Acessibilidade / Reportar erro

Por um modelo nacional de prevenção do trabalho escravo? Desafios e conflitos na nacionalização do projeto Ação Integrada

For a National Model to Prevent Slave Labor? Challenges and conflicts in the nationalization of the Integrated Action Project

Resumo

O artigo contribui para os estudos de políticas de combate e prevenção do trabalho escravo ao analisar o processo de implementação nacional do projeto Ação Integrada, ocorrido entre 2014 e 2018, quando se tentou alçá-lo à condição de modelo de prevenção da reincidência de trabalhadores/as em situações análogas à escravidão. A análise baseia-se na observação das relações institucionais do campo de combate ao trabalho escravo no Brasil pela participação em situações sociais ocorridas durante o processo e reveladoras da estrutura e dos conflitos intrínsecos ao campo. Como resultado, foram revelados desafios sociais e entraves políticos ao enfrentamento do problema, como a impossibilidade de replicar um projeto de prevenção em um mundo do trabalho complexo e dinâmico produtor de vulnerabilidades específicas para o trabalho escravo nas diferentes regiões do país, ao lado de conflitos institucionais que, acentuados pela disputa por recursos escassos, ameaçam a atuação conjunta do campo.

Palavras-chave:
Trabalho escravo; Campo; Ação integrada; Prevenção e vulnerabilidades

Abstract

The article contributes to the studies of policies to combat and prevent slave labor by analyzing the national implementation process of the Integrated Action project that occurred between 2014 and 2018, when it was raised to the condition of a model to prevent the recurrence of workers in situations analogous to slavery. The analysis is based on the observation of the institutional relations of the field to combat slave labor in Brazil through the participation in social situations occurred during the process that revealed the structure and the intrinsic conflicts to the field. As a result, social challenges and political obstacles to combat the problem were revealed, such as the impossibility of replicating a prevention project in a complex and dynamic world of work that produces specific vulnerabilities to slave labor in different regions of the country, alongside conflicts accentuated by the dispute over scarce resources that threaten the joint action of the field.

Keywords:
Slave labor; Field; Integrated action; Prevention and vulnerabilities

Em 14 de dezembro de 2016, Marinaldo Soares Santos, trabalhador rural originário do estado do Maranhão, recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria combate e erradicação do trabalho escravo. A premiação mostrava ao Brasil e ao mundo a persistência da escravidão contemporânea no país a partir da experiência de Marinaldo, que passou por doze fazendas e em quase todas foi submetido às condições desumanas, chegando a ser resgatado três vezes da escravidão… (Cruz, 2019CRUZ, Xico. Conto escravidão. São Paulo: Benfazeja, 2019.: 53)1 1 Conferir entrevista concedida por Marinaldo Soares a Xico Cruz do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos - Carmen Bascarán (CDVDH/CB) de Açailândia (MA) e narrada no livro Conto escravidão (Cruz, 2019). . Sua trajetória é emblemática de um segmento que vivencia reiteradamente condições de trabalho consideradas por lei “análogas à escravidão”2 2 As “condições análogas à escravidão” estão definidas no artigo 149 do Código Penal Brasileiro. Referem-se a situações que violam a dignidade e/ou a liberdade dos/as trabalhadores/as. Sobre os bens jurídicos tutelados pela lei, conferir Brito Filho (2015). ou denominadas “trabalho escravo” por grupos dedicados à defesa dos direitos humanos por referir-se a um tipo de trabalho não livre, marcado pela desigualdade e pela exploração exacerbada (Figueira, 2004FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra. A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.).

Políticas de combate ao trabalho escravo são oficialmente realizadas no Brasil desde 19953 3 Sobre as ações nacionais de enfrentamento ao trabalho escravo, conferir Costa (2010). , mas o seu viés preventivo, particularmente da reincidência em situações de escravidão contemporânea, constitui-se em lacuna no enfrentamento ao problema. Este artigo analisa a tentativa de implementação nacional do projeto Ação Integrada, criado em 2008, no Mato Grosso, para evitar a reincidência de trabalhadores/as resgatados/as em situações de trabalho escravo por meio de ações que apoiam a qualificação profissional dos/as resgatados/as e, idealmente, possibilitam sua inserção profissional em melhores condições.

Busca-se, desse modo, contribuir para os estudos sobre políticas de combate e prevenção do trabalho escravo, dentre os quais destaco: Luiza Freitas e Valena Mesquita (2018FREITAS, Luiza Cristina; MESQUITA, Valena. Combate ao trabalho escravo: a sistemática da lei estadual paulista 14.946 e seu processo de implementação nacional. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E.; JACOB, V. (Orgs.). Estudos sobre formas contemporâneas de trabalho escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.), que discorrem sobre os avanços e desafios para a implementação nacional da Lei Estadual Paulista 14.946, que prevê a cassação do cadastro dos contribuintes de Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de empresas flagradas utilizando mão de obra escrava; Fabiana Severo (2018), que argumenta a favor de medidas de prevenção que garantam aos/às trabalhadores/as processos de recrutamento transparentes, justos, honestos e equitativos para evitar o aliciamento, o tráfico de pessoas e outras práticas abusivas; Krystima Chaves (2018CHAVES, Krystima. O trabalho escravo contemporâneo sob a perspectiva da teoria do desenvolvimento humano de Amartya Sen. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E.; JACOB, V. (Orgs.). Estudos sobre formas contemporâneas de trabalho escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.), que analisa a ineficiência do Programa Seguro Desemprego para promover a reinserção social do/a trabalhador/a resgatado/ do trabalho escravo; e Kalil e Ribeiro (2015KALIL, Renan; RIBEIRO, Thiago. Trabalho escravo contemporâneo e proteção social. Revista Direitos, Trabalho e Política Social, v. 1, n. 1, 2015.), que descrevem os avanços da política repressiva de combate ao trabalho escravo no Brasil em contraposição à incipiente ação assistencial-preventiva destinada aos/às trabalhadores/as resgatados/as, de modo a evitar o seu retorno para situações análogas à escravidão.

A contribuição a esses estudos reside na análise antropológica de aspectos políticos próprios do campo nacional de combate ao trabalho escravo, inspirada na noção de “campo” desenvolvida por Pierre Bourdieu (2006BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2006.), e do mundo do trabalho no Brasil, que geram entraves à implementação de ações de enfrentamento ao problema.

A noção de “campo” lembra que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações, de onde retira o essencial de suas propriedades (Bourdieu, 2006BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2006.: 27). Neste caso, a expansão nacional de um projeto local está particularmente relacionada a um conjunto de ações institucionais diversas destinadas a erradicar o trabalho escavo no país. Seu avanço depende da maneira como o projeto se vincula com as demais iniciativas e da forma como ele contém os aspectos considerados essenciais para o enfrentamento do problema.

A percepção de que existem propriedades comuns a todos os campos - homologias estruturantes e funcionais (Bourdieu: 66-69) - suscitou o conhecimento da gênese do campo nacional de combate ao trabalho escravo, os valores que sustentam sua dinâmica própria, os processos produtores da necessidade desses valores, os jogos de linguagem nele utilizados, além dos aspectos materiais e simbólicos em jogo4 4 Estes aspectos podem ser encontrados nos diferentes campos analisados por Bourdieu, constituindo-se em princípios “invariantes”, a estrutura, capturada na variante observada das realidades empíricas estudadas (Bourdieu, 1996: 15 apud Catani, 2011: 190). . De forma conexa, isso permitiu compreender o capital próprio desse campo. Enquanto o habitus refere-se às disposições incorporadas nos agentes do campo decorrentes das práticas que regem o seu funcionamento sistemático (Bourdieu: 61-62), a identificação do capital disputado no campo permite entender sua distribuição entre os seus diferentes agentes e as estratégias elaboradas por eles para a sua obtenção (Catani, 2011CATANI, Afrânio Mendes. As possibilidades analíticas da noção de campo social. Educação e Sociedade, v. 32, n. 114, p. 189-202, 2011.).

O campo nacional de combate ao trabalho escravo é composto por instituições públicas, entidades privadas e organizações não governamentais dedicadas à defesa dos direitos trabalhistas e humanos. Elas ocupam diferentes posições no campo, conforme sua área específica de atuação - denúncias, fiscalização, condenações, atendimento a trabalhadores/as etc. - e capacidade de abrangência - nacional ou local. Estão associadas por uma atuação articulada em torno de um interesse social comum: a erradicação do trabalho escravo no país.

