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Palavras acerca de proteção e produção

DRUMMOND, José Augusto Leitão. Proteção e produção: biodiversidade e agricultura no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.

Desde a década de 1980, José Augusto Leitão Drummond, graduado em ciências sociais pela Universidade Federal Fluminense, tem direcionado a sua formação para as ciências ambientais. Nessa direção, cursou mestrado, doutorado e pós-doutorado em proeminentes universidades norte-americanas, nominadamente no The Evergreen State College (Tesc), nas universidades de Wisconsin e do Colorado. Professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB) e consultor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Drummond é autor ou coautor de vasta produção nas ciências ambientais. Publicou ou organizou 25 livros, 65 artigos em periódicos e 31 capítulos de livros, sem que se mencionem resenhas, traduções, atuações como orientador, trabalhos publicados em congressos ou seminários. Dada a profícua produção, o autor tornou-se referência brasileira das ciências ambientais.

Neste ano, a Garamond publicou uma das mais recentes obras de Drummond, o livro Proteção e produção: biodiversidade e agricultura no Brasil, ora resenhado. O trabalho contém, nas palavras do autor, dois ensaios “longos demais e pesquisados de menos para serem publicados como artigos em revistas científicas” e que, por outro lado, “não caberiam bem em publicações destinadas a não acadêmicos” (p. 8 e 9). O primeiro ensaio, desenvolvido entre 2009 e 2013, intitula-se “Áreas protegidas versus áreas ocupadas por atividades produtivas e infraestrutura no Brasil - há espaço para todos?” O segundo, elaborado entre 2010 e 2013, intitula-se “A biodiversidade como patrimônio - uma discussão social e cultural”.

Em ambos os ensaios - cada um, um capítulo - Drummond apresenta alguns de seus posicionamentos políticos, teóricos e epistemológicos acerca de diversos temas afetos à sustentabilidade, o que auxilia o leitor na compreensão adequada de suas diversas publicações. Os textos trazem digressões acerca da justificativa e dos objetivos das terras destinadas a indígenas e a quilombolas; apresentam discussão sobre a relação entre natureza e cultura, ao tratar de temas como “biodiversidade”, “agrobiodiversidade” e “sociobiodiversidade”; elucidam as convicções do autor em relação à finalidade das unidades de conservação, ao valor intrínseco da natureza e mesmo em relação aos saberes atualmente denominados “conhecimentos tradicionais”.

No primeiro ensaio, Drummond discute os usos do território brasileiro a partir de críticas ao relatório intitulado “Alcance territorial da legislação ambiental e indigenista”, de autoria dos pesquisadores da Embrapa Evaristo Eduardo Miranda (coordenador), Carlos Alberto de Carvalho, Cláudio Aparecido Spadotto, Marcos Cicarini Hott, Osvaldo Tadamoto Oshiro e Wilson Anderson Holler. O relatório discutido por Drummond - cujas conclusões vêm sendo invocadas por defensores do agronegócio - está disponível na internet desde 20081 1 . <http://www.alcance.cnpm.embrapa.br>. , e sinteticamente sustenta que aproximadamente 70% do território brasileiro está legalmente “fechado à agricultura”, dada a sua destinação a indígenas, quilombolas e à proteção ambiental (áreas de preservação permanente, unidades de conservação, reservas legais). Esse zoneamento do território, derivado da legislação vigente, seria, para os pesquisadores da Embrapa, desproporcional, incompatível com as atividades já consolidadas e limitaria sensivelmente o potencial de crescimento da agropecuária no Brasil, motivo pelo qual defendem sua pronta revisão.

Drummond desfere cinco grandes críticas a esse trabalho de Evaristo Miranda e colaboradores.

A primeira reside no fato de os pesquisadores da Embrapa terem se agarrado à defesa do crescimento da fronteira da agropecuária (crescimento horizontal), desconsiderando o potencial de aumento da produtividade ou a complexificação das cadeias produtivas agropecuárias, providências que agregariam valor aos produtos finais.

A segunda aponta a circunstância de que Miranda e seus colaboradores enfatizaram sobremaneira determinados conflitos no uso da terra e omitiram outros. É que o relatório chamaria atenção apenas para a incompatibilidade entre agropecuária e áreas ambientalmente protegidas, terras indígenas e terras de quilombolas. Por outro lado, ignoraria as evidentes incompatibilidades entre atividades agropecuárias e obras de infraestrutura (tais como portos, aeroportos, rodovias, linhas de transmissão de energia elétrica, gasodutos, oleodutos e respectivas faixas de domínio); entre atividades agropecuárias e áreas urbanas (tais como residências ou distritos industriais) ou entre atividades agropecuárias e áreas de mineração. Ora, obras de infraestrutura, atividades urbanas e minerárias seriam, conforme contabiliza Drummond neste artigo, atividades com representativa ocupação do território nacional. O fato de sequer terem sido mencionadas pelos pesquisadores da Embrapa seria sintomático da sua aversão, ab initio, às áreas ambientalmente protegidas, às terras indígenas às terras de quilombolas.

