol traduzido por Louis Viardot. Topaze, com humor e perspicácia sem torná-lo caricato. Por isso, é objetivo das Scènes, lembra Pallares-Burke Garcia,

apresentar um quadro satírico, leve e claro da sociedade, no qual os leitores reconheceriam a si próprios e aos outros nas paixões, nos vícios e nas ambições dos animais (Pallares-Burke Garcia, 1996: 19),

fazendo coincidir o subtítulo da obra - études des mœurs contemporaines - e a trama de cada um dos contos. Não se pode perder de vista que o autor das aventuras de Topaze foi tradutor de romances espanhóis picarescos do século XVIII, enormes sucessos nos folhetins no século XIX, e que certamente interferiram na construção da imagem do popular no Brasil.

A ficção juvenil do século XIX, seguindo a tradição dos fabulistas do Antigo Regime, tinha o propósito de colocar a moralidade em ação, desencadeando no leitor o autocontrole das pulsões e dos afetos (Elias, 2010 ELIAS, Norbert. Au-delà de Freud. Sociologie, psychologie, psychanalyse. Paris: Éditions de la Découverte, 2010.), talvez justificando o final trágico de Topaze: sua imersão nas profundezas do rio Amazonas, vencido pela desolação. Ao mesmo tempo, Topaze se via acossado pelos efeitos de instabilidade ontológica gerados pela circulação e duplicação. Ainda que racializado na condição colonial dos trópicos americanos, o macaco não se reconhecia em suas origens; ao lhe ser vetado o status de artista, submergiu na banalização de sua obra, na medida em que se constituía numa multiplicação progressiva, apagando-lhe qualquer vestígio de originalidade. Este é o dilema que põe à prova a perspicácia do herói na fábula: pulsa-lhe a ambígua posição entretida na mutualidade dos sentimentos primitivos, bárbaros e civilizados.

Estéticas e mediações do popular: Topaze, pintor de retratos

Quais seriam a lição moral e a crítica social previstas por autor e editor em Topaze, peintre de portraits? Por que motivo um macaco metamorfoseado no duplo artista-fotógrafo provocaria o riso? A cena tropical onde se ambientam os embates entre a singularidade da pintura e a arte massificada da fotografia desenha um mapa do popular como cultura do ilegítimo. Embora Topaze tenha se tornado figura pública após deixar o estado natural, em Paris, adquiriu celebridade entre seus semelhantes sem, contudo, ser identificado como artista. O destino de Topaze foi o de ser um inautêntico, aos olhos dos homens da Europa e aos dos bichos da floresta que o viram nascer.

O narrador de sua aventura − Sapaju, macaco negro que se apresenta ao leitor como discípulo, confidente e historiador do mestre −, não o descreve simplesmente como vítima. Topaze partiu do Brasil macaco-criança e voltou macaco-homem instruído e civilizado. Não lamentava a partida do Brasil. Tinha sido posto à venda pelos índios caçadores no Rio Grande, como escravo, junto a uma carga de papagaios, colibris e peles de búfalo, com destino ao porto do Havre, na França.

Durante a travessia do Atlântico, em meio às traquinagens, mordendo os marinheiros e saltando no mastro como se estivesse numa árvore, é batizado pelo capitão do navio, que conhecia bem Voltaire, com o nome Topaze, inspirado no criado do jovem sonhador Rustan, personagem do conto Le blanc et le noir, mas também por causa de seu rosto marrom e peludo. Esta primeira descrição da cor da pele morena ou parda do macaco remete a uma simbolização da mestiçagem como produto brasileiro. Ou melhor, a uma apropriação erudita da cromática cultural no Brasil. Este ato de nomeação traz em si todo o processo de racialização de povos africanos e ameríndios subalternizados, durante o período colonial nas Américas. A propósito, as representações de uma natureza racializada serão exploradas e expostas tanto no delineamento da silhueta de Topaze como no esclarecimento de suas atitudes e de seus gestos.