Ainda que as primeiras denúncias de trabalho escravo tenham ocorrido na década de 19705 5 A carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga - “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”-, de 10 de outubro de 1971, é considerada a primeira denúncia mundial sobre a conflitiva situação agrária da Amazônia brasileira e as condições de vida e de trabalho ali encontradas. Para ler a carta na íntegra, ver: <http://servicioskoinonia.org/Ca-saldaliga/cartas/1971Carta Pastoral.pdf>. Acessado em: 16 Jul. 2020. , a gênese formal desse campo, como sistema ou espaço estruturado de posições, pode ser remetida à 1995, com a criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), que articulava diversas áreas do governo (Costa, 2010______. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT, 2010.: 126). Sua maior institucionalização, entretanto, ocorreu em 2003 com a criação da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae)6 6 Sediada hoje no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a Conatrae reúne representantes de instituições governamentais, entidades privadas não governamentais e observadores que atuam nacional ou localmente no combate ao trabalho escravo. Sua função é definir, coordenar e acompanhar as estratégias de enfrentamento ao problema no país. Para mais informações, ver: <https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/orgaos-colegiados/conatrae>. Acessado em: 01 Nov. 2019. , que substituiu o Gertraf, e com o lançamento do I Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (I Pnete). Isso conferiu ao tema o status de política pública federal, interinstitucional, com plano, metas, recursos e instância de monitoramento (Plassat, 2015PLASSAT, Xavier. CPT: 30 anos de denúncia e combate ao trabalho escravo. In: Campanha Nacional da CPT contra o Trabalho Escravo, 2015.).

A articulação institucional, prática destacada no Gertraf, foi mantida e ampliada na Conatrae, assim como foi enfatizada no Pnete enquanto prática indispensável às suas ações (Costa, 2010______. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT, 2010.: 182). Isso permite perceber a articulação institucional como habitus que fundamenta esse campo na forma de uma disposição incorporada em seus agentes que percebem o trabalho escravo como problema multifacetado, que requer ações articuladas para o seu enfrentamento. Se são os detentores do habitus que conseguem jogar o jogo do campo (Catani, 2011CATANI, Afrânio Mendes. As possibilidades analíticas da noção de campo social. Educação e Sociedade, v. 32, n. 114, p. 189-202, 2011.), o êxito no combate ao trabalho escravo deve-se, em grande medida, à capacidade de seus agentes coordenarem ações articuladas entre diversas instituições.

Apesar desse caráter, este é um campo de lutas, como todos os demais7 7 A percepção do campo como um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam diversas posições e lutam em torno de um capital específico pode ser encontrada no texto “Le champ littéraire” (Bourdieu, 1991 apud Catani, 2011). . Seus agentes disputam, sobretudo, um capital simbólico (prestígio e reconhecimento) que pode levar ao recurso financeiro. Sua distribuição desigual situa as instituições em posições hierárquicas diversas na estrutura do campo, o que gera conflitos institucionais na busca por maior reconhecimento. Isso não ameaça a existência desse campo e torna o conflito um aspecto intrínseco e permanente das relações institucionais que o constituem, o que pode estimular a resolução de divergências internas contribuindo para a manutenção da sua unidade (Simmel, 1955: 13).

Entretanto, no contexto da nacionalização do projeto Ação Integrada, a luta interna ao campo ocorreu em meio a uma acirrada disputa por recursos escassos (financeiros e simbólicos), o que (ex)acerbou seus conflitos institucionais, tornando-os entraves à implementação de um projeto que trazia, em sua essência, a integração de instituições diversas, e ameaçou a atuação conjunta de um campo que sinaliza na articulação institucional um importante valor para realizar suas ações.

Da mesma forma, a tentativa de implementação de um projeto local em outros contextos foi de encontro à diversidade de trabalhadores/as resgatados/as no país, detentores/as de vulnerabilidades específicas para o trabalho escravo em cada estado ou região, o que requer políticas de prevenção adequadas ao seu perfil sociocultural. Isso evidenciou os riscos das soluções homogêneas destinadas a um mundo do trabalho dinâmico e complexo, produtor de situações diferenciadas de trabalho escravo e de um segmento heterogêneo e internamente diversificado de trabalhadores/as escravizados/as.

Os dados e as informações apresentados decorrem da observação desse processo a partir da atuação, entre 2014 e 2018, em uma entidade que desenvolve ações nacionais de combate ao trabalho escravo, dentre as quais o apoio à nacionalização do projeto Ação Integrada. A análise apresentada é, portanto, resultado da participação nesse processo que possibilitou a reflexão crítica sobre os diferentes aspectos que emergiram no seu decorrer. Isso permitiu observar as relações institucionais do campo de combate ao trabalho escravo estabelecidas e mantidas no âmbito federal e local8 8 Sobre a observação de relações institucionais e de universos temáticos em que o pesquisador analisa dinâmicas de poder que o envolvem como parte da sua atividade profissional, ver: Sergio Ricardo Castilho, Antonio Carlos de Souza Lima e Carla Costa Teixeira (2014). . Essas relações eram particularmente evidenciadas em eventos que se constituem em situações sociais (Gluckman, 1987GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.) reveladoras da estrutura do campo - agentes, dinâmicas de funcionamento, conflitos intra e interinstitucionais, recursos financeiros e simbólicos em jogo -, bem como dos seus processos de mudança e permanência.

No âmbito federal, essas situações sociais ocorriam nas reuniões periódicas da Conatrae, em reuniões bilaterais com instituições federais interessadas em apoiar a nacionalização do Ação Integrada, em eventos comemorativos realizados em datas emblemáticas para o campo, como o Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo (comemorado em 28 de janeiro), e em eventos extraordinários que marcam realizações das políticas de enfrentamento ao problema. Em âmbito local, a observação abarcou as reuniões periódicas do Grupo de Ação Interinstitucional para Erradicação do Trabalho Escravo, no sul e sudeste do Pará (Gatete), realizadas em Marabá (PA), o diálogo com representantes de entidades locais do Pará, Rio de Janeiro, Maranhão, Ceará, Bahia e São Paulo, interessadas em conhecer o projeto, e o diálogo com as instituições que o implementam em Mato Grosso.

A participação nessas situações sociais permitiu observar a tentativa de nacionalização do projeto Ação Integrada a partir de uma posição singular, que possibilitou acompanhar o processo como uma intermediária9 9 A posição poderia assemelhar-se ao broker analisado por Wolf (2006 [1956] apud Feldman-Bianco & Ribeiro, 2003) e que podia atuar orientado ou para a comunidade ou para a nação. Aqui, entretanto, ela permitiu apreender visões e valores dos diferentes agentes institucionais envolvidos voltados para a reprodução do campo. entre dois níveis distintos da atuação do campo: o federal, representado pelas instituições que, desde Brasília, definem estratégias nacionais de enfrentamento; e o local, representado pelas entidades que lidam diretamente com resgatados/as do trabalho escravo e pessoas vulneráveis a essa condição. O contato com representantes institucionais de ambos os níveis permitiu identificar expectativas, críticas e o que estava em jogo na nacionalização do projeto Ação Integrada. Isso podia estar orientado para atender às comunidades e aos territórios vulneráveis ao trabalho escravo, conforme seus problemas e características particulares, ou para possibilitar o melhor cumprimento do papel de instituições federais no combate ao trabalho escravo no país.

Diante dessas observações, indago: como desafios sociais e conflitos institucionais inerentes ao campo de combate ao trabalho escravo prejudicam o enfrentamento ao problema e como poderiam ser superados? Em resposta, serão apontadas as diferentes dinâmicas do trabalho escravo existentes no país e o esforço de adequação das ações de enfrentamento, por parte de entidades locais, ao perfil diversificado de trabalhadores/as. Serão igualmente apresentados o modo como os conflitos institucionais ocorrem, seus efeitos para a implementação de ações de combate ao trabalho escravo e a possibilidade de serem estabelecidos novos arranjos institucionais, que contribuam para a superação de dificuldades práticas de instituições assimetricamente posicionadas no campo, para compartilhar e implementar ações de prevenção e assistência às vítimas do trabalho escravo.

Para tanto, o artigo está dividido em três seções: a primeira apresenta o processo de criação do projeto em Mato Grosso, com análises sore as ações inspiradoras; a estrutura formada para atender aos seus objetivos; e os valores que o fundamentaram. A segunda seção examina as tentativas de replicação do projeto em outros estados e a ruptura com esse propósito inicial, imposta pelas particularidades de cada contexto. A terceira, aborda os entraves políticos à nacionalização do projeto a partir dos conflitos institucionais presentes nas esferas nacional e local.

