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Individualização da incerteza: direito condicionado e ativação da proteção social* * Este texto foi apresentado com o título "Democracia, cidadania e trabalho" no VII Congreso Latinoamericano de Ciencia Política, organizado pela Asociación Latinoamericana de Ciencia Política (Alacip), realizado em Bogotá (Colômbia) de 25 a 27 de setembro de 2013. As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais o apoio ao projeto n.o 0435/13.

Resumo

O artigo problematiza os componentes políticos de recentes reformas dos sistemas de proteção social, com atenção especial nas políticas de ativação para o trabalho. Em geral, os argumentos oferecidos por governos para sua adoção são de ordem econômica, porém eles não estão dissociados de inspirações ideológicas e, ademais, apresentam claras consequências políticas. ­Faz-se uma reflexão sobre a possibilidade de convivência da democracia com (des)proteção social de setores tais como desempregados crônicos, população em situação de pobreza beneficiária de assistência e o crescente contingente de pessoas inseridas em um mercado de trabalho flexibilizado que oferece mais precariedade do que proteção. Nesse contexto, ocorrem a (re)individualização dos riscos e das incertezas, a erosão do status social resultante do questionamento à titularidade de direito e da adoção do direito condicionado. O artigo analisa as consequências deste processo para a cidadania, entendida como pertencimento em bases igualitárias a uma comunidade política.

Palavras-chave:
política social; proteção social; welfare State; trabalho; cidadania

Abstract

The article discusses the political components of recent reforms of social protection systems, with particular emphasis on activation policies to work. The arguments offered by governments for adoption are economic, but they are not divorced from ideological inspirations and they have clear political consequences. The article presents a reflection about the possibility of coexistence of democracy and lack of social protection for chronically unemployed, poor people receiving assistance and the growing number of persons engaged in a flexible labor market that offers precarious protection. In this context there are processes of individualization of risks and uncertainties, the erosion of social status resulting from questioning the ownership of law and the adoption of the right conditioning. The article analyzes the consequences to the citizenship, understood as belonging to a political community egalitarian basis.

Keywords:
social policy; social protection; welfare State; work; citizenship

Introdução

A ativação é um elemento importante da geração de políticas sociais que foi se instalando desde as duas últimas décadas do século XX como parte das reformas empreendidas nos sistemas de bem-estar social nos países desenvolvidos. Neste artigo faz-se uma delimitação do tema, pois a ativação na realidade pode incluir componentes referidos a diversas parcelas da população em condição de trabalhar. Porém, a ativação aqui discutida se refere ao incentivo ou à exigência aos beneficiários de prestações sociais - principalmente desempregados e beneficiários de programas de assistência e de transferência de renda - de se integrarem ao mercado de trabalho, como contrapartida aos benefícios recebidos. O propósito do artigo é examinar as relações desse âmbito da reforma da proteção social com os elementos políticos, de cidadania e de democracia social, porém sem a pretensão de examinar a grande diversidade de aspectos envolvidos nesse tipo de política pública.

O argumento central do texto desenvolve-se sob quatro aspectos. O primeiro é a consideração de que desde muito cedo as sociedades ocidentais estabeleceram a distinção entre setores sociais considerados válidos para o trabalho e os não válidos, situação que justificava que fosse destinada assistência a esses últimos. O segundo é a constatação de que o trabalho está no centro do Estado do bem-estar social e da proteção social. Em terceiro lugar, sabe-se que a preocupação com o risco de desincentivo ao trabalho é antiga na sociedade e se mantém nos sistemas de proteção social organizados em torno do Estado. O quarto aspecto diz respeito aos direitos sociais no contexto dos processos de cidadania e à ameaça de sua erosão com as reformas recentes nas políticas sociais.

São abordados sucessivamente: a centralidade do trabalho na proteção e no bem-estar; os aspectos gerais das reformas recentes do welfare State com ênfase na ativação; os elementos ideológicos e políticos das estratégias de ativação dirigidas aos desempregados e aos assistidos e sua relação com os processos de cidadania e a democracia social. Ao final, são feitas observações sobre os efeitos de dualização tanto dos mercados de trabalho quanto da proteção social, principalmente em termos de desigualdade de cidadania e de seu empobrecimento enquanto "padrão geral da vida civilizada", de acordo com a conceituação de T. H. Marshall (1967)MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967..

O trabalho fundamenta e organiza o direito à proteção social e ao bem-estar

O trabalho ocupou lugar central na história da proteção, antes até mesmo do surgimento de políticas sociais, isto é, de intervenções organizadas a partir do Estado como respostas coletivas a riscos e a incertezas.

É antiga nas sociedades a separação entre os pobres válidos para o trabalho e aqueles considerados inválidos em razão da idade, das condições físicas ou pelo fato de se ocuparem dos que não podem trabalhar, como é o caso das mulheres. Essa separação foi acompanhada pela distinção entre as práticas da sociedade destinadas a um setor ou a outro. Para os válidos, a proteção foi organizada em torno do direito ao trabalho. Para os demais, a assistência aos indigentes.

Ao investigar a história das medidas sociais, Robert Castel (1989) localizou a existência, no século XIV, em diferentes países do continente europeu, de medidas adotadas pelos governantes que delimitam os temas associados ao trabalho - e às populações de trabalhadores - como sendo de ordem distinta aos temas associados ao socorro e à assistência. Exemplo disso é a ordenança real de 1349 na Inglaterra, que proibia a circulação de pessoas pobres no território e a doação de esmolas aos indigentes com condição física para trabalhar. Ao longo da história, é possível identificar elementos semelhantes de controle e condenação da mendicância, e da circulação de não trabalhadores pelos territórios. O confinamento dos que recebiam ajuda e a obrigação de trabalhar, práticas adotadas em diversas sociedades antes do surgimento do capitalismo, corresponderiam a essa mesma orientação.

Como resultado de processos complexos que se iniciaram no século XIX, o Estado foi assumindo o papel de redutor de riscos sociais, com a criação de direitos e de proteções sociais que inscreveram os indivíduos como parte de coletivos protetores. Segundo Castel (2009)CASTEL, R. La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l'individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009., aos indivíduos não proprietários o Estado passou a garantir um novo tipo de propriedade: a social, relacionada à proteção e ao direito da condição de trabalhador, que de certa forma lhes daria uma "capacidade de controlar o futuro", em luta contra as inseguranças.

No surgimento do Estado social moderno, a noção de contrato adquire um papel central. A socialização do risco é enfatizada, baseada na visão de que os indivíduos são capazes de se solidarizarem entre si e, assim, neutralizarem riscos e incertezas. A noção de solidariedade seria, pois, uma evidência de que existe um comprometimento comum. Nessa perspectiva, não caberia ao indivíduo encontrar sozinho resposta aos riscos e por isso mesmo as respostas são coletivizadas. O Estado e as políticas sociais expressariam a coletivização da busca de proteção e redução das incertezas e da insegurança.

Nesse contexto, um componente fundamental da construção de um sistema de direitos que associa o trabalho e o enfrentamento de riscos e situações de desproteção foi a invenção do seguro desemprego (Topalov, 1990TOPALOV, C. A invenção do desemprego: reforma social e moderna relação salarial na Grã-Bretanha, na França e nos Estados Unidos no início do século XX. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 33, n. 3, p. 379-416, 1990.). A falta involuntária de trabalho, uma ameaça vivida pelos trabalhadores na sociedade assalariada, passaria a ser enfrentada com prestações sociais temporárias, cuja existência se insere em um contrato, entendido como compromisso coletivo fundamentado em direito. Com isto, a política social funciona na sociedade salarial capitalista, para os trabalhadores, como propriedade coletiva:

Para aqueles que não se apoiam sobre a propriedade privada, o que lhes protege é a propriedade social construída como um sistema de solidariedade coletiva sob a égide do Estado. Nesta perspectiva, é ingênuo opor o indivíduo ao Estado. Um nível elevado de proteções sociais liberou o indivíduo - uma maioria de indivíduos - das necessidades e das carências das proteções de proximidade prodigadas pelas comunidades concretas, da vizinhança, da família e que se tornaram cada vez mais insuficientes à medida que a sociedade se industrializou e se urbanizou. A partir de então, o indivíduo pode ser independente porque ele tem direitos. O Estado social não é somente um edifício de regulações abstratas mantidas pelas burocracias do Estado, ele está também no coração do indivíduo moderno na medida em que este é sujeito de direito. Falar "em nome do Estado social" é reconhecer o papel que ele teve e deveria continuar tendo na construção da cidadania social (Castel, 2009CASTEL, R. La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l'individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009.: 221-222, tradução livre das autoras).