No início, Topaze é representado como um ser primitivo na escala da evolução animal. Egocêntrico, o que realça de seu comportamento aos olhos europeus é a gaiatice de uma criança levada, diz o narrador. Embora construído a partir de valores de pureza e autenticidade, sua alegria plebeia também evoca sedução e despudor. Uma vez em Paris - continua Sapaju -, Topaze adquire a aparência dos heróis picarescos das novelas exemplares e dos romances espanhóis dos séculos XVI e XVIII, um Lazarille des Tormès (1554) e um Gil Blas (1715), grandes sucessos nos folhetins. Provavelmente, os atributos físicos e o caráter dos personagens espanhóis, plebeus de peles morenas alimentassem a imaginação de Louis Viardot sobre o Brasil. Viardot traduziu outras novelas espanholas para o francês, ao lado do Dom Quixote de La Mancha, romance de Miguel de Cervantes. Foi importante tradutor da literatura russa contemporânea, talvez outra fonte mais de inspiração para a imaginação do Brasil.

Educado por uma distinta senhora como um príncipe mimado que sabia fazer rir, Topaze cresceu num boudoir da rua Neuve-Saint-Georges. Um belo dia, tomado do acesso de humor maligno − incontrolável vício selvagem −, morde o rosto do barão protetor de sua protetora - continua o narrador. Pode-se imaginar como besta feroz um macaco de maus modos que morde. Cabe uma questão: como ficaria o jovem europeu diante de um espetáculo de ferocidade? Participaria, horrorizar-se-ia ou se encantaria? A solução para a desfeita foi a dama enviá-lo secretamente para o ateliê de um pintor onde costumava posar como modelo. Neste trecho, o narrador chama a atenção para a formação das vocações artísticas. Uma vez no ateliê, Topaze simplesmente decide ser pintor. Preso aos efeitos da representação como teatralidade − incontrolável vício parisiense, pode-se dizer −, ele sempre sonhara com a condição bela, livre e gloriosa da arte. Essas idealizações não eram arbitrárias, correspondiam às representações de uma nobreza vocacional dos artistas, típicas do século XIX, como observa Nathalie Heinich (1996____. Être artiste. Les transformations du statut des peintres et des sculpteurs (50 questions). Paris: Klincksieck, 1996.). Com o humor de uma crítica social e, ao mesmo tempo, articulando a gravura à indicação de uso moral da fábula, Grandville desenha Topaze como um moderno e atual pintor renascentista, vestido com capa de gola alta e chapéu de abas largas na cabeça, dando-lhe o ar de um retrato de Van Dyck (Figura 1).

Figura 1

Topaze desafia a natureza humanizando-se na arte civilizada. Frequenta escolas, torna-se aprendiz de pintor. Mas, como o gesto criador não é um gesto reprodutor, observa ainda Heinich (1996____. Être artiste. Les transformations du statut des peintres et des sculpteurs (50 questions). Paris: Klincksieck, 1996.) sobre os regimes românticos de singularidade, faltavam a ele o talento inato, o traço genuíno e uma musa, ainda que de inspiração artificial. Sobrava-lhe de original apenas a brutalidade. Quando o mestre deixava o ateliê, com a mão ligeira - diz o narrador -, o macaco cobria a pintura com camadas de tintas, aplicava cores sobre cores, refazendo a obra já feita. Orgulhoso e glorioso, Topaze olhava à distância e dizia, “eu também sou pintor”. No momento em que se viu na contingência de passar da imitação ao original, tropeçou no traço. Uma tela em branco colocou-o à prova, adeus talento. Foi então que o mestre e os discípulos aconselharam-no a buscar outro meio de vida. O narrador tenta convencê-lo a seguir o exemplo dos judeus da Idade Média, que estudavam medicina com os árabes a fim de aplicá-la entre os cristãos. O mesmo se passaria com um animal ao transmitir os conhecimentos da arte dos homens aos outros animais. Topaze adoece de desolação, sua destreza na superposição de imagens fora mal interpretada como trabalho inautêntico.

