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As faculdades de direito e o recrutamento de professores de ensino superior na Primeira República

The Law schools and the recruitment of higher education’s professors during the First Republic

Resumo

O presente texto é resultante do aproveitamento parcial de um conjunto de informações que compuseram uma pesquisa mais ampla sobre as relações entre a transformação de princípios de legitimação e os processos de recrutamento e recomposição de elites no Brasil. A análise aqui desenvolvida centra-se nas condições sociais e institucionais de ingresso na condição de professor de ensino superior nas faculdades de direito após a instauração do regime republicano, em 1889. O material empírico utilizado é composto por um total de 62 agentes que integram os quadros docentes do no ensino jurídico em fins do XIX. O objetivo central é apreender os efeitos da diversificação institucional para o recrutamento e carreiras dos professores de ensino superior. Neste sentido, os principais resultados apontam para uma diferenciação nas bases sociais do recrutamento e, ao mesmo tempo, a manutenção de determinados padrões de carreiras.

Palavras-chave:
recrutamento; faculdades de direito; professores de ensino superior; Primeira República

Abstract

The text here presented is the result of a partial use of a set of informations that composed a more large research about the relations between the transformation of principles of legitimation and the recruitment processes and elites recomposition in Brazil. The analysis developed here focuses on the social and institutional conditions of admission of higher education professors in Law schools after the republican regime establishment, in 1889. The empirical data used is composed by a total of 62 agents that are part of the Law education teaching staff at the end of XIX. The main goal is to aprehend the effects of the institutional diversification when dealing with the higher education professors’ recruitment and professional career. As such, the main results point to a distinction on the recruitment social basis and, at the same time, the maintenance of certain career patterns.

Key words:
recruitment; law schools; higher education professors; First Republic.

Introdução

O presente texto é resultante do aproveitamento parcial de um conjunto de informações que compuseram uma pesquisa mais ampla sobre as relações entre a transformação de princípios de legitimação e os processos de recrutamento e recomposição de elites no Brasil. A análise aqui desenvolvida centra-se nas condições sociais e institucionais de ingresso na condição de professor de ensino superior nas faculdades de direito após a instauração do regime republicano, em 1889. Isso implica, por um lado, apreender os processos históricos de transformação do ensino jurídico, por outro, o conjunto de representações sociais e usos do título de bacharel em direito em um contexto histórico e social específico. Neste sentido, o lugar social que os portadores de determinados diplomas ocupam na estruturação das hierarquias e oportunidades de carreira indicam tanto a posição dos diferentes cursos nas estratégias de reprodução social, quanto a distância entre universos sociais específicos e o sistema de ensino. É, portanto, no sistema de trajetórias diferencialmente possíveis aos agentes submetidos à “classificação escolar” que se define “o valor objetivo e subjetivo” dos títulos e das trajetórias singulares de seus portadores (Bourdieu, 1989: 160).

Ao longo do período imperial, uma série de reformas influíram diretamente na estrutura dos cursos jurídicos, modificando as oportunidades disponíveis aos pretendentes ao ingresso nas funções docentes. Com a instauração do regime republicano, a transformação morfológica do espaço institucional do ensino superior, fortemente conectada às mudanças político-administrativas e à manutenção do ensino livre, implica na expansão e diversificação das bases de recrutamento e das carreiras dos professores de ensino superior. Neste contexto, o presente artigo tem por objeto o problema da relação entre as reformas do ensino jurídico, a transformação dos princípios de legitimação e os recursos sociais que estão na base das oportunidades diferenciais de acesso aos cargos docentes nas faculdades de direito na Primeira República. Interessa saber, portanto, em que medida a progressiva ampliação dos cargos disponíveis, a valorização das funções docentes, a importação da meritocracia escolar e a condenação dos privilégios, que marcaram o último quartil do século XIX, incidem na diversificação das carreiras e nas bases sociais do recrutamento dos professores de ensino superior.

A operacionalização deste problema depende da conexão entre duas dimensões de análise. A primeira se define a partir do esforço na apreensão dos critérios de acesso aos cargos, das transformações na estrutura dos cursos jurídicos e das representações sociais relacionadas aos portadores do diploma de bacharel em direito. A segunda está centrada na análise das bases sociais de recrutamento e das carreiras dos professores dos cursos jurídicos. A elaboração da base de dados foi realizada com o objetivo de cotejar as condições sociais e institucionais de diversificação e de objetivação de princípios de excelência à manutenção e incorporação de práticas e lógicas de ação historicamente constituídas. De tal modo, a análise prosopográfica aqui empreendida visa à “confrontação permanente entre as regularidades do conjunto” e aquelas que constituem os pequenos desvios e bifurcações dos trajetos individuais (Charle, 2006CHARLE, Christophe. Les élites de la république (1880-1900). Paris: Fayard , 2006.: 130). O conjunto dos agentes em análise foi selecionado a partir do pertencimento a três instituições: a Faculdade de Direito de São Paulo (1827), a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro (1891), e a Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro (1891). A seleção das instituições se justifica pelo objetivo de apreender os efeitos das reformas e da ampliação dos cargos disponíveis em suas relações com a diversificação das bases sociais e das carreiras dos professores das faculdades de direito. Além disso, permite evidenciar as distintas dinâmicas de objetivação histórica e as lógicas institucionais que atravessam as faculdades oficiais e as faculdades livres surgidas no regime republicano. O corte sincrônico para definição da lista de professores pertencentes às faculdades em pauta tomou o ano de 1898 como referência, o que se relaciona aos esforços presentes na pesquisa mais geral em analisar os destinos sociais das gerações engajadas na propaganda republicana e na contestação do Império. A partir destes critérios, chegou-se a um total de 62 casos sobre os quais se dispõem de informações completas sobre as origens sociais e as carreiras: 27 para a Faculdade de Direito de São Paulo, 17 para a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, 18 a Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro.