A cidadania social está, portanto, no núcleo dos sistemas de proteção social, que são garantidos pelos Estados. Insiste Castel (2009)CASTEL, R. La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l'individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009.: a proteção social cumpre papel fundamental na existência de uma sociedade de iguais, portanto na sociedade democrática1 1 . Chamamos a atenção que a constituição de políticas sociais na sociedade salarial não se explica simplesmente pela mobilização dos trabalhadores, mas está ainda associada a coalizões políticas e, definitivamente, ao tratamento de conflitos dentro do sistema político e à adoção de um modelo de desenvolvimento que abranja os direitos sociais. .

Nas sociedades contemporâneas, três categorias principais conformam a proteção social: a regulação do mercado de trabalho, a seguridade social e a assistência social2 2 . É relevante distinguir o paradigma de proteção social - fundamentado no seguro social - do paradigma fundamentado na assistência social. Tradicionalmente, o componente assistencialista é visto como necessidade de suprir proteção para aqueles setores - pobres, necessitados e vulneráveis - que não são cobertos, ou o são de modo insuficiente, pelos direitos do trabalho e pela seguridade. . As instituições relativas a cada um desses componentes se estabeleceram e evoluíram de modo diverso em cada país ou, como afirma Sonia Draibe (2007)DRAIBE, S. Estado de bem-estar, desenvolvimento econômico e cidadania: algumas lições da literatura contemporânea. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (Orga.). Políticas públicas no Brasilp. 27-64. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007., de acordo com diferentes rotas de modernidade. As instituições da política social acompanharam o processo de desenvolvimento e modernização capitalistas, que se realizou em cada caso com características específicas.

A transformação da questão social no final do século XX

No contexto da transformação do capitalismo, o Estado social passou a enfrentar problemas com a erosão do seu fundamento principal, o trabalho assalariado. Esses se acentuaram a partir dos anos 1970 nos países desenvolvidos, provocando importantes alterações nas relações de trabalho, na situação de emprego e nas proteções a eles associadas.

As condições produtivas da economia que deram origem à sociedade salarial se alteraram com o esgotamento do modelo de produção fordista, a ampliação inusitada da escala (que se tornou global) e a transformação tecnológica. O pleno emprego, que chegara a existir em países de capitalismo central durante algumas décadas, desde os anos 1970 foi dando lugar ao desemprego estrutural. Esgotaram-se o crescimento do capitalismo industrial e a relação virtuosa entre a economia, a política e o social, que caracterizara os trinta anos gloriosos nos quais o sistema de bem-estar estruturou-se, repercutindo no trabalho, na proteção social e nas políticas de bem-estar.

A crise nas condições estruturais da proteção social e na democracia, regime que se estruturaria sob a égide da industrialização nos países de capitalismo avançado e que permitiu arranjos de coalizões de classes sociais, repercute no processo de desenvolvimento da cidadania. O novo ambiente econômico se caracteriza, ademais, com a desregulação das relações de trabalho, o surgimento de novas formas de trabalho, a redução drástica do volume de trabalho industrial, o aparecimento de novas condições de pobreza e desemprego de massa (Pochmann, 2007POCHMANN, M. Segurança social no capitalismo periférico: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Nueva Sociedade. Especial em português, p. 76-97, 2007.).

Nesse conjunto ocorre uma mudança profunda que provoca a (des)coletivização, a (re)individualização e o (res)surgimento da insegurança para setores que se encontravam protegidos pelos sistemas das políticas sociais (Castel 2009CASTEL, R. La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l'individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009.). O que é ser protegido nesse novo ambiente, onde os recursos e direitos comuns que se fundamentavam no trabalho se encontram abalados (se não para o conjunto da sociedade, pelo menos para uma parte importante dela) e ocorre a individualização das trajetórias profissionais?

Do ponto de vista welfare State sociológico, nesse cenário a desproteção tem como uma de suas características o enfraquecimento das respostas coletivas de enfrentamento dos riscos e crises e a (re)individualização da incerteza. Trata-se do que o autor denomina "individualismo negativo". O indivíduo se vê desprotegido devido ao enfraquecimento dos vínculos sociais nos quais se apoia. A família muda de composição, diminui e, em muitos casos, se fragmenta. O trabalho torna-se mais raro, há desemprego de massa de longa duração. Os direitos sociais, por sua vez, são questionados, pressionados pelos novos problemas ou pelo reaparecimento de problemas que pareciam resolvidos, como a pobreza e a miséria.

A perda da centralidade da condição salarial incide sobre o Estado de bem-estar e o pressiona a dar respostas ao aumento da pobreza e do desemprego de longa duração, assim como a enfrentar o forte aumento das despesas sociais. Além disto, manifesta-se um questionamento dos contribuintes e de setores sociais e políticos à cultura da dependência gerada pelas políticas de bem-estar. Surgiram pressões para promover reformas nos sistemas de proteção social e, como parte delas, para alterar a conexão entre trabalho e direito a prestações sociais.

Reformas recentes dos sistemas de proteção social

Não tendo se conformado de uma única maneira, os sistemas de proteção social tampouco se desenvolveram no mesmo ritmo nos países onde se configuraram com maior ou menor vigor. Eles foram respostas às pressões políticas, na luta pelos direitos de cidadania, assim como foram delimitados de acordo com condições demográficas, políticas, econômicas, sociais e culturais. Não é, portanto, possível falar em um único modelo ou supor reformas idênticas em todos os países3 3 . A mais conhecida (também criticada e revista) classificação de modelos de bem-estar foi estabelecida por Esping-Andersen (1991), que estipulou a célebre distinção entre os tipos universalista, corporativista e residual, utilizando como critérios o grau de "desmercantilização" e "desfamiliarização" dos bens e serviços sociais. .

Pese a diversidade de modelos, nos últimos anos transformações nos sistemas foram sendo adotadas em diversos países que haviam desenvolvido um sistema de bem-estar amplo. Ao reconhecer que tais transformações englobam muitas dimensões e que elas não poderiam ser tratadas no presente artigo, interessa-nos apontar um aspecto em particular das reformas: a ativação da proteção social. Trata-se da instalação ou ampliação - a depender do país - de condicionamento do direito ao benefício e da diminuição da duração da prestação social, onde ganha relevância o condicionamento do benefício à exigência de papel ativo do beneficiário para sua inserção no mercado de trabalho. Tais medidas costumam vir acompanhadas de diminuição das barreiras para a entrada no mercado de trabalho e a concessão de subsídios públicos aos empregadores como estímulo para que contratem.

É necessário mencionar outro elemento presente nas transformações recentes nos sistemas de políticas sociais, relativo à assistência social. Em muitos países que desenvolveram um amplo welfare State, a assistência social continua tendo um lugar residual, no entanto, ela tem ampliado sua cobertura em termos de quantidade de beneficiários. Isto está relacionado ao aumento da proporção da população que não tem trabalho e, portanto, não encontra apoio através dos mecanismos de proteção social por esta via.

Isso posto, pode-se considerar que os sistemas de proteção baseados no trabalho não são capazes de dar respostas satisfatórias aos problemas do desemprego de longa duração, de reaparecimento da pobreza e às dificuldades de inserção social e laboral dos jovens. No âmbito dos programas assistenciais também foram introduzidos - ou reforçados onde já existiam - mecanismos de indução ao trabalho, em geral associados à redução da duração e do valor dos benefícios e a contrapartida de aceitação de postos de trabalho pelos beneficiários.

A ampliação da cobertura numérica de programas e das alocações de caráter assistencial em muitos países foi acompanhada do ressurgimento das preocupações em conter os gastos sociais, em não criar dependência dos assistidos e não promover o desestímulo ao trabalho. Não é estranho, portanto, que reapareça em cena uma tensão que, como demonstrou Castel (1998)CASTEL, R.. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998., mantém-se permanentemente nas sociedades e que diz respeito ao estabelecimento de distinções, categorização dos indivíduos e dos grupos segundo sua capacidade para o trabalho ou a possibilidade de inseri-los em atividades produtivas e remuneradas para que não vivam à custa da ajuda pública. A preocupação principal é evitar a armadilha da dependência.

