Acessibilidade / Reportar erro

Com quantos tempos se faz uma Democracia?

GOHN, Maria da Glória. Participação e democracia no Brasil: da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis (RJ): Vozes, 2019

P ensar o tempo presente é, sem dúvidas, um dos maiores desafios que os intelectuais enfrentam no âmbito da construção de análises, teorias e epistemologias: objetivar o que está diante de nós implica um trabalho cuidadoso de interconexões com o passado e de ir além da aparência imediata com a qual os fenômenos tendem a se apresentar no cotidiano. O equilíbrio tênue entre tempo natural e tempo social apontado por Hartmut Rosa (2015ROSA, Hartmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2015.) ganha, então, contornos próprios quando pensamos o ofício dos pesquisadores das ciências humanas e sociais. A tarefa de pensar o presente é marca do que chamamos, hoje, de tradição do pensamento social brasileiro. Questões nacionais específicas de cada época mobilizaram o interesse dos pesquisadores, oferecendo interpretações que se tornaram clássicas e que continuam a movimentar o campo científico.

As transformações políticas decorrentes dos movimentos de 2013, no Brasil, têm inquietado a comunidade científica na busca por respostas, ao passo que têm se constituído como objeto privilegiado para o avanço na compreensão de muitos elementos da vida neste país na atual conjuntura (Singer, 2013SINGER, André. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos-Cebrap, n. 97, p. 23-40, São Paulo, Nov. 2013.; Souza, 2018SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil: 2018.; Tatagiba, 2014TATAGIBA, Luciana. 1984, 1992 e 2013: sobre ciclos de protestos e democracia no Brasil. Política & Sociedade, v. 13, n. 28, p. 35-62, Florianópolis, Set./Dez. 2014.; ). Ao agregar tempo natural, tempo social e o tempo da construção de análises e debates no universo da academia, de forma individual ou coletiva, muitas mulheres têm levantado suas vozes em defesa da democracia no Brasil, e foi nesse contexto que a socióloga Maria da Glória Gohn tomou para si a tarefa de exercitar a compreensão de tais movimentos e seus desdobramentos. O livro Participação e democracia no Brasil: da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013, lançado em julho de 2019 no XIX Congresso Brasileiro de Sociologia, em Florianópolis, é a mais nova obra de Gohn e traz sua visão sobre as tensões que exerceram força sobre a democracia brasileira nos últimos anos - essa é a obra sobre a qual nos debruçamos nesta resenha.

Vale a pena frisar, antes de adentrarmos propriamente na discussão sobre o livro, dois elementos cruciais para evidenciar a localização deste escrito na trajetória de Maria da Glória Gohn, a saber:

  1. Em 2014, a autora publicou, também pela Editora Vozes, o livro Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo, no qual buscou, no calor dos acontecimentos, apontar algumas reflexões sobre os grupos mobilizados naquele momento político que o país atravessava, portanto, pode-se afirmar que tem se dedicado ao objeto em questão há meia década.

  2. Gohn construiu uma obra mais ampla, ao longo de sua trajetória como professora e pesquisadora, que se traduz em um referencial sólido, nacional e internacionalmente reconhecido, no âmbito de temas como movimentos sociais, democracia e participação social, associativismo e cidadania, bem como educação não formal - o que coloca seu mais novo livro no rol de análises robustas que tem nos apresentado desde a década de 1980. Suas dezenas de publicações no formato de livros, e mais de uma centena de artigos publicados em periódicos científicos, bem como os prêmios que conquistou e as citações de seus trabalhos que atingem números exponenciais são expressões da envergadura desta autora e da posição que ocupa no campo científico.

O livro aqui analisado está dividido em duas partes. A primeira concentra esforços em apontar um quadro teórico para análise de fenômenos relacionados à participação política, o que a autora materializa em dois movimentos. Inicialmente, esforça-se em expor os pontos de partida das teorias sobre a participação, bem como suas convergências e divergências, criando para o leitor um retrato panorâmico sobre as principais interpretações que têm figurado na literatura nacional e internacional, dos clássicos aos contemporâneos, demonstrando como o tema é abordado em áreas como a sociologia, a ciência política e a educação. Este movimento é materializado no primeiro capítulo da obra, “Participação social: teorias e conceitos - clássicos e contemporâneos no Estado democrático de direitos”. A autora trava aqui um diálogo que vai sequencialmente da Grécia Antiga a Rousseau, passando por nomes como Mill, Cole, Tocqueville, Owen, Fourrier, Proudhon, Kroptkin, Marx e Engels, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Gorz, Mandel, Poulantzas, Weber e Parsons, desaguando nos contemporâneos, tais como Touraine, Melucci, Honneth, entre outros1 1 Gohn chama atenção para o fato de que nem todos os autores com os quais dialoga neste momento do livro dedicaram-se originalmente ao tema em questão, mas constituíram, por sua vez, reflexões cruciais para os redirecionamentos do pensamento social sobre a participação ao redor do mundo. .

