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A produção intelectual de mulheres negras como teoria social crítica

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019

Em 2019, quase 30 anos após o seu lançamento em 1990, o clássico do feminismo negro Black feminist thought, da socióloga estadunidense Patricia Hill Collins, finalmente ganhou uma edição em português. De toda forma, a obra é mais que bem-vinda, dada a relevância dos argumentos principais de Collins para a produção intelectual e para o modo de funcionamento da sociedade brasileira contemporânea.

Dividido em três partes e com um total de 12 capítulos, Pensamento feminista negro é um livro escrito em linguagem e formato acessíveis - uma marca registrada da autora -, embora conte com uma profusão de argumentos e conteúdo denso. De início, Collins afirma que mulheres negras estadunidenses de épocas distintas e por meio de diferentes estratégias de produção de conhecimento (acadêmica, musical, poética etc.) lançaram as bases para uma tradição intelectual de mulheres afro-americanas que apresenta compreensões particulares do “eu”, da comunidade e da sociedade. Não se trata de uma forma de ver “natural” das mulheres negras, e sim de elaborações convergentes porque derivadas de sua inserção como grupo numa sociedade configurada por opressões de gênero, raça e classe. Para Collins, o pensamento feminista negro é produzido como “conhecimentos de resistência” (oppositional knowledge), parte da relação dialética entre opressão e ativismo.

A essa apresentação do pensamento feminista negro, no primeiro capítulo sucede-se à exposição dos quatro objetivos específicos do livro apresentar as temáticas recorrentes do pensamento feminista negro; empregar e difundir o uso do paradigma interpretativo interseccional; expor as características epistemológicas distintivas do pensamento feminista negro; promover as contribuições do feminismo negro para o empoderamento das afro-americanas. Cada um dos objetivos está alinhado ao objetivo geral, que é descrever e analisar o pensamento feminista negro, discutir a sua importância e ainda contribuir para que ele se desenvolva como uma teoria social crítica.

É também no capítulo inicial que a autora explicita o paradigma interpretativo que emprega e que orienta os seus argumentos no decorrer da obra. Para Collins, a opressão congrega sempre diferentes tipos: de classe, raça, gênero, sexualidade, nacionalidade etc. “Interseccionalidade” designa a combinação de dois ou mais tipos específicos de opressão, tal como em “interseccionalidade de gênero e raça” ou “de raça e sexualidade”. Cada sociedade, em cada momento histórico, dispõe de uma “matriz de dominação” única, caracterizada por um arranjo particular de opressões interseccionadas.

No segundo capítulo, Collins delineia o conjunto de aspectos que tornam o pensamento feminista negro único: a reação à opressão; a heterogeneidade de respostas a ela; a resistência estimulada por uma determinada posição grupal dentro da sociedade; as contribuições de intelectuais afro-americanas; o dinamismo e a capacidade de responder à mudança; a relação com outros projetos de justiça social. Apesar de indicar consonâncias, a autora destaca também a variabilidade das vivências e dos tipos de produção entre mulheres negras, a mudança do contexto social ao longo da história, e a viabilidade e necessidade de alianças com outros grupos sociais. Para Collins, as características enunciadas não estão restritas ao pensamento feminista negro, é antes a convergência particular de tais aspectos que o torna singular.

A segunda parte do livro, que abrange os capítulos 3 a 9, aborda os temas que a autora considera centrais para o feminismo negro: o trabalho, a família e a relação entre opressão e ativismo. A obra leva em conta a forma como inúmeras intelectuais negras tratam da inserção precária do grupo feminino negro no mercado de trabalho e o trabalho não remunerado que desempenham junto a suas famílias estendidas e comunidades, que, embora desvalorizado, contribui para o bem-estar das famílias e, frequentemente, supre funções que deveriam ser desempenhadas pelo Estado. O capítulo 3 traz ainda uma discussão sobre a maternidade nas famílias negras, ressaltando o papel das mães na transmissão de valores, portanto, na articulação de uma cultura de resistência ao racismo. Ao considerar o trabalho e as relações familiares a partir da perspectiva de intelectuais negras, Collins desafia as análises que enxergam a sociabilidade dos grupos negros como “desviante” ou “patológica”, tendo em vista definições normativas que são, também elas, racializadas. Assim, a socióloga questiona compreensões tradicionais de trabalho, a divisão entre esfera pública e esfera privada, o padrão do homem como provedor familiar e, com efeito, a própria noção de família.