Para não enxugar gelo

As estatísticas oficiais sobre o trabalho escravo no Brasil refletem os/as trabalhadores/as encontrados/as pelas equipes de fiscalização10 10 Desde 1995, foram encontrados 54.285 trabalhadores/as submetidos/as ao trabalho escravo, conforme o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), atualmente sediada no Ministério da Economia. Disponível em: <sit.trabalhoescravo.gov.br/radar/>. Acessado em: 26 Nov. 2019. . Os/as que não foram encontrados nas ações fiscais permanecem invisíveis aos dados da inspeção do trabalho, assim como a reincidência em situações análogas à escravidão é fenômeno de difícil acompanhamento, ainda que possa ser empiricamente constatado pelos auditores-fiscais do trabalho: “É como enxugar gelo!”, afirmam estes profissionais ao narrarem situações em que o/a mesmo/a trabalhador/a pode ser encontrado em diferentes contextos de escravidão. Isso revela os limites da fiscalização que, mesmo sendo uma estratégia fundamental de repressão, não é suficiente para alterar os fatores de vulnerabilidade que levam homens e mulheres às situações de escravidão contemporânea no país11 11 O estudo da OIT O perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil (2011: 85) indica que, para cada trabalhador resgatado, pode-se considerar que entre sete e oito não foram alcançados pela fiscalização. .

Após a ação fiscal, os/as trabalhadores/as resgatados/as podem receber uma modalidade especial do seguro-desemprego também denominada “seguro-resgatado”12 12 A extensão do benefício do seguro desemprego ao/à trabalhador/a resgatado/a ocorreu por meio da Lei 10.608, de 20 de dezembro de 2001. Para maiores informações, ver: <www.caixa.gov.br>. Acessado em: 29 Maio 2019. , que consiste no pagamento de três parcelas do benefício, no valor de um salário mínimo cada, ao longo de um período em que, idealmente, o/a trabalhador/a deveria “ser encaminhado, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, para qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho, por meio do Sistema Nacional de Emprego (Sine)”, conforme o § 1º, do artigo 2º da Lei 10.608, de 20 de dezembro de 2001, o que torna a qualificação profissional a estratégia do Estado para a reinserção do/a resgatado/a no mercado formal de trabalho e, consequentemente, para evitar a sua reincidência em situações de trabalho escravo.

Foi a impossibilidade de o Estado cumprir esse papel que levou à criação do projeto Ação Integrada em Mato Grosso, em 2008, por iniciativa da Auditoria-Fiscal do Trabalho atuante no estado. O projeto foi uma forma de promover a política de qualificação e inserção profissional prevista na lei por um caminho que vai além dos poderes públicos, estabelecendo parcerias destes com instituições privadas e da sociedade civil. Em consonância com a lei, compartilhava-se a visão de que a ausência de qualificação profissional e a baixa escolaridade eram os principais fatores de vulnerabilidade para a reincidência no trabalho escravo. Foi estabelecida uma parceria entre a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Mato Grosso (SRTE/MT), a Procuradoria Regional do Trabalho (PRT) e a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) com o objetivo de promover ações de qualificação e inserção profissional de resgatados/as do trabalho escravo residentes no estado. Essas ações seriam desenvolvidas com instituições parceiras que viabilizassem o apoio à realização de cursos profissionalizantes, a elevação da escolaridade e a inserção no mercado de trabalho.

Posteriormente foi percebido que as aspirações de trabalho dos/as resgatados/as deveriam ser consideradas na promoção e oferta dos cursos para evitar que o projeto limitasse as opções de qualificação às parcerias institucionais previamente estabelecidas, condicionando os cursos profissionalizantes a essas e não às demandas dos/as trabalhadores/as. Este aspecto foi ressaltado aos implementadores do projeto em Mato Grosso por organizações da sociedade civil (Gómez, 2019GÓMEZ, Mariana de la Fuente. “Comunicação oral”, setembro de 2019.). Essa percepção permitiria preencher as lacunas deixadas pelo Programa Seguro Desemprego (PSD), cujos cursos de qualificação, quando ofertados, não contribuíam para a melhoria das competências profissionais dos/as trabalhadores/as, por não serem adequados às suas demandas profissionais. Essa limitação acabou por reduzir o PSD à concessão temporária de renda aos/às resgatados/as, sem alterar sua condição vulnerável (Chaves, 2018CHAVES, Krystima. O trabalho escravo contemporâneo sob a perspectiva da teoria do desenvolvimento humano de Amartya Sen. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E.; JACOB, V. (Orgs.). Estudos sobre formas contemporâneas de trabalho escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.: 87-88).

Para não incorrer nesses erros, a metodologia do Ação Integrada baseava-se na articulação de políticas públicas de educação e assistência social, com ações do setor privado destinadas à qualificação profissional e da sociedade civil relacionadas com o atendimento e o acolhimento de trabalhadores/as. A articulação entre diferentes instituições conferiu o caráter essencialmente integrado do projeto. A diversidade de parcerias permitiria superar os limites de cada entidade pela ação complementar de outra, com o objetivo de atender o/a trabalhador/a após o resgate, bem como possibilitar, pela formação profissional e educacional, sua inclusão em situações de trabalho formalizadas protegidas pelos direitos trabalhistas.

As instituições criadoras do projeto (SRTE/MT, PRT e UFMT) constituíram uma coordenação responsável pela articulação e coordenação das parcerias capazes de promover as ações de qualificação e inserção profissional. As atividades com os/as trabalhadores/as, no entanto, passaram a ser implementadas por uma equipe multidisciplinar contratada para a localização dos/das resgatados/as residentes no estado; apreensão de seu perfil socioeconômico e de suas aspirações de trabalho; promoção de seu acolhimento e acompanhamento psicossocial durante o processo de formação, cuidando para que as condições necessárias à realização dos cursos (alojamento, alimentação, transporte e ajuda de custo) ocorressem.

Para localizar os/as trabalhadores/as resgatados/as, a equipe utiliza como fonte primária a base de dados sobre os beneficiários/as do seguro resgatado, o que disponibiliza o perfil inicial dos/as trabalhadores/as e seu possível endereço. A localização ocorre por meio de uma busca ativa nos seus municípios de residência e resulta na realização de entrevista semiestruturada com os/as localizados/as. Nesse momento - denominado “abordagem” -, é possível apreender informações mais detalhadas sobre o perfil do/a trabalhador/a, suas aspirações de trabalho e compreender, por meio de suas histórias de vida, relatos pessoais de escravidão contemporânea, como ocorreram, para aquele/a trabalhador/a, a experiência de condições análogas à escravidão nos termos dos/as que as sofreram. Trata-se de uma escuta com algumas características etnográficas, ainda que esse não fosse o objetivo da equipe, que busca assegurar condições adequadas ao diálogo, como a simetria de gênero e geração no momento da entrevista e a utilização de uma linguagem próxima ao campo semântico partilhado pelos/as entrevistados/as13 13 Sobre a escuta etnográfica, conferir O trabalho do antropólogo, de Roberto Cardoso de Oliveira (1998). .

A busca ativa pelo/a trabalhador/a resgatado/a constatou o seu constante deslocamento em busca de trabalho no interior do estado, o que dificulta o seu acompanhamento após o resgate e permite identificar pessoas que pertencem à rede de relações dos/as resgatados/as que haviam vivenciado as mesmas condições de trabalho, porém não haviam ainda sido encontradas por uma equipe de fiscalização. Este grupo foi denominado pela categoria “vulnerável” e, no projeto, se diferenciava dos/as resgatados/as pela ausência de informações contidas nas bases de dados. Para cada resgatado/a foram inicialmente identificados/as cinco vulneráveis, revelando um contingente desconhecido, até o momento, de pessoas submetidas ao trabalho escravo no Mato Grosso. Este grupo tornou-se beneficiário do Ação Integrada que, gradualmente, também abarcou, na categoria “vulnerável”, os familiares dos/as trabalhadores/as.

Os/as trabalhadores/as abordados/as são encaminhados aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) de seus municípios para o referenciamento em políticas públicas de desenvolvimento social. O perfil do/a trabalhador/a orienta a busca por parcerias institucionais que melhor possam atender suas necessidades e demandas de qualificação. Estas, via de regra, refletem a origem dos/as trabalhadores/as, de modo que aqueles/as com origem rural e que realizavam atividades relacionadas ao meio almejam trabalhos na área agrícola, considerados mais especializados, mais bem remunerados e com status mais elevado nesse contexto. Cursos nas áreas de mecanização agrícola e operadores de máquinas agrícolas, por exemplo, são demandados nesse sentido, o que pode levar ao estabelecimento de parcerias com empresas na área agrícola e com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). Da mesma maneira, a estrutura necessária ao acolhimento dos/as trabalhadores/as durante o processo de formação pode ser fornecida por entidades da sociedade civil.