No segundo movimento, que dá vida ao segundo capítulo do livro “Participação e democracia no Brasil: formas históricas nas últimas cinco décadas”, a autora faz uso desse arcabouço conceitual para analisar as formas de participação que se desenvolveram no Brasil, a partir de 1960. Para isso, cria categorizações baseadas nos principais traços dos movimentos e das lutas sociais brasileiros e das formas de participação da sociedade civil. Para Gohn, são cinco ciclos de protestos e participação, analisados desde 1960 até junho de 2018, responsáveis por sintetizar a experiência nacional. Neste capítulo, são analisados os quatro primeiros ciclos (respectivamente demarcados em 1960, 1970, 1980 e pós-1988). Sobre cada ciclo a autora produz sínteses que buscam classificar os fenômenos relacionados à participação, para isso faz uso de análises tanto sobre os movimentos sociais - o que denomina de “práticas efetivas” -, quanto sobre a “produção acadêmica”. Ademais são consideradas as interpretações que os movimentos sociais fizeram das teorias, bem como suas relações com o Estado. Chama atenção os movimentos analíticos realizados pela autora que vão dos panoramas internacionais aos cenários comunitários, dos referenciais teóricos que orientaram algumas das formas de participação até as ideias divulgadas pelas grandes redes de comunicação, que atravessam o tempo e são reapropriados e ressignificados pelos novos e novíssimos movimentos sociais.

É no capítulo 3 - “Participação e protestos nas ruas brasileiras: de junho de 2013 a junho de 2018” - que Maria da Glória Gohn concentra seus esforços analíticos sobre a conjuntura nacional mais recente, pois, segundo a autora, este é um capítulo chave para os objetivos do livro. Em sua argumentação é rapidamente apresentado o panorama internacional relativo aos movimentos antiglobalização e de que forma as transformações sociais aprofundam as demandas de tais movimentos, culminando em transformações densas nas formas de participação. Dentre as transformações, destaca-se a principal mudança: a diferença entre o militante e o ativista.

O militante tem filiações e compromissos coletivos com grupos, movimentos, partidos etc. O ativista não, atua em função de causas, muitas vezes de forma individual, não tem pertencimentos fixos, atua mais em coletivos do que em movimentos já consolidados (p. 110).

No tratamento das ferramentas conceituais, a autora apresenta uma leitura muito apurada tanto dos instrumentos teóricos como das evidências empíricas, chegando muitas vezes a tensionar os conceitos a partir da realidade empírica. Desse modo, aponta as limitações das ferramentas conceituais existentes para tratar das formas de participação emergentes neste cenário, ao passo que propõe formas mais amplas de abstrações conceituais. Deste capítulo, extrai-se a seguinte tese: os acontecimentos pós-2013, no âmbito dos protestos de rua no país, não indicam, como pode parecer à primeira vista, que a sociedade brasileira tenha passado ao largo do processo de modernização. Ao considerar todos os ciclos estudados pela autora na primeira parte do livro, ela defende que a maior parte da população “[...] fez a opção de retorno ao tradicional, não importa se ele é conservador, atrasado ou liberal” (p. 160).

Na segunda parte do livro, a autora avança em frentes analíticas buscando focar alguns dos principais elementos empíricos decorrentes da discussão empreendida na primeira parte da obra, nomeadamente a participação juvenil; as lutas no âmbito da educação; e o legado do Maio de 1968. Além de fazer uma síntese histórico-analítica dessas questões, Gohn explora como o quinto ciclo de participação e lutas sociais no Brasil - o pós-2013 - desencadeou elementos inéditos nos repertórios de manifestações no país. Dentre as novidades destacadas estão: estrutura horizontalizada; ausência de instituições clássicas de organização coletiva, como partido ou sindicato; uso das novas ferramentas informacionais. É ainda nesta parte do livro que a autora explora sua defesa da coexistência de grupos heterogêneos no espaço de mobilização coletiva existente pós-2013. Nesse sentido, Movimento Passe Livre (MPL) e Movimento Brasil Livre (MBL) representam lutas opostas, o primeiro vinculado às lutas por garantia de mobilidade urbana para todos, enquanto o segundo defende uma agenda conservadora e neoliberal, mas que coexistem no espaço público.