Mesmo que os componentes do sistema de proteção social variem de um país a outro, os programas e as prestações principais geralmente se dividem entre contributivos e não contributivos. O primeiro tipo de prestações tem origem no direito adquirido pelo trabalhador ao contribuir com parte de seu rendimento mensal. Nele estão, por exemplo, os sistemas de aposentadoria e pensões e o seguro desemprego, que limitam o direito de acesso àquelas pessoas que cotizam. No segundo tipo, as prestações são definidas segundo a perspectiva da compensação social ou da ajuda pública aos setores vulneráveis. São benefícios financiados pelo orçamento público geral, tais como as prestações dos programas de assistência social, subsídios às famílias e transferências de renda. Os programas não contributivos têm papel essencial para ajudar a renda dos setores pobres. Na Europa, os programas de proteção não contributivos vêm ganhando importância dentro do contexto geral da proteção social e nas redes de seguridade social, apesar de, no conjunto do sistema de proteção na maior parte dos países desenvolvidos, o eixo "não contributivo" continuar sendo limitado principalmente porque existem outros tipos de proteção.

Nesse contexto europeu, a cobertura dos programas de assistência social aumentou no período 1980-1990 devido ao crescimento da porcentagem de indivíduos incluídos em idade de trabalhar. Assim, a duração prolongada das prestações de assistência social devido ao número elevado de pessoas que não consegue deixar de forma permanente o sistema, coloca interrogantes sobre a possibilidade de "ativar" essas pessoas, ou sobre o êxito real dos programas públicos em fazê-lo. As contrações econômicas no período, juntamente ao envelhecimento da população, deram origem a pressões para a reforma dos componentes de assistência dentro dos sistemas de proteção social.

As reformas em diferentes componentes das redes de seguridade social europeias tendem assim a incorporar dispositivos de ativação para o trabalho. A exigência de esforços dos indivíduos para integração/reintegração ao mercado de trabalho é um elemento importante no sentido de definir deveres para os beneficiários, direcioná-los a um posto de trabalho ou a um treinamento profissional. Logo, o programa público de emprego estimula a busca ativa de trabalho e/ou a participação em programas de experiências de trabalho ou capacitação. Em se tratando de um desempregado, ele deve postular a todos os empregos e não apenas àqueles que considera mais convenientes. Em suma, a ideia é eliminar os desestímulos ao emprego provocados pelo sistema de prestações sociais:

Todas as reformas pretendem reduzir a quantidade e a duração das prestações ou dos custos operacionais; muitos países aumentaram os incentivos financeiros e administrativos para que os beneficiários abandonem o sistema de assistência social e se reintegrem ao mercado de trabalho (Neubourg, Castonguay & Roelen, 2005NEUBOURG, Chris de; CASTONGUAY, Julie; ROELEN, Keetie. 2005. Redes de seguridad social y asistencia social dirigida: lecciones de la experiencia europea [online]. Disponível em: <Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/SAFETYNETSANDTRANSFERS/Resources/281945-1123255153992/1525234-1123255179743/deNeubourg_SSN_EULessons_Sp.pdf >. Acessado em: 3 Maio 2013
http://siteresources.worldbank.org/SAFET...
: 15).

A partir dos anos 1990, as pressões sobre o sistema de proteção social aumentam devido ao elevado número de desempregados por tempo prolongado e de pessoas permanentemente fora do mercado de trabalho. Elas ampliam os questionamentos sobre a sustentabilidade financeira do sistema no longo prazo, tendo em vista as alterações demográficas (envelhecimento da população; entrada massiva de imigrantes) e as mudanças na economia (globalização, mudanças tecnológicas com redução e supressão de postos de trabalho em vários setores). Além desses fatores, há críticos que apontam uma questão de natureza ideológica, pois setores da sociedade acreditam que o sistema de proteção social geraria risco moral, permitindo abusos por parte daqueles que encontraram no Estado uma comodidade contrária ao espírito dos programas. Os contribuintes, por sua vez, questionam e se mostram reticentes em pagar pelas transferências sociais.

A preocupação com a inclusão social se materializa nos incentivos dirigidos aos beneficiários dos sistemas de proteção social com o aumento da pressão administrativa e moral, a diminuição de barreiras para entrada no mercado de trabalho e a atribuição de maior responsabilidade dos beneficiários no financiamento de cobertura de riscos. Atuam ainda nesta direção outros instrumentos de política social, como o estímulo ao trabalho por conta própria e, em alguns países, o aumento de subsídios familiares para as pessoas que aceitam um emprego (por exemplo, as mães sozinhas com filhos).

As reformas chamadas de "ativação da proteção social" foram adotadas em uma grande quantidade de países nos anos 2000, sendo que nos Estados Unidos e na França as medidas já haviam começado desde os anos 1980. Diversos Estados europeus reformaram a legislação social com objetivo de reforçar o caráter condicional dos benefícios, bem como atribuir maior importância aos dispositivos de busca de emprego, formação e de ajuda à contratação por empregadores de pessoas beneficiárias de transferência de renda.

Um dos principais analistas dessas reformas, Jean-Claude Barbier (2011BARBIER, J.-C. Activer les pauvres et les chomeurs par l'emploi? Leçons d'une stratégie de reforme. Politiques Sociales et Familiales, n. 104, p. 47-58, 2011.), assinala que em geral as reformas se aplicam de forma lenta e com alcance mais limitado do que esperavam seus promotores. Essas reformas não alteraram radicalmente o núcleo dos sistemas de proteção social na maior parte dos países, introduziram, contudo, um elemento importante de dualização de direitos, como será mostrado adiante. Antes, porém, será feito um breve histórico do tema ativação e observada como a diversidade deste elemento se apresenta no sistema de proteção social e bem-estar de alguns países.

A ativação dos sistemas

Países com diferentes trajetórias deram distintas respostas ao ressurgimento da pobreza e à extensão do desemprego de longa duração e às pressões sobre a proteção social. Nos países de welfare State, mais estruturados e amplos, os ajustes têm se mostrado bastante diferentes quanto à sua generosidade, à duração e ao valor dos benefícios, no que tange às despesas e à destinação de recursos no âmbito das políticas sociais. Não existe tampouco um padrão único de ativação da proteção social, o que nos leva a indagar sobre o que vem sendo chamado de "ativação dos sistemas de proteção social" e qual seria o denominador comum aos diversos tipos utilizados nos diferentes países.

Para os propósitos deste artigo, seguimos aqui as análises de Barbier (2009; 2010) visto que ele, apesar de apontar serem muitos os domínios das chamadas reformas de ativação da proteção social, destaca aqueles que se referem à ativação dos pobres e dos desempregados. Ao empreender uma análise internacional dos sistemas de proteção social, o autor mostra que todos são fundados sobre o vínculo com a atividade de trabalho, corroborando o que indicou Castel em suas análises mencionadas no início deste artigo. Nos sistemas bismarckianos4 4 . O modelo adotado na Alemanha por Otto von Bismarck, no final do século XIX, inaugurou o seguro nacional compulsório, enraizado no contrato de trabalho e organizado por categorias profissionais (Kerstenetzky, 2012: 5). - para utilizar a terminologia consagrada por Gosta Esping-Andersen (1991)ESPING-ANDERSEN, G. As três economias políticas do welfare State. Lua Nova, n. 24, p. 85-116, São Paulo, 1991. -, esse laço é explícito, visto que os seguros sociais supõem a cotização dos trabalhadores. Nos sistemas beveridianos, universais, a desmercantilização não rompeu completamente com a vinculação entre a situação no mercado de trabalho e o acesso aos benefícios sociais, mas não exclui, por este motivo, aos segmentos da população não inseridos nas atividades econômicas5 5 . O modelo inglês baseia-se no status de cidadania e estabelece o direito a um padrão de vida mínimo para todos, com seguridade social financiada com recursos tributários. Esse modelo universalista está associado às reformas propostas por William Beveridge ao governo britânico em 1942. . Nos sistemas de proteção residual, de inspiração liberal, por sua vez, a imposição de limites à assistência e de restrições aos beneficiários é parte constitutiva da ação governamental dirigida aos setores que necessitam ajuda.

Portanto, não é em si mesma nova a estreita relação entre estar ativo no mercado de trabalho e ter direito à proteção social. O que caracteriza a "nova ativação", a partir dos anos 1980, é que em alguns países foram introduzidos, em outros foram mesmo reforçados, os vínculos explícitos (regulamentares ou legais) entre o direito à proteção e a atividade laboral. Segundo Barbier (2009), na maior parte dos casos, os segmentos da proteção social reformados foram, inicialmente, a indenização de desemprego, as políticas de emprego, as prestações da assistência e de solidariedade, em seguida as aposentadorias e as pré-aposentadorias.

Do ponto de vista histórico alguns elementos merecem ser considerados para o entendimento da variedade de sentidos das políticas de ativação.