Foi igualmente sugerido por entidades da sociedade civil que o projeto implementasse ações voltadas para a “formação cidadã” dos/as trabalhadores/as, o que se constituía em um conjunto de palestras sobre direitos humanos e trabalhistas, políticas públicas de educação, emprego, assistência social e saúde, além das formas de como acessá-las. Esta formação deve contribuir para a inclusão nas políticas públicas, além de permitir que em qualquer contexto de inclusão profissional o/a trabalhador/a esteja atento/a às condições de trabalho e aos direitos dos/as trabalhadores/as, bem como habilitado/a a identificar violações a esses direitos. Após a formação educacional, profissional e cidadã, as empresas parceiras podem contratar os/as beneficiários/as do projeto, o que não se constitui em obrigação.

Os primeiros resultados do projeto chamaram a atenção de instituições que atuam no campo de combate ao trabalho escravo, levando à criação de um movimento nacional - o Movimento Ação Integrada (MAI) -, destinado à implementação do projeto de Mato Grosso em outros estados. Criado em 2012 pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), esse movimento é uma articulação institucional que foi ampliada gradualmente com o objetivo expresso de fortalecer, consolidar e replicar o projeto Ação Integrada14 14 As premissas e os objetivos do Movimento Ação Integrada estão contidas no Acordo de Cooperação Técnica nº 14/2015 celebrado entre o CNJ, OIT, TST, Sinait e a União, por intermédio do MTE, SDH/PR, MPT e MPF. . Um marco dessa ampliação ocorreu em 2015, quando outras seis instituições - Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministérios Públicos Federal e do Trabalho (MPF e MPT), Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e Tribunal Superior do Trabalho (TST) - uniram-se formalmente ao MAI por meio da assinatura de um acordo de cooperação técnica.

Com a criação do movimento, tentava-se alçar o projeto Ação Integrada à condição de modelo de prevenção, isto é, solução exemplar ou paradigmática para evitar a reincidência do/a resgatado/a em situações análogas à escravidão e avalizada por relevantes instituições do campo nacional de combate ao trabalho escravo. Tão importante quanto os primeiros resultados do projeto, o reconhecimento positivo dessas instituições construiu sua legitimidade enquanto modelo de ação preventiva da reincidência. Este reconhecimento, por sua vez, decorreu de aspectos contidos na iniciativa de Ação Integrada criada em Mato Grosso, considerados importantes valores partilhados no campo, como: articulação institucional enquanto estratégia fundamental de enfrentamento ao problema; qualificação profissional como forma de inserção social do/a resgatado/a no mercado formal de trabalho; e necessidade de conhecer melhor, sistematizar e divulgar o perfil socioeconômico de resgatados/as e vulneráveis ao trabalho escravo.

Até então duas iniciativas eram - e permanecem sendo - referências na prevenção do trabalho escravo no Brasil: o programa “Escravo, nem pensar!”, da ONG Repórter Brasil, e o programa piloto de inserção do trabalhador resgatado do Instituto Carvão Cidadão (ICC), que reúne indústrias siderúrgicas atuantes na região de Carajás, estados do Pará e Maranhão. A primeira iniciativa foi criada em 2004 e consiste na capacitação de lideranças populares, professores/as e educadores/as sobre o trabalho escravo e temas correlatos. O objetivo é diminuir o aliciamento para o trabalho escravo na medida em que estes profissionais, residentes em municípios com alto índice de aliciamento, são preparados para atuar como agentes multiplicadores da formação recebida, divulgando-a entre seus alunos/as e comunidades (Costa, 2010______. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT, 2010.)15 15 Atualmente o programa “Escravo, nem pensar!” estendeu suas ações de formação aos agentes públicos que atuam na rede de assistência social de diferentes estados. Conferir: <escravonempensar.org.br>. Acessado em: 29 Maio 2019. .

O projeto piloto do Instituto Carvão Cidadão, realizado em 2005, foi pioneiro na inserção profissional de trabalhadores/as resgatados/as por meio da sua localização e contratação formal por siderúrgicas associadas ao instituto. Foram ocupados postos de trabalho que exigiam baixa qualificação, dada a ausência de escolaridade dos/as trabalhadores/as. Apesar da efetividade do programa, aferida pelo número de pessoas contratadas ou inseridas, foi constatada significativa evasão, sugerindo a necessidade de acompanhamento dos/as contratados/as durante o trabalho nas empresas (Costa, 2010______. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT, 2010.).

A iniciativa de prevenção que se estabelecia em Mato Grosso guardava claras semelhanças com a experiência do Instituto Carvão Cidadão (ICC). Para os articuladores do Ação Integrada, a experiência do ICC promoveu imenso ganho no que tange à formalização da situação profissional dos/as trabalhadores/as inseridos/as, além de ter realizado o controle dessa cadeia produtiva quanto à utilização do trabalho escravo. No entanto, não aumentou a capacidade de inserção do/a trabalhador/a no mercado de trabalho, tampouco melhorou suas perspectivas de crescimento profissional. Essa percepção atribuía à qualificação profissional importância destacada para uma inserção profissional duradoura16 16 Conferir: “Movimento ‘Ação Integrada por uma ação ativa na reinserção social dos egressos e vulneráveis ao trabalho escravo contemporâneo’. Criação do Projeto Piloto e Sistematização dos seus primeiros resultados” (Sinait, 2012). . O projeto de Mato Grosso parecia demonstrar que a integração de instituições diversas (públicas, privadas e da sociedade civil) era estratégia eficaz para suprir essas lacunas, promovendo a qualificação e inserção profissional, além do acompanhamento dos/as beneficiários/as da ação.

A tentativa de nacionalizar o Ação Integrada não foi realizada conforme os termos inicialmente propostos pelo movimento. O objetivo de replicar o projeto foi rapidamente desconstruído pela complexidade do mundo do trabalho no Brasil que gera situações de escravidão contemporânea dinâmicas, variadas e produtoras de um segmento de trabalhadores/as escravizados/as heterogêneo e diverso quanto às vulnerabilidades para o trabalho escravo.

As vulnerabilidades constituem-se em importante categoria do campo, referindo-se aos diferentes aspectos do perfil, trajetória e contexto local dos/trabalhadores. Ações de prevenção são consideradas efetivas na medida em que contribuem para a redução ou superação de vulnerabilidades para o trabalho escravo. Ainda que existam características comuns partilhadas pelas pessoas submetidas à escravidão contemporânea no Brasil, particularidades decorrentes de cor, sexo, etnia, lugar de origem, bem como do lugar onde são encontradas no momento do resgate, determinam vulnerabilidades específicas para o trabalho escravo relacionadas aos diferentes grupos de trabalhadores/as encontrados/as em cada região. Da mesma forma, projetos de vida e aspirações profissionais estão associados a essas características variantes, o que determina ações e estratégias de prevenção e inserção profissional igualmente diferenciadas.

Replicar em outros contextos o projeto de Mato Grosso, criado para atender a um perfil particular de trabalhadores/as disposto às ações de qualificação, não seria possível: as realidades locais impuseram esse limite. Tornava-se mais viável criar condições para que instituições locais pudessem promover as ações consideradas mais adequadas à redução de vulnerabilidades específicas para o trabalho escravo presentes em cada estado ou região. Da mesma forma, surgiram desafios políticos à tentativa de reproduzir em outros estados a articulação institucional e as parcerias estabelecidas em Mato Grosso, sobretudo em cenários marcados pela disputa por recursos escassos. Esses entraves levaram à criação de estratégias diferenciadas de prevenção baseadas na articulação institucional. Ao mesmo tempo, questionaram-se os valores que permeavam o projeto em Mato Grosso e que contribuíram para construir sua legitimidade entre as instituições do campo nacional de combate ao trabalho escravo.

Vulnerabilidades plurais, estratégias de prevenção diferenciadas

Quatro iniciativas de Ação Integrada foram criadas entre 2013 e 2017, três estaduais - abrangendo Bahia, Rio de Janeiro e Ceará -, e uma regional - abarcando Maranhão, Pará e Tocantins. Foram implementadas por diferentes instituições e todas dedicam-se ao atendimento de resgatados/as e vulneráveis ao trabalho escravo residentes nas áreas de abrangência de cada projeto. Esse segmento, via de regra, não possui formação educacional e profissional, desconhece as formas de acesso aos direitos trabalhistas, ou os próprios direitos, está excluído de políticas públicas e programas sociais e é originário de lugares marcados pela escassez de recursos. Além disso, é composto por homens e mulheres que estão em trânsito, buscando sobreviver e, de alguma forma, realizar seus projetos pessoais, sobretudo quando são jovens. Entre os vulneráveis destacam-se os familiares que aguardam notícias e o retorno dos que partiram e acabaram escravizados. Estes formam um contingente de viúvas e órfãos de maridos e pais vivos vulnerável ao trabalho escravo e ao trabalho infantil (Gómez, 2019GÓMEZ, Mariana de la Fuente. “Comunicação oral”, setembro de 2019.)17 17 A impossibilidade de retorno dos/as trabalhadores/as para os seus lugares de origem ou para o convívio com suas famílias é parte do processo de desenraizamento social que acentua a vulnerabilidade dos/as trabalhadores/as (Costa, 2008). .