O plano de exposição conecta-se às dimensões e níveis de análise previamente expostos. Num primeiro momento, o artigo dedica-se ao exame das transformações morfológicas decorrentes das reformas do ensino jurídico e da instauração do regime republicano, em fins do século XIX. Neste ponto, são enfatizadas as representações que fundamentam os papéis sociais atribuídos aos portadores de diplomas das faculdades de direito, as possibilidades de carreira abertas pela formação escolar, a valorização das funções docentes e as relações entre o modo legítimo de acesso aos cargos e aqueles historicamente constituídos. Posteriormente, a análise recai sobre as bases sociais de recrutamento e as carreiras dos professores das faculdades de direito. O objetivo central é destacar os perfis que as compõem, as modalidades de carreira e os universos sociais de circulação dos professores, o que permite a visualização das relações entre estas instituições e os diferentes espaços de atuação.

Os usos sociais do título de bacharel, critérios de entrada e as reformas do ensino jurídico

A implantação do ensino jurídico no Brasil encontra sua justificativa oficial nos esforços de autonomização cultural e nacionalização do pensamento de Estado pós-Independência de 1822 (Venâncio Filho, 1977). No início do século XIX, a transferência de “toda maquinaria do Estado” e “o pessoal das hierarquias civil, militar e religiosa, membros da alta sociedade, da classe de profissionais e de homens de negócios e os apetrechos de governo”, permitiu uma gestão do aparato administrativo implantado no Rio de Janeiro de modo mais ou menos autônomo relativamente às elites locais. Até os anos de 1820, todos os cargos administrativos centrais foram ocupados por membros da corte, transferidos de Portugal para o Brasil (Manchester, 1967MANCHESTER, Alan K. A transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 277, p. 3-44, 1967.: 18-21). Com a independência, coloca-se o problema político da formação de quadros para a burocracia e, também, de fornecimento de “tinturas de jurisprudência” aos “proprietários e homens ricos” (Grijó, 2005GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino jurídico e política partidária no Brasil: a Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900-1937). Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.: 24), classe da qual “depende o mandato legislativo”1 1 . Anais do Senado do Império, 1871: 6. Francisco de Paula Saião Lobato. . O sistema judicial foi inteiramente reformulado no período subsequente, processo no qual os conflitos partidários e a centralidade da magistratura como instância oficial de mediação entre níveis e modalidades de administração do Estado tornou-se central. Tratava-se de uma forma de organização na qual elementos formais - procedimentais - coexistiam com os princípios de estratificação social e as práticas personificadas, sem que quaisquer delas fossem contraditórias. Os elementos próprios à nomeação aos cargos da magistratura serviam como modo de “premiar amigos e cooptar aliados”, notadamente com vistas à preparação do processo eleitoral (Koerner, 2010KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República Brasileira (1841-1920). Curitiba: Juruá, 2010.: 45). Assim, se, em grande medida, o conjunto de postos ofertados pela burocracia do Estado era ao menos equivalente ao número de indivíduos habilitados a exercê-los, a diferenciação entre os cargos iniciais (promotor) e os mais elevados (juízes), com garantias de vitaliciedade, conformam um sistema de alocação de cargos fortemente equacionado pelas disputas políticas em diferentes níveis. Em tal perspectiva, os deslocamentos internos e a escalada nos cargos relacionados ao judiciário estavam fortemente atrelados às ligações com a política partidária e o auxílio de correligionários. De tal modo, o sistema institucional de intermediação de conflitos representado pelo “Poder Judiciário” funciona em amálgama com as lógicas personificadas, cujo princípio se associa ao comprometimento pessoal da instituição, sem que esta perca suas propriedades de instituição. A atividade judicial, portanto, encontra-se fortemente atrelada a uma ordem social hierárquica que a precede, cujos resultados dependem da “pessoa real” implicada nos conflitos judiciais.

No desenho institucional que configura os processos formais de mediação no período, o poder judiciário representa o ponto de passagem entre o poder central e as localidades. Como espaço de intermediação de conflitos, sua estrutura se conforma pela definição de três grandes grupos:

  1. os membros da magistratura;

  2. os advogados; e

  3. os professores das faculdades de direito.

Neste contexto, o discurso jurídico participa simultaneamente da “lógica positiva da ciência” e da “normativa da moral”, ou seja, impõem-se como um universal “lógico e ético”, cuja legitimidade reside no trabalho de racionalização ao qual o sistema de normas jurídicas está continuamente sujeito. Assim, as produções jurídicas só se diferenciam de atos de força política na medida em que se apresentam como “resultado necessário de uma interpretação regulada”, no qual se engajam os agentes que constituem o espaço jurídico. A cultura jurídica se apresenta, portanto, como uma “arte” e uma “moral” tecnicamente fundamentadas (Bourdieu, 1984: 74), caracterizadas pela acumulação de dois atributos fortemente associados às frações socialmente dominantes:

  1. a cultura geral clássica, responsável pelo acesso a uma série de “profissões burguesas (advocacia, magistratura, funções públicas e administrativas, cargos políticos, atividades de representação diversas)”;

  2. a cultura específica do especialista, capaz de produzir uma diferenciação entre os profissionais e os profanos, garantida pelo controle do mercado e pela raridade dos diplomas escolares (Charle, 1989: 119).