Como terceira crítica, Drummond salienta que Miranda e colaboradores sequer mencionaram o fato de que as atividades agropecuárias, no Brasil, ainda são praticadas mediante uso de técnicas predatórias. Para confirmar esse argumento, recupera dados da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que teria classificado cerca de 200 milhões de hectares das terras brasileiras (isto é, cerca de 23% do território nacional) como áreas abandonadas, sem uso ou subutilizadas. Com essa ordem de práticas produtivas - há quase cem anos qualificadas, por Sérgio Buarque de Holanda, como “mineração do solo” - a necessidade de expansão da fronteira agropecuária tenderia ao infinito. Em outros termos, o dado da Secretaria de Assuntos Estratégicos colocaria em xeque o pressuposto de as atividades agropecuárias consistirem na principal variável estratégica de desenvolvimento do Brasil.

O subdimensionamento da área disponível à atividade agropecuária, em decorrência da interpretação incorreta de conceitos legais, é a quarta crítica de Drummond ao relatório dos pesquisadores da Embrapa. Primeiramente, não teriam diferenciado as unidades de conservação de proteção integral (em que não são permitidas atividades agropecuárias) das unidades de conservação de uso sustentável (em que são admitidas atividades agropecuárias além de residência, caça, pesca, extrativismo). Desse modo, “as unidades de conservação fechadas para a agropecuária afetam apenas um terço da área alegada por Miranda e coautores” (p. 29). Ademais, as terras de indígenas e de quilombolas teriam sido equivocadamente classificadas como “áreas fechadas à agropecuária”, quando tais atividades são legalmente permitidas nessas áreas.

Por derradeiro, Drummond salienta que as reservas legais e as áreas de preservação permanente - largamente desrespeitadas em território nacional - foram concebidas como mecanismos de viabilização, não como obstáculos para as atividades agropecuárias. Mesmo assim, contabilizando reservas legais, áreas de preservação permanente e unidades de conservação de proteção integral, o autor chegou à cifra de 54,78% do território nacional abertos à agropecuária, não nos 22,98% alegados por Evaristo Miranda e seus colaboradores.

Por fim, Drummond argumenta que limitações administrativas às atividades agropecuárias são legítimas. Afinal, limitações equivalentes já existiriam, há décadas, para as cidades e indústrias: altura máxima de prédios, número máximo de andares, taxa máxima de impermeabilização do solo, recuo obrigatório, número mínimo de vagas de garagem, quantidade máxima de gases poluentes que podem ser emitidos e assim por diante. Desse modo, seriam impertinentes as queixas de Miranda e colaboradores contra as limitações à agropecuária, ligadas à defesa do interesse público.

Vale salientar, contudo, que Drummond atribui méritos ao relatório, entende que se trata de um trabalho de escopo original (macrozoneamento do território brasileiro), de metodologia inovadora, com inferências ousadas e rico em dados. Não obstante, a pesquisa estaria enviesada pelo pressuposto de que o Brasil ainda é um país eminentemente agrário e de que, portanto, a agropecuária consiste na variável estratégica mais relevante para a economia e a sociedade brasileiras. Sob essa ótica, unidades de conservação, terras indígenas, terras de quilombolas, áreas de preservação permanente, reservas legais, entre outras limitações administrativas garantidoras do interesse público, são retratadas como vilãs que criam obstáculos para o desenvolvimento da nação. Esse viés - argumenta Drummond - faria o relatório perder boa parte de seu potencial científico e o reduziria a um pronunciamento intransigente em favor da expansão perpétua da fronteira agropecuária no Brasil.

O segundo ensaio, intitulado “A biodiversidade como patrimônio - uma discussão social e cultural”, é construído ao redor da tese de que, em decorrência de fatores físicos, socioeconômicos e históricos, o Brasil herdou, em seu território, enorme fração da biodiversidade mundial. Essa biodiversidade (e no Brasil fala-se em “megabiodiversidade”) consiste em patrimônio natural, difuso e coletivo gerado pelo processo evolutivo e cujo maior valor é a existência em si mesma. Cabe, portanto, ao Estado e ao povo brasileiro atuarem como guardiães desses commons, mediante:

  1. usos moderados da biodiversidade e das águas submetidas a atividades produtivas;

  2. investigações científicas intensivas acerca da biodiversidade existente em território nacional;

  3. preservação integral de porções de ecossistemas e biomas; e

  4. recuperação de áreas degradadas.

