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Uma leitura de Golden Gulag: rediscutindo a economia política da pena e uma aproximação com o debate sobre a expansão prisional no estado de São Paulo

Resumo

Publicado em 2007, ainda sem tradução para o português e pouco conhecido no Brasil, a obra Golden Gulag é um importante referencial para a compreensão da expansão prisional ocorrida no estado norte-americano da Califórnia, entre os anos 1982 e 2000. Neste livro, Ruth W. Gilmore oferece uma interessante interpretação sobre as motivações e articulações que impulsionaram a construção das unidades prisionais no interior daquele estado, além de fornecer um referencial analítico que rediscute a economia política da pena. Gilmore também é considerada uma das principais autoras que contribuíram para uma abordagem sobre o revigoramento prisional intitulada Complexo industrial carcerário, bem como membro-fundador de um coletivo antiprisão chamado Critical resistence. Este artigo procura realizar uma leitura atenta de Golden Gulag, de modo a extrair as principais formulações teórico-empíricas do livro, para, em seguida, ensaiar possíveis contribuições deste material para se compreender aspectos recentes da expansão prisional no estado de São Paulo.

Palavras-chave:
expansão prisional; economia política da pena; políticas penitenciárias; reparo prisional; movimentos antiprisão

Abstract

The book was published in 2007 and remains without translation into Portuguese. The author remains little known, due to this gap. However, the book Golden Gulag is an important framework for understanding the prison expansion in the State of California, which occurred between 1982 and 2000. In this book, Gilmore offers an interesting interpretation about the motivations and articulations that have driven the construction of prisons within the state, and provides an analytical framework that discussed again the political economy of punishment. Gilmore is also known for being one of the main authors who formulated a contemporary interpretation of prison expansion prison, called Prison Industrial Complex (PIC). She is also a founding member of a prison abolition movement named Critical Resistence. This article conducts a careful reading of the Golden Gulag in order to extract the main theoretical and empirical formulations of the book. With this reading done, we intend to test possible contributions of this material for understanding the recent prison expansion in São Paulo.

Keywords:
prison expansion; political economy of punishment; prison policies; prison fix; prison abolition movement

Introdução

Lançada em 2007, a obra Golden Gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing California constitui importante referência para a compreensão e o esclarecimento da virada punitiva ocorrida nas três últimas décadas nos Estados Unidos. A autora, Ruth Wilson Gilmore, professora associada de geografia e diretora do Programa em Estudos Americanos e Etnicidade na University of Southern California, é também membro-fundador do coletivo Critical resistence, organização antiprisão1 1 . Critical resistence (Resistência crítica) é um movimento social de ativismo político antiprisão formado em 1997, que congrega ativistas, acadêmicos, ex-prisioneiros, representantes de gênero e trabalhadores que contestam a ideia de que a prisão e o policiamento são soluções para os problemas sociais, políticos e econômicos. Sua primeira grande conferência ocorreu em Berkeley, Califórnia, em 1998, reunindo aproximadamente 3.500 integrantes. Atualmente, o coletivo se organiza em três cidades: Los Angeles, New Orleans e Oakland, mas sua proposta descentralizada visa reproduzir o ativismo antiprisão por meio das ações coletivas autogeridas. O coletivo situa-se politicamente como adversário declarado do Prison industrial complex (PIC) (complexo industrial carcerário), que é o termo usado para se referir aos interesses políticos e econômicos relacionados à indústria da vigilância, que fornece equipamentos às forças policiais e prisionais, incorporando todo tipo de estratégia política que favoreça este controle social. O movimento reconhece como duas grandes formuladoras das teses adversas ao PIC Angela Davis (acadêmica, ex-membro do Partido Comunista USA, ex-prisioneira política, autora de Are prisons obsolete?) e Ruth Wilson Gilmore. Por obediência aos objetivos e às limitações deste artigo, não iremos discutir as formulações e implicações da noção do PIC. Para maiores detalhamentos, ver <www.criticalresistence.org>. .

Para o leitor brasileiro, vale lembrar o que sugere o título: o golden faz alusão ao epíteto do estado da Califórnia - Golden State - em decorrência da grande corrida do ouro em meados do século XIX e que também simbolizava a importância econômica e política crescente do estado durante o período entre guerras. Mas o contraste se dá por conta da referência ao Gulag, como se a expansão prisional californiana atualizasse a experiência dos campos de concentração soviéticos. A temática do revigoramento penal, que se dissemina como tendência das políticas criminais em diferentes países, com realidades sociais distintas - como Estados Unidos, Inglaterra, França, Brasil e Argentina (dentre outros) - ficou conhecida no debate internacional sobre prisões pela notoriedade de trabalhos como os de Loïc Wacquant e David Garland, assim como uma série de investigações que retomaram o legado crítico de Michel Foucault para se pensar as transformações contemporâneas da instituição prisão.

Certamente, boa parte do público brasileiro interessado na questão penitenciária já se familiarizou com as temáticas da criminalização da miséria (Wacquant, 2000_____. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2000.; 2001), ou as análises de uma cultura do controle (Garland, 2001_____ (Org.). Mass imprisonment: social causes and consequences. London: Sage Publication, 2001.), que compõem o referencial teórico de muitas abordagens desenvolvidas sobre o sistema prisional local. Mas talvez o trabalho em análise demande uma introdução mais detalhada sobre seu encaixe e sua contribuição no debate sobre a expansão prisional nos Estados Unidos, bem como acerca das possíveis utilizações para se observar o caso prisional local. Para apresentar estas contribuições presentes na obra, faremos um caminho, inicialmente panorâmico, no sentido de contextualizá-las, e, em seguida, apresentaremos alguns detalhamentos sobre as informações e análises desenvolvidas pela autora.

Um dos primeiros elementos a chamar a atenção em Golden Gulag é a inclusão da questão espacial na análise do fenômeno da prisão, que se relaciona diretamente com o fato de sua autora ter formação em geografia. Assim, comparecem um conjunto de referências comuns e autores das ciências sociais e penais que tradicionalmente são utilizados para debater os sistemas prisionais; mas, no caso de Gilmore, podemos considerar que a obra encerra uma contribuição original neste debate. Autores consagrados na assim chamada sociologia da punição - como Michel Foucault, David Garland e Loïc Wacquant - aparecem de forma diluída ao longo das discussões empreendidas. Em oposição às referências tradicionais, um conjunto diferente aparece nas discussões sobre Justiça Criminal, a partir do diálogo e da utilização de categorias elaboradas por Mike Davis, David Harvey e Angela Davis, como os suportes que acompanham a discussão empreendida por Gilmore (2007).

Com estas considerações em mente, podemos situar Golden Gulag como uma descrição detalhada e amplamente documentada sobre o processo de expansão prisional ocorrido na Califórnia, que abrange desde o início dos anos 1980 até 2000. Este crescimento, como muitos presumem, ocorreu de forma rápida e foi ocupar as regiões rurais do interior do estado, que recepcionaram as novas unidades penitenciárias.

A obra trata diversos problemas relacionados a este fenômeno prisional, mas uma das perguntas centrais é entender quais foram os processos - sociais, políticos e econômicos - por trás desta expansão e descrever em detalhes como esta ocorrência se articulou.

Por que se investiu tanto em prisão? Como a construção encontrou apoio e, sobretudo, recursos financeiros de forma ampla no cenário político? Quais motivos levaram estas novas unidades penais para pequenos municípios específicos do interior da Califórnia?