No contexto nacional, a organização do trabalho de produção e a manipulação destes repertórios não encontra seu correspondente na oposição entre a “elaboração puramente teórica da doutrina”, monopólio dos teóricos e professores, e a “interpretação voltada para a avaliação prática” dos casos, a cargo dos magistrados, advogados (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.: 213-217), realizando-se, ao contrário, no mundo prático da advocacia e das carreiras de Estado (Engelmann, 2004ENGELMANN, Fabiano. Diversificação do espaço jurídico e lutas pela definição do direito no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.: 38).

É relativamente a este sistema de oposições que se estabelece o conjunto das oportunidades sociais e de carreira associadas aos títulos fornecidos pelas faculdades de direito. Principais trunfos de legitimação da condição de “homem público”, os diplomas jurídicos dispõem de fortes possibilidades de conversão, cujas oportunidades são tanto mais dependentes do capital de relações sociais e das origens sociais quanto mais se sobe na hierarquia dos cargos e posições em disputa. Ao mesmo tempo, as lógicas de consagração social e profissional dependem de investimentos múltiplos em distintos espaços de atividades, cujo efeito é a definição dos caminhos de sucesso e a consagração das carreiras jurídicas. Nesse sentido, a figura do publicista, magistrado ou jurisconsulto, fundamentalmente a serviço da produção dos códigos formais que conformam as práticas administrativas e sociais, cola-se à produção de “monumentos jurídicos”, tais como os “códigos” e/ou textos constitucionais (Lacombe, 2004LACOMBE, Américo Jacobina. A cultura jurídica. In: HOLANDA, S. B. de (Dir.). História geral da civilização brasileira. v. 5. “O Brasil monárquico: reações e transações”. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.), os quais consagram seus produtores ou intérpretes. Trata-se de um corpo de produtores de “normas fundamentais”, a partir das quais se deduzem todas as demais, cujo efeito prático é sua inscrição nos “cânones” da história do direito nacional e, portanto, nos repertórios que fundamentam a doutrina. Consagrados na literatura especializada e na história do direito, tais agentes representam o polo de constituição e afirmação da “tradição jurídica”, cuja reprodução vincula-se às estratégias familiares de domínio e investimento em determinados espaços de atuação2 2 . Para uma oposição entre a “tradição jurídica” e suas modalidades de contestação em um contexto de diversificação das carreiras e bases sociais do recrutamento no período posterior à década de 1990, ver Engelmann (2004). .

No contexto em pauta, a restrição do universo escolar serve como reforço às hierarquias relativamente ao conjunto da população, ao mesmo tempo em que insere aqueles que dispõem de diplomas de ensino superior em um pequeno universo de relações sociais, cujo determinante dos deslocamentos é a combinação entre recursos de origem, títulos escolares e a gestão do capital de relações sociais. É a partir da posição central ocupada pelas faculdades de direito na reprodução de elites e na legitimação de tomadas de posição políticas que se define a ambivalência dos usos dos diplomas jurídicos. Na definição de Tobias Barreto, estas instituições representavam um espaço privilegiado para a intermediação entre as “corporações docentes e as corporações jurídicas”, colocando as faculdades como “órgãos pensantes”, portadores de uma “função nova”: “contribuir em forma de pareceres e consultas para as soluções das questões mais graves que fossem levantadas na esfera do direito” (Barreto [1892] apud Venâncio Filho, 1977: 106-107). As funções práticas reivindicadas estão na base da definição da condição de professor como um “trabalho auxiliar no quadro do trabalho profissional”, considerando que a “política, a magistratura, [e] a advocacia representavam [...] a função principal” do professorado (Venâncio Filho, 1977: 119). Nestes termos, é “a política [que] dá a tônica aos cursos de direito” (Simões Neto, 2006: 169), configurando uma estrutura de relações na qual os professores não são apenas professores, mas também professores.

De modo geral, este quadro se associa ao conjunto de definições que fundamentam as relações entre os agentes que ostentam os diplomas dispensados pelos cursos jurídicos e suas respectivas missões, no duplo sentido. Nas visões de época, as faculdades de direito ocupam uma posição central na “difusão das ideias liberais” e na formação da “unidade nacional” (Lessa, 1896LESSA, Pedro. Discurso proferido por ocasião da colação de grau aos bacharelandos de 1896 pelo paraninfo Dr. Pedro Lessa. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo , v. 4, p. 323-337, 1896.: 327-328), de modo que a promoção do saber jurídico se constitui como “fator de civilização”, “um farol que se projeta do alto e de longe para aclarar os caminhos” a serem trilhados (Coutinho, 1896COUTINHO, Aureliano de Souza. Discurso inaugural do curso de história do direito. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 4, p. 35-49, 1896.: 37). Sendo assim, o “bacharel em direito” torna-se o portador dos “grandes interesses sociais” e da “ordem jurídica” (Montezuma [1862] apud Pena, 2001PENA, Eduardo Spiller. Ser advogado no Brasil Império: uniformização e disciplina no discurso jurídico de formação. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 23, p. 55-68, 2001.: 61), guardião da verdade (Monteiro, 1897MONTEIRO, João Pereira. A advocacia. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo , v. 5, p. 237-249, 1897.: 249), elemento fundamental no processo de neutralização dos juízos elaborados a partir dos usos do diploma de direito. Portanto, o duplo processo que fundamenta a vocação ao exercício das atividades jurídicas é, de início, totalmente político, ancorado tanto na seletividade social que está na base do acesso aos diplomas, quanto no sentido de missão, o que faz com que a educação recebida nestas instituições estimule “a paixão política”3 3 . Anais do Senado do Império, 1855, L. 2: 182-183. Eusébio de Queirós. .