Com este pano de fundo, a segunda parte do livro é subdivida em três capítulos. No quarto e no quinto capítulos, denominados respectivamente “Jovens na política na atualidade - Uma nova cultura política da participação” e “Lutas, movimentos sociais e políticas em educação no Brasil - Um histórico de organização e confrontos”, a partir de uma abordagem conceitual, costura-se uma problematização sobre o entendimento do que é a juventude na atualidade. Ganham centralidade, no capítulo quatro, os papeis do jovem no cenário da participação e das políticas públicas. A autora destaca o impacto causado pelas redes e mídias sociais nas formas de atuação coletiva dos jovens, como fator que diferencia os modos de mobilização atuais daqueles da década de 1960. Ainda no capítulo quatro, a autora aborda as políticas públicas voltadas para a juventude, as quais tiveram seu ponto de partida somente em 2005, com a implementação da Secretaria Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Juventude. Um ponto importante nessa abordagem vem à tona quando Gohn leva o leitor a compreender que, apesar das garantias advindas das políticas públicas para a juventude, o poder público não avançou em sua capacidade de diálogo com os jovens.

No quinto capítulo, mais uma vez a autora analisa as expressões da participação juvenil no cenário público brasileiro recente, aqui são correlacionadas as históricas lutas pela educação no país e as ocupações de escolas por jovens estudantes da educação básica. O resgate sócio-histórico tem como ponto de partida a passagem do século XIX para o XX, quando faz referência às primeiras reuniões de educadores e aos primeiros movimentos nacionais que se voltaram para o contexto educacional brasileiro, a exemplo do Movimento dos Pioneiros da Educação. Além dele, retoma as primeiras associações, confederações, movimentos educacionais de base, organizações e sindicalizações de professores, destacando-se a defesa da escola pública e da universalização do direito ao acesso à escola. Na continuação do fio histórico, no final do século XX, o destaque da autora recai sobre as lutas em torno da criação de uma nova lei nacional da educação com o intuito de reestruturar o sistema educativo brasileiro, que acabou por ser promulgada em 1996 e que, na sua história de construção, contou com diferentes grupos em disputa representando projetos distintos para a educação nacional naquele momento de efervescência em função da redemocratização.

Em complemento, no que tange às recentes lutas pela educação, protagonizada pelos estudantes brasileiros, Gohn parte da década de 2000, quando os movimentos universitários se manifestam em defesa da melhoria das condições de infraestrutura nas universidades, bem como de políticas de inclusão social, nas quais se destacam as ações afirmativas.

A composição desse cenário conduzirá o leitor ao entendimento das ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas da rede pública de ensino brasileira, a partir da década de 2010. As pautas dos movimentos de ocupação faziam críticas e tinham posicionamentos contrários às seguintes iniciativas: reformas estaduais na rede pública, que culminariam no fechamento de algumas escolas; reforma do ensino médio; projeto “Escola Sem Partido”; retirada de conteúdos relacionados ao debate sobre gênero do currículo escolar; e Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que estabelecia um teto de gastos para a educação nacional. É importante destacar que, para Gohn, há algumas características comuns entre a mobilização e participação dos jovens nas ocupações das escolas e os movimentos de junho de 2013, posto que as ocupações seguem organização e estrutura semelhantes às do movimento autonomista - dentre as quais se destacam a ausência de mediadores e de lideranças e o uso intensivo das redes sociais para os processos organizativos -, tais elementos permitem classificá-los, então, como novíssimos movimentos sociais.

