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Vidas, “trelas”* * “´Treloso”, no Recife, é um substantivo utilizado para descrever crianças arteiras, levadas, atentadas, teimosas. Geralmente é utilizado para caracterizar um comportamento infantil que deva ser reprovado, educado. “[...] há certos comportamentos e características esperados e identificados na infância, como a ‘trelosidade’” (pág. 66). e falas de mães de “micro” - um estudo etnográfico em linguagem acessível

FLEISCHER, Soraya; LIMA, Flávia. (Orgs.). Micro: contribuições da antropologia. Brasília/DF: Athalaia, 2020

A obra foi organizada pela antropóloga Soraya Fleischer (Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília - DAN/UnB) e a jornalista e especialista em saúde coletiva Flávia Lima (Empresa Brasil de Comunicação - EBC), e reúne um coletivo de autoras/pesquisadoras, estudantes de pós-graduação e graduação. Cuidadosamente elaborada, coordenada até nos mais ínfimos pormenores, coesa teórica e empiricamente, todos os detalhes da produção ora apresentada surpreendem pela simplicidade e ao mesmo tempo amorosidade.

As mães de crianças com microcefalia, vítimas da epidemia do VZ, foram objeto da pesquisa realizada entre 2016 e 2019 na periferia de Recife, protagonistas das histórias contadas neste livro, desvalorizadas socialmente, exaustas e aguerridas, como descritas no prefácio, são e não são reais: a pesquisa é baseada em conversas longas e reiteradas, junto com notas etnográficas sobre a experiência de vida de 15 “mães de micro” - como as autoras carinhosamente, e ao mesmo tempo com uma potência incrível, denominam suas interlocutoras.

O apelido “micro”, denominação que remete ao formato pequeno da cabecinha do bebê, por ser mais fácil e curto explica a coordenadora da pesquisa na introdução do livro, virou substantivo e adjetivo na vida cotidiana dessas mães. Utilizado quotidianamente por médicos, advogados, serviço social, laboratórios, clínicas de reabilitação, prefeitura. E, especialmente, pelas famílias das crianças de micro. No caso das autoras/pesquisadoras, utilizam o termo desde o título do livro para focar na experiência da criança e paralelamente afastar-se das abordagens biomédicas. O epíteto virou conceito da mão das autoras/pesquisadoras, e se politizou nesse trânsito acadêmico, e ainda na luta das mulheres pela vida dessas crianças. Por isso, micro está do início no título da capa até o final da obra, da fotografia micro na Grande Recife para a panorâmica pensando o macro:

Assim, em tantos sentidos, foi a micro que nos ensinou esse caminho, do pequeno ao grande. De uma conversa na casa visitada a um diário de campo, de uma micro-história a um livro; da experiência de uma criança até uma luta coletiva contra uma epidemia (Introdução, pág. 30).

O início da pesquisa tem uma conotação epistolar muito bonita. O grupo morava em Brasília, mas o estado com maior número de casos era Pernambuco... Como localizar as potenciais mães participantes da pesquisa? Escreveram cartas e enviaram para algumas delas, organizadas em ONGs e movimentos que apareciam em blogs na internet, explicando o projeto iniciando e o desejo de conhecê-las. Dentre as histórias relatadas nos blogs, focaram na Grande Recife. E assim, com cartas postais, iniciou a longa travessia. Foram sete visitas locais entre 2016 e 2019. A pesquisa acabou de ser concluída.

Pelos imperativos éticos, o relato de vida e a experiência vivenciada junto a essas mulheres de carne e osso foi anonimizado pelas pesquisadoras/autoras, os locais e as instituições foram descaracterizadas para evitar seu reconhecimento e estigmatização. As histórias específicas das mães de micro foram desconstruídas e reconstruídas novamente, numa espécie de mosaico de etnofição que reflete uma e várias (micro)histórias ao mesmo tempo, para conter a todas, não se fixar em nenhuma e ao mesmo tempo ressaltar o diverso e o comum entre elas.

Através de uma viagem muito fluída e coesa ao longo de 11 capítulos escritos cada um por uma autora/pesquisadora (além do belo prefácio escrito por Rosamaria Carneiro - também professora da Universidade de Brasília, a Introdução e as referências bibliográficas unificadas), Micro nos leva a percorrer os meandros da vida cotidiana das mães de crianças diagnosticadas com Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCVZ), pletórica de negação de direitos e de lutas por sua afirmação.