Nesse contexto, o conjunto das reformas associadas à reorganização dos cursos jurídicos e operadas ao longo do Império e no decorrer do período republicano se constituem em amálgama com o conjunto das representações socialmente objetivadas acerca dos critérios de excelência e das modalidades de acesso aos cargos de professor de ensino superior. Assim, independente das formalidades e dos “critérios escolares” de ingresso, na prática, o recrutamento estava baseado nas “virtudes oratórias”, nas “qualidades carismáticas” e na “presença na vida pública” dos pretendentes aos cargos (Adorno, 1988ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.: 20). Além disso, o sucesso nos investimentos variava em função da capacidade dos agentes em mobilizar ou explicitar relações de reciprocidade que garantissem uma avaliação positiva, particularmente nos casos de concorrência. Em termos formais, o acesso aos cargos se dá para as posições iniciais na carreira (professor substituto) e mediante concurso, sendo a nomeação dependente da posse do título de doutor em direito. No entanto, como se trata de um conjunto de níveis de intermediação que definem as relações entre a indicação do nome e a nomeação pelo governo, as condições de sucesso são atravessadas por uma série de lutas políticas e ideológicas que, no limite, se associam diretamente às disputas partidárias e às formas de publicização e confronto entre concepções de sociedade e de política. De modo geral, o contraste entre as definições formais das faculdades enquanto “simples institutos de instrução” (Vampré, 1924b: 537), e as tomadas de posição dos professores, alunos e pretendentes aos cargos docentes disponíveis são objeto de controvérsias constantemente permeadas pelas disputas políticas extramuros. Logo, por meio de estratégias diversas de fechamento social, constituía-se uma “espécie de cordão sanitário” em torno das faculdades de direito, o qual “estendia-se também, [...] ao concurso para admissão de novos professores” (Paim & Mercadante [1972] apud Venâncio Filho, 1977: 103), variando de acordo com as relações de força dominantes e o contexto político e social em pauta.

O traço mais geral do conjunto de reformas que afetam a estrutura e a organização formais das faculdades de direito no Brasil é a manutenção de determinados mecanismos de acesso aos cargos fundados na antiguidade, na eleição por pares, ou na ingerência do poder político sobre as nomeações. A aprovação dos candidatos e sua investidura no cargo estão associadas a dois níveis distintos de inserção. Em primeiro lugar, as relações estabelecidas no interior da faculdade, as quais podem assumir várias características específicas, entre as quais destacam-se:

  1. os vínculos familiares (parentesco);

  2. a militância político-partidária e a participação em atividades culturais e/ou de representação de causas.

O mais interessante é que estes diferentes níveis e pontos de constituição de redes não são excludentes, sendo atravessados, em geral, pelo conjunto das características elencadas. Em segundo lugar, como se trata de um concurso no qual o que está em jogo é a eletividade, em outros termos, as características carismáticas do candidato, as definições de mérito assumem feições das mais diversas, podendo englobar as capacidades oratórias, as atividades políticas, as redes previamente constituídas ou ainda, a admiração do grande público.

Ilustrativo das modalidades de acesso ao cargo de professor de ensino superior é o concurso realizado em 1870, na Faculdade de Direito de São Paulo, do qual participaram Américo Brasiliense de Almeida Melo (1833-1896), João José de Almeida Reis (? - 1873) e Carlos Leôncio de Silva Carvalho (1847-1912). Feito o procedimento formal de seleção, perfizeram a lista enviada à nomeação do imperador os nomes de Américo Brasiliense e Leôncio de Carvalho, na ordem de classificação respectiva. No entanto, e independentemente de haver prestado a prova escrita sobre um tema diferente do sorteado (Almeida Nogueira, 1908, v. 4: 184), Leôncio de Carvalho foi nomeado em 4 de janeiro de 1871. Segundo indicações, a nomeação recairia sobre Américo Brasiliense, considerando seus “serviços prestados” como presidente da Paraíba (1866-1867) e do Rio de Janeiro (1868), e como deputado provincial em São Paulo (1868), no entanto, José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878), então presidente do Conselho de Ministros, considera inadequada sua nomeação por este ser “chefe do Partido Republicano de São Paulo”, o que significava uma falta de “dever de lealdade à sua pátria”, não aprovando a nomeação de alguém com “opiniões contrárias ao principal dogma constitucional” (Vampré, 1924aVAMPRÉ, Spencer. Memórias para a história da Academia de São Paulo. v. 1. São Paulo: Saraiva , 1924a.: 127-128). Além disso, a favor de Leôncio de Carvalho contava a aliança por matrimonio com a “importante e numerosa família Souza Queirós”, e a “posse de avultada fortuna”, tendo adquirido o Correio Paulistano para o Partido Liberal (Almeida Nogueira, 1908, v. 4: 184). O conflito de méritos implicado neste concurso coloca o problema dos atributos associados aos pretendentes aos cargos em concorrência, assim como sua dependência do reconhecimento daqueles que ocupam posições hierarquicamente superiores na estrutura de nomeações e distribuição de honrarias. Ou seja, independente da trajetória prévia e dos “serviços prestados” por Américo Brasiliense, Leôncio de Carvalho, que havia se doutorado em 1869, alcança o cargo por conta das redes que é capaz de mobilizar e dos julgamentos favoráveis associados à sua posição política. Logo, não estão desconectados os critérios formais (concurso) e os julgamentos totais sobre a pessoa real, mas, ao contrário, trata-se de elementos complementares e constitutivos dos próprios mecanismos de hierarquização social e de diferenciação de oportunidades de acesso aos cargos.