A virada punitiva norte-americana: explicações tradicionais, contraexplicações e explicações alternativas

Para responder estas questões, a autora retoma o debate mais amplo da questão prisional norte-americana. Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) considera que a maioria dos autores partia da constatação do crescimento da população encarcerada e do endurecimento penal do período, posteriormente ensaiando respostas simplistas a estes desenvolvimentos. Neste primeiro momento, visando mostrar como estas problematizações partiam de concepções equivocadas ou ideológicas sobre a prisão de modo geral, Gilmore (2007) constata que a principal pergunta colocada no debate americano sobre prisões era responder de que modo poderia ser explicada essa expansão prisional (também chamada de punitive turn, “virada punitiva”). Assim, pesquisadores e analistas buscavam identificar e articular as causas, os processos, as lógicas sociopolíticas que funcionavam na base deste processo de revigoramento prisional. A autora expõe, em primeiro lugar, as formulações tradicionais e depois as contraexplicações. As primeiras são rapidamente descartadas; as segundas são vistas de forma crítica: elas contribuem para o debate, mas devem ser utilizadas com cautela e requalificadas para auxiliar na compreensão da expansão prisional. Como veremos adiante, esta análise prepara o terreno para sua tese original sobre a prosperidade da construção prisional no período em análise.

A primeira tese apresentada por Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) - e que não apresenta nenhuma novidade em relação ao debate brasileiro sobre sistema prisional - é o modelo tradicional de explicar a expansão prisional, que atribui ao aumento dos crimes o crescimento substantivo do sistema prisional. Conforme Gilmore, tal lógica pode ser expressa na seguinte frase: “os crimes aumentam, aumenta a repressão, logo aumentam as prisões e os presos”.

Segundo a autora, no debate acadêmico, esta compreensão desfruta de pouca credibilidade, pois estatísticas oficiais revelam que os crimes não cresceram durante períodos de expansão prisional, mostrando que a correlação entre maior criminalidade e maior número de presos era bastante frágil e falaciosa.

A segunda tese se apoia numa suposta ocorrência de uma epidemia das drogas na sociedade norte-americana, iniciada nos anos 1980, e seus desdobramentos como formas organizadas de criminalidade (gangs) e disputas territoriais pelos mercados de entorpecentes. Segundo esta formulação, estas ocorrências da economia das drogas aumentaram o número de crimes e, consequentemente, inflaram os números da Justiça Criminal, sobretudo, os números da população encarcerada.

Na terceira tese, sempre de acordo com Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.), a responsabilidade incide sobre as transformações estruturais da economia norte-americana. Esta abordagem considera que o crescimento do desemprego lançou um número significativo de cidadãos em situação adversa, sendo que muitos se engajaram em atividades informais e ilícitas para contornar a escassez de recursos. Tal consideração estaria fundamentada no aumento verificado no início da década de 1980 dos crimes patrimoniais.

Embora estas três teses apresentem diferenças entre si, segundo Gilmore, no fundo, guardam semelhanças estruturais, tais como a naturalização da relação entre crime e punição e um posicionamento conservador perante o funcionamento da Justiça Criminal. Desta maneira, elas podem ser agrupadas como uma visão tradicional de se compreender o funcionamento da instituição da prisão na sociedade, muitas vezes restrita às formulações jurídicas e sem considerar elementos sociais exteriores que influenciam as dinâmicas punitivas. Ainda que estes aspectos tradicionais participem de uma compreensão sobre o que ocorreu no período da expansão prisional na Califórnia, eles são bastante rasos para oferecer uma visão mais ampla do revigoramento penal em questão. Neste momento, entra em cena o que Gilmore chama de contraexplicações (counterexplanations), que são externadas no debate americano sobre a expansão prisional.

A primeira contraexplicação postula o elemento racial do sistema prisional. Segundo esta abordagem, devemos compreender a disseminação das prisões como uma espécie de limpeza racial (racial cleaning), de modo que o crescimento de prisões captura os jovens negros por meio dos dispositivos penais atualizando formas históricas de desigualdade e segregação social. Esta abordagem demonstra como as leis são instrumentalizadas de modo a criminalizar e intensificar a vigilância sobre os jovens negros (historicamente desfavorecidos pelo arranjo de classe racista) e o resultado desta conduta política é superdimensionar o sistema prisional. Porém, Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) questiona a tese do racismo na compreensão da expansão prisional na medida em que ela não oferece meios de explicar a incidência recente do revigoramento penal, mesmo numa continuidade do racismo entranhado na sociedade norte-americana.

A segunda contraexplicação analisa a interferência dos lobbies das empresas privadas no processo de expansão prisional. Embora o número de celas privadas tenha aumentado significativamente, Gilmore aponta que esta tese não se sustenta, pois as unidades penais privadas não representam nem 5% da estrutura prisional dos Estados Unidos (as quais continuam, em sua maioria, públicas), portanto, não contam com poder político suficiente para interferir nas políticas da Justiça Criminal. Além disto, as análises que apostam nesta influência dos lobbies privados, muitas vezes desconsideram os movimentos de oposição aos interesses privados no setor punitivo, buscando defender os empregos estáveis dos servidores públicos. Outro ponto em oposição ao papel exercido pela indústria privada no crescimento prisional é demonstrar que o setor não é tão promissor ou isento de riscos como é representado de forma superficial em algumas abordagens. Não faltam situações em que a valorização/desvalorização das ações de empresas de segurança privada também oscilam. Esta abordagem não conseguiu explicar os motivos pelos quais, num contexto de economia capitalista de mais de um século e meio, somente na época atual se verificou o crescimento substantivo das unidades prisionais.

A terceira contraexplicação se aproxima da crise econômica dos municípios do interior que promoveram a construção e recepção de unidades prisionais em seus terrenos como forma de contornar a estagnação econômica. Esta abordagem fornecia elementos interessantes para se pensar as ações de grupos e das políticas locais que poderiam interferir e favorecer o aumento das unidades, mas era incapaz de responder quais eram os arranjos preexistentes que sustentavam a expansão prisional.

Já a quarta contraexplicação se aproxima das sensibilidades políticas que se vincularam ou promoveram reformas nos institutos punitivos, transformando as leis penais e as estruturas de sentenciamento. Ao abranger um longo período de aproximadamente dois séculos, esta abordagem correlaciona mudanças nas leis, nas identidades políticas e nos ambientes prisionais, pensando as metodologias punitivas como artefatos sociais e culturais. Esta perspectiva é importante por mostrar como as sensibilidades culturais dão suporte aos dispositivos punitivos. Porém, segundo Gilmore, essa abordagem coloca questões muito amplas, como, por exemplo: quais são os fatores que motivam a mudança do Estado e da estrutura da Justiça Criminal? Como evoluíram historicamente os dispositivos punitivos? Embora contribuam para contextualizar os problemas prisionais, acabam não oferecendo instrumentos para uma análise mais detalhada de fenômenos específicos.

A economia política da Califórnia e a “noção de crise”

Colocadas essas abordagens em foco, Gilmore passa a desenvolver o plano de sua análise e sua interpretação para a expansão prisional na Califórnia.

Desde já, é importante considerar, sobretudo a respeito das contraexplicações, que Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) não exclui completamente, fazendo com que referências e linhas de análise tributárias destas counterexplanations permaneçam em sua reflexão. Porém, é importante frisar que Golden Gulag desenvolve o que podemos chamar de uma economia política da pena alternativa2 2 . O adjetivo “alternativo” se justifica aqui por contraste com a obra Punição e estrutura social, de Georg Rusche e Otto Kirchheimer. Publicada em 1939, retomada em Vigiar e punir de Michel Foucault e utilizada como referência por David Garland (1990) como modelo de economia política da pena, Punição e estrutura social é considerada uma das principais obras que aplica o legado da teoria marxista para a apreensão da evolução dos institutos punitivos numa sociedade capitalista. A pesquisa dos autores, vinculados ao Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, relaciona as mudanças no mercado de trabalho com os as instituições penais e seus respectivos modelos disciplinares. Embora a investigação de Gilmore (2007) apresente pontos em comum, como a proximidade dos dispositivos punitivos com as estruturas econômicas, em contrapartida, o percurso da análise é significativamente diferente, pois, ao contrário de correlacionar mercado de trabalho e métodos punitivos, a economia política de Golden Gulag apoia-se na noção dos excedentes e do “reparo prisional” (the prison fix). , que se coloca para compreender a rápida expansão do sistema prisional californiano. Desta forma, sua análise apoia-se nos contornos e deslocamentos econômicos surgidos no início dos anos 1970 e nas consequentes reestruturações políticas que se sucederam. Assim, somos ambientados diretamente no contexto keynesiano da economia californiana e, posteriormente, confrontados com as transformações políticas que desestruturaram esse arranjo.

