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E a tragédia continua

MEARSHEIMER, John J.. The tragedy of great power politics. New York: W. W. Norton & Company, 2014

Após três lustros de sua primeira edição em 2001, The tragedy of great power politics de John J. Mearsheimer reaparece em versão revisada e ampliada. A razão é simples: o tempo lhe deu razão: a tragédia mundial continua. Nada de seu argumento e de sua teorização foi refutado. Nenhum aspecto de sua racionalidade foi modificado. Toda a sua fundamentação histórica e filosófica continuou sendo progressivamente louvada. Foi um clássico de nascença e essa sua nova versão é um importante convite à sua contínua apreciação. Senão, vejamos.

Estados Unidos da América, outono de 2001. Os norte-americanos ainda perplexos com o 9/11 removiam os destroços do World Trade Center e reconstruíam partes do Pentágono. O presidente George W. Bush (2001-2009) já tinha começado a sua guerra ao terror. O Afeganistão virara seu objeto de ocupação e manipulação. Osama Bin Laden e os membros da al-Qaeda eram procurados vivos ou mortos por todo custo e meios. O triunfo do mundo livre e da democracia liberal anunciado anteriormente desmanchava no ar. A última superpotência restante fora golpeada de fato. Seu glamour e sua onipotência vibrantes estavam irreconhecivelmente frágeis. Sua autoconfiança, vulnerável. O sempre negligenciado mundo árabe, o mesmo dos choques de petróleo dos anos de 1970, mostrava que a história jamais tem fim. Não tinha jeito: era, sim, a revanche dos retirados da história. A agonia, como sempre, suplantava a razão. E nessa consternação, The tragedy of great power politics ganhava a sua primeira edição.

A euforia em torno deles, livro e autor, foi intensa, imensa e imediata. Muitos comparavam a obra a Politics among nations e o autor a um Hans J. Morgenthau do século XXI. Paul Kennedy, autor do clássico The rise and fall of great powers, chegaria a afirmar serem John J. Mearsheimer e The tragedy of great power politics espécie de Maquiavel e Príncipe contemporâneos.

Nos 15 anos seguintes o mundo deu muitas voltas. A Iraqi freedom do presidente Bush se revelou outro Vietnã norte-americano. A mentira e o escárnio do secretário de estado Colin Powell diante das Nações Unidas sobre a existência de armas de destruição massiva nos domínios de Saddam Hussein e a subsequente ofensiva dos Estados Unidos sobre o Iraque mesmo sem a unanimidade entre os membros permanentes do Conselho de Segurança promoveram a maior desmoralização e humilhação da instituição multilateral, desde sua fundação no pós-1945. O efeito nefasto dessa investida foi a ampliação do antiamericanismo por toda parte e não simplesmente pela verve do falecido presidente Hugo Chaves.

O presidente George Bush fora reeleito em 2004 sob a poeira da cobrança da honra ferida de seu país. Mas quatro anos depois, nas eleições de 2008, não conseguiria fazer seu sucessor. Além do profundo mal-estar causado pelas controvérsias no Iraque - entre elas a morte de milhares de soldados norte-americanos e as revelações do Wikileaks de Julian Assange -, a crise financeira mundial iniciada em 2007 mostrava a ingerência de um sistema e a incompetência de um governo. O candidato Barack Obama prometeu superar essa situação com o seu "Yes, we can". A esperança vencera o medo e o primeiro afro-americano ascendia à presidência do mais onipotente e onisciente Estado nação do planeta.

Sair do Iraque e salvar instituições too big to fail virou sua obsessão. Em seu famoso discurso do Cairo, em junho de 2009, Obama afirmaria a todos "We can not impose peace". E na reaproximação com o mundo árabe ele iniciaria o ruidoso processo de destituição da islamofobia causada pela guerra ao terror de seu antecessor.

Esse empenho ganharia evidência na dita primavera árabe quando, entre 2010 e 2011, os povos da Costa do Marfim, da Tunísia, do Egito, da Líbia, de Bahain, da Síria começaram a demandar o fim das ditaduras seculares e a deposição de ditadores em seus países. Entre um evento e outro, o presidente norte-americano seguia obstinadamente os passos do verdugo do 9/11. De tanto caçar, apanhou e matou e no dia 2 de maio de 2011 diria ao mundo que "a decade of war is ending".