No sexto e último capítulo da obra, “Maio de 1968 a maio de 2018: 50 anos de lutas sociais no Brasil - Fatos históricos e marco referenciais”, a autora faz um resgate histórico e aponta marcos referenciais para compreender os 50 anos de lutas sociais no Brasil. Ela inicia essa análise efetivando um percurso que retoma as manifestações ocorridas no ano de 1968, tanto nos países centrais como nos países periféricos, e busca compreender, particularmente, neste movimento, os efeitos de 1968 no Brasil. A abordagem de Gohn provoca no leitor o reencontro com um passado sombrio de cerceamento dos direitos civis, mas também de luta e resistência pela manutenção da democracia. Neste capítulo, há uma tentativa de unir as experiências nacionais de participação de 1968 e de 2018, por meio de elos relacionados ao protagonismo da juventude, dos estudantes e das universidades e ao embate frontal com o conservadorismo. É aqui que o apelo principal da autora se faz mais evidente: é preciso trazer o passado para perto, cultivá-lo e torná-lo memória viva no imaginário coletivo, este é o caminho para que a sociedade brasileira aprenda com aquilo que já viveu, com sua história de dominação, opressão e violência, de um lado, e que também é uma história de lutas, resistência e levantes, de outro.

Este último capítulo, apesar de breve, cumpre ainda o papel de atar a ponta discursiva com a qual Gohn alinhava todo o debate que empreende ao longo da obra: as continuidades e descontinuidades entre passado e presente. Esta relação de simbiose entre esses dois tempos serve aqui de base para pensar os quadros teórico e empírico relativos à participação e à democracia no caso brasileiro: se, na primeira parte do livro, temos a autora dialogando com um amplo referencial teórico acerca da questão da participação social, na segunda, temos uma marca mais material do fenômeno da participação. A conexão entre essas duas partes assenta-se na mirada que Maria da Glória Gohn nos oferece sobre aquilo que se pereniza e aquilo que é efêmero na experiência concreta da cena nacional e na literatura acadêmica especializada.

Nesse panorama da participação política dos jovens e demais atores sociais, Gohn contribui, de maneira esclarecedora, para o entendimento da conjuntura política sobre a qual o Brasil tem construído os pilares de sua democracia, desde os antecedentes de 1988 até 2018, e as rupturas nela provocada após o ano de 2013. Em que pesem as copiosas análises pessimistas sobre os processos políticos experienciados pelo Brasil nos últimos anos e que têm marcado nossa literatura, o livro de Maria da Glória Gohn traz, sob o prisma da participação, dos tradicionais, novos e novíssimos movimentos sociais e da juventude, um sopro de esperança depositado na crença do diálogo, crucial para a autora, no sentido de “[...] revitalizar a democracia, para fazê-la renascer, e não para enterrá-la porque ela não está morta” (p. 11).

Mesmo diante de um cenário de “desdemocratização”, como é denominado por Gohn o momento atual do Brasil, esta obra ratifica a necessidade da reflexão, do diálogo e da autocrítica, bem como a importância da “[...] razão [que] deve voltar a orientar a busca de caminhos e não apenas as emoções e as paixões políticas” (p. 259). Maria da Glória Gohn prende a atenção do leitor desde o título do livro, e acaba por entregar uma obra que interessa não somente aos seus pares sociólogos/as, mas a todos aqueles que têm se colocado a tarefa de compreender as lutas em torno dos projetos de sociedade, de regime político e de participação no Brasil. Ao apresentar as linhas e agulhas que, unidas, teceram a democracia brasileira desde a década de 1988, bem como aquelas que se uniram mediante as mais avançadas tecnologias na década de 2010 para desfazer os nós já feitos na costura democrática, ela entoa um canto de esperança e mostra ao leitor que a teia da democracia precisa continuar sendo construída com a fiadeira mais resistente.

Referências

  • GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis (RJ): Vozes, 2014.
  • ROSA, Hartmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2015.
  • SINGER, André. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos-Cebrap, n. 97, p. 23-40, São Paulo, Nov. 2013.
  • SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil: 2018.
  • TATAGIBA, Luciana. 1984, 1992 e 2013: sobre ciclos de protestos e democracia no Brasil. Política & Sociedade, v. 13, n. 28, p. 35-62, Florianópolis, Set./Dez. 2014.
  • 1
    Gohn chama atenção para o fato de que nem todos os autores com os quais dialoga neste momento do livro dedicaram-se originalmente ao tema em questão, mas constituíram, por sua vez, reflexões cruciais para os redirecionamentos do pensamento social sobre a participação ao redor do mundo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2020
  • Aceito
    27 Abr 2020
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais - Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900 - Brasília - DF - Brasil, Tel. (55 61) 3107 1537 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistasol@unb.br