O primeiro passo da autora é retomar o contexto norte-americano da contrarrevolução de 1968. Neste período, já era possível identificar, no plano político e econômico, um arranjo keynesiano-militar, o qual havia desarticulado as forças políticas em favor de uma sociedade hierarquizada e com as desigualdades sociais contidas por meio de políticas reparatórias. Neste contexto, as prisões externavam claramente a ideologia reabilitativa, que não era questionada, nem estava ameaçada do ponto de vista estrutural.

A discussão segue com uma retomada histórica da constituição política e econômica do estado da Califórnia, delineando suas características constitutivas. Atualmente, figurando como o estado mais rico da federação, Gilmore aponta como em seu desenvolvimento a Califórnia conciliou alta concentração de terra, diversidade populacional e étnica, crescimento da produção agrícola e base das indústrias militares que posteriormente alavancaram o setor tecnológico e educacional do Estado.

As instituições do Welfare State funcionavam intrinsecamente ligadas ao arranjo classista e às hierarquias sociais existentes na sociedade californiana, e assim cumpriam seu papel de políticas sociais compensatórias, ao mesmo tempo em que permitiam a manutenção dos interesses e a reprodução do capital em proporções cada vez maiores.

Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) mostra que os conflitos não haviam desaparecido, mas o arranjo era funcional até o final dos anos 1960, quando transformações macro na política econômica e cortes de investimento nos setores militares deflagraram um processo de crise na composição socioeconômica do estado. Com o declínio da indústria militar, milhares de empregos foram descartados e o aumento da desigualdade social e racial foi vivenciado de modo mais dramático no final dos anos 1960, período que coincide com os levantes de lutas dos direitos civis.

A partir deste ponto, a autora faz uma pausa na narrativa histórica para retomar brevemente o conceito de crise no entendimento de uma economia capitalista. Ao recolocar autores como David Harvey, Mike Davis, Antônio Negri e Stuart Hall, essa noção de crise será central para se compreender o modo pelo qual se desenvolveu a expansão prisional na Califórnia. Na referência destes autores citados, a crise basicamente se constitui como momento de impasse em que o sistema político e produtivo não encontra condições de se reproduzir. Numa economia capitalista, o processo produtivo tende a concentrar os meios de produção, de modo a aumentar a produtividade, e também a reduzir os salários, na busca da otimização dos lucros. Porém, este processo dificulta a circulação das mercadorias, uma vez que os salários baixos não sustentam o padrão de consumo capaz de pôr em funcionamento o sistema produtivo. Em geral, o campo da política dispõe de várias medidas que equilibram ou regulamentam essas relações de modo a canalizar investimentos ou permitir uma redistribuição mínima que possibilite a acumulação de riqueza, sem que este modelo redunde numa dificuldade de fazer as mercadorias circularem. Quando a economia capitalista, por algum motivo, não consegue contornar essas pressões e, segundo Gilmore, encontramo-nos diante de uma crise de excedentes. Ou seja, a crise não tem sentido negativo nem positivo, ela se refere a uma situação em que o capital não encontrou condições para se reproduzir, ou porque o seu processo de concentração levou ao esgotamento do poder aquisitivo da força de trabalho, ou porque os investimentos atingiram o seu topo de lucratividade e então se deslocaram para outros setores, deixando uma série de estruturas produtivas ociosas.

A partir do conceito de crise e da noção de excedente na economia capitalista podemos compreender a interpretação de Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) a respeito do sentido da expansão prisional na Califórnia. Para a autora de Golden Gulag, a construção de prisões foi a solução política e econômica para contornar a crise de excedentes que assolou a Califórnia a partir do final dos anos 1960. Especificamente, versa sobre quatro excedentes:

  1. excedente de capital financeiro;

  2. excedente de terras cultiváveis;

  3. excedente populacional e de mão de obra; e, por fim,

  4. excedente de capacidade estatal.

A expansão prisional e os quatro tipos de excedentes

Para explicar o significado de cada um destes excedentes e articulá-los com as questões prisionais, Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) dedica o primeiro capítulo do livro à contextualização da história econômica do estado da Califórnia, no tópico intitulado “A economia política da Califórnia”. O alcance da explicação da história econômica se expande, mostrando que desde a fundação do estado, sua economia se caracterizava pela alta concentração de terras, ocupação populacional diversificada, mineração, extração de madeira e alta capacidade agrícola. No período pós-depressão (1929), com o estabelecimento da indústria militar na região, ocorre grandes incentivos para investimentos econômicos, e a prosperidade das estruturas estatais de seguridade social (welfare) e importantes investimentos no setor educacional. Com o florescimento do complexo industrial-militar, a Califórnia conseguiu se inserir nos principais canais da política federal, de modo a captar recursos para o estado. As vantagens competitivas garantiam certa estabilidade político-social em coexistência com as hierarquias sociais de classe e as diferenças raciais. Conforme Gilmore (2007), a crise político-econômica no estado dourado começa ao final da Segunda Guerra, quando a centralidade e a prosperidade do complexo industrial militar perdem sua força.

Com a perda destes incentivos políticos, a indústria militar e sua tecnologia são reconvertidas para a produção de bens de consumo geral e a produção agrícola passa por um processo de automação que concentra terras e elimina os pequenos produtores, criando as bases do agrobusiness.

Todavia, estas ações não são suficientes para minimizar as crises sociais e as tensões sociais decorrentes do desemprego crescente, gerando o acirramento das desigualdades sociais e raciais. Juntamente com a desindustrialização e o achatamento dos salários, há um enfraquecimento na política (como na representatividade dos trabalhadores) e um enxugamento das redes de assistência social, características do Welfare State. São estas mudanças que iniciam o processo de produção do excedente, ou de estruturas produtivas ociosas, seja de capital financeiro, de terras cultiváveis, de mão de obra e da capacidade estatal.

O crescimento da produtividade da terra teve o efeito de aumentar a taxa de juros. Com a crescente lucratividade da produção associada à terra, as formas de rendimentos relacionados à propriedade - como os aluguéis, os dividendos e os juros dos empréstimos - cresceram também em grande proporção, até se tornarem mais atrativos, desviando esses capitais do processo produtivo local. Ao contrário de assumir riscos no mercado produtivo, estes capitais optavam por lucros garantidos no mercado financeiro, ou buscavam outras áreas com maior potencial de lucratividade, uma vez que a região californiana já havia alcançado o seu pico de lucros no setor produtivo. No caso específico da Califórnia, de acordo com Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.), este processo se evidenciou na questão dos títulos municipais da dívida pública.

Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) aponta que o estado desempenhava um importante papel como agente financeiro, contraindo empréstimos, e desenvolvendo políticas sociais por meio da construção de escolas, infraestrutura, serviços públicos e melhorias no sistema produtivo. Estes empréstimos eram regulados por leis federais, mas os contratos deveriam ser realizados entre grupos financeiros e representantes políticos estaduais ou municipais. Com o advento da crise econômica dos anos 1960-1970, estes empréstimos diminuíram substantivamente, por meio de ações políticas e pressões sociais. Este capital financeiro ficou ocioso, pois as dificuldades políticas para colocá-lo em circulação aumentaram e as restrições ao endividamento público deveriam passar por aprovação e referendados pelo povo.