Diante da heterogeneidade de trabalhadores/as, a qualificação profissional tornou-se uma estratégia de prevenção restrita ao Mato Grosso. Nos demais estados, outras estratégias foram elaboradas, por iniciativa do Ação Integrada, dedicadas à redução das vulnerabilidades mais prementes entre os/as atendidos/as de cada projeto.

Na Região do Bico do Papagaio, a percepção de vulnerabilidades compartilhadas pelos/as trabalhadores/as do Pará, Maranhão e Tocantins levou à criação de uma iniciativa interestadual: a Rede de Ação Integrada de Combate à Escravidão (Raice), com ações que abrangem os três estados marcados pela elevada incidência do trabalho escravo, por conflitos pela terra e pelo intenso fluxo de homens e mulheres em busca de trabalho. A iniciativa atende às comunidades impactadas por diferentes fatores, como: relação de dependência com a atividade escravizadora; moradores/as cooptados/as pela violência ou pela dependência econômica; “naturalização” da exploração por parte dos/as trabalhadores/as; presença de grupos políticos locais ligados a quem explora e escraviza; realidade agrária conflituosa; crime organizado infiltrado no aparato do Estado; e situação de abandono das comunidades pelas políticas públicas.

O foco da estratégia de enfrentamento acionada pela Raice é o/a trabalhador/a em seu lugar de origem, com ações dedicadas não apenas ao seu atendimento, mas ainda ao atendimento de sua família e comunidade. As ações junto ao indivíduo devem apresentar efeitos positivos sobre o meio em que vive: busca-se apoiar as comunidades para que se organizem na resistência à escravidão. Os/as atendidos/as dividem-se em três categorias:

  1. resgatados” - para os/as encontrados/as pelas equipes de fiscalização;

  2. sobreviventes” - para os/as que foram escravizados/as, porém, não vivenciaram a intervenção de uma ação fiscal; e

  3. vulneráveis” - para os/as que não passaram pela experiência do trabalho escravo, mas compartilham as características que levam às condições de trabalho análogas à escravidão.

No Maranhão as ações são realizadas pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascáran (CDVDH/CB), de Açailândia, organização da sociedade civil. Os/as moradores/as de comunidades vulneráveis recebem formação sobre direitos humanos e trabalhistas e informações sobre as formas de acesso aos direitos e às políticas públicas por meio da organização comunitária. São apoiadas iniciativas de meios de vida, individuais ou comunitárias, que possibilitem a geração de renda de forma contínua. A inserção no mercado formal de trabalho não é o principal foco, como no Mato Grosso. Famílias são atendidas e encaminhadas para programas sociais disponíveis no estado, assim como homens e mulheres recebem assistência sociojurídica gratuita para o acompanhamento de suas demandas individuais18 18 Para mais informações sobre a Rede de Ação Integrada de Combate à Escravidão (Raice) implementada pelo CDVDH/CB no Maranhão, conferir: <http://www.cdvdhacai.org.br/index.php/component/content/article?layout =edit&id=63>. Acessado em: 07 Out. 2019. .

São ações diferentes daquelas implementadas pelo projeto em Mato Grosso, cujo foco é prioritariamente o/a trabalhador/a individual proveniente de outros estados, porém com residência já estabelecida em Mato Grosso, e que se desloca no interior do estado para realizar trabalhos temporários nas diferentes fazendas. Ele/a, no entanto, não vive a situação de dependência ou violência que afeta os residentes da Região do Bico do Papagaio, por isso está mais apto/a e disposto/a a ingressar nos cursos profissionalizantes ofertados a partir do projeto. Em Mato Grosso, o desafio é manter o interesse do/a trabalhador/a nos cursos ofertados, evitando que ele/a parta em busca de um novo trabalho temporário durante o processo de qualificação. As condições para a realização dos cursos (alojamento, ajuda de custo, transporte etc.), assim como o acompanhamento psicossocial dos/as trabalhadores/as pela equipe do projeto, são fundamentais nesse sentido.

O sucesso dos cursos depende, em grande medida, da capacidade dessa equipe em atender às demandas que lhe chegam a partir dos/as trabalhadores/as beneficiários/as do projeto ou a partir das instituições apoiadoras, na figura de seus/suas professores/as, instrutores/as e funcionários/as. Se, por um lado, isso permite um acompanhamento individualizado dos/as trabalhadores/as em formação, bem como de cada instituição parceira, uma equipe reduzida pode ameaçar o sucesso dos cursos de qualificação e limitar a capacidade do projeto de ampliar a escala do seu resultado, atendendo a um número maior de trabalhadores/as e parceiros institucionais.

A partir de 2017, o CDVDH/CB iniciou a implementação da Raice em quatro municípios do Maranhão e enfrentou desafios relacionados à aceitação das ações por parte das comunidades vulneráveis. A estratégia de abordagem desenvolvida foi fundamental nesse sentido. Baseada na valorização de tradições locais - quadrilha, boi-bumbá, capoeira, religiosidades de matriz africana, expressões do catolicismo popular etc. - até a promoção e valorização de dinâmicas econômicas das comunidades - agricultura tradicional, pesca, artesanato -, as comunidades são valorizadas a partir de sua história e da história dos integrantes de seus grupos (crianças, jovens, adultos, idosos/as, homens e mulheres), incentivando a mobilização dos/as moradores/as por meio de aspectos culturais que lhes são próprios.

Essa atuação é voltada para o fortalecimento da autoestima dos/as moradores/as e de sua capacidade de organização comunitária. Ela assegura a adesão de famílias inteiras às atividades promovidas pelo CDVDH/CB, além de permitir que essas sejam traduzidas para uma linguagem acessível e compatível com o seu universo semântico. Falar da necessidade de mobilização para a defesa de direitos individuais e comunitários, para o ingresso em políticas públicas, para reivindicar melhores condições de vida e trabalho, assim como para prevenir contra a cooptação para o trabalho escravo, faz mais sentido e torna-se mais eficaz quando o discurso está associado aos significados de libertação, luta e resistência presentes nas tradições culturais locais19 19 Componentes de mobilização comunitária, além dos significados de libertação e resistência social estão presentes em manifestações do catolicismo popular, a exemplo das congadas (Costa, 2012). .

Em outros estados, novos desafios à replicação do projeto Ação Integrada surgiram à medida que o perfil dos/as resgatados/as e vulneráveis foi mais bem apreendido e suas particularidades identificadas. Valores e visões de mundo partilhados decorrentes da origem social também podiam configurar vulnerabilidades específicas, amarrando homens e mulheres a situações de trabalho bastante precárias. Noções de honra e honestidade, por exemplo, podem impedir um/a trabalhador/a de deixar uma situação de trabalho a partir da dívida moral ou financeira que tenha contraído. A noção de que toda dívida deve ser paga - independente da mesma ser ilegal ou injusta - é um fator de aprisionamento, pois cria a obrigação de permanecer no trabalho. A dívida moral aliada ao endividamento financeiro ou à necessidade de retribuir algo pensado como dádiva - como a oferta de trabalho em um cenário marcado pela falta de opções - pode fazer um/a trabalhador/a retornar imediatamente após o resgate para a rede de aliciamento. Como atender a um/a trabalhador/a que se sente obrigado a saldar uma dívida?

Esse foi um importante desafio enfrentado pelo programa Ação Integrada - Resgatando a Cidadania, implementado no Rio de Janeiro. Dedicado, inicialmente, a atender homens e mulheres resgatados do trabalho escravo e vítimas do tráfico de pessoas, considerando a elevada incidência de tráfico de pessoas para fins de exploração laboral no estado, o programa abrangia trabalhadores/as migrantes e refugiados/as, realizando, prioritariamente, ações para o seu acolhimento após o resgate. Desse modo, promovia sua hospedagem, fornecia intérprete, aulas de português e atendimento psicossocial, possibilitando ao/à resgatado/a receber informações e encaminhamentos para ingressar em políticas públicas e programas sociais disponíveis para migrantes. Realizar uma qualificação profissional não se constituía em demanda imediata desses/as trabalhadores/as, mas sim a necessidade de saldar o mais rápido possível uma dívida de viagem e hospedagem.

Na Bahia, o projeto atende trabalhadores/as resgatados/as no estado ou fora, mas que pretendem retornar para suas comunidades. É realizado o seu encaminhamento para as políticas públicas disponíveis e a qualificação profissional também não aparece como prioridade para essas pessoas, que almejam realizar em seus lugares de origem atividades relacionadas à agricultura familiar, ao empreendedorismo e à economia solidária.

