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A pesquisa social reconstrutiva no Brasil e o método documentário

BOHNSACK, Ralf. Pesquisa social reconstrutiva. Introdução aos métodos qualitativos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020

Há mais de dez anos defendi minha tese de doutorado em sociologia sobre juventude, abordando o movimento hip hop em Ceilândia, Distrito Federal (Tavares, 2012aTAVARES, Breitner. Na quebra a parceria é mais forte: jovens, vínculos afetivos e reconhecimento na periferia. São Paulo: Annablume, 2012a.; 2012b). Na ocasião, realizei uma pesquisa etnográfica e recorri, na análise dos dados empíricos, ao método documentário presente na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1971MANNHEIM, Karl. From Karl Mannheim (Ed. Kurt Wolff). New York: Oxford University Press, 1971.), e retomado por outras escolas teóricas subsequentes como a etnometodologia (Garfinkel, 2018GARFINKEL, Harold. Estudos de etnometodologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.) e, posteriormente, pela pesquisa social reconstrutiva a partir do sociólogo Ralf Bohnsack, autor desse livro traduzido pela primeira vez para o português sob a supervisão de Wivian Weller.

Este livro foi produzido gradualmente a partir de reflexões teóricas e da experiência em grupos de pesquisa e na própria prática de ensino em sala de aula em disciplinas de metodologia. Está direcionado para múltiplos leitores, desde os interessados em iniciar e desenvolver pesquisas qualitativas com exemplos práticos e descrição detalhada das categorias e das etapas de pesquisa, até os que buscam uma discussão de cunho mais teórico sobre o próprio sentido de uma sociologia do conhecimento em Mannheim, passando por escolas como a fenomenologia social, a etnometodologia e a teoria fundamentada (grounded theory), que contribuíram sobremaneira para a construção do sentido teórico metodológico contemporâneo da pesquisa social reconstrutiva.

No capítulo introdutório o autor nos informa que, a despeito da relevância do conhecimento teórico sobre o fazer da pesquisa, é importante considerar o engajamento com a prática de pesquisa propriamente dita, que é fundamental para entendermos o significado de uma metodologia. Nesse sentido, a própria compreensão teórica dos métodos depende de seu emprego prático a partir da experiência adquirida pelo pesquisador em campo: “um conhecimento apenas adquirido (de manuais) não oferece o fundamento necessário” (Bohnsack, 2020: 18). O autor ressalta ainda que nos encontros entre pesquisadores há um ambiente rico de trocas em que a complexidade das relações entre quem pesquisa e quem é pesquisado é avaliado no que se refere à complexidade e à sensibilidade, que remetem a questões éticas e políticas que estão para além do mero exercício hermenêutico. De fato, a realização da pesquisa está além de seu produto na forma do trabalho científico final (artigos, livros etc.). Ela depende sobretudo de trocas de experiências que, em muitos casos, não são consideradas nos manuais de pesquisa.

No segundo capítulo, são discutidas algumas fronteiras entre ciências sociais empíricas e ciências naturais, que se fundamentam em modelos teóricos que servirão como base para a verificação dos fatos. As ciências humanas e sociais estão orientadas para aspectos empíricos do cotidiano dos sujeitos enquanto as outras ciências empíricas estão orientadas por princípios lógicos matemáticos. Mais adiante o autor apresenta uma crítica à perspectiva popperiana baseada nos testes de hipóteses que, segundo ele, leva a uma perspectiva empírica em que a indução fracassa ao promover uma regressão infinita do modelo teórico fechado em si mesmo. De outro modo, há uma ênfase que visa garantir as condições para a mera verificação ou justificação teórica de leis gerais.

Mas suas críticas também se dirigem aos procedimentos qualitativos. Bohnsack chama atenção para a negligência do processo comunicacional que ocorre muitas vezes no contexto da interação entre “observador” e “observado” que pertencem, em muitas situações, a contextos sociais distintos. O autor aborda aqui um problema fundamental no processo de comunicação, que normalmente já ocorre entre pessoas do mesmo ambiente e se torna ainda mais evidente com a presença de um pesquisador alheio, implicando em um processo comunicacional muito mais complexo. Destaca ainda que um dos grandes problemas consiste no fato de o pesquisador tentar estabelecer um controle metódico do conhecimento da “realidade alheia” a partir da pré-estruturação e padronização das entrevistas.

Na contramão dessas tentativas de padronização, os métodos interpretativos ou reconstrutivos se orientam pela lógica de que menos intervenção, com menos intenções e presunções sobre o encaminhamento da pesquisa, permite um controle metódico mais amplo. Para isso, as perguntas devem ser amplas e abertas, permitindo ao entrevistado elaborar e responder à sua maneira, podendo estruturar sua resposta de modo pessoal e, portanto, de modo significativo, de acordo com sua experiência de vida e dentro de seu sistema de relevância. Essa abordagem se orienta pela perspectiva de que o mundo social constitui uma estrutura organizada em sua complexidade, no sentido de um sistema de relevância atribuído pelas pessoas às suas práticas, seus pensamentos e suas vivências, que serão submetidas pelo cientista social a um processo analítico definido, com base em Alfred Schütz, como construção de segundo grau. Nesse sentido, o pesquisador precisa adotar métodos que possibilitem a reconstrução das experiências vivenciadas pelos indivíduos e que se estruturam de modo não refletido, ateórico (não teórico) ou como construções de primeiro grau. Portanto, a realização da pesquisa exige muito mais do que recursos tecnológicos, implica uma prática cotidiana do pesquisador no seu processo de aprendizagem do fazer da pesquisa. Portanto, as receitas de pesquisa só podem ser extraídas de sua prática propriamente dita.