Cada capítulo foi organizado em torno de um tema frequente nas falas e nas experiências de vida ouvidas e observadas pelas pesquisadoras, abordado sempre no sentido de mostrar a negação de direitos, a violência simbólica, e a luta dessas mulheres pela organização e obtenção dos direitos dos filhos e delas mesmas. Os capítulos/temas abordados são: mulheres, homens, crianças (não apenas as de micro, mas também os irmãos), doutores, medicamentos, escolas, transportes, dinheiros, benefícios, mídias e ciências. No plural, para ressaltar a diversidade de “maneiras de ser”.

Mas, ao mesmo tempo, o livro nos apresenta a unidade advinda do contexto de desigualdade e injustiça social que define a vida cotidiana dessas famílias na epidemia (e que hoje reconhecemos também na pandemia):

O que efetivamente impede e dificulta a vida das crianças implicadas no âmbito da epidemia não é a deficiência, mas a experiência da deficiência em um contexto de precarização da vida e de extrema desigualdade social - que a epidemia não criou, mas acentuou e colocou em evidência. O Estado, que esteve ausente antes, causando diretamente a epidemia, continuou ausente depois, dificultando a vida de mães, irmãos e famílias que cuidam das crianças atingidas.

Imaginar as vidas dessas mulheres e seus filhos, reais, no contexto da pandemia e na pós-pandemia, é realmente desafiador. Cada direito precisa ser objeto de estudo, reflexão e luta, individual ou coletiva. A título de exemplo, tomemos o direito à educação. “Nascidos nos anos de 2015 e 2016 [...] os bebês afetados pela epidemia estão chegando à idade escolar obrigatória” (p. 101). O direito à educação, legitimado pela Constituição Federal de 1988 e reforçado pela Nota Técnica n. 25 do MEC, em 2016, num sentido de educação inclusiva para as crianças de micro, recentemente garantido pelas mães a força de luta e judicialização, o panorama certamente foi transtrocado e dificilmente voltará ao que foi antes da pandemia do Covid-19: provavelmente será mais limitado ainda.

Atualmente sem escolas com funcionamento presencial, essas crianças de micro estão isoladas do convívio social para além dos laços familiares próximos, e imaginamos que não acompanham aulas remotas quando deveriam provavelmente iniciar os primeiros conhecimentos sobre alfabetização. Do lado das mães, esse “respiro” para cuidar de si, para gerar renda extra para a família, para tecer relações sociais para além do ou da filha de micro, evaporou-se junto com outro vírus, o Covid. Dois processos que já estavam presentes antes da pandemia pela Covid 19 e desde o governo Temer começam a se firmar em contexto de isolamento social e poucas possibilidades de luta e pressão dos movimentos, no intuito de: i. voltar a isolar os e as educandas com necessidades especiais, em política de educação especial e em instituições especializadas; e ii. aprovar legislação que regule a educação domiciliar, que fomentará o isolamento das crianças com necessidades específicas para o tratamento domiciliar do direito a educação. Portanto, o panorama atual e pós-pandemia é, na melhor das hipóteses, cinza...

Muito trabalho foi realizado, e muitas pessoas, instituições e coletivos apoiaram o corajoso empreendimento. De muitas formas diferentes: pequeno subsídio de pesquisa, acolhimento em casas durante o trabalho de campo, aceite para participar da pesquisa, colaboração com a redação e edição do livro, enfim, muitas e variadas foram as ajudas. Todas reconhecidas.

Por que recomendamos a leitura da obra? Razões múltiplas para diversidade de leitores em potencial.

O livro constitui um subsídio fundamental para todos(as) aqueles(as) atuantes na formulação, gestão e avaliação de políticas sociais para a atenção integral da população com SCVZ e outros(as) sujeitos(as) com necessidades de cuidados especiais. Com grande sensibilidade, a leitura dos principais resultados do estudo nos mostra como é difícil para essas mães de micro efetivarem o acesso a direitos internacionais e constitucionais, e legitimados por várias legislações infraconstitucionais. Destarte, a partir de casos exemplares, deparamo-nos com os claros limites das políticas sociais em nível federal, estadual e municipal.

Também constitui importante referência para os(as) pesquisadores(as) vinculados(as) à problemática do Vírus Zika. Pensamos aqui não apenas, mas também em aqueles(as) referenciados(as) na ciências da saúde, que lidam diretamente com os quadros diagnósticos, as suas consequências negativas ou limitantes e as probabilidades de tratamento. Por ser pouco explorada ainda pela abordagem da pesquisa social e por mostrar, de maneira sensível e comprometida, a maneira em que a população afetada vivencia a experiência do SCVZ, o estudo interessa aos e às profissionais das mais variadas áreas do conhecimento científico.