No Ceará, a estratégia de prevenção foi desdobrada no diálogo com empresas em cujas cadeias produtivas foram encontradas situações de trabalho escravo. A ideia é estimular junto às empresas possíveis ações de inserção dos/as resgatados/as, o que não necessariamente implicará em ações de qualificação.

As rupturas com o modelo de prevenção criado em Mato Grosso conferiram uma identidade própria a cada iniciativa de Ação Integrada implementada no país. Além disso, revelaram que o objetivo de nacionalizar um projeto local, por meio de sua replicação em diferentes contextos, parecia apoiar-se em uma visão mais estática e homogênea do mundo do trabalho, sem considerar processos inerentes ao modo de produção capitalista que geram homogeneidades e heterogeneidades, levando a uma noção mais sistêmica e dinâmica do mundo do trabalho.

Essa noção acompanha particularmente a análise de Wolf (Ribeiro & Feldman-Bianco, 2003) sobre a segmentação étnica do mercado de trabalho, quando o autor enfatiza que as necessidades de trabalho do sistema capitalista em expansão levam à reunião de populações com características distintas e em posições variantes. Processos migratórios provocados em escala global - ou nacional - são considerados primordiais para a produção de um mundo do trabalho complexo em que as posições ocupadas por cada grupo podem ser alteradas para melhores ou piores no decorrer do tempo. Na análise de Wolf, esses grupos referiam-se às diferentes etnias reunidas em um mesmo mercado de trabalho; nas realidades abarcadas pelas iniciativas de Ação Integrada, eles corresponderiam a homens e a mulheres provenientes de diferentes partes do país e do mundo e que podem se reunir momentaneamente em situações de trabalho precárias e análogas à escravidão.

A escravidão, por sua vez, pode ser percebida como componente do capital, cujo processo de desenvolvimento implica na dissolução de relações sociais que impedem sua reprodução ampliada e na recriação de relações - a exemplo das formas contemporâneas de escravidão - que viabilizem sua expansão. Isso gera um descompasso histórico entre o progresso material e o progresso social (Martins, 1994MARTINS, José de Souza. A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão no Brasil. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 6 , n. 1-2, 1994.). Enquanto as forças produtivas rapidamente se desenvolvem com a utilização do trabalho escravo, as desigualdades sociais tornam-se mais acentuadas, sobretudo entre trabalhadores/as e empregadores/as, impedindo o acesso igualitário aos produtos alcançados pelo desenvolvimento do capital, estejam eles na forma de bens ou de direitos.

As desigualdades e heterogeneidades produzidas pelo capitalismo geram situações de vida e trabalho complexas que desafiam a disseminação de ações homogêneas para a superação de vulnerabilidades plurais.

Se a qualificação profissional de resgatados/as e vulneráveis ao trabalho escravo não podia ser replicada em outros estados, a articulação de atores sociais diversos para o enfrentamento do problema foi premissa mantida e ressaltada nas diferentes iniciativas de Ação Integrada, ainda que o perfil das instituições articuladas variasse em cada contexto. Foi igualmente mantido o propósito de contribuir para a redução de vulnerabilidades que levam à incidência ou reincidência no trabalho escravo.

A ênfase na integração de instituições diversas manteve as iniciativas locais implementadas sob o guarda-chuva do Movimento Ação Integrada, sobretudo a partir da fundação do Instituto Ação Integrada (Inai), em 2016. Criado pelo esforço das entidades signatárias do movimento, o Inai era uma associação sem fins lucrativos destinada a promover o apoio técnico, político e financeiro àquelas iniciativas. As instituições do MAI formavam um conselho político do instituto com participação no processo de tomada de decisões. As entidades implementadoras das iniciativas de Ação Integrada envolveram-se ativamente na estruturação do Inai, definindo em conjunto os seus objetivos e as suas estratégias, e foram beneficiárias de capacitações promovidas pelo instituto para o seu fortalecimento institucional. Isso possibilitou a aproximação e a troca de experiências entre as variadas estratégias de prevenção implementadas.

A articulação institucional apoiadora da iniciativa em cada estado foi determinada pelo perfil das instituições mais atuantes nos territórios, com sua diversidade de agentes. Isso definiu quais entidades seriam as protagonistas do projeto nos diferentes locais, ao mesmo tempo em que revelou a necessidade de uma atuação conjunta mais coordenada em cada contexto, trazendo à tona desafios à articulação institucional em diferentes níveis.

Desafios à articulação institucional

O acordo de cooperação técnica que ampliou o Movimento Ação Integrada foi assinado em 2015, em cerimônia realizada no Supremo Tribunal Federal (STF). O evento parece ter se constituído em ritual de renovação dos votos de combate ao trabalho escravo por parte das instituições signatárias, conferindo reconhecimento às ações já empreendidas por elas no enfrentamento ao problema no país e ressaltando seu compromisso na continuidade dessas ações, mas com ênfase na prevenção.

A renovação dos votos e o destaque das atuações institucionais apareciam particularmente nos discursos proferidos pelos representantes das signatárias, que, em alguns casos, reafirmavam a identidade de cada instituição ao ressaltar sua competência e êxito no campo nacional de combate ao trabalho escravo. Os discursos tornavam-se, desse modo, expressões performativas (performative utterances)20 20 Sobre as performative utterances, que, ao serem emitidas sob determinadas circunstâncias, performam uma ação, mais do que a relatam, conferir John Langshaw Austin (1975). que, ao serem enunciadas sob aquelas circunstâncias, realizaram um ato declaratório e contratual para a formação de uma rede nacional de apoio à replicação de ações integradas de prevenção. Os pronunciamentos, de alguma forma, sugeriam que a ampla articulação ali instituída só seria possível na medida em que os espaços de atuação e competências de cada ente estivessem delimitados e resguardados.

A cerimônia constituiu-se em situação ritual, composta por etapas previamente estabelecidas - chegada dos participantes com a segregação dos que performariam o ato, anúncio das instituições signatárias, assinatura do acordo, discursos e sessão de fotos - que conferiram formalidade e publicidade ao evento, além de atribuir um caráter excepcional ao momento. Nessa circunstância extraordinária, foi selado um compromisso entre os presentes e buscou-se transferir ao projeto de Mato Grosso o prestígio e a legitimidade das signatárias do acordo. A situação permitiu reafirmar a identidade de atores institucionais do campo, exaltando as particularidades de suas funções e sua participação nos processos produtores das estratégias de combate ao trabalho escravo disseminadas em todo país. Conflitos inter e intrainstitucionais estiveram ali representados, pois o momento marcou a culminância de diálogos entre as instituições e os internos às mesmas.

No âmbito federal, o MAI era objetivado em reuniões periódicas com representantes das instituições partícipes, designados para o acompanhamento da articulação e que, juntos, formaram a coordenação nacional do movimento. Suas reuniões constituíram-se em fórum de discussão sobre o tema do trabalho escravo, com foco especial nas ações de prevenção e nos objetivos estipulados pelo acordo de cooperação.

Até então, as discussões de alcance nacional pareciam restringir-se às reuniões periódicas da Conatrae, onde as estratégias para o enfrentamento do trabalho escravo já eram discutidas em conjunto e idealmente implementadas de forma articulada. A importância da ação conjunta entre os diferentes poderes públicos e os diversos setores organizados da sociedade é destacada nas reuniões da comissão. Nelas, são engendradas diferentes formas de integração dos agentes do campo para realizar a política nacional de erradicação do trabalho escravo. O valor da articulação institucional é reafirmado periodicamente nessas situações, contribuindo para sua internalização nos agentes do campo, enquanto disposição incorporada fundamental, para a realização do seu propósito comum: erradicar o trabalho escravo por meio da ação conjunta.

Ainda que reúna um número maior e mais diversificado de instituições, a Conatrae está representada no Movimento Ação Integrada, pois as instituições que integram a comissão também participam do MAI. Isso permite que valores, visões e práticas que permeiam o campo sejam reafirmados nos dois espaços de discussão, o que não impede o surgimento de desafios à articulação institucional.

Na tentativa de o MAI alcançar os diferentes estados, emergiram desafios decorrentes da capacidade de atuação local das instituições federais participantes do movimento e da dificuldade de articulação interna às redes (nacionais e estaduais) de combate ao trabalho escravo. O apoio às iniciativas locais de Ação Integrada requeria das instituições federais uma ação de significativa capilaridade nos diferentes territórios, realizada de forma coordenada e harmonizada com as decisões tomadas na esfera superior. No entanto, foram reveladas capacidades de atuação distintas de uma mesma instituição nos diferentes territórios. O número reduzido de funcionários em alguns estados, com sobrecarga de trabalho, aliada à maior ou menor identificação com a estratégia de prevenção a ser implementada, configurou formas diferenciadas de envolvimento das instituições junto às iniciativas de Ação Integrada que se buscava implementar.