A respeito do excedente de terras na Califórnia, Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) adianta que, a partir de meados dos anos 1970, o estado passava por mudanças marcantes no padrão de uso de suas terras cultiváveis. Uma parte grande das terras irrigáveis foram retiradas do processo produtivo e convertidas em área urbanas, enquanto outras ficaram ociosas. As terras incorporadas ao agronegócio continuavam com altas taxas de produtividade, mas aquelas que não entravam neste setor mantinham-se com elevadas taxas de manutenção e impostos atrelados. A globalização também acirrava a competição internacional no sistema produtivo agrícola, não favorecendo a utilização destas terras para o cultivo. Parte destes terrenos não se localizava na área de expansão e interesse urbano, de modo que se tornavam terras excedentes.

Processo semelhante ocorreu com a força de trabalho na Califórnia. Em primeiro lugar, a reestruturação produtiva destruiu as formas de organização do trabalho, deixando os trabalhadores mais vulneráveis. A crise econômica e a baixa taxa de investimento achataram os salários e eliminaram postos de trabalho. A situação se agravava por conta do crescimento populacional, que avançava numa proporção maior que a taxa de absorção do mercado de trabalho. Neste cenário, crescia a percepção de que o setor público enxugado e a iniciativa privada retirando investimentos, em conjunto, não seriam suficientes para dar suporte à população. Criou-se, desta maneira, o que Gilmore chama de excedente de força de trabalho.

O cenário político também estimulava uma forte pressão sobre a estrutura remanescente do Estado keynesiano do período dourado. Ilustravam esta tendência as fortes críticas aos programas sociais tributários do período anterior, que eram disparados tanto por parte dos interesses econômicos relacionados aos processos de globalização, quanto às forças políticas conservadoras, que buscavam erradicar as heranças assistencialistas.

Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) lembra que este conflito se deu na esfera da luta política acerca da incidência dos impostos, e retoma Marx para mostrar que a luta pela definição dos impostos é uma das formas mais antigas e tradicionais de luta de classes. Com a crise econômica que abalou arranjos sociais, classistas e raciais, estes conflitos se deslocaram para uma redução da capacidade da intervenção estatal.

A busca por redução de impostos também restringia as bases da política keynesiana de reinvestimento nas instituições de serviço social. Deste modo, a estrutura estatal via-se limitada em razão de uma capacidade cada vez mais reduzida de intervir no mercado e nas políticas sociais. Este ponto é importante para mostrar como os eleitores não estavam dispostos a apoiarem construções da máquina estatal que onerassem ainda mais a dívida pública. Como resultado destas reestruturações políticas e econômicas, as estruturas do estado keynesiano permaneceram na forma de leis, burocracias e regulamentações fiscais, mas não dispunham mais de recursos para se reproduzir e manter sua zona de influência. Segundo Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.), esta situação gerava um excedente da capacidade estatal, que se empenhava para reconquistar seu poder nas dinâmicas político-econômicas.

O reparo prisional (the prison fix)

Uma vez detalhadas as quatro formas de excedentes que estão configuradas desde o início da expansão prisional da Califórnia, torna-se possível anunciar a tese de Gilmore. Para a autora:

Como e por que, então, a Califórnia se lançou no maior projeto de construção de prisões do mundo? Sob o meu ponto de vista, prisões são soluções parcialmente geográficas para crises da economia política, organizada pelo Estado, o qual se encontra em crise também. Crise significa que a instabilidade só pode ser consertada por meio de medidas radicais, as quais incluem desenvolver novas relações e atualizar ou renovar instituições para além daquelas existentes (Gilmore, 2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.: 26).

Essa solução é chamada de “o reparo prisional” - ou, no original, “the prison fix”. Assim, o Estado reorganiza-se por meio da construção de prisões, configuradas a partir dos excedentes que emergiram da economia política da era dourada, os quais, de outra maneira, não seriam absorvidos.

Dessa forma, temos que a solução da prisão foi a alternativa encontrada, justamente porque dava conta de contornar satisfatoriamente as restrições gestadas pelos excedentes acima apresentados.

Em primeiro lugar, a construção das prisões na Califórnia criava uma oportunidade para que agentes públicos locais contratassem empréstimos públicos, via emissão de títulos públicos - General Obligation Bonds (GOB) ou Lease Revenue Bonds (LRB) -, num momento político em que havia largas restrições aos governantes de realizarem investimentos na máquina pública. Por conta do cenário favorável no qual as formulações de “guerra contra o crime” ganhavam espaço e a tendência do endurecimento das leis penais se intensificava com a política da “law and order”, enquanto diferentes instituições sociais eram barradas (universidades e serviços sociais, por exemplo), as prisões encontravam cenários favoráveis à aprovação dos recursos. Isto contribuía para que o capital financeiro ocioso voltasse a irrigar as estruturas públicas. Diante de um sistema prisional superlotado e visto como falido pela opinião pública, diversos grupos se organizaram em torno de projetos de reforma, construção e expansão do sistema prisional, que ganharam força política e ares de legitimidade no debate público.

Como observa Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) de forma crítica, ao contrário de direcionarem o debate sobre as condições precárias do sistema prisional para uma discussão sobre políticas de sentenciamento mais adequadas, intensificação da parole­3 3 . No direito penal norte-americano, parole é a figura jurídica destinada a colocar em liberdade o preso, sob o cumprimento de determinadas condições, antes do cumprimento integral da sentença. No direito penal brasileiro, é equivalente ao livramento condicional. , implementação de penas alternativas, dentre outros modelos, em contrário senso, os projetos de construção de prisão foram vendidos de forma fácil, como o melhor antídoto para crimes e demais problemas de ordem pública.

De modo semelhante, no que diz respeito ao excedente de terras, diversos proprietários viram a oportunidade de venderem suas glebas ociosas e valorizarem suas áreas contíguas, fornecendo terrenos para a construção das novas unidades prisionais. A venda destes terrenos e os poderes políticos envolvidos nestas negociações tiveram papel central na escolha das localidades que recepcionariam as novas prisões.

Além disto, as prisões poderiam se constituir como formas de absorção do excedente da força de trabalho, na medida em que o seu funcionamento e a sua administração criavam postos de trabalho e demandavam serviços múltiplos (como alimentação, transporte, segurança etc.) que, supostamente, trariam investimentos e oportunidades econômicas para a região.

Neste contexto, a capacidade estatal ociosa encontrava formas de reinventar sua inserção política e econômica na medida em que a construção das prisões colocava em funcionamento um conjunto amplo de serviços e investimentos necessários para a permanência das instituições. A estratégia possibilitava o aumento de arrecadação com mais funcionários contribuintes e maior atividade comercial na região, e também a busca por repasses federais/estaduais, em face das mudanças demográficas e econômicas ocorridas nas regiões das novas unidades. Desta forma, estas estruturas estatais reelaboravam sua legitimidade enquanto davam respostas aos clamores morais e punitivos, ao mesmo tempo em que eram atores políticos inevitáveis no arranjo da expansão prisional.

Com esta tese anunciada, Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) volta-se então para uma análise mais acurada da história política desta expansão prisional ocorrida na Califórnia no período compreendido entre 1982 a 2000. É interessante notar que a autora faz isso identificando agentes políticos e mostrando como esse desdobramento histórico do revigoramento penal não era uma decorrência necessária nesta conjuntura.

Num primeiro momento, para que a expansão ocorresse, era necessário um capital considerável, que não estava assim disponível do ponto de vista político institucional na Califórnia.

