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Turismo e pobreza na Era da “Favela Global”

FREIRE-MEDEIROS, Bianca. . Touring poverty . Londres: Routledge, 2013.

No imaginário político e social dos nossos tempos, assim como na cultura popular e de massa, as favelas têm sido tradicionalmente concebidas em termos negativos. Elas materializam a alteridade das cidades funcionais, que devem supostamente operar em ritmo ordenado e virtuoso. São imaginadas como espaços de desarranjo, caos e precariedade, onde a miséria e a violência coexistem com a improvisação para a sobrevivência. Ao redor do mundo, as favelas ganham outros nomes: são banlieues, ghettos, poblaciones ou slums, lugares classificados como “distritos selvagens”, “zonas sem lei”, “áreas proibidas” de se frequentar (Wac­quant, 2008: 1). Em outras palavras, as favelas constituem a margem ou as fronteiras da cidade; são espaços não integrados e de ausências (Leite, 2015LEITE, Márcia Pereira. De territórios da pobreza a territórios de negócios: dispositivos de gestão das favelas cariocas em contextos de “pacificação”. In: Birman, P.; Leite, M.; Machado, C.; Carneiro, S. (Eds.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.). Não à toa, com o passar dos anos, as favelas se tornam mais e mais territórios catalizadores de diferentes iniciativas de gerenciamento, sistematização e normalização que partem da ideia de que há um problema a ser solucionado.

Como se insere, nesse contexto, fenômeno tão peculiar como o turismo em favelas? Se, por um lado, favelas são vistas como espaços condenados, onde a violência e a pobreza florescem, por outro, são lugares que despertam um olhar curioso e interessado. De acordo com a UN-Habitat (2013), as favelas também devem ser vistas como lugares “de esperança”, oportunidade, desenvolvimento e progresso. Nas palavras da própria agência,

slums have become increasingly socially cohesive, offering opportunities for security of tenure, local economic development and improvement of incomes among the poor (UN-Habitat, 2013: xxvi).

No cinema, na literatura e em outros espaços de construção estética, diferentes retratos das favelas como lugares igualmente miseráveis e efervescentes contribuem para que elas ocupem posição central na agenda de políticos e de acadêmicos. A crescente representação dual das favelas favorece a emergência de iniciativas devotadas a captar o potencial desses espaços para o crescimento e a transformação, incluindo o incentivo ao turismo.

Touring poverty, de Bianca Freire-Medeiros, parte da reflexão sobre o “turismo de pobreza” em escala global para desvendar as distintas facetas que compõem os tours em favelas ao redor do mundo. Ao conciliar um minucioso esforço etnográfico a uma leitura sociológica sobre as representações, interpretações e subjetividades que rondam as favela tours, Freire-Medeiros busca tornar mais complexos os intensos debates éticos e políticos que acompanham a prática do turismo em favelas. Mais especificamente, a autora tem como objetivo entender quais são as condições de possibilidade para a emergência da favela como local turístico na perspectiva de administradores públicos, lideranças locais, empreendedores e turistas, passando por uma análise pertinente das narrativas globais que permeiam a fabricação de opiniões, conceitos, emoções e sensibilidades sobre o que é e para onde deve ir a favela do século XXI.

É o turismo de (ou em) favelas necessariamente antiético? O que pensam os moradores das favelas em relação aos gringos, suas câmeras e seu comportamento? Quais são as expectativas dos turistas - sobretudo, os turistas do Norte global - que atravessam oceanos para experimentar a “realidade” das favelas urbanas? E como se fabrica essa mesma realidade negociada entre guias turísticos, artesãos locais e visitantes? Bianca Freire-Medeiros situa o fenômeno das favela tours como criação do século XXI que, mesmo se remete a similaridades em relação às práticas de slumming dos séculos passados, é imaginada e fabricada a partir de narrativas modernas de “comodificação” da pobreza e de fabricação do autêntico. Por um lado, o turismo de favela é um produto das narrativas globalizadas que, entre outros conceitos, (re)criam a própria noção de “favela global”. Não à toa, Freire-Medeiros escolhe estudar, especificamente, o fenômeno das favela tours em cidades como Cidade do Cabo, Johanesburgo, Mumbai e Rio de Janeiro, onde atua a narrativa da emergência, do desenvolvimento e(m) progresso, que cria o conceito da cidade global em ascensão1 1 Não por coincidência, são quatro grandes cidades dos países Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), classificação que na última década catalisou as narrativas e representações sobre “potências globais emergentes” na política internacional. . Como argumenta Saskia Sassen (2011SASSEN, Saskia. The Global City and the Global Slum. Forbes Megacities, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.forbes.com/sites/megacities/2011/03/22/the-global-city-and-the-global-slum/ >. Aceso em: 11 Set. 2016.
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), “global slums are the other side of many global cities, especially in the Global South”. Nesse quadro, o livro é um estudo, necessariamente, sobre o que existe de global (e globalmente desigual) no fenômeno pretensamente local do turismo em favelas ao redor do mundo.