Igualmente problemática foi a tentativa de articulação das ações locais de prevenção com políticas públicas de assistência social disponíveis nos estados, revelando as dificuldades dessa política nacional para alcançar os/as trabalhadores/as vítimas do trabalho escravo, dado o desconhecimento de seus agentes públicos sobre as vulnerabilidades daquele segmento e a falta de estrutura dos aparelhos locais de assistência social para o seu atendimento e acompanhamento devido.

Internamente às redes de combate ao trabalho escravo, o mais importante desafio emergiu dos conflitos institucionais presentes no campo e que foram acentuados pela escassez de recursos. As ações públicas, notadamente de fiscalização do trabalho, sofrem, desde 2011, um gradual contingenciamento de recursos. Em 2017 houve o menor investimento do governo brasileiro na política de trabalho, quando o volume mensal de ações de inspeção diminuiu 58% em relação ao ano anterior. O corte orçamentário revelou a baixa prioridade atribuída pelo governo ao tema e resultou na contínua redução do número de trabalhadores/as resgatados/as, não devido ao sucesso da política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo, mas em função da ausência de recursos (humanos, operacionais e financeiros) para o seu cumprimento (Magalhães, 2017MAGALHÃES, Matheus. Fiscalização do trabalho escravo em declínio: impactos do contingenciamento em 2017. Nota Técnica 192 do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Brasília: Inesc, Out. 2017.).

Para as entidades privadas atuantes no campo - sobretudo organizações da sociedade civil -, a escassez de recursos chegou a partir de duas frentes:

  1. a frente do governo brasileiro; e

  2. as frentes de governos de outros países que mantinham linhas de financiamento destinadas à cooperação internacional para o desenvolvimento, objetivadas em editais acessíveis às entidades de base.

De 2011 a 2016 podia-se contar com recursos públicos nacionais. A partir de 2017, eles se tornaram escassos nos governos estaduais, que, seguindo o contingenciamento realizado no governo federal, restringiram o apoio às entidades relacionadas ao tema. O apoio internacional, por sua vez, diminuiu gradualmente a partir de 2011, sobretudo com a crise econômica em diversos países europeus e nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que outros países foram considerados mais prioritários para o seu recebimento (Gómez, 2019GÓMEZ, Mariana de la Fuente. “Comunicação oral”, setembro de 2019.).

A escassez de recursos parece ter trazido à tona conflitos latentes entre algumas instituições do campo de combate ao trabalho escravo, especialmente aquelas que, de alguma forma, poderiam realizar ações semelhantes ou complementares, em virtude do tipo de atividade desenvolvida e das áreas geográficas de abrangência. A disputa por recursos escassos impôs desafios à articulação entre diversos agentes, criando um ambiente de maior competição e menor cooperação, o que dificulta uma ação mais articulada das redes de combate ao trabalho escravo. Os recursos escassos disputados podiam ser financeiros, para assegurar a realização de atividades de alcance nacional ou local e contribuir para a manutenção das instituições, ou simbólicos, na forma de prestígio ou reconhecimento, o que muitas vezes condiciona o acesso aos recursos financeiros.

Nesse cenário, algumas instituições podiam procurar definir sua identidade em oposição às outras, isto é, delimitando sua esfera de atuação específica pela divulgação das atividades realizadas e dos resultados alcançados em contraste com as ações de outras entidades. Instâncias colegiadas e eventos de discussão sobre o tema podiam tornar-se espaços privilegiados para a afirmação das identidades institucionais em oposição às outras instituições. O objetivo era diferenciar-se das demais, por meio das ações que realizam, assegurando, de alguma forma, um lugar específico no campo e, consequentemente, o acesso aos recursos necessários ao cumprimento da função que lhe cabe.

Diferentes entidades podiam realizar ações semelhantes de forma complementar, podendo ser consideradas potencialmente parceiras nesse sentido. Quando há disputa por recursos escassos, essa complementaridade pode ser considerada ameaçadora, pois ela dificulta a delimitação precisa da esfera de atuação de cada entidade. Isso pode comprometer o acesso aos poucos recursos financeiros disponíveis destinados à realização de ações compartilhadas por diferentes organizações. A articulação torna-se um desafio, pois ameaça as fronteiras identitárias criadas entre as organizações e afirmadas nos cenários de disputa. A complementaridade, nesses contextos, pode adquirir o sentido negativo de sobreposição de ações, quando as organizações buscam exaltar seu papel no campo em detrimento de outras igualmente atuantes.

A afirmação das identidades institucionais também podia ocorrer para aumentar o prestígio de instituições públicas no campo pelo reconhecimento das ações realizadas e de sua eficácia no cumprimento de suas competências, mesmo com poucos recursos, o que exalta o seu valor. Esse prestígio não necessariamente levava aos recursos financeiros, mas podia conferir legitimidade às demandas políticas da instituição. A articulação nesse contexto podia tornar-se igualmente desafiadora, na medida em que podia ameaçar a visibilidade e o reconhecimento de cada instituição em meio às demais.

As estratégias de diferenciação entre instituições ocorrem de forma permanente em diferentes campos políticos, não sendo característica exclusiva do campo de combate ao trabalho escravo. Essas diferenças se tornam mais marcadas e parecem ganhar maior relevância nos contextos de disputa. A escassez de recursos foi um elemento catalisador dos conflitos institucionais.

As crises, por outro lado, podem estimular novos arranjos institucionais, ou articulações que podem contribuir para o fortalecimento do campo como um todo. Nesse caso, a demarcação das diferenças institucionais poderia atribuir maior clareza aos papéis de cada entidade no campo e essa clareza fomentaria maior cooperação entre os diversos agentes, pois ajudaria na delimitação da ação específica de cada instituição no enfrentamento ao trabalho escravo, permitindo uma atuação integrada, complementar e mais coordenada entre as mesmas. Essa atuação em rede pode fortalecer as capacidades institucionais de realizar suas ações particulares, até mesmo na captação e gestão de recursos de fontes diversas. A experiência acumulada de cada entidade pode tornar-se importante fonte de apoio para as demais, revelando que o trabalho em rede, capaz de fomentar maior colaboração entre seus membros, é um possível caminho para lidar com a escassez de recursos e contribuir para a sustentabilidade desses membros.

Considerações finais

A expansão nacional do projeto Ação Integrada revelou as dinâmicas próprias do campo nacional de combate ao trabalho escravo e a complexidade da escravidão contemporânea no país. A tentativa de transformar um projeto local em modelo replicável indicou os limites para a emergência de ações paradigmáticas de prevenção. Esses limites decorreram da heterogeneidade das situações de escravidão contemporânea e das dificuldades práticas das instituições implementadoras da agenda de combate ao trabalho escravo no Brasil. A ideia de conjugar esforços, por meio de um movimento nacional, demostrou a necessidade de estabelecer articulações locais mais adequadas ao perfil e às capacidades das instituições que atuam nos diferentes contextos.

Se a escassez de recursos acentuou os conflitos e as disputas institucionais, o valor da articulação institucional para o enfrentamento do trabalho escravo foi ressaltado pelas iniciativas locais de Ação Integrada. Reunidas em dezembro de 2018, em Brasília, para o I Encontro Nacional de Iniciativas Locais de Ação Integrada, promovido pelo Inai, as instituições implementadoras dos diferentes projetos apresentaram desafios específicos e compartilhados. Além disso, o evento foi uma oportunidade para entender melhor as particularidades de cada iniciativa, demarcando suas diferenças e formas específicas de atuação. Os limites do modelo de prevenção que se buscou estabelecer em Mato Grosso foram novamente apontados. No entanto, foi reafirmado o valor da articulação institucional para erradicar o trabalho escravo e fortalecer as instituições dedicadas ao tema, contribuindo para a superação de dificuldades, sobretudo financeiras, compartilhadas nesse campo.

A atuação em rede foi percebida como estratégica para o desenvolvimento institucional de cada organização, desde que as diferenças institucionais fossem valorizadas como formas particulares e complementares de redução de vulnerabilidades. A busca por ações integradas foi considerada produtora de sinergias que favoreceram a atuação de cada entidade na superação dos limites impostos pela falta de recursos e de apoio político ao tema no país. As diferenças institucionais tornam-se, desse modo, fatores de maior cooperação e fortalecimento, do que propriamente de oposição e competição. Que a análise crítica desse campo possa contribuir para a reflexão sobre suas características e fortalecer seus agentes em suas ações articuladas de erradicação do trabalho escravo no Brasil.