Drummond inicia a defesa desses argumentos por meio de distinções conceituais, de modo a evitar confusões que ainda perduram quando se discute meio ambiente ou sustentabilidade, por isso, contextualiza o conceito de biodiversidade. Conforme informa o autor, trata-se de um termo cunhado na década de 1980 na biologia, para denotar a variedade de espécies de determinado ecossistema.

Ao longo dos anos, “biodiversidade” teria se tornado um conceito mais complexo, que envolveria não apenas:

  1. o número de espécies de determinado ambiente (número que inclui vegetais, animais e micro-organismos), mas ainda:

  2. o estado de integridade dos ecossistemas nativos nos quais as espécies se movimentam (cuja medição depende da apreensão das relações entre fatores abióticos e bióticos, bem como das relações de competição, parasitismo, cooperação e predação entre as diversas espécies); e

  3. o estado genético das populações naturais (cuja medição depende de coleta de amostras pesquisáveis e representativas das populações de plantas, animais e micro-organismos presentes em determinado ecossistema).

Ao observar os elementos do conceito, fica clara a distinção entre a biodiversidade natural e o que vem sendo denominado “agrobiodiversidade”. Para o autor, a biodiversidade natural equivale aos sistemas que nos foram legados pelo longo processo de evolução. Trata-se de sistemas independentes, exteriores e anteriores ao Homo sapiens, que dispensam manejo ou cuidados. A “agrobiodiversidade”, por outro lado, é formada de sistemas desequilibrados, construídos, manejados e simplificados em número de espécies (seleção sistemática das espécies “úteis”) de interesse do Homo sapiens. Da mesma forma, ao passo que a variedade genética da biodiversidade natural remonta a dezenas de milhares de espécies, majoritariamente desconhecidas, a variedade genética da “agrobiodiversidade” envolve apenas cerca de uma centena: estudadas, aprimoradas, domesticadas e - não raro - patenteadas. Daí se justifica o argumento de Drummond, para quem a “agrobiodiversidade”, ou seja, os “conjuntos, formações e paisagens rurais fabricadas pelo engenho humano [...] são tão naturais quanto um I-pad” (p. 100).

A avaliação da biodiversidade de ecossistemas por meio de mera contagem de espécies existentes em determinada localidade - forma comumente praticada por cientistas e por leigos para quantificar a biodiversidade - é apontada pelo autor como causa de grandes distorções. A título de exemplo, Drummond critica os inventários faunísticos e florísticos que incluem, respectivamente, espécies exóticas de animais domésticos (porcos, galinhas, vacas, jumentos, carneiros, coelhos) e de plantas cultivadas (mangueira, jaqueira, macieira, cafezais, oliveiras, algodoeiros), acidental ou propositalmente introduzidas por humanos nas localidades estudadas, como parte da “biodiversidade” local. Esse tipo de tratamento conduz à equivocada conclusão de que a introdução de espécies exóticas por meio da agricultura ou da pecuária enriquece a biodiversidade.

Por derradeiro, Drummond alerta que a restauração dos ecossistemas - o que não deve ser confundido com a recuperação de áreas degradadas - é tarefa que ainda está fora do alcance do Homo sapiens. Descreve, como caso paradigmático, as tentativas de restauração de ecossistemas temperados e de biodiversidade pobre levadas a efeito ao longo de mais de 80 anos na Universidade de Wisconsin, onde fez seu doutorado. Não obstante disporem de condições praticamente ideais - longo lapso temporal, mão de obra abundante, conhecimento, dinheiro e um número relativamente pequeno de espécies a recuperar - os cientistas responsáveis pelo arboretum da universidade consideram que obtiveram sucesso tão somente moderado na tarefa de restaurar os ecossistemas originais.

Em suma, não haveria quaisquer motivos para acreditar que a eventual recuperação da biodiversidade natural brasileira, muito mais complexa e desconhecida do que aquela encontrada nas pradarias geladas de Wisconsin, seja de mais fácil, rápida ou barata operacionalização. Assim, Drummond aconselha cautela e humildade no trato com a biodiversidade natural, especialmente com a - riquíssima - biodiversidade tropical.

  • 1
    . <http://www.alcance.cnpm.embrapa.br>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2015
  • Aceito
    20 Out 2015
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