Como ilustrado, o percurso prévio ao ingresso como professor coloca em pauta os múltiplos mecanismos que estão na base das oportunidades sociais, particularmente tencionados pelas relações com o poder político e pelas condições de sustentação das pretensões no interior das instituições de ensino. Nesse sentido, o fato mais geral do conjunto de reformas que incidem sobre a organização das faculdades é a manutenção do controle vertical sobre os cargos, reforçando o princípio geral fundado na mediação de relações e seus efeitos sobre as chances de acesso. Durante o Império, o poder político central controla uma série de prerrogativas de intervenção, entre as quais:

  1. a escolha do candidato a ser nomeado com base em uma lista de indicações;

  2. a possibilidade de anulação do concurso por decreto; e

  3. em caso de reformas no ensino, fica ao encargo do governo nomear lentes para as cadeiras criadas, cuja escolha passa pelo critério da prestação de serviços.

Isso se modifica com a instauração da República, particularmente através da transferência das formalidades da seleção de professores às faculdades, cabendo ao governo apenas sancionar a decisão. Ocorre, portanto, uma espécie de insulamento formal dos procedimentos de acesso aos cargos na docência e, igualmente, nos modos de escolha dos diretores: se no período imperial esses não eram necessariamente parte do corpo professoral, no republicano passam a ser escolhidos entre os membros da congregação. De modo geral, isso vem reforçar a segmentação dos níveis de controle e a consequente diversificação da estrutura de mediação, ou seja, as reformas do regime republicano tornam mais significativos os trunfos associados às relações de reciprocidade internas às diferentes faculdades.

Além disso, ao contrário dos cursos médicos, cujos diplomas obtidos habilitavam formalmente para apresentar candidatura aos cargos docentes, nas faculdades de direito, os candidatos deveriam dispor do título de doutor, ou seja, apresentar formalmente a defesa de uma tese. Essa exigência reduzia significativamente o número de postulantes oficiais aos cargos docentes, principalmente porque, o índice daqueles que investiram nesse tipo de formação ao longo do Império é bastante baixo, cerca de 4% dos diplomados em São Paulo e 1% dos diplomados em Recife (Almeida Nogueira, 1908ALMEIDA NOGUEIRA, José Luis. A academia de São Paulo: tradições e reminiscências. 9 v. São Paulo: Saraiva, 1908., v. 2: 153-159). No entanto, independentemente desta exigência formal, o governo pode proceder à nomeação de não doutores e ordenar ao diretor da faculdade para que seja conferido o grau de doutor ao nomeado, antes que este seja empossado e independente das formalidades acadêmicas exigidas para tanto.

De modo geral, portanto, o principal efeito das reformas nos cursos jurídicos reside nas possibilidades formalmente atribuídas à intervenção do governo na gestão das faculdades, o que tende a reforçar a internalização dos conflitos e das relações de reciprocidade. Outro efeito das reformas é a ampliação do quadro docente e a relativa diversificação das carreiras, diretamente associadas às modificações na estrutura do ensino. Fortemente associadas ao processo de importação de tecnologias de dominação e a transformação das concepções sobre a relação entre Estado e sociedade, ocorre uma divisão do trabalho atrelada à modificação dos referenciais utilizados e, particularmente, à influência do “método das ciências naturais” aplicado às “ciências jurídicas e sociais” (Adorno, 1988ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.: 98-103). A reforma de 18544 4 . Decreto n.º 1.386, de 28 de abril de 1854. e a criação das cadeiras de direito romano e direito administrativo respondem às transformações ocorridas no período pós-Regência, notadamente pela progressiva separação entre o direito civil e o administrativo, reforçada pela reativação do Conselho de Estado. Em 18795 5 . Decreto n.º 7.247, de 17 de abril de 1879. , a reforma alterna de modo mais significativo o funcionamento das instituições de ensino superior em geral, e dos cursos jurídicos em particular, notadamente através da promulgação do ensino livre, que significou, “na fase imperial”, a “liberdade de frequência” e a “inexistência de exames parciais nas faculdades” (Venâncio Filho, 1977: 87). Outro ponto central desta reforma é a divisão dos cursos jurídicos em duas seções, uma de ciências jurídicas e outra de ciências sociais. Em termos formais, a primeira direcionava os diplomados para as carreiras da advocacia e magistratura; a segunda para os cargos da diplomacia e da burocracia do Estado. As divisões propostas aos cursos jurídicos conectam-se a importação de modelos de gestão do Estado e dos problemas sociais ancorados nas pretensões de administração científica da sociedade e da política, elemento central no processo de universalização de tecnologias de dominação (Badie, 1992BADIE, Bertrand. L’État importé: l’occidentalisation de l’ordre politique. Paris: Fayard, 1992.: 190).

Ao lado da progressiva expansão dos cargos docentes disponíveis nas faculdades de direito (Gráfico 1), ocorre a valorização destas funções (Gráfico 2), constituindo destino possível tanto às frações sociais em ascensão, quanto àquelas tocadas por processos de desclassificação social decorrente das transformações econômicas ou da modificação política pós-1889. Enquanto a divisão curricular operada pela reforma de 1879 aumenta de modo significativo os cargos disponíveis; as possibilidades de abertura de faculdades livres não surtiram efeitos no período imperial. Exceção pode ser feita à Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, formalmente fundada em 1882, por Fernando Mendes de Almeida (1845-1921) e por um “punhado de amigos e admiradores” (Venâncio Filho, 1977: 187). As possibilidades de expansão do quadro institucional do ensino superior vieram com o advento do regime republicano e a manutenção do ensino livre. O efeito imediato é a regionalização da oferta de diplomas jurídicos e a consequente diversificação das modalidades de inserção social e profissional dos pretendentes aos cargos em expansão. No período de vigência do ensino livre, foram fundadas nove faculdades de direito (Cunha, 1986CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã: da colônia à Era Vargas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.), fortemente atreladas à demanda regional por diplomas, considerando que predominam as iniciativas em estados com mais estudantes formados na Faculdade de Direito de São Paulo durante o período imperial, respectivamente: Rio de Janeiro (698), Minas Gerais (399), Rio Grande do Sul (139) e Bahia (126). Um segundo resultado da reforma no ensino superior promulgada pelo regime republicano6 6 . Decreto n.º 1232, de 2 de janeiro de 1891. é a criação do curso de notoriado, ao lado do de ciências jurídicas, e de ciências sociais, cujo efeito é a ampliação do quadro docente7 7 . A divisão entre ciências jurídicas, ciências sociais e o curso de notoriado foi abolida com a Lei n.º 314, de 30 de Outubro de 1895. .