Na Europa o termo ativação apareceu nos anos 1950 nos países escandinavos como forma de elevar a taxa de emprego oferecendo serviços públicos, insistindo na prioridade de existirem pontes entre as políticas de trabalho e a formação dos trabalhadores. O assessoramento individualizado é nesse sentido elemento importante das políticas ativas de emprego e as de renda mínima. Ademais, os países desenvolveram políticas de conciliação da vida familiar com o trabalho que permitia maior participação feminina no emprego.

Segundo Celia Lessa Kerstenetzky (2013)KERSTENETZKY, C. L. Notas sobre as tendências recentes do " welfare State" e possíveis lições para o Brasil. Série Cede Texto para Discussão, n. 77, 2013., mesmo que tenha passado por transformações importantes nas últimas décadas, a perspectiva de "ativação" nestes países mantém-se dentro de um contexto de investimento social, com políticas de mercado de trabalho inseridas em uma estratégia de investimento social que inclui emprego público, trabalho (políticas ativas com ênfase em qualificação, benefícios monetários para trabalhadores, emprego protegido para grupos especiais, seguro desemprego com alta reposição e relativamente curta duração), políticas de conciliação da família com o trabalho (serviços externos de cuidado e diferentes transferências monetárias, incluindo licenças parentais) e educação (desde a infância e ao longo de toda a vida ativa do indivíduo), conciliação da vida familiar com o trabalho.

Contudo, também nesses países foram introduzidos componentes importantes de obrigações aos beneficiários. São exemplos disso as políticas ativas de treinamento adotadas na Dinamarca nos anos 1990, marcadamente orientadas à ativação. Nesse país, a reforma da assistência municipal para os jovens, consistindo em ofertas obrigatórias de formação e de trabalho, é considerada modelo da combinação de flexibilidade do mercado de trabalho com a oferta de benefícios de proteção e bem-estar. Apesar de se manterem mais generosos os prazos e os valores dos benefícios comparativamente à maioria dos países europeus, foram incorporados mecanismos de ativação e de punição ao desemprego. O acompanhamento social dos desempregados beneficiários de seguro desemprego e a combinação do seguro com os programas de qualificação da mão de obra passaram a ser mais firmes e exigentes. Segundo Peter Abrahamson (2009ABRAHAMSON, P. O retorno das medidas de ativação na política de bem-estar dinamarquesa: emprego e proteção social na Dinamarca. SER Social, v. 11 n. 25, p. 244-273, Brasília, 2009.), a ativação adotada a partir de reformas do mercado de trabalho desde 1994 e na legislação do desemprego e na Lei de Assistência Social, de 1997, é frequentemente percebida pelos trabalhadores dinamarqueses como punição por estarem desempregado e tem levado à aceitação obrigatória de trabalhos com alto grau de flexibilidade, o que, na visão do autor, se traduz em marginalização e exclusão.

A experiência dinamarquesa de flexisecurity está baseada no "triângulo de ouro" - isto é, a combinação de mercado de trabalho flexível (com facilidades para empregar e demitir), um sistema de bem-estar social e políticas compulsórias de ativação. A flexisecurity é criticada por gerar efeitos adversos tais como alta mobilidade laboral e baixo grau de proteção trabalhista. Nesse contexto, as medidas de ativação contemplam regras mais duras para a inserção em qualquer emprego dos beneficiários de seguro desemprego e assistência. Com o propósito de mudança no comportamento e na empregabilidade desses segmentos, os incentivos transformam-se em punições, controle e disciplinamento sociais. Como consequência, os beneficiários de seguro desemprego e de programas de assistência social são obrigados a aceitar ofertas de ativação ou treinamento por um número mínimo de horas semanais. Em caso de o desempregado rejeitar uma oferta de trabalho ou ativação sem uma justificativa convincente pelo poder público, o pagamento dos benefícios pode ser interrompido. Ademais, a duração do período de recebimento de benefícios, tanto em um caso como em outro, foi reduzida consideravelmente, ainda que a Dinamarca mantenha um dos maiores períodos de duração desse tipo de benefícios. Existe, pois, uma divisão da provisão do bem-estar social entre, de um lado, benefícios generosos com enfoque de direitos dos trabalhadores integrados e, de outro, benefícios limitados e condicionados atribuídos aos setores pobres e marginalizados do mundo do trabalho (Abrahamson, 2009ABRAHAMSON, P. O retorno das medidas de ativação na política de bem-estar dinamarquesa: emprego e proteção social na Dinamarca. SER Social, v. 11 n. 25, p. 244-273, Brasília, 2009.: 270).

Os princípios distributivos, as instituições, em suma, a economia política desse tipo de regime de bem-estar da Dinamarca faz com que a diferenciação da "ativação" adotada se diferencie muito da de outros tipos de regimes. Nos países com um modelo marcadamente liberal, a ativação se baseia no princípio do workfare ou make work pay ou work first. Em geral, os estudiosos do tema não adotam o termo "ativação" para referir-se ao caso dos Estados Unidos, em razão da especificidade de seu modelo residual no contexto geral da política de proteção social, preferindo reservar a esse país o termo workfare. Nesse caso, um marco importante foi a reforma das prestações de assistência social cujos beneficiários eram principalmente as mães e os negros pobres, com o propósito de obrigá-los a aceitar as atividades (particularmente o trabalho de remuneração inferior aos preços de mercado) em contrapartida de seus benefícios (Barbier, 2009BARBIER, J.-C. . Le workfare et l'activation de la protection sociale, vingt ans après: beaucoup de bruit pour rien? Contribution à un bilan qui reste à faire. Lien Social et Politiquesn. 61, p. 23-39, 2009.). Tais programas foram testados nos anos 1970, porém, a reforma drástica da assistência social nos Estados Unidos ocorreu no governo Clinton, com a "Lei de reconciliação das responsabilidades pessoais e das oportunidades de trabalho" (Personal responsability and work opportunity reconciliation act). Votada em agosto de 1996 pelo Congresso, então com maioria do Partido Republicano, a lei alterou profundamente o sistema. A partir de então o workfare transformou-se em welfare-to-work, com a transformação do antigo benefício Aid for families with dependent children (AFDC), criado em 1935 por Roosevelt, na Temporary assistance for needy familie (TANF), mais restrita e punitiva. O principal aspecto a ser realçado na lei de 1996 foi a aplicação de um princípio de contrapartida, essencialmente em trabalho, sob pena de sanções financeiras sobre os benefícios, além da limitação da duração dos benefícios. Dito de outro modo, para merecer ajuda social, os pobres deveriam aceitar trabalhos.

Na Inglaterra, por sua vez, desde os anos 1990 generalizou-se a política em que os titulares de benefícios da assistência deveriam submeter-se a testes de sua capacidade para o trabalho (work tests). O carro chefe da política trabalhista de Anthony Blair era o denominado make word pay, inspirado na política estadunidense.

A estratégia de Lisboa, adotada 2000 pelo Conselho da União Europeia com políticas para tornar o bloco competitivo no cenário econômico mundial, inclui princípios de combate à pobreza e ao desemprego que se relacionam ao que aqui está sendo chamado de ativação. Nela é explícita a conexão entre as políticas econômica, social e a de emprego, pelas quais o regresso ao trabalho e a ativação têm posição central. Nessa perspectiva dá-se importância às medidas de promoção da capacidade individual, ao investimento na criança e ao trabalho feminino, além da rejeição das aposentadorias precoces (Britto, 2008BRITTO, M. A. Ativação - o atual rumo da política social para o trabalho no mundo. Mercado de Trabalho, n. 35, p.13-17, 2008.).

No caso da Alemanha merece destaque a reforma Hartz, realizada entre 2002 e 2004, durante o governo de Gerhard Schroeder, o qual modificou a assistência aos desempregados ao introduzir mecanismo para classificar os beneficiários como aptos para o trabalho. Isso está relacionado a mudanças que visaram prioritariamente atingir a população dependente de benefícios, com a redução da duração dos benefícios aos desempregados e uma maior pressão para aceitar ocupações. As mudanças no tradicional sistema passivo de bem-estar ocorrem com a adoção de princípios de ativação e de testes de meios para atribuição de benefícios a grupos focalizados. A lógica por trás dessas alterações estaria também relacionada à maior flexibilização do mercado de trabalho (Eichhorst, Grienberger-Zingerle & Kont-Seidl, 2005EICHHORST, W.; GRIENBERGER-ZINGERLE, M.; KONT-SEIDL, R. Activation politices in Germany: from status protection to basic income suppor". IZA Discussion Paper n. 2514, 2005.).

