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Sobre como um país se deixa manipular pela elite

SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. Rio de Janeiro: Leya; Casa da Palavra, 2015

Pensamos que os argumentos centrais de Jessé SouzaSOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. Rio de Janeiro: Leya; Casa da Palavra: 2015. são pertinentes e que não temos conseguido confrontar a enorme “violência simbólica” instalada na sociedade brasileira, que “torna possível desigualdade tão abissal e concentração de renda tão grotesca em um país formalmente democrático como o Brasil de hoje” (p. 10). Além disso, concordamos que a imensa maioria dos intelectuais presta serviços para a manutenção dessa iniquidade ao desenvolver reflexões “colonizadas até os ossos”, sustentando a oposição entre sociedades avançadas do centro e atrasadas da periferia, por meio de um “racismo cultural” e da ideia força do mercado virtuoso e do Estado corrupto.

No país dos bacharéis, a locomotiva da intelligentsia conservadora nacional concentra-se no campo jurídico, como se o judiciário fosse o poder da República. A crescente judicialização da política tem contribuído para um empoderamento imperativo do Judiciário, historicamente de direita e resistente às mudanças necessárias à efetivação de um Estado social, menos desigual, mais justo e solidário. É um paradoxo que essa elite, “guardiã da Constituição e do cumprimento da lei” tenha mantido e fortalecido privilégios, sob a alegação de que são prerrogativas de seus cargos e funções públicas.

Com as noções de “culturalismo” e “economicismo” são construídas as duas primeiras partes do livro. O autor argumenta que Max Weber tem sido mal utilizado pelos pensadores brasileiros que reiteram uma visão distorcida, conformista e superficial sobre o sociólogo alemão. Ilustra esta afirmação com elementos das teses de Gilberto Freyre (“mestiço is beautiful”) e Sérgio Buarque (“homem cordial”), que reforçam certo primitivismo, a pessoalidade e a corrupção em oposição à modernidade, impessoalidade e confiança, naturalizando a desigualdade, a exclusão e as ações dos “especialistas sem espírito” e “sensualistas sem coração”.

Para desnaturalizar o pensamento social brasileiro - sempre segundo Jessé -, deve-se investigar a singularidade dos padrões culturais dominantes a partir da escravidão, exatamente em oposição ao “liberalismo conservador dominante contemporâneo”, que idealiza os Estados Unidos como nação modelo de justiça e igualdade de oportunidades; universaliza o homem cordial como moralmente inferior, indigno de confiança e tendencialmente corrupto; classifica as relações sociais a partir da noção de mercado virtuoso e Estado vicioso; empreende o antiestatismo em favor dos interesses do mercado; e constrói um “racismo de classe”.

O autor analisa o livro Os donos do poder, de Raymundo Faoro, para explicitar como a tese do patrimonialismo do Estado brasileiro sustentou a representação do “liberalismo conservador”, no qual se evidencia a “ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposto à ação intrinsecamente virtuosa do mercado” (p. 53). Jessé Souza explora na sequência o pensamento de Roberto Da Matta, com o fim de demonstrar como também ele reproduziu ideias-força conservadoras: “o comportamento prático das pessoas é explicado por ‘heranças culturais’, sem qualquer relação com as instituições que comandam nossa vida” (p. 76), escondendo assim as verdadeiras causas da desigualdade, do privilégio e os “jeitinhos” de todas as sociedades em que relações pessoais decidem o destino de pessoas concretas. É construída uma relação entre a forma como o patrimonialismo foi tratado sociologicamente no pensamento social brasileiro, produzindo violência simbólica que oculta os conflitos sociais fundamentais da desigualdade, invisibiliza o “racismo de classe” e as assimetrias morais entre os mais “inteligentes, melhores e mais virtuosos” e os “carentes de capital social e confiança”.

Na segunda parte do livro, centra reflexão no reducionismo economicista desenvolvido por Francisco de Oliveira ao opor as lógicas econômica e simbólica, como se a primeira não fosse constitutivamente perpassada pela segunda. Em seguida, explora o pensamento de Fernando Henrique Cardoso e critica seu enfoque descritivo da correlação de forças políticas por não avançar as explicações da inter-relação entre economia, política e sociedade. Jessé enaltece a sociologia de Florestan Fernandes por ele ter “colocado a sociologia brasileira em outro patamar de sofisticação” (p. 122), na medida em que constrói a relação das transformações da sociedade brasileira com as novas funções estatais de grande porte. No entanto, para Jessé, falta-lhe “a dimensão da ação social consubstanciada na tematização dos grupos e classes suportes do processo de mudança social” (p. 127).