Referências

  • ACORDO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA Nº. 14/2015. Poder Judiciário, Conselho Nacional de Justiça, Processo 02901/2015.
  • AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. The William James lectures delivered at Harvard University. Oxford (UK): Clarendon Press, 1975.
  • BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2006.
  • BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Trabalho em condições análogas às de escravo: os bens jurídicos protegidos pelo artigo 149 do Código Penal Brasileiro. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E. (Orgs.). A universidade discute a escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.
  • CASTILHO, Sergio Ricardo; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; TEIXEIRA, Carla Costa (Orgs.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa; Faperj, 2014.
  • CATANI, Afrânio Mendes. As possibilidades analíticas da noção de campo social. Educação e Sociedade, v. 32, n. 114, p. 189-202, 2011.
  • CHAVES, Krystima. O trabalho escravo contemporâneo sob a perspectiva da teoria do desenvolvimento humano de Amartya Sen. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E.; JACOB, V. (Orgs.). Estudos sobre formas contemporâneas de trabalho escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.
  • COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. As raízes da congada: a renovação do presente pelos Filhos do Rosário. Curitiba: Appris, 2012.
  • ______. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. Brasília: OIT, 2010.
  • ______. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. In. Cadernos Pagu , n. 31, p. 173-198, 2008.
  • CRUZ, Xico. Conto escravidão. São Paulo: Benfazeja, 2019.
  • FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra. A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
  • FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder. Contribuições de Eric Wolf. Campinas (SP) Brasília; São Paulo: Editora Unicamp; Editora Universidade de Brasília; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.
  • FREITAS, Luiza Cristina; MESQUITA, Valena. Combate ao trabalho escravo: a sistemática da lei estadual paulista 14.946 e seu processo de implementação nacional. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E.; JACOB, V. (Orgs.). Estudos sobre formas contemporâneas de trabalho escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.
  • GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.
  • GÓMEZ, Mariana de la Fuente. “Comunicação oral”, setembro de 2019.
  • KALIL, Renan; RIBEIRO, Thiago. Trabalho escravo contemporâneo e proteção social. Revista Direitos, Trabalho e Política Social, v. 1, n. 1, 2015.
  • MAGALHÃES, Matheus. Fiscalização do trabalho escravo em declínio: impactos do contingenciamento em 2017. Nota Técnica 192 do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Brasília: Inesc, Out. 2017.
  • MARTINS, José de Souza. A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão no Brasil. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 6 , n. 1-2, 1994.
  • OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. Brasília; São Paulo: Paralelo 15; Editora Unesp, 1998.
  • ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil. Brasília: OIT, 2011.
  • PLASSAT, Xavier. CPT: 30 anos de denúncia e combate ao trabalho escravo. In: Campanha Nacional da CPT contra o Trabalho Escravo, 2015.
  • SEVERO, Fabiana. Trabalho escravo urbano contemporâneo no Brasil: análise de mecanismos extrajudiciais de repressão e prevenção. In: FIGUEIRA, R.; PRADO, A.; GALVÃO, E.; JACOB, V. (Orgs.). Estudos sobre formas contemporâneas de trabalho escravo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.
  • SIMMEL, Georg. Conflict & the web of group-affiliations. New York: The Free Press, 1955.
  • SINDICATO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DO TRABALHO (SInaiT). Movimento “Ação Integrada por uma ação ativa na reinserção social dos egressos e vulneráveis ao trabalho escravo contemporâneo”. Criação do Projeto Piloto e Sistematização dos seus primeiros resultados. Brasília: Sinait, 2012.
  • WOLF, Eric. Aspectos das relações de grupos em uma sociedade complexa: México. In: FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder. Contribuições de Eric Wolf. Campinas (SP) Brasília; São Paulo: Editora Unicamp; Editora Universidade de Brasília; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.
  • 1
    Conferir entrevista concedida por Marinaldo Soares a Xico Cruz do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos - Carmen Bascarán (CDVDH/CB) de Açailândia (MA) e narrada no livro Conto escravidão (Cruz, 2019).
  • 2
    As “condições análogas à escravidão” estão definidas no artigo 149 do Código Penal Brasileiro. Referem-se a situações que violam a dignidade e/ou a liberdade dos/as trabalhadores/as. Sobre os bens jurídicos tutelados pela lei, conferir Brito Filho (2015).
  • 3
    Sobre as ações nacionais de enfrentamento ao trabalho escravo, conferir Costa (2010).
  • 4
    Estes aspectos podem ser encontrados nos diferentes campos analisados por Bourdieu, constituindo-se em princípios “invariantes”, a estrutura, capturada na variante observada das realidades empíricas estudadas (Bourdieu, 1996: 15 apud Catani, 2011: 190).
  • 5
    A carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga - “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”-, de 10 de outubro de 1971, é considerada a primeira denúncia mundial sobre a conflitiva situação agrária da Amazônia brasileira e as condições de vida e de trabalho ali encontradas. Para ler a carta na íntegra, ver: <http://servicioskoinonia.org/Ca-saldaliga/cartas/1971Carta Pastoral.pdf>. Acessado em: 16 Jul. 2020.
  • 6
    Sediada hoje no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a Conatrae reúne representantes de instituições governamentais, entidades privadas não governamentais e observadores que atuam nacional ou localmente no combate ao trabalho escravo. Sua função é definir, coordenar e acompanhar as estratégias de enfrentamento ao problema no país. Para mais informações, ver: <https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/orgaos-colegiados/conatrae>. Acessado em: 01 Nov. 2019.
  • 7
    A percepção do campo como um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam diversas posições e lutam em torno de um capital específico pode ser encontrada no texto “Le champ littéraire” (Bourdieu, 1991 apud Catani, 2011).
  • 8
    Sobre a observação de relações institucionais e de universos temáticos em que o pesquisador analisa dinâmicas de poder que o envolvem como parte da sua atividade profissional, ver: Sergio Ricardo Castilho, Antonio Carlos de Souza Lima e Carla Costa Teixeira (2014).
  • 9
    A posição poderia assemelhar-se ao broker analisado por Wolf (2006 [1956] apud Feldman-Bianco & Ribeiro, 2003) e que podia atuar orientado ou para a comunidade ou para a nação. Aqui, entretanto, ela permitiu apreender visões e valores dos diferentes agentes institucionais envolvidos voltados para a reprodução do campo.
  • 10
    Desde 1995, foram encontrados 54.285 trabalhadores/as submetidos/as ao trabalho escravo, conforme o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), atualmente sediada no Ministério da Economia. Disponível em: <sit.trabalhoescravo.gov.br/radar/>. Acessado em: 26 Nov. 2019.
  • 11
    O estudo da OIT O perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil (2011: 85) indica que, para cada trabalhador resgatado, pode-se considerar que entre sete e oito não foram alcançados pela fiscalização.
  • 12
    A extensão do benefício do seguro desemprego ao/à trabalhador/a resgatado/a ocorreu por meio da Lei 10.608, de 20 de dezembro de 2001. Para maiores informações, ver: <www.caixa.gov.br>. Acessado em: 29 Maio 2019.
  • 13
    Sobre a escuta etnográfica, conferir O trabalho do antropólogo, de Roberto Cardoso de Oliveira (1998).
  • 14
    As premissas e os objetivos do Movimento Ação Integrada estão contidas no Acordo de Cooperação Técnica nº 14/2015 celebrado entre o CNJ, OIT, TST, Sinait e a União, por intermédio do MTE, SDH/PR, MPT e MPF.
  • 15
    Atualmente o programa “Escravo, nem pensar!” estendeu suas ações de formação aos agentes públicos que atuam na rede de assistência social de diferentes estados. Conferir: <escravonempensar.org.br>. Acessado em: 29 Maio 2019.
  • 16
    Conferir: “Movimento ‘Ação Integrada por uma ação ativa na reinserção social dos egressos e vulneráveis ao trabalho escravo contemporâneo’. Criação do Projeto Piloto e Sistematização dos seus primeiros resultados” (Sinait, 2012).
  • 17
    A impossibilidade de retorno dos/as trabalhadores/as para os seus lugares de origem ou para o convívio com suas famílias é parte do processo de desenraizamento social que acentua a vulnerabilidade dos/as trabalhadores/as (Costa, 2008).
  • 18
    Para mais informações sobre a Rede de Ação Integrada de Combate à Escravidão (Raice) implementada pelo CDVDH/CB no Maranhão, conferir: <http://www.cdvdhacai.org.br/index.php/component/content/article?layout =edit&id=63>. Acessado em: 07 Out. 2019.
  • 19
    Componentes de mobilização comunitária, além dos significados de libertação e resistência social estão presentes em manifestações do catolicismo popular, a exemplo das congadas (Costa, 2012).
  • 20
    Sobre as performative utterances, que, ao serem emitidas sob determinadas circunstâncias, performam uma ação, mais do que a relatam, conferir John Langshaw Austin (1975).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2019
  • Aceito
    31 Jul 2020
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais - Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900 - Brasília - DF - Brasil, Tel. (55 61) 3107 1537 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistasol@unb.br