Assim, Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) analisa como o California Department of Corrections (CDC)4 4 . Atualmente nomeado California Department of Corrections and Rehabilitation (CDCR) (Departamento Correcional e de Reabilitação da Califórnia), trata-se da agência estatal encarregada de administrar as prisões estaduais da Califórnia, assim como o sistema de parole (livramento condicional) e outros programas correcionais no estado. É a segunda maior agência governamental dos Estados Unidos, ficando atrás apenas do New York City Police Department (Departamento de Polícia da Cidade de Nova York), empregando aproximadamente 66 mil funcionários, com orçamento de US$ 10 bilhões anuais. Atua em múltiplos segmentos, como o sistema correcional juvenil, no acompanhamento da parole, na administração e construção das unidades, abarcando todos os níveis de segurança (desde sistema aberto até prisões de segurança máxima) no âmbito administrativo das prisões. foi hábil politicamente para capitanear o processo de expansão prisional. Em sua pesquisa, a autora mostra que mesmo num contexto favorável ao endurecimento penal, como a política de lei e ordem (law and order), havia tendências políticas em diferentes direções, que também pressionavam no sentido de uma redução de gastos nas esferas públicas e no endividamento dos estados5 5 . Neste sentido, Gilmore (2007) cita a Proposition 13, de 1978, que impôs restrições no sistema de endividamento do estado da Califórnia. A Proposição 13 foi uma emenda na Constituição do estado da Califórnia que impôs limites à tributação predial (imposto territorial) e restrições à emissão de títulos da dívida pública, tais como os GOBs, que só podem ser aprovados mediante referendos populares. . As novas prisões na Califórnia foram construídas com dinheiro público num contexto de contenção de gastos e redução da máquina estatal. Pergunta-se: de onde veio o dinheiro para a construção das unidades, cada uma ao custo variando entre 280 e 350 milhões de dólares? Para responder a este questionamento, Gilmore (2007) lança o foco para a trama complexa que conecta agentes públicos, instituições públicas, sistema de financiamento público e agentes do mercado financeiro. É interessante frisar que o livro cita os atores sociais envolvidos no processo e quais foram os protagonistas deste processo que possibilitaram o boom prisional.

De acordo com Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.), o início da expansão se dá de forma tímida, como medida pontual e reação à pressão política imposta pelas condições degradadas do sistema prisional estadual. Ao final do mandato do governador Jerry Brown (1982), visando desocupar prisões antigas e superlotadas como as de San Quentin e Folsom, foi elaborado um plano de reforma prisional que visava construir duas unidades, com 500 celas cada e que reforçariam os princípios da reabilitação, combinados com métodos de supervisão penal mais abertos. O antigo governador iniciou o projeto com a aprovação de US$ 25 milhões, mas com a eleição do republicano Deukmejian, rapidamente os projetos foram ampliados e o orçamento para a reforma prisional foi então aumentado para US$ 495 milhões (Gilmore, 2007: 93). Mudanças importantes foram realizadas neste período, como a reestruturação do estatuto do CDC, que retirava o departamento da supervisão de contas do Office of General Services (OGS), e a criação da Joint Legislative Committee on Prison Construction and Operations (JLCPCO). Essa reestruturação política, conforme Gilmore (2007) pondera, dava muito mais abertura financeira e orçamentária para o CDC no processo de construção das unidades, nas decisões sobre o tamanho e a localização das prisões, bem como nos processos de licitação, contratos e prestação de contas.

O aporte de US$ 495 milhões que inaugurou a expansão prisional foi obtido por meio de General Obligation Bonds6 6 General Obligation Bond (GOB) são títulos da dívida pública municipais, garantidos pelo governo estadual, que visam alavancar recursos para construções de benfeitorias e serviços públicos. (GOB). Porém, em decorrência da necessidade de aprovação popular via referendo, logo esse mecanismo financeiro fora deslocado. Basicamente, a estratégia consistia em fugir do escrutínio público e usar outra figura de financiamento, os Lease Revenue Bonds (LRB), que aplicavam taxas de juros mais elevadas, mas não dependiam da aprovação popular. Especialistas em finanças públicas, como Fred Prager (ex-manager na Rosthchild & CO) e Tom Dumphy (ex-funcionário de planejamento do prefeito de Los Angeles, Tom Bradley) foram chamados para criar as condições necessárias de um mercado financeiro público capaz de movimentar os recursos para a construção prisional. Ao lado disto, o CDC publicava recorrentemente relatórios enfatizando o diagnóstico de crise das condições prisionais, reforçando a necessidade de novas unidades. A classificação de presos perigosos também aumentou drasticamente, por ação do CDC, elementos que legitimavam as construções e o aparelhamento tecnológico das unidades.

Em menos de uma década, o resultado destas transformações foi um crescimento vertiginoso nas contas públicas. Neste período, a dívida das construções prisionais saiu de US$ 763 milhões, para US$ 4,9 bilhões, o que representa um aumento no débito total do estado, referente às prisões, que era de 3,8% do total da dívida, para 16,6 %, isso em menos de dez anos (Gilmore, 2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.: 101).

Por meio desta abordagem, Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) abre o caminho para se investigar as articulações políticas que definiram os locais que recepcionaram as novas unidades, tanto do ponto de vista dos interesses que interferiram no processo, quanto dos menos conhecidos atores sociais que opuseram resistência a esta expansão. Enquanto, de um lado, era possível encontrar proprietários de terra interessados em vender seus lotes e representantes políticos articulados em atrair prisões para os pequenos municípios, também tiveram importância na definição deste processo conselhos municipais e movimentos de resistência política antiprisão como o Mothers Reclaiming our Children7 7 . MoROC é um movimento social popular, surgido em 1992, pela ação de mães que questionavam a incidência da Justiça Criminal sobre seus filhos. Com a expansão prisional, os jovens tornaram-se o público alvo preferencial das medidas de encarceramento. As mães denunciaram que as prisões incorporavam discriminações raciais, classistas e de gênero, de modo que o encarceramento atualizava e aprofundava estes mecanismos de segregação social. A luta pelo resgate de seus filhos se tornava-se uma luta social pela dissolução do encarceramento, em outras palavras, pela abolição da prisão. A experiência política do movimento antiprisão do MoROC é um elemento importante para compreender as dinâmicas da expansão prisional na obra de Gilmore (2007), por seu papel decisivo em conscientizar os munícipes a respeito dos efeitos da expansão prisional. (MoROC). Ao longo de sua discussão, a autora aponta como a articulação política nos pequenos municípios era fundamental para desconstruir as ilusórias “benesses” dos projetos de expansão prisional, conscientizando os moradores locais para os efeitos nocivos das prisões em médio e longo prazo. Acima de tudo, Gilmore mostrava como o ativismo antiprisão requalificava o debate sobre os sentidos mais amplos da instalação das prisões, agora não mais em termos técnicos e tradicionais de uma equação “danos sociais versus benefícios financeiros” ( fears × finance), mas em uma visão ampliada que questionava a prisão em perspectiva classista, racial, política e econômica, tendo o abolicionismo penal como horizonte.

A expansão prisional no estado de São Paulo: uma breve aproximação e algumas questões

O paralelo entre o sistema prisional paulista e o californiano é proposto neste artigo de forma preliminar, considerando que há uma série de aspectos importantes que diferenciam as duas realidades, nos diversos aspectos (econômicos, culturais e políticos), os quais não podem ser ignorados num exercício de aproximação entre esses dois contextos. Sem entrar nestas peculiaridades e respeitando as diferenças, julgamos possível encontrar pontos de aproximação, como a questão da expansão prisional, da interiorização do sistema e das articulações políticas nos projetos de construção das novas unidades. Em parte, essa atitude se justifica em vista das contribuições que a abordagem de Gilmore pode oferecer às pesquisas sobre a expansão prisional no estado de São Paulo. Além disto, iremos contrastar, de forma introdutória, as tendências de pesquisa sobre prisões em São Paulo, com o percurso oferecido por Gilmore na investigação das prisões na Califórnia. Este contraste mostrará que boa parte dos pesquisadores nacionais problematizaram as políticas penitenciárias em vista da tradição autoritária e dedicaram atenção especial, mais recentemente, aos elementos das transformações do cotidiano prisional, como a influência recente dos coletivos prisionais e nas mudanças da economia criminal. Mas, segundo nossa perspectiva, está tendência de problematização das políticas penitenciárias locais muitas vezes não incluiu uma dimensão econômica e estrutural no debate mais amplo sobre as prisões.