Na terceira parte do livro, o autor busca uma “teoria crítica da modernização” que reduza o déficit de capacidade explicativa da ciência moderna, que “se transformou em uma espécie de ideologia que ajuda a manipular e legitimar privilégios em uma espécie de ‘equivalente funcional’ das grandes religiões do passado” (p. 145), apoiada em uma hierarquia valorativa opaca com a qual se estabelecem distinções sociais. Os capitais econômico e cultural estruturam a hierarquia social de todas as sociedades contemporâneas, não havendo “qualquer diferença na forma como a ‘violência simbólica’ encobre, distorce e permite a legitimação da dominação social no capitalismo tardio nas sociedades avançadas e periféricas” (p. 154). No entanto, Jessé aponta importante limite no pensamento bourdiesiano construído em reflexões contextuais e sem salto generalizante para outras sociedades. Para discutir estes fenômenos o autor apoia-se na “teoria do reconhecimento social", assentada na “pressuposição hegeliana da existência de um contexto ético e moral subjacente a toda ação humana” (p. 174).

Compreender o reconhecimento exige: a “reconstrução histórica e institucional das fontes morais do mundo moderno”, para identificar o processo como as ideias morais tornam-se eficazes, institucionalizadas e incorporadas, a partir do “princípio da dignidade”, que é uma estrutura psicossocial composta por disposições sociais, como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo; “a realidade concreta e empírica das fontes morais”, onde autor identifica fragilidades teóricas e traz o conceito de “poder disciplinar” de Foucault, para explicar a “penetração de uma lei heterônoma no corpo que produz o ‘automatismo disciplinar’” (p. 193) e a naturalização objetiva, universal e ubíqua do disciplinamento; “o problema da dignidade humana em perspectiva comparada”, complementado com o conceito de habitus, de Bourdieu, para problematizar a noção de digno na contemporaneidade, como “todo aquele passível de ser utilizado produtivamente pelas organizações do mercado e do Estado” (p. 195); “a linha invisível da dignidade”, na qual operam hierarquias opacas efetivas de um ‘“habitus precário’, incapaz de incorporar as disposições que perfazem a dignidade” (p. 204).

Na última parte, propõe o autor uma ciência social crítica como “arma poderosa para a reconstrução da realidade opaca e uma intervenção inteligente na realidade”, para compreender a “nova classe média”, as “jornadas de junho” e o golpismo passado e presente no Brasil. Para Jessé, tanto o conceito de classe social como a percepção de ascensão dos estratos médios são equivocadamente desenvolvidos por Márcio Pochmann e Marcelo Neri, por não se atualizarem em relação à teoria dos capitais de Bourdieu, associando inadequadamente o aumento do capital econômico à elevação de capital cultural, embaraçando o processo social de produção de privilégios e a explicação do porquê alguns ascendem socialmente e outros não. Análises pouco acuradas, segundo Jessé, foram também produzidas acerca da “primavera brasileira” de 2013, por explorarem certa vilania do Estado e o “bom mocismo” da sociedade engajada e politizada, ocultando que até o momento apenas as forças mais conservadoras, associadas às classes médias, colheram frutos com aqueles movimentos.

Essa obra instigante descortina uma possibilidade raramente oferecida ao leitor, porquanto propicia uma reflexão profunda sobre as nossas raízes ao tempo que descortina uma compreensão lúcida da conjuntura nacional hodierna. O trágico reside em reconhecer que a sociedade brasileira se encontra noutra encruzilhada histórica. Se na última, tratava-se de superar a herança autoritária de uma ditadura militar, na atual, urge lutarmos para manter a rota em direção às conquistas sociais, culturais e econômicas dos últimos anos, ameaçadas por forças conservadoras. No país dos bacharéis, os “donos do poder” sacrificaram a democracia ao preço de tentar retomar as rédeas e os destinos do país.

  • SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. Rio de Janeiro: Leya; Casa da Palavra: 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Set-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2018
  • Aceito
    18 Abr 2019
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