A situação da França justifica, a nosso ver, uma maior atenção no exame sobre a ativação da proteção social. A primeira razão é o que o país já havia tentado diversas medidas para evitar desemprego e reduzir a pressão sobre o emprego. Nos anos 1980, sob o governo Mitterrand, o país adotou políticas de estímulo à aposentadoria precoce e de redução da jornada semanal de trabalho, e recorreu a férias coletivas em certas situações em troca de menos demissões. Além disso, adotou instrumentos para retardar a entrada de jovens no mercado de trabalho, sobretudo por meio de subsídios para aumentar o tempo de estudo. Tais medidas, contudo, não resolveram o problema do desemprego e não contribuíram para a redução dos gastos com o Estado de bem-estar.

A segunda razão para o destaque decorre do fato de o governo francês, nos anos 1970, implementar de forma gradual o conceito inovador da noção de inserção social e profissional. Essa noção se oporia à de exclusão provocada pelo desemprego de massa, pela nova pobreza e pela crise dos vínculos sociais que protegiam os indivíduos (o trabalho, a família e a inserção em diversos coletivos). Associada a uma visão de solidariedade nacional e de compromisso com os cidadãos, a perspectiva de "inserção social e profissional" seria central para a adoção da ativação nas políticas sociais francesas. A criação, em 1988, da renda mínima de inserção (revenu minimum d'insertion - RMI) significou uma importante inovação no contexto do sistema francês de proteção social, tanto por introduzir a renda mínima como pela adoção do contrato de inserção estabelecido entre o beneficiário e o Estado. Trata-se, pois, de uma contrapartida onde o beneficiário se empenharia na busca de sua inserção social e laboral.

A condicionalidade de obrigação de busca de trabalho, que era limitada no RMI, foi adotada plenamente na reforma que levou à sua substituição em 2008 pela renda de solidariedade ativa (revenu solidarité active - RSA). A reforma se realizou sob os efeitos do desemprego e da desconfiança crescente em relação aos pobres e assistidos e as mudanças adotadas obrigaram os beneficiários a procurarem trabalho e a tomarem iniciativas para a melhoria de sua inserção social e profissional. Assim, a adoção de mecanismos de ativação revela transformações profundas em noções importantes para a sociedade francesa e que até então pareciam consolidadas, tais como a solidariedade nacional como valor central do Estado republicano e o trabalho como direito e vetor de cidadania (e não como elemento de punição aos que são apoiados pelo Estado).

A política francesa de inserção através da renda mínima foi acompanhada de dispositivos da política de emprego, tais como contratos de ajuda monetária e contratos de formação dirigidos a públicos prioritários. Além disso, houve a ação do Estado sobre os custos do trabalho, reduzindo notadamente o valor das cotizações obrigatórias pelos empregadores. Em decorrência dessas iniciativas, em muitos casos o Estado acaba se tornando, em última instância, o empregador, já que as empresas mantêm os beneficiários com recursos públicos.

Essas novidades se desenvolvem em um contexto no qual, além do desemprego de massa, o desenvolvimento da precariedade do emprego indica que, longe de atravessar uma crise passageira, o capitalismo entrou em uma nova fase, caracterizada pela desregulamentação da sociedade salarial, onde a precariedade dos empregos passou a ser a regra para grande parte da população (Duvoux & Paugam, 2008DUVOUX, N.; PAUGAM, S. La régulation des pauvres: du RMI au RSA. Paris: PUF, 2008.: 93).

Ao se referirem à França e aos Estados Unidos, Nicolas Duvoux e Serge Paugam afirmam que a incitação dos pobres ao trabalho está estreitamente associada aos ciclos de atividades econômicas:

A regulação dos pobres segue, por consequência, de maneira surpreendente, os ciclos da atividade econômica. Do estatuto de inúteis e de não empregáveis, eles podem passar em seguida ao estatuto de trabalhadores ajustáveis às necessidades da flexibilidade da vida econômica. Como os empregos que lhes são destinados são pouco atrativos em termos de salário e de condições de trabalho, é preciso incitá-los financeiramente a aceitá-los. O segredo consiste, então, em fazer passar por solidariedade o que, na realidade é, de fato, uma variável de ajuste econômico (Duvoux & Paugam 2008DUVOUX, N.; PAUGAM, S. La régulation des pauvres: du RMI au RSA. Paris: PUF, 2008.: 96, tradução livre das autoras).

Assim, dispositivos como a renda de solidariedade ativa, acima caracterizada, participariam da colocação dos indivíduos mais vulneráveis nos segmentos mais degradados do mercado de trabalho, transformando-os em trabalhadores em "situação de precariedade" (porque inseridos em empregos temporários e flexíveis, pouco remunerados, por vezes até mesmo estigmatizantes) e "assistidos" (porque recebem uma garantia de renda do Estado). A multiplicação de trabalhos "ajudados" pelo poder público acontece simultaneamente à existência de um grande número de assistidos que trabalham, contribuindo à institucionalização de um "subassalariamento" disfarçado. Essa interpenetração crescente da assistência e do trabalho é acompanhada, segundo Duvoux e Paugam (2008)DUVOUX, N.; PAUGAM, S. La régulation des pauvres: du RMI au RSA. Paris: PUF, 2008., de uma progressiva responsabilização dos assistidos pela situação precária em que vivem, além de marcar um dualismo no mercado de trabalho e no direito à proteção social. Surge, ainda, a questão se os beneficiários desse tipo de trabalho são socialmente identificados pela condição de trabalhadores ou pela condição de assistidos, visto que as duas condições se justapõem e aparecem como contraditórias.

Promessas e consequências da ativação

Segundo Barbier (2011BARBIER, J.-C. Activer les pauvres et les chomeurs par l'emploi? Leçons d'une stratégie de reforme. Politiques Sociales et Familiales, n. 104, p. 47-58, 2011.), o termo "ativação" é utilizado no jargão político sem muita precisão, como vocabulário ambíguo, impreciso e normativo. Porém, trata-se, na maior parte dos casos, de um eufemismo para significar tornar ativos os pobres e os desempregados.

O exame do discurso que sustenta essa política permite constatar a ênfase em palavras como "empregabilidade", "contrapartida", além da retórica "dos direitos e deveres". A responsabilidade de inserção e permanência no mercado de trabalho se transfere do social/coletivo para o individual.

Os vocábulos indicam transformações ideológicas associadas às reformas, onde se faz notar o discurso moralizador dos direitos e deveres:

O significado do termo exclusão deslizou desde sua pretensão multidimensional até uma aplicação unidimensional, escorada totalmente no simples fato de obter um emprego, independentemente da qualidade deste. Três piruetas retóricas produziram esta distorção na prática: primeiro, ainda que se defina a exclusão como um processo com porta de saída, o uso concreto a entende como condição estável de um coletivo; segundo, o critério para estimar se está sendo reforçada a coesão remete quase exclusivamente ao emprego; terceiro, aparecem mais alusões à necessidade de governar os excluídos que a de integrá-los (Fairclough 2000, apud Rambla 2005: 146, tradução livre das autoras)

Nesse âmbito, individualizam-se as trajetórias de trabalho proteção. A "contratualização", constantemente reiterada no discurso, refere-se a um compromisso assumido pelo beneficiário de procurar ativamente trabalho ou de seguir uma formação. Com frequência, a presença do Estado é reduzida ou é dispensada. O ideal perseguido seria o de cidadãos empenhados na resolução dos seus problemas e na valorização das iniciativas individuais para gerir sua própria trajetória de inserção.

No discurso que sustenta as reformas, o papel do indivíduo passa a ser o fator fundamental na resolução do problema social do desemprego. Serão as regras de condutas individualizadas as legitimadoras da situação e as facilitadoras da gestão. Pierre Rosanvallon (1998)ROSANVALLON, P. A nova questão social: repensando o Estado ProvidênciaBrasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998., reconhecido analista das transformações da questão social, vê no contrato de inserção uma obrigação positiva, na medida em que ele enriqueceria o princípio de solidariedade. A sociedade se compromete a oferecer ao indivíduo atividades de inserção e o indivíduo se engaja a participar. O contrato se funda sobre obrigações recíprocas e permite ultrapassar o Estado social passivo pela redefinição dos direitos sociais e formulação de obrigações positivas. Para o historiador francês seria também positiva a possibilidade de o Estado não se limitar a ações estandardizadas, mas esforçar-se em tratar situações personalizadas.