Gráfico 1
Transformações morfológicas nas funções docentes das faculdades de direito (1831-1895)

Gráfico 2
Evolução dos vencimentos das funções docentes nas faculdades de direito em mil réis (1831-1891)

Quadro 1
Organização curricular e reformas do ensino jurídico

A expansão institucional: recrutamento e carreira dos professores das faculdades de direito

A transição de regime implica na ingerência inicial do poder político sobre os cargos nas faculdades oficiais, de onde decorrem jubilações e nomeações. De modo geral, o provimento dos 97 novos cargos criados nas instituições de ensino superior foi feito por decreto governamental, ou por indicação da congregação das faculdades. No caso das faculdades de direito, foram 27 nomeações para a Faculdade de Direito de Recife e 24 para a de São Paulo. Na Faculdade de Direito de São Paulo (FDSP), foram jubilados os irmãos Francisco Justino Gonçalves de Andrade (1821-1892) e João Jacinto Gonçalves de Andrade (1807-?), além de José Maria Correia de Sá e Benevides (1833-1901) e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (1830-1902). Jubilado em decorrência de um incidente político envolvendo a instalação do regime republicano, Francisco Justino entra em confronto com a congregação da faculdade e com os estudantes (Vampré, 1924b: 540-551), o que leva estes últimos a montarem uma comissão e dirigir um telégrafo ao ministro da Instrução Pública, Benjamin Constant, solicitando a jubilação do catedrático. Em solidariedade, João Jacinto Gonçalves de Andrade e José Maria Correia de Sá e Benevides solicitam o desligamento das funções docentes na instituição. Em contrapartida, o conjunto das modificações curriculares teve como consequência a nomeação ou realocação de professores, dentre os quais Antônio Dino da Costa Bueno (direito civil), Brasílio Augusto Machado de Oliveira (direito natural) e José Luiz de Almeida Nogueira (professor substituto), Brasílio Rodrigues dos Santos (direito comercial), Carlos Leôncio da Silva Carvalho (direito público e constitucional), Antônio Amâncio Pereira de Carvalho (medicina legal), Pedro Augusto Carneiro Lessa (filosofia do direito), Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (história do direito), Uadislau Herculano de Freitas (direito criminal), Antônio Januário Pinto Ferraz Junior (direito civil)­8 8 . Relatório do ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, 1891. .

No contexto de diversificação dos níveis de concorrência e das modalidades legítimas de acesso aos cargos públicos, o surgimento das faculdades livres conecta-se aos conflitos político-partidários regionais (Grijó, 2005GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino jurídico e política partidária no Brasil: a Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900-1937). Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.), e aos objetivos de instrumentalização de elites com vistas à gestão e controle do Estado. Com as mesmas “garantias e privilégios que gozam as faculdades federais”9 9 . Decreto n.º 639, de 31 de outubro de 1891. , os cursos jurídicos instalados no Rio de Janeiro se configuram como espaços de diversificação da formação escolar e da condição de professor de ensino superior. Após a primeira tentativa de instalação da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro (FLCJSRJ), em 1882, Fernando Mendes de Almeida retoma o projeto em 1891, contando com o “apoio” de Manoel do Nascimento Machado Portela (1833-1895). Também no Rio de Janeiro, uma segunda iniciativa é levada a cabo e encampada por Carlos Antônio de França Carvalho (1845-1909), principal incentivador da fundação da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro (FLDRJ), em 1891.

Amplamente ancoradas nas redes de sustentação de seus protagonistas, o quadro professoral destas instituições retoma o padrão de excelência profissional que configura as posições no espaço jurídico, particularmente por congregar

vultos do passado e jovens homens públicos, que faziam brilhantemente as armas na imprensa, no livro, na tribuna antigos ministros e bacharéis recentes; gente da Monarquia e republicanos de pensamento e ação (Calmon [1945] apud Venâncio Filho, 1977: 187).

Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1879, e filho de Cândido Mendes de Almeida, deputado geral e senador durante o Império, Fernando Mendes de Almeida havia se instalado como advogado no Rio de Janeiro, atuando, também, como redator-chefe de diversos jornais. Com a instauração da República, recebe patentes da Guarda Nacional, passando de tenente-coronel em 1891, à coronel chefe do Estado-Maior e comandante superior, em 1899. Ao contrário, o conselheiro Manoel Portela dispunha de uma longa carreira de serviços prestados à monarquia como presidente de província (Pernambuco, Minas Gerais, Bahia), deputado provincial, deputado geral, ministro, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) e chefe do Partido Conservador em Pernambuco. Foi, também, professor da Faculdade de Direito de Recife, cargo do qual havia se jubilado em 1881.