Dava-se assim a entender que doravante seria efetivamente o momento da cooperação. Mas a investida na Líbia fracassara retumbantemente. O coronel Gaddafi fora retirado do poder e da vida e os líbios iniciaram uma guerra sem fim que desembocaria nas tragédias humanitárias averiguadas no Mediterrâneo com o naufrágio permanente de embarcações trazendo sobreviventes da morte e fugitivos da dor da Líbia pós-Gaddafi. A esperança das estações árabes começou a virar pesadelo.

Na Síria, o clã de Bashar al-Assad ultrapassou a linha vermelha da utilização de armas químicas contra os dissidentes em seu próprio país e os guardiões da paz internacional liderados pelos Estados Unidos América simplesmente observaram passivos. No Irã se ia enriquecendo urânio com interesses domésticos e também nucleares. Na Ásia e na África a China ia afirmando seu domínio por terra e mar. Na Eurásia a Rússia não demoraria a coagir a Ucrânia e anexar a Crimeia. Somado a isso vieram as denúncias de Edward Snowden sobre o sistema de escuta globais da National Security Agency. A União Europeia seguia o seu malaise diante da crise de sua moeda e de sua aventura de integração transnacional. Grécia, Portugal, Irlanda e Espanha foram muitas vezes implicitamente convocados a sair da União abandonando os pactos e o euro. O imperativo da austeridade virou o mantra dos Estados. Mesmo os Brics que pareciam a indicação de algum equilíbrio econômico internacional para além dos países ditos centrais começaram a malograr a partir de 2012. Cada um de seus componentes - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - vive a crise que lhe toca viver. Basta assuntar simplesmente a situação da ex-presidente Dilma Rousseff desde junho de 2013 que não é muito diferente da de seus homólogos. Da África para o mundo se proliferou o vírus Ebola. Na Nigéria o Boko Haran começou a mostrar a face mais repugnante da natureza humana aninhada na covardia que seria apenas equiparada aos feitos dos caprichosos cortadores de cabeças do Daesh autodenominados Estado Islâmico.

Isso indica o quão instável e questionável segue o mundo. O quão complexas são as interações entre os países e o quão daninhas as suas relações podem ser. Essas evidências demonstram, portanto, que a tragédia continua. E justamente por isso John J. Mearsheimer reapresenta seu The tragedy of great power politics em versão revisada, atualizada e aumentada.

Já se disse que o século XXI promete ser menos letal que o século precedente. Uma guerra de proporções mundiais como a de 1914-1918 ou 1939-1945 está completamente fora do cenário. Mais isso não quer dizer que o mundo segue menos perigoso; que as relações entre os Estados sejam menos tensas. E que a paz seja o bem adquirido.

Jamais se viveu um momento tão instável e complexo como o que nos toca viver após 1989, 2001 e 2008. Daí a importância de teorias que nos permitam entender mais e melhor onde estamos e para onde poderemos eventualmente nos dirigir. Nessa aferição se encontra a força dessa nova edição de The tragedy of great power politics.

No meio restrito das Relações Internacionais, Mearsheimer representa a quintessência da tradição do realismo clássico inaugurada em 1948 por Politics among nations de Hans J. Morgenthau e revigorada como neorrealismo em 1979 por Theory of international politics de Kenneth Waltz. Seu aparato técnico procura recuperar o historicismo filosófico do primeiro e o estruturalismo sociológico do segundo. Seu indicativo teórico defende em oposição a Kenneth Waltz e valoração de Hans J. Morgenthau o realismo ofensivo como axioma de compreensão do meio internacional. Em Mearsheimer, desse modo, a estrutura do sistema internacional não dispõe de autoridade superior para dominar a irracionalidade dos Estados que temem sucumbir e, por conseguinte, procuram incessantemente ampliar sua capacidade de sobrevivência com a ampliação de seus meios materiais vitais. Porquanto nessa percepção, os Estados indispõem de amigos no meio internacional. Possuem quando não inimigos, rivais, nos quais convém não se confiar.