Esta afirmação ganha relevância quando consideramos que o sistema prisional paulista passou por uma expansão prisional num ritmo acelerado muito parecido com o da Califórnia, e como o direcionamento de recursos também acompanhou este crescimento.

No contexto nacional, as análises neste campo ainda são introdutórias, pois citam a expansão prisional como consequência do revigoramento penal, mais do que um processo próprio, que poderia ser caracterizado como um projeto de expansão prisional com racionalidade própria. Ao pensar a expansão prisional como fenômeno específico, podemos considerar que sua formulação se inicia com os projetos de construção de unidades propostos pelo governo estadual, após os desgastes políticos oriundos do Massacre do Carandiru (1992), e se intensifica a partir de meados dos anos 1990, com a política do governador Mário Covas de acelerar a construção de 39 mil vagas no sistema. Estas atitudes governamentais proativas se intensificaram, na medida em que o sistema crescia e se diversificava. Em termos absolutos, a população encarcerada no estado mais do que triplicou, saindo de aproximadamente 55 mil internos, em 1993, para mais de 200 mil, no final de 2014, conforme apontam dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça.

No plano das políticas penitenciárias, as duas últimas décadas foram marcadas por intensas transformações e turbulências no funcionamento do sistema prisional paulista. Ao lado de déficits históricos nas condições do encarceramento do estado, os presídios paulistas foram palco de fenômenos dramáticos da segurança pública, tais como rebeliões, fugas e mortes no interior das unidades. Destas ocorrências, ressalta-se o advento de coletivos organizados no interior da população prisional, que passaram a gerir quinhão cada vez maior do cotidiano prisional, de modo a produzir mudanças substantivas nas dinâmicas institucionais e a influenciar de modo marcante as políticas penitenciárias do período.

Como aponta a literatura recente, o período da expansão prisional foi marcado por um agravamento das tensões e uma deterioração das condições da execução penal nas unidades de modo geral. Estas mudanças estimularam reações punitivas por parte dos agentes públicos, de modo a alimentar políticas repressivas e militarizadas na gestão das unidades penitenciárias.

Este contexto turbulento e instável na condução do sistema prisional se evidencia a partir de um conjunto de eventos interligados, como as rebeliões de 2001 (megarrebelião) e de 2006 (a onda de ataques do Dia das Mães), as transformações nos ambientes prisionais por conta da emergência dos coletivos organizados e o desenvolvimento de regimes mais duros, como o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) (Dias, 2012).

Pesquisas importantes desenvolvidas sobre as prisões paulistas oferecem um panorama dos problemas do sistema punitivo paulista.

Fernando Salla (2006_____. As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira. Sociologias, n. 8, Porto Alegre, 2006.) aponta como o padrão das recentes rebeliões indicava mudanças no modo como eram negociados e administrados o cotidiano das unidades prisionais. Para o pesquisador, a história das rebeliões poderia ser dividida em três grandes períodos: o primeiro, que toma toda a história das prisões brasileiras até o começo dos anos 1980; o segundo período se desdobra do início dos anos 1980 e culmina no massacre do Carandiru; e o terceiro se refere às rebeliões posteriores ao massacre de 1992 até os dias atuais.

No primeiro período, os sentidos das rebeliões eclodiam a partir da revolta contra as condições precárias do encarceramento, sem uma demanda mais organizada politicamente. No segundo momento, havia um contexto político de tentativa de humanização dos presídios, e a maior característica deste período, segundo Fernando Salla (2006_____. As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira. Sociologias, n. 8, Porto Alegre, 2006.), fora a repressão violenta aos diversos motins e rebeliões e que culminam no evento dramático do massacre de 1992. Sempre acompanhando a divisão de Salla (2006), no terceiro período, as rebeliões já apontam para mudanças significativas no modo de organização da população encarcerada, em sua forma de atuação e articulação perante presos e administração prisional. Nesta fase, Salla (2006) chama a atenção para elementos novos que emergem do contexto. Ainda que persistam revoltas motivadas pelas condições precárias do encarceramento e abusos institucionais, neste período as rebeliões tornam-se disputas para o controle da massa carcerária e das atividades ilegais nos ambientes prisionais. A violência se concentra nas ações entre os próprios presos (acerto de contas) e ocorre com a conivência do Estado, evidenciando o abandono das expectativas em relação ao controle disciplinar das unidades e inaugurando um perfil marcante na gestão das unidades prisionais.

Nesta perspectiva, Camila Dias (2011DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.) também contribuiu significativamente para a compreensão dos problemas ao investigar o processo e a forma em que se deu a consolidação dos grupos organizados no interior do sistema prisional paulista, neste caso específico, a gênese do Primeiro Comando da Capital (PCC). Mostra em sua investigação, mudanças significativas introduzidas a partir da emergência da facção no interior do sistema prisional paulista e como a facção se expandiu nas unidades no interior do estado, juntamente com o processo de interiorização e expansão prisional, monopolizando o uso da violência como forma de gestão das relações sociais no cotidiano carcerário, com ocupação das lacunas deixadas pela administração prisional. A discussão proposta por Camila Dias (2011) aponta para a necessidade de compreensão dos arranjos internos entre os coletivos organizados na população encarcerada e o corpo de funcionários da administração prisional, mostrando os equilíbrios frágeis entre os dois atores sociais responsáveis pela manutenção da ordem interna. Segundo Dias (2011) era possível até mesmo entender os acontecimentos dramáticos deste período, fazendo referência às oscilações dos acordos entre os dois grupos. A partir de sua abordagem, fica claro que as pesquisas que desejam realizar um balanço das políticas penitenciárias do período devem incluir uma investigação não só dos dispositivos normativos e das políticas públicas propostas ao sistema, mas, sobretudo, colocar em evidência as negociações, os dispositivos disciplinares e os acordos que funcionam à margem da lei e das formulações da política criminal.

Ao lado de Camila Dias (2011DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.), Alessandra Teixeira (2012 TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), São Paulo, 2012.) também ampliou o debate por meio da inclusão de referenciais teórico-metodológicos, tais como a gestão das ilegalidades operada pelos agentes da Justiça Criminal e a noção de um contínuo carcerário (polícia → Judiciário → prisão). A partir destas duas noções (fortemente inspiradas pela abordagem foucaultiana), foi possível compreender os dispositivos carcerários em conexão mais ampla com um processo de gestão da lei e distribuição diferenciada da aplicação da norma. Esta abordagem favorece a análise do dispositivo carcerário como forma de controle de grupos vulneráveis da sociedade, que opera uma articulação da economia criminal, assim como possibilita conectar as práticas prisionais à ação das agências policiais e judiciais.

De modo geral, esses trabalhos contribuíram para a constituição de um campo de pesquisas sobre o sistema prisional no estado de São Paulo no período recente, oferecendo não só referenciais teórico-metodológicos, mas também problemáticas e pontos privilegiados de abordagem sobre as questões mais contundentes dos debates sobre os desdobramentos da política criminal.