Segundo Collins, a opressão engloba a dimensão econômica, política e ideológica. É no capítulo 4 que a autora trata de um conceito-chave para a dimensão ideológica: o de “imagens de controle”. Imagens de controle são representações estereotipadas de mulheres negras que operam como justificativas ideológicas para a sua opressão, na medida em que favorecem que a pobreza, o racismo e o sexismo a que estão submetidas pareçam normais, naturais e inevitáveis. Trata-se de um mecanismo de objetificação e subordinação, um recurso para que a diferença racial e de gênero seja compreendida em termos binários e como hierarquia, a partir da qual a identidade e a realidade das mulheres negras é definida pelos grupos dominantes. Legitimam, assim, a exploração econômica e a negação dos direitos de cidadania às mulheres negras.

A obra apresenta as principais imagens de controle no contexto dos Estados Unidos. A mammy representa a mulher negra junto à sociedade branca, a serva doméstica leal e obediente, que aceita a própria subordinação e exploração econômica. A “matriarca negra” diz respeito às mulheres negras em seus próprios lares, e faz parte da racialização da chefia feminina das unidades domésticas, que é então tomada como causa da pobreza da população negra. É a mãe negra “má” que emascula homens e meninos e, negligente com filhos e filhas, é responsável pela “anomia” atribuída ao grupo negro. A “mãe dependente do Estado” - assim como uma sua variação mais recente, a “rainha da assistência social” - é a figura que estigmatiza aquelas que fazem uso de benefícios sociais garantidos por lei. Essa imagem rotula as mulheres negras pobres como preguiçosas e oportunistas; direcionada a atender necessidades da economia política, é ainda utilizada para regular a sua fecundidade, julgando-a perigosa. Por sua vez, a imagem da “dama negra” aplica-se às profissionais negras de classe média que aderem à política de respeitabilidade1 1 A expressão “política de respeitabilidade” (politics of respectability) foi cunhada por Evelyn Higginbotham (1993) e descreve o esforço coletivo para adoção de comportamentos “dignos” por comunidades negras - sobretudo, por mulheres - como estratégia de subversão de estereótipos racistas. : elas trabalham mais que todos e, por isso mesmo, “negligenciam” seus papéis como “mulheres”, tornando-se por demais assertivas. Já a “jezebel” (em outras versões, “prostituta” ou “hoochie") designa a “anormalidade” sexual das mulheres negras, retratadas como dotadas de um apetite sexual excessivo.

Além da leitura sobre a opressão, também as estratégias de resistência (coletivas e individuais, visíveis e ocultas) adotadas por mulheres negras ocupam um lugar de destaque no livro. A tanto se dedicam os capítulos 5 a 9. No capítulo 5, Collins, inspirada na ideia de dupla consciência2 2 Termo cunhado por W. E. B. Du Bois (1989) para descrever o conflito interno vivenciado por pessoas negras em sociedades racistas, tendo em vista a experiência de sempre olhar para si a partir dos olhos da sociedade branca. Collins reapropria o conceito e propõe que as mulheres negras, sobretudo as empregadas domésticas, ocupem a posição de outsider within (traduzido no livro como outsider interna), ou seja, que conseguem obter conhecimentos sobre o mundo dos brancos e sobre a comunidade negra - uma perspectiva singular. , aborda a questão da “autodefinição”, ou seja, a maneira como mulheres negras, em sua luta contra a opressão e particularmente contra as imagens de controle, constroem formas de conhecimento que são essenciais para a sua sobrevivência como grupo, ao facilitar a transição da posição de vítima à de seres humanos criativos. Para a autora, a autodefinição é capaz de forjar o autorrespeito, a autonomia, o empoderamento e a capacidade de transformação, e é concebida nos mais diversos espaços: na convivência nas igrejas negras, entre amigas, na função de cuidadoras e entre membros da família, na tradição de mulheres negras no Blues, como escritoras.

Na sequência, Collins aplica os princípios acima delineados a certas temáticas. Os capítulos 6, 7 e 8 constituem exercícios de contraposição entre as visões tradicionais e as perspectivas “autodefinidas” quanto aos temas da sexualidade, dos relacionamentos afetivos e da maternidade das mulheres negras.

Como um desdobramento, o livro chega ao capítulo 9 com a proposta de ressaltar a importância da atuação política das mulheres negras. A autora sublinha que as definições tradicionais de atuação política adotadas pelas ciências sociais consideram sobretudo as atividades públicas, os enfrentamentos institucionais, oficiais e visíveis. Dessa forma, deixam de lado as ações voltadas para a sobrevivência grupal, igualmente importantes para o grupo negro e que são desenvolvidas primordialmente por mulheres negras. Um segundo resultado dessa definição é que a ausência ou a escassez de mulheres negras em postos oficiais da política é lida como baixo nível de ativismo, o que invisibiliza as lutas das mulheres negras. Contudo, além dos esforços para promover a sobrevivência do grupo, mulheres negras também agiram e agem para viabilizar transformações institucionais, atuando em organizações que promovem direitos civis, sindicatos, coletivos feministas, boicotes e revoltas, ou mesmo em seus trânsitos cotidianos pelo mercado de trabalho, igrejas, instituições de ensino, em sua relação com a mídia e com os governos.