Por esta época, um pintor de interiores afeito à decoração e demais artes utilitárias de ofício, de nome Daguerre, descobria uma arte, a fotografia, exercida por um aparelho batizado com o nome do inventor, o daguerreótipo. Outra vez, Topaze deixa fluir sua ferocidade roubando a bolsa de um cliente do mestre a fim de comprar um aparelho de retratos. Aqui aparece uma crítica social revestida de moralidade. Sapaju justifica a ação do herói lembrando os tempos dos padres jesuítas, evangelizadores de uma América coberta de ouro e pedras preciosas: os fins justificavam os meios. Com o dinheiro roubado, o artista fica no meio do caminho do objetivo grandioso que se impusera. No estado de cultura e após o aprendizado da cópia no ateliê que o leva a assimilar a civilização, mas não o talento, acaba aprendendo o ofício da fotografia. Uma hipótese permite interpretar este trecho. Em contato com a nova técnica moderna de reprodução das imagens, o herói tropical realiza a transição da animalidade à humanidade, tornando-se figura pública de uma missão civilizatória. Já não era mais um prisioneiro de guerra vendido como escravo, livre como um bruto civilizado retorna ao Brasil com o prestigioso título de viajante, ou melhor, de viajante artista parisiense.

De volta à selva amazônica, sua situação se inverte. A primeira iniciativa é comprar um servidor, que seria o narrador de suas aventuras no Jardin des Plantes, a quem chama Ebène. Outra lição é dada ao leitor: imitando os homens que encontram nas diferenças de pele uma razão para a existência de mestres e escravos, ele constrói uma rica cabana ornada com flores de lótus, no centro de uma clareira como se fosse uma praça. Topaze passa a desempenhar o papel de mediador na circulação transatlântica e a despertar nos animais da floresta a mesma curiosidade da leitura francesa do modelo tropical. O que pode significar uma crítica moral às modernas celebridades na pintura e às ligações emocionais que suas presenças ensejam. Topaze deveria produzir autenticidade na reprodução. Sua aura de artista resulta das ambivalências que envolvem a popularidade conquistada como fotógrafo e a estranheza causada no olhar dos outros bichos. A segunda iniciativa é pendurar uma placa no novo ateliê de fotografia com a indicação “Topaze, pintor de retratos em Paris”. Uma descrição humorística e didática do pitoresco de macacos escravizados e de pássaros cortesãos deslumbrados com a França confronta os conceitos de raça e civilização aos regimes da singularidade artística e às identidades culturais periféricas, mostrando que Viardot e Grandville viam o jogo da colonização como dependência de uns em relação aos outros, incluindo os ilegítimos na ordem escravocrata. Tudo leva a crer que ao personagem Topaze foi atribuída uma tarefa civilizadora de regulação social.

Neste jogo em que duplos se referenciam entre si, a ideia de raça aparece claramente quando o artista fotógrafo recebe a visita de um grupo de macacos curiosos, “ladinos e invejosos” que acabam roubando a sua máquina de retratos, embora sem saber fazer funcioná-la (Figura 2). Felizmente, não eram iguais os contrafatores de livros belgas - acredita o narrador - que tudo copiavam. Lição para o leitor: seria bem mais fácil reimprimir um livro francês na Bélgica do que fabricar um aparelho na selva. A moral da cópia é a de que os inimigos - adverte Sapaju - podem estar entre os nossos iguais, quem sabe, na corporação dos livreiros franceses. Hetzel foi um ferrenho adversário das contrafações.

Figura 2

Os bichos na floresta ilustram o lado sensual do país amazônico. São descritos como animais vivendo numa idade de ouro, bons selvagens aninhados em um continente edênico. Sem noções de propriedade e herança, seus corpos não possuem almas de tão acostumados ao trabalho mecânico, o que poderia realçar os efeitos de encantamento e de imitação de Topaze, artista físico e não mais pintor. A partir daí, vemos a composição narrativa de uma estética do popular, com a descrição da beleza física bem como dos ornamentos dos animais. Numa vida de floresta hierarquizada, aventurando-se no terreno das ambiguidades, a cultura popular mostra os possíveis descaminhos e manobras no mapa civilizatório.