Outros autores, contudo, são críticos ao que consideram efeito ideológico de imposição em grande escala de uma lógica de projeto, como o contrato de inserção, com a linguagem institucional da "autonomia". Na perspectiva de Castel (2009)CASTEL, R. La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l'individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009., os contratos de inserção geram uma regulação individualizada e reforçam o "indivíduo em negativo". Ainda que possa parecer o contrário, porque envolvidos pelo discurso da solidariedade, os contratos não se contrapõem à crescente individualização dos riscos. Para o sociólogo, essa estratégia passa pela responsabilização dos beneficiários com os procedimentos que lhes concernem, contudo trazem consigo o risco de que o Estado se desfaça de suas responsabilidades próprias.

Aponta Barbier (2011BARBIER, J.-C. Activer les pauvres et les chomeurs par l'emploi? Leçons d'une stratégie de reforme. Politiques Sociales et Familiales, n. 104, p. 47-58, 2011.: 52) que a retórica política perseguiu objetivos simbólicos de afirmação de um discurso de responsabilização e, com frequência, de culpabilização das pessoas. Porém, onde foram adotadas, as reformas não geraram muitas realizações em termos de redução da pobreza, aumento das taxas de atividade e recuo da exclusão social, não foram observadas efetivamente as consequências prometidas pela ativação. Em balanço comparativo da aplicação das reformas na Europa e nos Estados Unidos, o autor conclui que as promessas de tornar os mercados de trabalho mais inclusivos e equitativos, bem como de integrar as pessoas pelo trabalho não foram alcançadas. O efeito mais visível das políticas adotadas é o controle das despesas sociais, que era um dos objetivos implícitos das estratégias de ativação. Em muitos países tal resultado foi atingido porque houve redução da duração do seguro desemprego.

Outro elemento importante associado a tais políticas de ativação - mas não causado unicamente por elas - é a dualização do mercado de trabalho e da proteção social, já mencionada. Nela estão, de um lado, os trabalhadores protegidos pelo regime de cotização social e, de outro, os trabalhadores assistidos pela solidariedade nacional. Ao se referirem ao caso da França, Duvoux e Paugam (2008)DUVOUX, N.; PAUGAM, S. La régulation des pauvres: du RMI au RSA. Paris: PUF, 2008. mencionam o subassalariamento crônico mantido pelos poderes públicos e o risco de institucionalização do subemprego precário de baixa remuneração. Existiria o risco de contaminação das normas do mercado de trabalho pela institucionalização progressiva de um segundo mercado de trabalho que os autores chamam de "menos protetor" e onde há menor reconhecimento do princípio da cidadania social.

Nos países mencionados nessa seção, a contração do volume de emprego e o desemprego estrutural, bem como a expansão de vínculos laborais precários e descontínuos são realidade. Assim, os segmentos específicos da população mais prejudicados são os jovens, as mulheres, os trabalhadores mais velhos e os menos qualificados. O núcleo duro da exclusão social é formado por famílias cujos membros não conseguem integrar-se ao mercado de trabalho. Se as políticas de ativação visam fazê-las aceitar os trabalhos que estão no mercado, a questão que se impõe é: ativar para "qual trabalho"?

A ativação dos sistemas de proteção social não é sinônimo nem é responsável pela flexibilização dos sistemas jurídicos (direito ao trabalho), porém ela se desenvolve junto a este processo. A flexibilização não necessariamente implicaria insegurança e desproteção, contudo, a realidade do trabalho flexibilizado é com frequência de emprego precário, em tempo parcial ou baixo salário.

O fenômeno dos trabalhadores pobres na Europa é real. Porém, nem sempre esteve considerado no debate político, que, com frequência, enxerga apenas a pobreza como associada à inatividade laboral. No entanto, uma parte importante dos pobres europeus trabalha, e a maioria vive em domicílios onde há ao menos uma pessoa que trabalha. Ou seja, nesses casos, o trabalho nem sempre oferece proteção absoluta frente à pobreza. Com postos de trabalho precários e desprotegidos, acabam persistindo as situações de exclusão, de marginalização da dinâmica econômica e social. Além disso, na Europa também os baixos salários ocupam lugar importante no processo de precarização do emprego e erosão de sua capacidade de inserção social. A experiência de tais condições desfavoráveis se concentra de forma desproporcional entre as mulheres e os trabalhadores de tempo parcial, os jovens, as pessoas com contratos de duração determinada e as pessoas de baixa qualificação (Zalakain 2006ZALAKAIN, J. Trabajo, trabajadores pobres e inserción social. Documentación Socialn. 143, p. 46-76, 2006.: 49).

Tendo em vista que na história dos sistemas de proteção social os sujeitos de direitos sociais são antes os trabalhadores, consideramos importante, nesse momento, refletir sobre a inserção destes direitos no processo de cidadania. Nosso propósito será mostrar como as mudanças introduzidas pelas políticas de ativação podem abalar a cidadania.

Cidadania e vida civilizada

A reflexão a seguir pretende mostrar a importância do desenvolvimento da cidadania como pano de fundo do problema da marginalização de setores sociais em desemprego e dos serviços de proteção social que o atual Estado de bem-estar não consegue prover. A pergunta central é: seria possível definir um limite para a tolerância a essa exclusão, um ponto a partir do qual se tornasse impossível falar de compartilhamento de um padrão da vida civilizada e, em última instância, da democracia? Com o objetivo de responder a essa pergunta será feita uma discussão sobre o aporte trazido por Thomas Humphrey Marshall (1967)MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. à teoria da cidadania.

O primeiro atributo da teoria de T. H. Marshall a ser realçado refere-se à definição da cidadania como processo de inclusão social que se expande em duas direções, na incorporação de novas pessoas antes excluídas e na criação de novos direitos (civis, políticos e sociais). O segundo aspecto diz respeito à contradição contida no processo de inclusão que visa à igualdade de direitos em uma ordem econômica desigual. Isto é, em sendo a sociedade capitalista uma sociedade de classes, como conviver com o princípio da igualdade próprio da cidadania. O terceiro diz respeito aos conteúdos do processo de cidadania que implicam no compartilhamento de um padrão de vida civilizada.

Enquanto processo de inclusão social que se desenvolve incluindo mais pessoas e criando novos direitos, T. H. Marshall supõe a industrialização crescente em uma sociedade mobilizada e em uma ordem democrática na qual estarão estabelecidos os princípios básicos da poliarquia, ou seja, o debate público e a capacidade de representação. Do ponto de vista econômico, o direito civil básico correspondeu à entrada no mercado de trabalho, o direito, então inédito, a escolher a ocupação e o lugar, desde que cumprida a qualificação básica. Esta foi uma mudança de atitude tão importante que a restrição a ela passou a ser considerada ameaça à prosperidade da nação. Tratava-se de garantir a liberdade individual, a liberdade de ir e vir, de comerciar, competir e ainda de estabelecer contrato de trabalho. Quanto aos direitos políticos, estes já têm um caráter mais coletivo e, no caso da classe trabalhadora inglesa, significou também romper a barreira do direito de associação, inicialmente impedido aos sindicalizados, conforme mostrou Reinhard Bendix (1996BARBIER, J.-C. . Of similarities and divergences: why there is no continental ideal-type of "activation reforms"? CES Working Papers 2010/75.). A extensão dos direitos políticos amenizou a contradição existente entre a desigualdade do mercado e os direitos iguais dos cidadãos.

Quanto aos direitos sociais, estes também têm um caráter coletivo e, conforme formulou Bryan R. Roberts (1970), guardam uma conexão clara com os outros dois direitos. São os direitos civis e políticos que garantem a pressão sobre o Estado, no sentido de garantir a redução das desigualdades econômicas e da insegurança:

Para Marshall, a cidadania social constitui, então, um meio poderoso e indispensável de alcançar a integração social diante das desigualdades criadas pelas economias de mercado (Roberts, 1997ROBERTS, B. A dimensão social da cidadania. RBPS. n.33, p. 5-22, Fev. 1997.: 7).

Quanto à formulação de T. H. Marshall (1967)MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. sobre a convivência da expansão da igualdade com uma ordem econômica desigual, esta merece uma discussão mais atenta. Em sua teoria da cidadania está sugerida a pergunta: qual seria o nível de desigualdade compatível com a igualdade da cidadania? A resposta encontra-se nas preocupações de seu antecessor, o economista Alfred Marshall, para quem a chave para resolver essa questão estaria nas condições de trabalho. Se o trabalho a que se submete o cidadão fosse tão brutal e extenuante que o impedisse de introjetar o princípio do dever, seria intolerável a desigualdade. O princípio do dever - duty - está estreitamente relacionado à ideia de chilvary, um sistema de regras compartilhadas, para ele mais importante no desenvolvimento da cidadania do que a igualdade.