Na sessão final do livro, Bohnsack apresenta uma discussão relevante sobre a metodologia praxiológica, retornando aos aspectos abordados nos capítulos iniciais acerca da postura do pesquisador que recorre à pesquisa qualitativa. Assim como a metodologia não pode simplesmente advir de uma perspectiva popperiana deduzida mecanicamente de uma lógica formal, a prática da pesquisa não pode ser reduzida a uma mera aplicação de procedimentos metodológicos previstos rigidamente em um manual. O autor recomenda, neste capítulo, que a pesquisa seja iniciada pela experiência em um contexto sobre o qual exista um mínimo de compreensão. Este deve ser o ponto de partida da apropriação do modus operandi do habitus do sujeito social.

Método documentário

Historicamente, o método documentário oriundo da sociologia da cultura e da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim surge na década de 1920. Na sociologia do conhecimento proposta por Mannheim, a interpretação científica da vida social não pode estabelecer uma racionalidade teórica superior ao pensamento cotidiano, mesmo que se mostre evidente essa distinção entre teoria e experiência vivida. Nos anos 1960 o método documentário proposto por Karl Mannheim é abordado por Harold Garfinkel em seus estudos de etnometodologia e, posteriormente, por Ralf Bohnsack, a partir dos anos 1980. A apresentação do desenvolvimento do método documentário na pesquisa social reconstrutiva e sua exemplificação na análise de grupos de discussão, imagens, vídeos e filmes constitui o cerne do livro (capítulos 3, 5, 7 a 11). Em relação ao grupo de discussão - procedimento também adotado em minha tese de doutorado (Tavares, 2009______. Na quebrada, a parceria é mais forte - Juventude hip-hop: relacionamento e estratégias contra a discriminação na periferia do Distrito Federal. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.; 2012a) -, o autor destaca seu desenvolvimento a partir dos estudos de Mangold e Pollock no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, nos anos 1960. Faz uma importante distinção entre procedimentos de pesquisa como o grupo focal, mais vinculados às pesquisas de mercado no contexto norte-americano e aos grupos de discussão, sendo estes últimos menos conhecido no Brasil, mas que representam um procedimento de construção de dados bastante relevante. Nos grupos de discussão onde os participantes compartilham do mesmo universo comunicacional, existe maior de liberdade e, portanto, desenvoltura para a construção de narrativas com os seus semelhantes, na medida em que compartilham experiências cotidianas comuns à faixa etária, ao gênero, raça etc. Os grupos de discussão permitem uma análise dos modos de conduta das pessoas de forma coletiva. Enquanto na abordagem tradicional dos grupos focais os vínculos sociais de pessoalidade entre os participantes não são enfatizados, nos grupos de discussão, por sua vez, serão analisados fortemente a partir das relações entre os indivíduos no meio social ou comunal, assim como nos pequenos mundos da vida que atravessaram aspectos geracionais e a vivência dos grupos sociais. Permitem, portanto, acessar o nível das experiências conjuntivas e seus sentidos genético e sociogenético.

Bohnsack faz uma interessante discussão relativamente a uma teoria do conhecimento sociológico ao estabelecer os passos da interpretação textual, especialmente em sua aplicação via método documentário. Dessa forma, discorre sobre as fases de análise dos grupos de discussão presentes nas duas etapas iniciais da análise interpretativa: a interpretação formulada, que se situa no nível de conteúdo de sentido imanente, ou seja sem um posicionamento do pesquisador em relação ao texto produzido a partir das discussões; e a interpretação refletida, que analisa o quadro de orientação do grupo, demarcando não só os temas mais recorrentes em termos de conteúdo, mas também da forma como foram discutidos e do seu enquadramento. Esses padrões de sentido presentes nos discursos são reconstruídos a partir dos contra-horizontes (positivos ou negativos) presentes na discussão, que permitirão a análise comparativa dos casos (entre diferentes grupos) e, posteriormente, a construção de tipos que revelam a gênese das orientações coletivas dos grupos estudados dentro dos seus meios sociais. Portanto, para alcançarmos a interpretação documentária, é preciso verificar os horizontes de significados opostos e construir uma análise comparativa dos casos. Na medida em que houver clareza sobre os tipos de sentido das ações dos sujeitos torna-se possível a construção de tipos.