O núcleo desse raciocínio de John J. Mearsheimer advém essencialmente da incapacidade e/ou conveniência das teorias promovidas pelo neorrealismo de Kenneth Waltz em prever o fim do conflito Leste-Oeste. O argumento essencial de Theory of international politics de Waltz sustenta o realismo defensivo como o coração da segurança internacional visto que normas e leis da estrutura do sistema internacional somadas ao duopólio entre o mundo livre e o mundo soviético promovido pela guerra fria impediriam uma escalada de violência. Com o esboroamento do duopólio, a esquematização de Kenneth Waltz desmoronou. Foi efetivamente John Mearsheimer em seus artigos Back to future de 1990 e The false promise of international institutions de 1994-1995 o primeiro a pôr em questão essa esquematização do neorrealismo. The tragedy of great power politics segue no desdobramento desses artigos.

Normas e instituições - no entender de John J. Mearsheimer - são impotentes diante da fúria dos Estados por sobrevivência. Mesmo que o establishment norte-americano defenda um liberalismo institucional mundial desde os tempos do presidente Woodrow Wilson ou mesmo desde os founding fathers, na prática, como vai demonstrando Mearsheimer, a teoria é outra. Essa retórica liberal beira o cinismo quando contrastada aos empenhos permanentes e agressivos dos Estados Unidos para manter os meios de sua sobrevivência.

São muitos os recursos de grandes potências como os Estados Unidos para ampliar a sua capacidade vital. O objetivo final de todas consiste em virar hegemônico do sistema inteiro. Como isso não parece completamente exequível, elas partem para a dominação regional por fatores econômicos, militares, demográficos, territoriais, marítimos, aeroportuários e nucleares. Nesse empenho podem participar ou instigar guerras com rivais, forjar intimidações e impor aos aliados que combatam seus rivais comuns.

Essa teorização de John J. Mearsheimer vai ancorada em densa reconstituição histórica e historiográfica da ascensão e queda de nações. Ou como ele mesmo diz: do momento de "great powers in action". Seu suposto compreende das guerras napoleônicas à ascensão irresistível da China nesses inícios de século XXI. Como exemplos de atuação vão observados o Japão da reestruturação Meiji de 1868 aos ataques a Hiroshima e Nagasaki em 1945, a Alemanha do reich de Otto von Bismark ao de Adolf Hitler, a URSS de 1917 a 1990, o Reino Unido de 1792 a 1945 e os Estados Unidos de 1800 a 1990.

Em todos esses casos fica evidente a fragilidade do imperativo da cooperação diante do instinto natural de sobrevivência dos Estados.

A maior inovação de Theory of international politics de Waltz em comparação a Politics among nations de Morgenthau foi justamente considerar a anarquia do sistema internacional como depositária da própria estrutura do sistema. Hans J. Morgenthau em muito influenciado por Moral man and immoral society de Reinhold Niebuhr e The twenty years' crisis de Edward Carr, mas efetivamente baseado em toda a tradição pessimista que recobre de Tucídides a Dante a Maquiavel a Shakespeare a Jean Bodin a Thomas Hobbes a Rousseau a Clausewitz a Charles Darwin a Marx Weber, considera que a anarquia do sistema internacional emerge da imperfeição da natureza humana encarnada nos Estados que compõem o sistema. John J. Mearsheimer segue Kenneth Waltz na definição da estrutura anárquica do sistema internacional, mas acorda com Hans J. Morgenthau na aferição da imprevisibilidade dos Estados. Ou seja, os Estados temem-se uns aos outros e esse sentimento pode lhes conduzir à aplicação de seus instintos os mais primitivos.

Foram esses instintos primitivos que galvanizaram a guerra ao terror do presidente George Bush e serão eles os eventuais responsáveis por uma possível escalada de conflitos entre os Estados Unidos e a China na busca da afirmação como hegemônico do sistema internacional nos contenciosos do Oriente Médio e da África. E, por ser assim, parece absolutamente oportuna essa nova edição de The tragedy of great power politics de John J. Mearsheimer, especialmente em razão de sua mensagem fundamental que lembra a todos que, quer se queira quer não, a tragédia continua.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2015
  • Aceito
    07 Jun 2016
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