Para melhor discutir a questão, deve-se considerar que na teoria do desenvolvimento da cidadania de Alfred Marshall há uma preocupação inequívoca com a unidade e integração da sociedade. Isto sugere que haveria um ponto de desigualdade no qual os indivíduos perderiam os requisitos para compartilhar certos valores e poderiam subtrair lealdade à sociedade e ao Estado ou perderiam a dignidade humana necessária ao funcionamento da sociedade. No período do "vitorianismo tardio", quando o crescimento da desigualdade tomou uma proporção desconhecida nas cidades inglesas, foram vários os estudiosos que se debruçaram sobre a questão. Os trabalhos de Gertrude Himmelfarb (1984)HIMMELFARB, G. The idea of poverty London: Faber and Faber, 1984. assinalam a preocupação com o tema por parte de um amplo leque de profissionais e pensadores (estatísticos, sanitaristas, demógrafos, humanistas) que tentavam responder à questão sobre o limite de tolerância à desigualdade. Portanto, haviam estudiosos preocupados com a questão da pobreza como problema sociológico. Alfred Marshall foi um desses estudiosos e inquietou-se sobre qual seria o nível de desigualdade compatível com a cidadania. Sua resposta é que a cidadania só seria compatível com um determinado nível de pobreza que não brutalizasse o homem em trabalhos extenuantes. Se o homem, apesar de subordinado à disciplina do trabalho, mantivesse a capacidade de discernir o sentido de dever, sua pobreza seria compatível com a de um "cavalheiro". Portanto o princípio da cidadania estaria acoplado à ideia de "cavalheirismo", principalmente no que se refere ao dever. Sua conferência proferida em 1949 é a principal inspiração de T. H. Marshall na discussão da compatibilidade entre cidadania e desigualdade, em seu emblemático trabalho escrito na década de 1960.

À primeira vista a ideia de "cavalheirismo" contida nas definições de T. H. Marshall pode parecer supérflua a ponto de não ser reconhecida sua relevância. Léa G. Souki (2006)SOUKI, L. G. A atualidade de T. H. Marshall no estudo da cidadania no Brasil. Civitas. v. 6, n. 1, p. 39-58, 2006., ao contrário, crê que esse princípio guarda uma discussão atual e procedente no que diz respeito à crise do Estado de bem-estar no final do século XX. Desse modo, hoje, a pergunta feita poderia ser colocada nos termos: até que ponto, a unidade, a integração e a prosperidade da sociedade estariam garantidas em um ambiente de empregos precários e desemprego estrutural? Haveria um nível de tolerância que, se ultrapassado, colocaria em risco a lealdade ao Estado e os laços que conectam a sociedade? Enfim, em que medida a autoridade e a solidariedade seriam compatíveis com a desigualdade gerada pela marginalização no mercado de trabalho? O que aqui se coloca é se isso poderia ser considerado um problema na discussão da democracia em tempos de crise e restrição do trabalho. É possível haver um enriquecimento do padrão concreto da vida civilizada convivendo com alto nível de exclusão do mercado de trabalho? Qual seria o nível de tolerância compatível com o status de cidadão em uma sociedade na era da desregulamentação produtiva?

O terceiro ponto a ser desdobrado da teoria marshalliana diz respeito à expansão da cidadania como o compartilhamento de um "padrão crescente da vida civilizada", que se constitui em um aspecto contido no ponto anterior. Ao tratar do alcance dos serviços sociais para igualar as rendas, T. H. Marshall afirma:

O que interessa é que haja um enriquecimento geral da substância concreta da vida civilizada, uma redução geral do risco e da insegurança, uma igualação entre os mais e menos favorecidos em todos os níveis [...]. A igualdade de status é mais importante que a igualdade de renda (Marshall, 1967MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.:94-95).

Aqui fica claro que a cidadania inclui aspectos não tangíveis, além do mundo material, portanto não se trata de uma novidade quando hoje se redefine a questão da pobreza para além da renda.

Em sua obra, ao tempo em que propõe de maneira original a distinção entre as cidadanias, civil, política e social, T. H. Marshall também enfatiza a necessidade de desenvolvimento de todos os direitos para a integração da sociedade. Os direitos civis e políticos são premissas para a definição e o desenvolvimento dos direitos sociais. Estes, conforme observou Roberts (1997)ROBERTS, B. A dimensão social da cidadania. RBPS. n.33, p. 5-22, Fev. 1997., não significam a mesma coisa em todas as sociedades, a cidadania social tem a capacidade de se redefinir e se reinventar de acordo com o padrão da vida civilizada de cada sociedade. Se os padrões prevalecentes na sociedade mudam, então há de se reconsiderar o que vem a ser a vida civilizada, na medida em que a condição de desemprego se torna crônica (ou que, para grandes parcelas da população, o trabalho já não é mais sinônimo de emprego formal estável). Diante disso, volta-se ao ponto de considerar a contribuição da política social para tornar possível e razoável, na medida em que as desigualdades são mitigadas, a convivência entre o "capitalismo suficientemente civilizado", de uma parte, e a democracia, de outra.

Contudo, tomando-se em conta a discussão anterior, a ideia de "vida civilizada" é ainda mais ampla. Pressupõe uma preocupação com a coesão da sociedade, o pertencimento a uma comunidade cívica e a participação dos cidadãos no compartilhamento de metas coletivas. A cultura passa a ser entendida como "unidade orgânica e sua civilização uma herança nacional" (Marshall, 1967MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.: 74). Portanto, pressupõe uma sociedade aquiescente com os valores produzidos pela civilização e um Estado capaz de gerar autoridade. Tratar-se-ia da tese weberiana do acoplamento da autoridade com a solidariedade, o Estado evita a fragmentação da autoridade pública, ao tempo em que se conecta à sociedade e a garante enquanto tal.

Não há como desconsiderar que, na atualidade, a teoria do desenvolvimento da cidadania deve operar com circunstâncias mais complexas do que na década 1960, quando T. H. Marshall escreveu o seu trabalho. A luta pela cidadania passou a envolver necessariamente problemas de identidade nacional e de formação do Estado no contexto do multiculturalismo e do pluralismo étnico. Ao se pensar esse novo contexto surge, ainda, a questão econômica na nova divisão internacional do trabalho.

Seria o processo de conquistas cidadãs, evolutivo e irreversível? A partir da década de 1970, com as pressões sobre os Estados de bem-estar, conquistas feitas em períodos anteriores vêm sendo perdidas, conforme foi apontado neste artigo. O processo de cidadania contido na teoria de T. H. Marshall supõe conquistas irreversíveis. Haveria, pois, um evolucionismo contido em sua teoria, conforme assinalam seus críticos, que merece ser considerado. Aspecto que se torna mais significativo ao se considerar os vários autores que demonstram a reversibilidade das conquistas cidadãs e estão mencionados neste artigo. Ou seja, no caso do desemprego, este altera o padrão geral da vida civilizada, o que sugere uma ruptura de um modelo em que capitalismo e desenvolvimento da cidadania ocorreram juntos. Na atualidade apresenta-se o desafio de manter integrada uma sociedade que exclui da vida produtiva um considerável percentual de sua população economicamente ativa.

De volta à análise sobre as políticas de ativação que têm sido implantadas ao redor do mundo, é evidente a erosão do status social resultante do questionamento à titularidade de direito e ao condicionamento do direito. Neste contexto, é relevante refletir sobre a possibilidade de convivência da democracia com a ausência de proteção social de setores tais como os desempregados crônicos, a população em situação de pobreza beneficiária da assistência e o crescente contingente de pessoas inseridas em um mercado de trabalho flexibilizado que oferece mais precariedade do que proteção.

Ao investigar as implicações das reformas de ativação da proteção social, Sigrid Beltzelt e Silke Bothfeld (2011)BETZELT, S.; BOTHFELD, S. (Eds.). Activation and labour market reforms in Europe: challenges to social citizenship Hampshire; New York: Palgrave Macmillan, 2011. mostram que elas revelam uma mudança normativa mais profunda nos padrões de cidadania social. Segundo as autoras, as estratégias de ativação, por enfatizarem a participação no mercado de trabalho como o único mecanismo de integração social e alterar as condições de acesso à provisão de política social, afetam profundamente a forma e a substância da provisão de segurança social. Elas seguem as políticas liberais de prover o mínimo para a integração individual no mercado de trabalho e,

assim, a segurança social é concebida em termos de um direito individual à subsistência e não uma matéria coletiva ou política, como tem sido sugerida por Marshall (Beltzelt & Bothfeld 2011BETZELT, S.; BOTHFELD, S. (Eds.). Activation and labour market reforms in Europe: challenges to social citizenship Hampshire; New York: Palgrave Macmillan, 2011.: 5).