Neste ponto, outra questão se impõe: ao considerar as relações de poder na figuração animal, quem teria mais nobreza e distinção cultural sobre o outro? Os pássaros ajudam a divulgar o trabalho de Topaze e um grupo de macacos espertos tenta roubá-lo, copiar a sua máquina, mas consegue fabricar tão somente uma caixa vazia sem o mecanismo interno. Um dia, um animal de peso, um urso, resolve colocar o seu talento à prova. Embora sua imagem tenha diminuído na reprodução infiel da fotografia, o pesado urso11 11 . Note-se a curiosa presença do animal urso, que não existe nas florestas tropicais. se mirou esbelto e gracioso. Presenteou a ursa, que pendurou a imagem do amado no pescoço. Logo, o pássaro real veio com a corte de súditos. Pousados nas costas de Topaze, faziam críticas e indicavam os defeitos a fim de lisonjear o galante príncipe (Figura 3).


O pavão, outro retratado, admirava-se como num espelho. Acabou presenteando-se com a própria imagem, tal o milagre operado no laboratório do artista de Paris. Até uma trupe de jovens leões, filhos de poderosas famílias coloniais, apareceu para testar os cliques. Um artista moderno deveria unir-se aos imperativos da autenticidade, o que explica as estratégias do macaco em produzir originalidade na reprodução da fotografia.

Topaze conquistara tanto reconhecimento e riqueza, apesar das pequenas contrariedades, em sua missão moralizadora que pensou em aposentar-se. Até que, um dia, o sultão Poussah, um elefante, desferiu-lhe o golpe final encomendando-lhe um retrato. O sultão agia do mesmo modo - conta o narrador - que Francisco I ao convocar da Vinci. Poussah, infelizmente, não se reconheceu na miniatura da imagem retratada. Mirou-se e viu a insignificância de um rato, apesar de Topaze tê-lo clicado com profunda atenção. Para o soberano, tal pequenez - comenta Maria Lúcia Pallares-Burke Garcia - só poderia ser obra de intermediário de país civilizado “interessado em difundir inovações e maravilhas e em subverter a obediência à autoridade natural constituída” (Pallares-Burke Garcia, 1996: 22). Furioso e convencido de que a invenção aportara do Velho Mundo para corromper os bichos, Poussah destrói a máquina do fotógrafo com uma fatídica patada, como que se indagando: quem seria capaz de recolonizar a floresta amazônica? Bravo! grita a galeria presente. Arruinado, Topaze, um pintor de retratos, sai correndo e se atira abraçado à sua máquina no rio Amazonas (Figura 4).

Figura 4

Última palavra

A invenção literária da Amazônia do Brasil como país imaginado, com florestas, rios, cortes e cidades, também é a invenção de sentimentos e expectativas em jovens leitores que, como os europeus das coleções de livros brasileiros em Viena, talvez já formassem, em 1840, uma comunidade própria de interpretação. Não por acaso, os franceses bem informados tinham os olhos voltados para o Brasil. Um olhar admirado que se estendia sobre uma cultura distante mas observava sob o prisma classificatório de tipos humanos e da elaboração de uma ciência dos costumes. Na fábula de Topaze, um jogo de repulsas e mútuas atrações é revelado em imagens acionadas do reino animal. O macaco-homem desafia a natureza humanizando-se na arte civilizada, ele mesmo que já havia sido animalizado como raça inferior pela condição colonial. Topaze é uma ilustração individual das vicissitudes geradas pelos padrões sociais de regulação que acompanhavam um cenário de inovações tecnológicas na sociedade europeia da primeira metade do século XIX.

A catalogação sob o prisma popular seguia o receituário naturalista da raça e deveria atiçar a curiosidade do público com toques de exotismo e boas doses de humor. As convenções editoriais, que visavam formar um leitorado comum nos dois lados do Atlântico, aliadas às astúcias da fábula como gênero de forte apelo pedagógico, que prendiam o leitor por meio de identificações, garantiram o sucesso das viagens literárias como a de Topaze. Índios, negros e mestiços, ícones da admiração ocidental esteticamente recriados, conquistam popularidade e valor na medida em que são difundidos pela vulgarização da ciência e pelos livros de entretenimento destinados a educar e divertir. Só assim, tornados objetos de consumo em larga escala, celebridades do exótico, estes ícones ampliariam seus conhecimentos e reconhecimentos em comunidades de leitura mais alargadas.