Ao fundar a Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, Carlos Antônio França de Carvalho, era deputado federal, e seu irmão, Carlos Leôncio da Silva Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Direito de São Paulo e ministro do Império responsável pela reforma que instituiu o ensino livre, era vice-reitor do Conselho de Instrução Superior do governo republicano, órgão responsável pelo reconhecimento e pela equiparação das faculdades livres. Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo e proprietário rural, França de Carvalho foi redator-chefe da Reforma, órgão do Partido Liberal, deputado geral e advogado no Rio de Janeiro. Casado com Maria Olézia, filha de Vicente de Souza Queirós - Barão de Limeira -, proprietário rural; e cunhado de Paulo de Souza Queirós, deputado federal e senador estadual em São Paulo durante a Primeira República. Os vínculos familiares de França de Carvalho o conectam a um sistema de alianças que envolvem os clãs Souza e Melo e Andrada e Silva (Abreu, 2015ABREU, Alzira Alves (Coord.). Dicionário da elite política republicana (1889-1930), 2015. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/dicionario-primeira-republica>.
http://cpdoc.fgv.br/dicionario-primeira-...
).

Tabela 1
Origens sociais dos professores das faculdades de direito

O perfil geral do recrutamento dos professores das instituições em análise apresenta uma série de proximidades. No entanto, contrastes podem ser observados em pontos específicos, principalmente pela proximidade social entre a FDSP e o universo da política representativa, das profissões liberais e das carreiras militares. Em contraposição, as faculdades livres do Rio de Janeiro apresentam uma associação mais significativa com posições políticas dominantes durante o Império, com contrastes mais evidentes pela associação da FLCJSRJ ao universo das armas, enquanto a FLDRJ apresenta uma proximidade mais significativa com o espaço econômico, notadamente pela presença mais acentuada de filhos de comerciantes e proprietários. Além disso, o quadro geral de professores das faculdades de direito em pauta indica diferentes momentos de ingresso na carreira. Enquanto dez foram nomeados durante o período Imperial, outros 51 são o produto ou das nomeações decorrentes da reforma do regime republicano ou das condições de acesso ao cargo de professor de ensino superior abertas pela fundação de novas instituições.

As carreiras e os espaços de atuação dos novos entrantes evidenciam as diferentes formas de organização e afirmação institucionais, as quais implicam em determinadas relações com a condição de professor de ensino superior, notadamente no que tange às novas faculdades. Neste sentido, o tempo de objetivação social tem como decorrência um afastamento progressivo dos professores da FDSP do exercício da advocacia (57,7% do conjunto), comparativamente aos professores da FLCJSRJ (82,4% do conjunto) e da FLDRJ (94,4% do conjunto). No entanto, os padrões de excelência vigentes no espaço jurídico implicam uma relação significativa do quadro professoral das diferentes instituições com o exercício de cargos eletivos e cargos na burocracia pública. Neste caso, há uma similaridade de investimentos e de conexões entre os cursos jurídicos e a política. Entre os professores da FDSP, 84,6% ocuparam cargos eletivos, e a mesma proporção ocupou cargos públicos por cooptação. Para a FLCJSRJ, são 70,6% e 82,4%, e para a FLDRJ, 88,9% e 83,3%, respectivamente. No caso das novas instituições, as redes formadas na advocacia passam pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e pela conversão das relações com a política, notadamente através das heranças advindas do grupo familiar. São os casos de Fernando Mendes de Almeida e seu irmão, Candido Mendes de Almeida Filho, ou de Pedro Leão Veloso Filho, filhos de senadores do Império com escritório de advocacia na capital brasileira. Do IAB, estendem-se as redes que ligam João Carneiro de Souza Bandeira, Manoel Portela, João Evangelista de Sayão Bulhões, Herculano Inglês de Souza, Clóvis Bevilacqua, João Cândido de Albuquerque Mello Mattos. Igualmente, há o caso daqueles que reconvertem a condição prévia de professor de ensino superior nas faculdades oficiais para as novas instituições, tal como Manoel Portela, Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, André Augusto de Pádua Fleury, Carlos Leôncio de Carvalho, José Hygino Duarte Ferreira.

De modo geral, as origens escolares dos professores das faculdades livres do Rio de Janeiro retomam as relações estabelecidas entre alguns de seus principais organizadores. No caso da FLCJSRJ, há uma relação mais direta com a Faculdade de Direito de Recife, na qual 52,9% dos professores obteve o diploma escolar, enquanto que a FLDRJ, tem seu quadro docente ancorado na Faculdade de Direito de São Paulo, com 55,6% dos diplomas. No caso da primeira, Manoel Portela, Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, antigos professores em Recife; e da segunda André Augusto de Pádua Fleury, Carlos Leôncio de Carvalho, professores jubilados de São Paulo, reforçam as associações de intermediação entre os centros de formação e as novas instituições. Um dos efeitos mais significativos das transformações nos mecanismos de recrutamento derivadas de processos de expansão do mercado é a diversificação das origens sociais e dos modelos de carreira. No que tange às origens sociais dos professores em análise, medida através da profissão/ocupação/atividade do pai, a variável utilizada merece alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, como se trata de um grupo social e escolarmente dominante em uma sociedade muito desigual, na qual a “profissão” tem caráter mais ilustrativo e de indicação de status social, há uma tendência significativa à multiposicionalidade. Ao mesmo tempo, como a fonte principal é derivada de notícias biográficas disponíveis em diversos meios de divulgação, para alguns dos casos tem-se um conjunto vasto de informações, passíveis de serem cruzadas e refinadas; para outros as informações são mais escassas, o que dificulta a apreensão da totalidade ou da posição especifica do pai ou do grupo familiar em diferentes pontos do trajeto dos professores aqui analisados. A segunda dificuldade diz respeito à própria discussão acerca das transformações das origens sociais e suas associações com os processos mais gerais de estruturação social. Infelizmente, até o momento, não se dispõem de informações adequadas para indicar os efeitos das possíveis modificações das hierarquias sociais (se é que elas ocorrem) nos processos de recrutamento e diversificação do campo do poder.