Em consequência, ocorrem mudanças na regulação das relações sociais dos cidadãos e no relacionamento entre cidadão e Estado, afetando o conjunto da população e não apenas aqueles grupos diretamente afetados pelas medidas de ativação. As autoras veem um processo mais profundo que o mero fortalecimento da divisão entre incluídos e excluídos. Ocorre a erosão do núcleo do status de emprego do qual os atores sociais derivam seus recursos políticos. Desse modo, as reformas de política social são muito mais políticas do que possam parecer à primeira vista, pois abarcam a percepção de que a política social se funda em uma noção de coletivo. As autoras se apoiam na teoria de T. H. Marshall para lembrar que as políticas sociais

não tratam de apenas defender as titularidades individuais ou proteger os mais fracos por razões funcionais, mas representam uma batalha política árdua sobre a definição dos bens coletivos dos direitos sociais (Beltzelt & Bothfeld, 2011BETZELT, S.; BOTHFELD, S. (Eds.). Activation and labour market reforms in Europe: challenges to social citizenship Hampshire; New York: Palgrave Macmillan, 2011.: 11, tradução livre das autoras).

Considerações finais

A relação entre trabalho e proteção social precede à sociedade moderna e ao Estado de bem-estar. É clássica a dicotomia entre os pobres que merecem ajuda (porque previdentes, discretos, incapazes para o trabalho) e os pobres que não merecem. Enfim, a definição se faz entre os "bons" e os "maus" pobres.

Nas sociedades modernas capitalistas, em países cujos sistemas de proteção social foram fundados com base no vínculo entre trabalho/inserção profissional e direitos, a lógica ativa está presente na arquitetura de todos os sistemas, isto é, na relação com a presença no mercado de trabalho. No entanto, há uma "nova ativação", inaugurada nos anos 1980 e estendida aos anos 2000. O essencial da nova ativação é a explicitação dos mecanismos de conexão entre obrigações e recebimento das prestações, mecanismos estes que são variados. Nela há maior exigência com relação aos desempregados e às pessoas assistidas com ajudas sociais.

Esses processos ocorrem em um contexto mais amplo de reindividualização dos riscos e das incertezas, de ressurgimento da pobreza e do desemprego massivo nas sociedades de economia desenvolvida, além de pressões de vários tipos sobre as estruturas de bem-estar social que foram sendo constituídas ao longo do século XX em cada país.

A substituição dos direitos que caracterizaram por décadas o welfare State pelos direitos condicionados pelo cumprimento de obrigações atinge a parte da população assistida e desempregada. Isso estaria levando à substituição da "era da reciprocidade" pela "era da responsabilidade" (Paz-Fuchs 2008PAZ-FUCHS, A. Welfare to work: conditional rights in social policy. New York: Oxford University Press, 2008.: 201).

Como vimos, nas sociedades contemporâneas estão em curso mudanças significativas nas políticas sociais com relação ao enfrentamento de riscos. Elas significam descoletivização e maior individualização, como mostrou Castel (2009)CASTEL, R. La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l'individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009., além da ênfase nas políticas ativas principalmente voltadas àqueles que recebem os benefícios de assistência e auxílio desemprego. Tais medidas visam fazer com que os beneficiários regressem ao mundo trabalho ou nele se insiram pela primeira vez. Para encorajar ao trabalho e diminuir a possibilidade de que benefícios sejam desincentivo ao trabalho, são impostas contrapartidas ao recebimento de benefícios e o direito à proteção é condicionado. Alguns autores identificam nas obrigações de contrapartida medidas disciplinares e punitivas que são a expressão da suspeição da sociedade sobre as pessoas assistidas e aquelas que não conseguem manter-se empregadas.

Na economia política dos programas de ativação, a questão moral ocupa lugar central. Os indivíduos que recebem apoio do Estado devem retribuir pelos benefícios recebidos, mostrando-se ativos e comprometidos. Há amplo questionamento se é justo que pessoas recebam apoio do Estado e difunde-se a ideia de que, para merecer os benefícios, elas devem demonstrar responsabilidade e aceitar as condições que lhes são impostas.

A legitimidade das políticas de ativação e sua força para orientar as políticas sociais viriam da proposta de combater as práticas que geram desestímulo e dependência. Nessas propostas há pouco espaço para a discussão sobre as características reais dos empregos onde são enquadrados os beneficiários de seguros desemprego e ajudas públicas. Parcela importante desses postos de trabalho é flexível ou claramente precária por sequer estar protegida pelos direitos trabalhistas consagrados. E, como assinalamos anteriormente, nesse contexto, a empregabilidade é considerada apenas como característica individual.

Que consequências isso provoca para a cidadania entendida como pertencimento em bases igualitárias a uma comunidade política? Como foi mencionada anteriormente, a cidadania, quando compreendida em termos marshallianos, supõe um enriquecimento do padrão geral da vida civilizada. As políticas de ativação e os novos valores que estão nelas implícitos significariam a fragilização desse padrão. Assim entendido, as políticas de ativação levariam a um retrocesso em termos de proteção social e especialmente em termos de integração social. Há suspeitas constantes da sociedade sobre os setores pobres que recebem benefícios, porém, há pouco espaço para o questionamento dos benefícios entregues aos setores mais ricos e às classes médias, pois esses seriam invariavelmente considerados pela ótica do mérito.

As promessas das políticas de ativação, de contenção à progressão do desemprego e ao aumento da pobreza não estariam, contudo, sendo cumpridas. Coloca-se a questão sobre o tipo de emprego criado por estes dispositivos, pois através de diversos mecanismos de políticas públicas estariam sendo promovidos novos postos de trabalho fora do núcleo central e protegido da economia, em colocações temporárias ou em atividades de empreendimento individual. Uma parcela da população estaria sendo conduzida a uma condição de assistência e de trabalho parcial, em postos de trabalho subsidiados pelo Estado e com baixa remuneração. Além disso, alguns estudos têm indicado que o deslocamento dos indivíduos da assistência para o trabalho remunerado nem sempre significa ultrapassar a linha da pobreza.

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  • *
    Este texto foi apresentado com o título "Democracia, cidadania e trabalho" no VII Congreso Latinoamericano de Ciencia Política, organizado pela Asociación Latinoamericana de Ciencia Política (Alacip), realizado em Bogotá (Colômbia) de 25 a 27 de setembro de 2013. As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais o apoio ao projeto n.o 0435/13.
  • 1
    . Chamamos a atenção que a constituição de políticas sociais na sociedade salarial não se explica simplesmente pela mobilização dos trabalhadores, mas está ainda associada a coalizões políticas e, definitivamente, ao tratamento de conflitos dentro do sistema político e à adoção de um modelo de desenvolvimento que abranja os direitos sociais.
  • 2
    . É relevante distinguir o paradigma de proteção social - fundamentado no seguro social - do paradigma fundamentado na assistência social. Tradicionalmente, o componente assistencialista é visto como necessidade de suprir proteção para aqueles setores - pobres, necessitados e vulneráveis - que não são cobertos, ou o são de modo insuficiente, pelos direitos do trabalho e pela seguridade.
  • 3
    . A mais conhecida (também criticada e revista) classificação de modelos de bem-estar foi estabelecida por Esping-Andersen (1991)ESPING-ANDERSEN, G. As três economias políticas do welfare State. Lua Nova, n. 24, p. 85-116, São Paulo, 1991., que estipulou a célebre distinção entre os tipos universalista, corporativista e residual, utilizando como critérios o grau de "desmercantilização" e "desfamiliarização" dos bens e serviços sociais.
  • 4
    . O modelo adotado na Alemanha por Otto von Bismarck, no final do século XIX, inaugurou o seguro nacional compulsório, enraizado no contrato de trabalho e organizado por categorias profissionais (Kerstenetzky, 2012KERSTENETZKY, C. L. . O Estado do bem-estar social na idade da razão: a reinvenção do estado social no mundo contemporânea Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.: 5).
  • 5
    . O modelo inglês baseia-se no status de cidadania e estabelece o direito a um padrão de vida mínimo para todos, com seguridade social financiada com recursos tributários. Esse modelo universalista está associado às reformas propostas por William Beveridge ao governo britânico em 1942.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2015
  • Aceito
    08 Fev 2016
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