Por outro lado, o fenômeno social do turismo em favelas também é interpretado pela autora a partir da intensificação da obsessão moderna pela busca pelo autêntico e pelo real, traduzido na popularização do fenômeno dos reality tours, ou turismo de realidade. Nas favelas do século XXI, a “comodificação” da pobreza - que dá origem à fetichização do consumo de símbolos relacionados à favela e sua construção como marca (ou trademark) de significado comercial próprio - interage com o que Alan Badiou (apud Freire-Medeiros, 2013: 27) chama de “paixão pelo real”, ou a busca incessante pela realidade (e consequente negação da falsificação e da imitação). Nesse encontro, constroem-se entendimentos específicos sobre o que constitui o Sul global e como verdadeiramente experimentá-lo, tornando invisíveis, não raramente, as dinâmicas de hierarquia, desigualdade e governança que atuam na criação de significados sobre ele.

A escolha por diferentes abordagens metodológicas - do relato autoetnográfico à melhor análise sociológica sobre as microrrelações de poder no contexto das favela tours, ambos frutos de extenso trabalho de campo - reforça a tentativa bem-sucedida da autora de oferecer distintos olhares sobre o fenômeno que estuda, distanciando-se da opinião enclausurada e certa de si que permeia boa parte dos discursos acadêmicos e midiáticos sobre o tema. Chama atenção, em específico, o estudo atento sobre o olhar (gaze), com foco nas análises das representações cinematográficas sobre a(s) favela(s) em âmbito global - que não deixam de praticar, incentivar e fabricar um olhar específico sobre elas - e da estética do(s) retrato(s) que turistas, guias, moradores, empreendedores, administradores públicos e pesquisadores fabricam sobre a e da favela (retratos literais, como no caso das fotografias tiradas pelos visitantes, ou simbólicos, como no caso dos souvenirs que eles mesmo compram). E também ganha destaque a maneira como a autora costura uma interpretação respeitosa sobre as distintas personagens que compõem o estudo a uma análise crítica robusta sobre as narrativas e as representações permanentemente (re)construídas pela interação entre os diversos atores que compõem o plano político das favela tours.

Por fim, ao se distanciar das discussões que condenam o “turismo de favela” - como a fetichização da pobreza ou a exaltação da mesma como iniciativa fundamental de fortalecimento econômico e simbólico das comunidades envolvidas -, a autora procura oferecer um “olhar sobre o olhar” qualificado e reflexivo, que não pretende dar resposta definitiva a um debate tão plural e complexo, mas revelar suas distintas camadas, suas dinâmicas próprias e suas múltiplas janelas de interpretação.

Referências

  • LEITE, Márcia Pereira. De territórios da pobreza a territórios de negócios: dispositivos de gestão das favelas cariocas em contextos de “pacificação”. In: Birman, P.; Leite, M.; Machado, C.; Carneiro, S. (Eds.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.
  • SASSEN, Saskia. The Global City and the Global Slum. Forbes Megacities, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.forbes.com/sites/megacities/2011/03/22/the-global-city-and-the-global-slum/ >. Aceso em: 11 Set. 2016.
    » http://www.forbes.com/sites/megacities/2011/03/22/the-global-city-and-the-global-slum/
  • UN-HABITAT. The challenge of slums: global report on human settlements, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://mirror.unhabitat.org/pmss/listItemDetails.aspx?publicationID =1156 > Aceso em: 11 Set. 2016.
    » http://mirror.unhabitat.org/pmss/listItemDetails.aspx?publicationID =1156
  • WACQUANT, Loïc. Urban outcasts: a comparative sociology of advanced marginality Cambridge: Polity Press, 2008.
  • 1
    Não por coincidência, são quatro grandes cidades dos países Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), classificação que na última década catalisou as narrativas e representações sobre “potências globais emergentes” na política internacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2016
  • Aceito
    02 Mar 2017
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