A principal indicação, no que tange às origens sociais da população em questão, é a conversão de filhos de ministros, senadores ou membros do Conselho de Estado, e de deputados para as carreiras professorais, durante o período republicano. Isso se conecta tanto à fundação de faculdades livres, quanto à transformação interna do recrutamento dos professores da FDSP. No primeiro caso, predominam os filhos de ministros, senadores ou membros do Conselho de Estado convertidos à docência; no segundo, são mais significativos os filhos de deputados. Entre os 16 agentes que ingressaram como professor na FDSP após a instauração da República, três são filhos de deputado, e um filho de ministro, senador ou membro do Conselho de Estado do Império. No que tange à conversão de investimentos em direção aos cargos de docência no ensino superior destacam-se, igualmente, os filhos de proprietários e oficiais militares ou da guarda nacional, entre os quais a quase totalidade ingressou no período pós-1889. Isso é igualmente significativo para aqueles que vêm das frações dominadas do polo econômico, cuja totalidade converte seus investimentos para a carreira docente no período republicano. Em parte, isso tende a estar associado a ampliação dos níveis de concorrência em diversos setores sociais, notadamente na política. Além disso, a valorização progressiva da carreira docente tende a torná-la mais atrativa em um contexto de recomposição de investimentos profissionais, principalmente porque a ocupação do cargo de professor de ensino superior não exclui a possibilidade de ingresso na política, ao contrário, segundo os princípios de hierarquização vigentes, a passagem por cargos públicos reforça as chances de consagração profissional. Do mesmo modo, a conversão de frações politicamente ou socialmente dominantes do Império para os cargos docentes em expansão indica as possibilidades de carreira abertas, ou mesmo as condições de mobilização de recursos diversos com vistas à ocupação da posição de professor nas faculdades de direito.

Considerações finais

Como foi possível demonstrar, a passagem pelas instituições de ensino jurídico implica uma série de representações acerca do lugar social e das missões atribuídas aos portadores dos diplomas emitidos por estas instituições. De modo geral, isto está na base do leque de possibilidades de carreira que se coloca diante dos agentes que dispõem de determinados recursos - diplomas escolares, mas também “boas origens sociais” -, em uma sociedade altamente desigual. Assim, em grande medida, a passagem por instituições de ensino superior no período analisado funciona como uma espécie de reforço de uma série de condições de possibilidade previamente inscritas nas posições sociais de origem. Ao lado disso, se coloca a solidariedade agregativa decorrente da frequência aos mesmos bancos escolares, a coparticipação em clubes ou associações, a socialização através da militância ou da participação em atividades culturais, fenômeno que permite a inserção de agentes sociais em círculos de prestações e relações de reciprocidade que são o fundamento mesmo da manutenção do sistema e de suas modalidades de reprodução. O conjunto destas relações de reciprocidade funciona em amálgama com os critérios formais de entrada, notadamente em instituições oficiais, fazendo com que as oportunidades de sucesso variem em função das possibilidades de reconhecimento daqueles que ocupam posições hierarquicamente superiores na estrutura de nomeações e distribuição de honrarias.

A transição do Império para a República e seus efeitos para a diversificação institucional e o insulamento dos processos de recrutamento implicam um reforço das dinâmicas internas na constituição de alianças e nas oportunidades de acesso aos cargos docentes. No caso das faculdades livres, são significativos as alianças e os deslocamentos em conjunto, muitos dos quais constituídos em âmbitos profissionais diversos. A relativa similaridade social das instituições no que tange às origens sociais evidencia uma diferenciação em termos de carreira, especialmente com relação ao exercício da advocacia. No entanto, a proximidade de bases de recrutamento é o elemento que indica de modo mais significativo os contrastes existentes, os quais se devem, em grande medida, aos contextos regionais de constituição das instituições. No caso das faculdades livres do Rio de Janeiro, por exemplo, a relação mais evidente com os altos escalões da política imperial conecta-se à instalação das famílias ligadas ao poder político central naquela cidade. Igualmente, os efeitos decorrentes da transição de regimes e da expansão das instituições de ensino superior apresentam variações mais acentuadas no que tange à reconversão de descendentes de famílias ligadas à política imperial. Em grande medida, isso se deve ao fechamento das oportunidades de reprodução das posições e o consequente direcionamento para outras carreiras, no caso, as atividades docentes.

Referências

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1

  • 1
    . Anais do Senado do Império, 1871: 6. Francisco de Paula Saião Lobato.

2

  • 2
    . Para uma oposição entre a “tradição jurídica” e suas modalidades de contestação em um contexto de diversificação das carreiras e bases sociais do recrutamento no período posterior à década de 1990, ver Engelmann (2004).

3

  • 3
    . Anais do Senado do Império, 1855, L. 2: 182-183. Eusébio de Queirós.

4

  • 4
    . Decreto n.º 1.386, de 28 de abril de 1854.

5

  • 5
    . Decreto n.º 7.247, de 17 de abril de 1879.

6

  • 6
    . Decreto n.º 1232, de 2 de janeiro de 1891.

7

  • 7
    . A divisão entre ciências jurídicas, ciências sociais e o curso de notoriado foi abolida com a Lei n.º 314, de 30 de Outubro de 1895.

8

  • 8
    . Relatório do ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, 1891.

9

  • 9
    . Decreto n.º 639, de 31 de outubro de 1891.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2016
  • Aceito
    01 Dez 2016
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