A permanência deste quadro cruel e degradado do encarceramento no estado de São Paulo, ao mesmo tempo em que aponta para a permanência de um cenário de crise endêmica e o aprofundamento destas condições deterioradas, muitas vezes também esconde ou ofusca um movimento de revigoramento e de investimento maciço nos dispositivos prisionais. Segundo nosso ponto de vista, esta ambiguidade já foi bastante tratada na literatura estrangeira recente8 8 . Neste caso, fazemos alusão a David Garland (2001) e Loïc Wacquant (2005), que se referem a este contexto como o “paradoxo da prisão”. Garland (2001) foi um dos pesquisadores que investiu nesta abordagem, levando em consideração as análises que retratavam as instituições prisionais como ambientes disciplinares fundamentados nas ideologias da reabilitação. Segundo o autor britânico, com a crise dos dispositivos disciplinares e o esvaziamento das ideologias reabilitadoras, muitos analistas apostaram na diminuição da prisão na época contemporânea. Paradoxalmente, a história mostrou que essa crise favoreceu um revigoramento da instituição. Para nossa discussão importa considerar que a coexistência destas condições degradadas dos dispositivos carcerários, juntamente com a intensificação dos investimentos e diversificação dos regimes, aponta para estes novos sentidos da prisão que se pretende compreender. , e mostrou como, ao contrário de uma contradição nas políticas penitenciárias, o que tem se evidenciado é muito mais uma rearticulação do poder punitivo simbolizado pelo recente papel desempenhado pela prisão na época contemporânea. Embora não exista consenso sobre qual seja a natureza deste novo sentido da prisão, os autores concordam que a prisão continua uma peça central na engenharia das políticas contemporâneas, a despeito da crise dos mecanismos disciplinares no interior das unidades. Mais do que contradição entre o esvaziamento dos dispositivos disciplinares e a intensificação de investimentos com a expansão prisional, talvez seja interessante investigar o caráter desta política penitenciária recente que concilia estas características no sentido de consolidar um modelo próprio de gestão.

Visualizamos com isso um paralelo possível entre a ação do Departamento Correcional da Califórnia (CDC) e a trajetória desenvolvida pela Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP), como agência política que não só desempenha institucionalmente um papel semelhante, mas apresenta uma trajetória parecida no decorrer da expansão prisional.

No conjunto amplo de ocorrências e de agentes que marcaram o panorama punitivo, a SAP vem assumindo um crescente protagonismo político no papel de gestão dos dispositivos carcerários. Desde sua fundação, em 1993, passando por sua atuação mais marcante a partir de 1999 (com a nomeação do secretário Nagashi Furukawa) e a redução/extinção dos gabinetes anteriormente responsáveis pela administração das unidades prisionais - Departamento dos Institutos Penais do Estado (Dipe) e Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado (Coespe) - a SAP tem concentrado poder e aumentado sua área de controle por meio de ações administrativas que se inscrevem no processo de expansão prisional. Podemos considerar que, desde sua fundação, já transitavam diferentes projetos de descentralização das unidades, pulverização da execução penal por meio da interiorização e, em conjunto com este projeto, temos uma centralização burocrática na própria secretaria, que passaria a ampliar o seu gabinete e diversificar suas coordenadorias.

Ao se contrastar o início de suas atividades em relação ao panorama recente, é possível notar uma diversificação de regimes disciplinares (centros de reabilitação, ala de progressão penitenciária, centro de progressão penitenciária, penitenciárias femininas), assim como a inclusão das Centrais de Penas e Medidas Alternativas (CPMAs), e das Centrais de Atenção ao Egresso e Família (Caef’s), incorporadas à secretaria por meio da criação de um novo gerenciamento, a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania. Outro exemplo neste sentido são os Centros de Reabilitação, que ficaram sob a tutela da secretaria e que se inspiraram na experiência de gestão compartilhada com a sociedade civil por meio da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac).

Estes novos campos evidenciam uma centralidade política crescente de sua atuação na gestão de aspectos importantes do encarceramento, tais como a questão da alimentação9 9 . A possibilidade de prestar serviços na área de alimentação para o sistema prisional tem sido apontada como uma forma de exploração política da expansão do encarceramento com vantagens econômicas. A revista Carta Capital, na matéria “Os mercadores das cadeias: os interesses que mantêm o fornecimento de comida aos presos como uma fonte de corrupção e sangria dos cofres públicos”, tem apontado que empresas privadas monopolizaram o ramo da alimentação dos presídios no Brasil, tornando este aspecto da execução penal altamente lucrativo e politicamente corrupto. A alimentação oferecida pelas empresas é constantemente denunciada pela péssima qualidade (muitas vezes são oferecidos alimentos estragados) e o valor pago pelo Estado por este produto é superior ao praticado no setor fora dos muros prisionais. Em contrapartida, estes empresários financiam campanhas eleitorais que sustentam estes interesses. , trabalho prisional, educação e saúde no interior das unidades. Há indícios de que estes campos constitutivos da execução penal estão em constante estado de negociação e transformação, de modo que a ação da SAP sobre elas, como um representante do governo estadual, é extremamente relevante10 10 . Ao lado destes destaques, outro fator que merece atenção nesta investigação são os projetos de parcerias público-privadas (também chamadas de PPPs), que têm se intensificado recentemente nas ações e articulações políticas desenvolvidas pela secretaria. Estes projetos são retratados na retórica institucional como mecanismos de modernização e reforma do sistema prisional, sobretudo por sua capacidade de criar e expandir vagas no sistema. Porém, de forma preliminar, consideramos que estes mecanismos estão inscritos na mesma lógica política dos mecanismos de gestão compartilhada que rearranjam os dispositivos punitivos, mas que no caso específico das PPPs se desdobram numa esfera de atuação mais macropolítica, abrindo campo para processos de privatização do poder punitivo que são recentes e pouco explorados nas investigações atuais sobre o sistema prisional paulista. .

Considerações finais

Grande parte das pesquisas (Adorno & Salla, 2007 SALLA, Fernando. De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São Paulo. Revista Brasileira de Segurança Pública, n. 1, São Paulo, 2007.; Dias, 2011DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.; Teixeira, 2012 TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), São Paulo, 2012.) tem focado a permanência da política repressiva-autoritária ao lado de transformações substantivas no perfil da população encarcerada, juntamente com o fracasso das políticas penitenciárias do período. Neste sentido, numerosos trabalhos têm salientado a permanência de graves problemas na execução penal e o esgotamento das políticas criminais repressivas, as quais, segundo analistas, têm agravado ainda mais o panorama do encarceramento no país.

Entretanto, poucos trabalhos tomaram como centro da investigação uma perspectiva centrada na ação dos agentes institucionais, destacando, por exemplo, o teor de suas decisões, as negociações políticas e econômicas, os interesses envolvidos no campo, as racionalidades políticas orientadoras destes comportamentos, dentre outros fatores; e como estas representações e articulações estruturaram e influenciaram os rumos do encarceramento massivo.

O trabalho de Gilmore desenvolvido em Golden Gulag oferece uma narrativa que exemplifica especificamente estes pontos. Como vimos, ao longo de sua pesquisa, esta narrativa política ganha relevância por conta de uma retomada do cenário político-econômico da Califórnia e por sua posterior reformulação da economia política da pena, sumarizada pela ideia do reparo prisional (prison fix). São escassos os trabalhos sobre prisão no estado de São Paulo que adotaram esta perspectiva, daí a dificuldade de desenvolver uma análise semelhante (pautada pela reformulação de economia política da pena), capaz de contextualizar estes insights para as características locais.

Ao traçar um paralelo com o contexto estadunidense, no Brasil também encontramos políticas de segurança pública que criaram condições favoráveis para o endurecimento penal, entendido como ação mais repressiva da polícia, práticas de sentenciamento mais rigorosas e mudanças na economia criminal, juntamente com o apoio popular para as medidas de encarceramento, e esta é uma parcela importante da compreensão do cenário atual do encarceramento. Mas, seguindo as sugestões de Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.), talvez seja possível ampliar esse entendimento e lançar foco sobre os grupos e agentes institucionais que participaram deste processo de expansão prisional, para o qual determinados atores políticos tiveram participação e influência decisiva. Quais os interesses políticos e econômicos que estavam em jogo nestas decisões que alavancaram a expansão prisional? Quais as articulações políticas e econômicas, e quais interesses foram contemplados neste processo?