No limite, a fábula de Topaze formaliza o problema da triangulação transatlântica entre África, América e Europa nas circulações culturais, pressionando novas interpenetrações civilizatórias já intensificadas desde as grandes navegações. E rotas e itinerários pelos quais padrões de dominação racial se impuseram e hierarquias envolvendo corpos, ideias, práticas, fazeres e saberes foram sedimentadas. Assim, classificados como primitivos, os traços fenotípicos dos negros e mestiços contracenaram com os estigmas da inferioridade cognitiva e moral. De acordo com a mesma taxionomia, as imagens do popular adquiriram relevo como signos de uma naturalidade próxima a de bárbaros impulsionados pela destemperança dos impulsos vitais. Seriam, portanto, expressões da ausência daquela veracidade afetiva, mas submetida à capacidade de autocontrole moral-cognitivo. Atravessadas em sua formação por essa lacuna, as economias emocionais dos seus agentes estariam à mercê das promiscuidades. Movido por esses vícios naturais, o macaco-homem Topaze se deixa levar pelos encantamentos diabólicos da técnica, com seu sedutor poder maquinal de duplicação. Por fim, na fábula, a incompletude intrínseca à gramática do popular abarca os elementos próprios da estrutura social urbano-industrial e consolida o dueto entre o duplo e a ambiguidade tornada parte da modernidade cultural em que se complicam as divisões entre natureza e cultura. Última palavra: na fábula do herói tropical e francês, a solidez da glória humanista enfrenta a instabilidade dos incivilizados, ou melhor, depara-se com a descivilização a se insinuar como estilo, como forma artística própria à antropologia dos bárbaros populares.

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  • 1
    . A respeito dos dados biográficos de Ferdinand Wolf, consultar o artigo de Carlos Augusto de Melo (2008).
  • 2
    . Sobre a participação dos intelectuais brasileiros nas revistas francesas, consultar Katia Camargo (2012).
  • 3
    . Sobre livrarias francesas que se instalaram no Rio de Janeiro, ver Márcia Abreu (2012).
  • 4
    . “Topaze, peintre de portraits”, de Louis Viadort (1840), integra a coletânea organizada por Pierre-Jules Hetzel Scènes de la vie privées et publique des animaux - études des mœurs contemporaines.
  • 5
    . A respeito da indústria editorial do entretenimento e do nascimento de uma cultura de massa na França do século XIX, consultar Jean-Yves Mollier (2008).
  • 6
    . Consultar a publicação dos resultados do projeto de cooperação internacional “A circulação transatlântica dos impressos - a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Márcia Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, e Jean-Yves Mollier, do Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines, Université de Versailles - Saint Quentin en Yvelines: <http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br>.
  • 7
    . Este título consta na lista de obras do catálogo de vendas da Livraria de Baptiste-Louis Garnier para o ano de 1858, como parte da coleção juvenil da editora parisiense.
  • 8
    . A revista Rocambole consagra a edição dos n. 68-69, do outono-inverno de 2014, a um dossiê inteiramente dedicado ao editor, “Hetzel, éditeur populaire”, sob a direção de Daniel Compère e Robert Soubret.
  • 9
    . Colaboraram na coletânea Scènes de la vie privée et publique des animaux, Honoré de Balzac, Louis Baude, Émile de la Bédollière, Pierre Bernard, Gustave Droz, Benjamin Franklin, Jules Janin, Édouard Lemoine, Alfred de Musset, Paul de Musset, Mme. Ménessier-Nodier, Charles Nodier, Georges Sand, P. J. Stahl (pseudônimo de Pierre-Jules Hetzel) e Louis Viardot.
  • 10
    . No texto, não há referências ao autor espanhol traduzido por Louis Viardot.
  • 11
    . Note-se a curiosa presença do animal urso, que não existe nas florestas tropicais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2016
  • Aceito
    27 Jul 2016
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