A pesquisa social reconstrutiva no Brasil

A pesquisa social reconstrutiva começa a ser difundida no Brasil a partir dos anos 2000, quando publicações em língua portuguesa na área de metodologias qualitativas eram bem menos frequentes. Normalmente a pesquisa qualitativa era abordada a partir das contribuições dos autores da tradicional Escola de Chicago. De um modo geral, abordagens com base na análise da conversação etnometodológica e na teoria fundamentada, procedimentos comuns no contexto norte-americano e europeu desde os anos 1960/1970, assim como a tradição alemã de pesquisa empírica e seus procedimentos de análise de dados qualitativos, eram pouco difundidos ou simplesmente desconhecidos no Brasil. Em geral, o estereótipo mais comum acerca das tradições acadêmicas estava relacionado à ideia de que os alemães produziam uma base teórica e os americanos promoviam instrumentos para o desenvolvimento da pesquisa empírica (Weller, 2020WELLER, Wivian. Prefácio à edição brasileira. In: BOHNSACK, Ralf. Pesquisa social reconstrutiva. Introdução aos métodos qualitativos, p. 9-14. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.).

De fato, as primeiras leituras sobre pesquisa social reconstrutiva, especialmente sobre o método documentário, chegam ao Brasil há aproximadamente 18 anos por intermédio de Wivian Weller, doutora pela Universidade Livre de Berlim que trabalhou por vários anos com Ralf Bohnsack e seu grupo de pesquisa. Mas é preciso registrar também o pioneirismo da revista Sociedade e Estado, da Universidade de Brasília, na organização, em 2002, de um dossiê sobre “Inovações no campo da metodologia das ciências sociais”. O dossiê conta com um artigo sobre “Karl Mannheim e o método documentário de interpretação: uma forma de análise das visões de mundo” (Weller et alii, 2002). Alguns anos mais tarde a revista publica outro artigo sobre o “Método de interpretação documentária e o uso de imagens na sociologia” (Barboza Martínez, 2011). Outras revistas também publicaram artigos sobre o uso do método documentário na análise de grupos de discussão e de imagens. Esses artigos serviram de base para muitas pesquisas e atualmente já existe um número significativo de dissertações, teses e de artigos que tiveram como base o método documentário na análise dos dados (cf. Bohnsack, 2020, p. 403-408).

A partir de minha experiência com o método documentário, pude constatar que o caráter exagerado da verificabilidade de teorias de autores tradicionais em detrimento do estímulo da criação de novas teorias fundamentadas empiricamente, de fato, acaba por limitar a qualidade das produções acadêmicas, na medida em que são pouco referenciadas nas experiências dos sujeitos sociais e acabam se configurando como mera reprodução e verificação de cânones acadêmicos. Posso afirmar que até a elaboração de minha tese foram muitas reuniões de pesquisa, grupos de estudo e naturalmente incontáveis horas de trabalho de campo e realização de grupos de discussão para adequar o método documentário à realidade da juventude brasileira preta, periférica e com muitas histórias para contar de como estabeleciam estratégias afetivas para suas ações em contextos de tão extrema vulnerabilidade, seja pelo racismo ambiental ou pelo risco eminente da violência que rondavam suas “quebradas”. De fato, a abordagem da pesquisa social reconstrutiva permitiu avançar para além dos estereótipos mais comuns quando se trata de pesquisar jovens negros em periferias urbanas.

Este livro certamente contribuirá para pesquisa futuras, como as que já venho delineando no campo das ciências sociais e da saúde, especialmente no que se refere à saúde mental de estudantes universitários impactados pela pandemia diante da precarização do ensino. Assim, este livro servirá de base especialmente para organizar grupos de pesquisa para o trabalho de campo presencial e virtual assim como na análise de dados qualitativos.

Referências

  • BARBOZA MARTÍNEZ, Amalia. Sobre el método de la interpretación documental y el uso de las imágenes en la sociología: Karl Mannheim, Aby Warburg y Pierre Bourdieu. Revista Sociedade e Estado, v. 21, n. 2, p. 391-414, 2006.
  • GARFINKEL, Harold. Estudos de etnometodologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
  • MANNHEIM, Karl. From Karl Mannheim (Ed. Kurt Wolff). New York: Oxford University Press, 1971.
  • TAVARES, Breitner. Na quebra a parceria é mais forte: jovens, vínculos afetivos e reconhecimento na periferia. São Paulo: Annablume, 2012a.
  • ______. Método documentário e a análise das orientações geracionais da juventude. Cadernos CRH, v. 25, p. 587-600, 2012b.
  • ______. Na quebrada, a parceria é mais forte - Juventude hip-hop: relacionamento e estratégias contra a discriminação na periferia do Distrito Federal. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.
  • WELLER, Wivian. Prefácio à edição brasileira. In: BOHNSACK, Ralf. Pesquisa social reconstrutiva. Introdução aos métodos qualitativos, p. 9-14. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.
  • WELLER, Wivian; SANTOS, Gislene; SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da; ALVES, Adilson Francelino; KALSING, Vera Simone Schäffer. Karl Mannheim e o método documentário de interpretação: uma forma de análise das visões de mundo. Revista Sociedade e Estado, v. 17, n. 2, p. 375-396, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2020
  • Aceito
    06 Ago 2020
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