Dadas as limitações deste artigo, não será possível avaliar a pertinência de uma aproximação direta da abordagem de Gilmore (2007 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles (CA): University of California Press, 2007.) no contexto paulista, ou mesmo de se avaliar quais seriam as mediações necessárias capazes de colocar este referencial como contribuição efetiva neste debate sobre a expansão prisional no estado paulista. De qualquer maneira, consideramos que estas formulações abrem campo promissor para futuras investigações sobre o fenômeno do encarceramento no Brasil e no estado de São Paulo.

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  • WESTERN, Bruce. Mass imprisonment and the life course: race and class inequality in U.S. incarceration. American Sociological Review, v. 69, 2004.
  • 1
    . Critical resistence (Resistência crítica) é um movimento social de ativismo político antiprisão formado em 1997, que congrega ativistas, acadêmicos, ex-prisioneiros, representantes de gênero e trabalhadores que contestam a ideia de que a prisão e o policiamento são soluções para os problemas sociais, políticos e econômicos. Sua primeira grande conferência ocorreu em Berkeley, Califórnia, em 1998, reunindo aproximadamente 3.500 integrantes. Atualmente, o coletivo se organiza em três cidades: Los Angeles, New Orleans e Oakland, mas sua proposta descentralizada visa reproduzir o ativismo antiprisão por meio das ações coletivas autogeridas. O coletivo situa-se politicamente como adversário declarado do Prison industrial complex (PIC) (complexo industrial carcerário), que é o termo usado para se referir aos interesses políticos e econômicos relacionados à indústria da vigilância, que fornece equipamentos às forças policiais e prisionais, incorporando todo tipo de estratégia política que favoreça este controle social. O movimento reconhece como duas grandes formuladoras das teses adversas ao PIC Angela Davis (acadêmica, ex-membro do Partido Comunista USA, ex-prisioneira política, autora de Are prisons obsolete?) e Ruth Wilson Gilmore. Por obediência aos objetivos e às limitações deste artigo, não iremos discutir as formulações e implicações da noção do PIC. Para maiores detalhamentos, ver <www.criticalresistence.org>.
  • 2
    . O adjetivo “alternativo” se justifica aqui por contraste com a obra Punição e estrutura social, de Georg Rusche e Otto Kirchheimer. Publicada em 1939, retomada em Vigiar e punir de Michel Foucault e utilizada como referência por David Garland (1990) como modelo de economia política da pena, Punição e estrutura social é considerada uma das principais obras que aplica o legado da teoria marxista para a apreensão da evolução dos institutos punitivos numa sociedade capitalista. A pesquisa dos autores, vinculados ao Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, relaciona as mudanças no mercado de trabalho com os as instituições penais e seus respectivos modelos disciplinares. Embora a investigação de Gilmore (2007) apresente pontos em comum, como a proximidade dos dispositivos punitivos com as estruturas econômicas, em contrapartida, o percurso da análise é significativamente diferente, pois, ao contrário de correlacionar mercado de trabalho e métodos punitivos, a economia política de Golden Gulag apoia-se na noção dos excedentes e do “reparo prisional” (the prison fix).
  • 3
    . No direito penal norte-americano, parole é a figura jurídica destinada a colocar em liberdade o preso, sob o cumprimento de determinadas condições, antes do cumprimento integral da sentença. No direito penal brasileiro, é equivalente ao livramento condicional.
  • 4
    . Atualmente nomeado California Department of Corrections and Rehabilitation (CDCR) (Departamento Correcional e de Reabilitação da Califórnia), trata-se da agência estatal encarregada de administrar as prisões estaduais da Califórnia, assim como o sistema de parole (livramento condicional) e outros programas correcionais no estado. É a segunda maior agência governamental dos Estados Unidos, ficando atrás apenas do New York City Police Department (Departamento de Polícia da Cidade de Nova York), empregando aproximadamente 66 mil funcionários, com orçamento de US$ 10 bilhões anuais. Atua em múltiplos segmentos, como o sistema correcional juvenil, no acompanhamento da parole, na administração e construção das unidades, abarcando todos os níveis de segurança (desde sistema aberto até prisões de segurança máxima) no âmbito administrativo das prisões.
  • 5
    . Neste sentido, Gilmore (2007) cita a Proposition 13, de 1978, que impôs restrições no sistema de endividamento do estado da Califórnia. A Proposição 13 foi uma emenda na Constituição do estado da Califórnia que impôs limites à tributação predial (imposto territorial) e restrições à emissão de títulos da dívida pública, tais como os GOBs, que só podem ser aprovados mediante referendos populares.
  • 6
    General Obligation Bond (GOB) são títulos da dívida pública municipais, garantidos pelo governo estadual, que visam alavancar recursos para construções de benfeitorias e serviços públicos.
  • 7
    . MoROC é um movimento social popular, surgido em 1992, pela ação de mães que questionavam a incidência da Justiça Criminal sobre seus filhos. Com a expansão prisional, os jovens tornaram-se o público alvo preferencial das medidas de encarceramento. As mães denunciaram que as prisões incorporavam discriminações raciais, classistas e de gênero, de modo que o encarceramento atualizava e aprofundava estes mecanismos de segregação social. A luta pelo resgate de seus filhos se tornava-se uma luta social pela dissolução do encarceramento, em outras palavras, pela abolição da prisão. A experiência política do movimento antiprisão do MoROC é um elemento importante para compreender as dinâmicas da expansão prisional na obra de Gilmore (2007), por seu papel decisivo em conscientizar os munícipes a respeito dos efeitos da expansão prisional.
  • 8
    . Neste caso, fazemos alusão a David Garland (2001) e Loïc Wacquant (2005), que se referem a este contexto como o “paradoxo da prisão”. Garland (2001) foi um dos pesquisadores que investiu nesta abordagem, levando em consideração as análises que retratavam as instituições prisionais como ambientes disciplinares fundamentados nas ideologias da reabilitação. Segundo o autor britânico, com a crise dos dispositivos disciplinares e o esvaziamento das ideologias reabilitadoras, muitos analistas apostaram na diminuição da prisão na época contemporânea. Paradoxalmente, a história mostrou que essa crise favoreceu um revigoramento da instituição. Para nossa discussão importa considerar que a coexistência destas condições degradadas dos dispositivos carcerários, juntamente com a intensificação dos investimentos e diversificação dos regimes, aponta para estes novos sentidos da prisão que se pretende compreender.
  • 9
    . A possibilidade de prestar serviços na área de alimentação para o sistema prisional tem sido apontada como uma forma de exploração política da expansão do encarceramento com vantagens econômicas. A revista Carta Capital, na matéria “Os mercadores das cadeias: os interesses que mantêm o fornecimento de comida aos presos como uma fonte de corrupção e sangria dos cofres públicos”, tem apontado que empresas privadas monopolizaram o ramo da alimentação dos presídios no Brasil, tornando este aspecto da execução penal altamente lucrativo e politicamente corrupto. A alimentação oferecida pelas empresas é constantemente denunciada pela péssima qualidade (muitas vezes são oferecidos alimentos estragados) e o valor pago pelo Estado por este produto é superior ao praticado no setor fora dos muros prisionais. Em contrapartida, estes empresários financiam campanhas eleitorais que sustentam estes interesses.
  • 10
    . Ao lado destes destaques, outro fator que merece atenção nesta investigação são os projetos de parcerias público-privadas (também chamadas de PPPs), que têm se intensificado recentemente nas ações e articulações políticas desenvolvidas pela secretaria. Estes projetos são retratados na retórica institucional como mecanismos de modernização e reforma do sistema prisional, sobretudo por sua capacidade de criar e expandir vagas no sistema. Porém, de forma preliminar, consideramos que estes mecanismos estão inscritos na mesma lógica política dos mecanismos de gestão compartilhada que rearranjam os dispositivos punitivos, mas que no caso específico das PPPs se desdobram numa esfera de atuação mais macropolítica, abrindo campo para processos de privatização do poder punitivo que são recentes e pouco explorados nas investigações atuais sobre o sistema prisional paulista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2014
  • Aceito
    28 Mar 2015
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