Da mesma forma, a obra ajuda, desde o ponto de vista político-pedagógico, a refletir sobre formas alternativas, coletivas, de produzir e divulgar conhecimento científico, politicamente referenciado e socialmente comprometido. O grupo conformado para a realização da pesquisa articulou experiências acadêmicas diversas e propiciou a formação de novas mulheres na arte da pesquisa social, especialmente, mas não unicamente, na difícil arte da etnografia e da escrita. Se, inicialmente, os produtos desta pesquisa foram “tipicamente acadêmicos” (artigos científicos, capítulos de livro, trabalhos de conclusão, apresentações em eventos etc.), durante a caminhada coletiva surgiu outra técnica como mecanismo para treinar a escrita das iniciandas, e divulgar mais amplamente o conhecimento produzido pelo grupo. “Começamos com o que chamamos de “micro-histórias”, pequenos textos de uma ou duas páginas, nos quais contávamos histórias marcantes que tínhamos ouvido no Recife” (pág. 28). Ao total foram 38 microhistórias, que podem ser consultadas no blog de educação e popularização científica: <https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias>.

Raramente encontramos experiências de escrita colaborativa, nas quais cada autora cresceu ao longo do processo de escrita, e aprendeu a imprimir sua individualidade, sem perder a unidade. Paralelamente, o grupo de autoras/pesquisadoras soube engajar apropriadamente as personagens pesquisadas, provocando também nas mães de micro o gosto pela leitura, pela divulgação do conhecimento, entre outros aspectos importantes.

Finalmente, mas não menos importante, o livro nos conta uma bela história de empoderamento feminino de mulheres brasileiras da periferia que foram e são vítimas da falta de políticas públicas de saneamento e outras, todas fundamentais, e que poderiam ter evitado a epidemia desatada no final de 2015, alertando sobre a importância de documentar os processos coletivos e sua fluidez, no sentido de subsidiar os movimentos de mulheres e feministas. E fortalecer outras mães de crianças de micro a partir dos registros já realizados.

E aqui nos permitimos aventar uma reflexão sobre as lutas travadas e as conquistas destas corajosas mulheres. As políticas destinadas às mulheres normalmente estão dirigidas para a oferecer respostas a problemas práticos ou necessidades básicas decorrentes da posição que as mulheres ocupam na sociedade e na divisão sexual do trabalho. E, por sua vez, as políticas de gênero são orientadas a desafiar e confrontar essa divisão tão consolidada/cristalizada, com foco em interesses estratégicos feministas, que frequentemente se relacionam com uma ruptura na divisão sexual do trabalho e/ou com a saúde sexual e reprodutiva (ver Yannoulas & Silva, 2017YANNOULAS, Silvia Cristina; SILVA, Ismália A. Necessidades práticas das mulheres × interesses estratégicos feministas. Revista Feminismos, v. 5, n. 2-3, p. 25-39, 2017. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/30241>. Acesso em 14 Set. 2020.
https://portalseer.ufba.br/index.php/fem...
).

Os relatos incluídos em todos os capítulos do livro - especificamente nos dois primeiros, “Mulheres” e “Homens” -, levam-nos, infelizmente, a concluir que sequer são atendidas as necessidades práticas dessas valorosas mulheres, decorrentes do cuidado de crianças com necessidades práticas especiais ou específicas que são produto da falta de políticas públicas de saneamento e outras, aquelas necessidades básicas relativas aos direitos garantidos por lei, mas que não são, na verdade, necessidades delas mas da prole ao cuidado delas. E que a estrutura toda de cuidados em torno das crianças de micro reforça ao máximo e fortalece a desvantagem das mulheres (no plural, pois não são apenas as mães de micro, também as irmãs, tias, avós, vizinhas etc.), numa divisão sexual do trabalho injusta, na qual o Estado não atua ou se propõe a atuar, em prol dos interesses estratégicos feministas de gênero. Ao contrário: a própria política formulada é complemente estruturada em torno da centralidade do cuidado familiar feminino.

Referências

  • *
    “´Treloso”, no Recife, é um substantivo utilizado para descrever crianças arteiras, levadas, atentadas, teimosas. Geralmente é utilizado para caracterizar um comportamento infantil que deva ser reprovado, educado. “[...] há certos comportamentos e características esperados e identificados na infância, como a ‘trelosidade’” (pág. 66).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2020
  • Aceito
    03 Nov 2020
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