A terceira e última parte do livro abrange os capítulos 10, 11 e 12, e dedica-se à análise da relação entre conhecimento e poder. O capítulo 10 marca um movimento em direção a uma visão transnacional, afrodiaspórica, que reconhece as aproximações e a necessidade de solidariedade entre mulheres negras de diferentes sociedades, tendo em vista a situação comum de pobreza e discriminação que enfrentam, ao mesmo tempo em que ressalta a necessidade de se contemplar as particularidades históricas e as configurações da matriz de dominação própria de cada contexto.

A epistemologia negra feminista é o tema do capítulo 11. Critérios políticos, afirma Collins, influenciam o processo de validação do conhecimento. Uma vez que as instâncias validadoras são dominadas por um grupo dominante homogêneo - o dos homens brancos -, é à aprovação deles que as reivindicações de conhecimento ficam sujeitas. Tais especialistas, como todos os indivíduos, trazem consigo um conjunto de experiências sedimentadas que refletem a sua inserção como grupo na matriz de dominação, tendo em vista as opressões de raça, gênero, classe, sexualidade e nação. O resultado é a instituição de critérios que deslegitimam a produção intelectual de mulheres negras como conhecimento.

Segundo a autora, isso não impede que mulheres negras produzam conhecimento. Como outros grupos subordinados, elas desenvolvem um ponto de vista específico, valendo-se de um modo alternativo de produção e validação do conhecimento - ou seja, de uma epistemologia própria. Para Collins, tais critérios, segundo o pensamento feminista negro, são: a experiência vivida (ao invés da abstração pura); o diálogo entre sujeitos (e não a noção de separação entre sujeito e objeto); a ética do cuidar (o respeito à singularidade individual, a legitimidade das emoções no diálogo e a capacidade de empatia); e a ética da responsabilidade pessoal (que torna as pessoas responsáveis por aquilo que reivindicam como conhecimento). Collins defende que os grupos sociais produzem conhecimentos localizados e parciais, sempre inacabados, que devem ser compartilhados de modo a expandir perspectivas, e sem que o ponto de vista de um determinado grupo suprima os conhecimentos produzidos pelos demais.

O último capítulo versa também sobre a relação entre conhecimento e poder, agora com vistas à resistência às opressões. A autora argumenta que o pensamento feminista negro empodera as mulheres negras de duas formas. Em primeiro lugar, lança um novo olhar sobre as injustiças sociais: ao levar em conta o paradigma interseccional e a agência individual e coletiva de mulheres negras, ele reconceitua as relações sociais de dominação e resistência. Em segundo lugar, o pensamento feminista negro fornece uma epistemologia que permite criticar o corpo de conhecimento reconhecido como tal, e ainda que as mulheres negras definam sua realidade em seus próprios termos.

É também neste capítulo que Collins apresenta sua interpretação da arquitetura de poder em uma sociedade. Para a autora, cada matriz de dominação organiza-se a partir de quatro domínios inter-relacionados de poder. O domínio estrutural refere-se à forma como as instituições sociais organizam a opressão das pessoas negras e reproduzem sua subordinação ao longo do tempo. Neste âmbito, empoderamento diz respeito à mudança de instituições e leis. O domínio disciplinar trata do gerenciamento da opressão, valendo-se da burocracia e das técnicas de vigilância. A resistência é praticada por mulheres negras que integram as organizações responsáveis pelo controle disciplinar e que buscam direcioná-la a fins humanísticos. O domínio hegemônico é aquele que justifica práticas opressivas, e engloba a manipulação de ideias, imagens, símbolos e ideologias. Aqui, o empoderamento se dá pela construção de conhecimentos contra-hegemônicos. Por fim, o domínio interpessoal designa as práticas rotineiras cotidianas. Nele, a resistência se dá pela quebra de rotinas que explicitam práticas opressivas -, como, por exemplo, estratégias empregadas por pessoas negras monitoradas por seguranças em lojas.

Termino minhas considerações sobre a obra ressaltando um comentário que figura nas primeiras páginas do livro, no “Prefácio à edição brasileira”. Pensamento feminista negro oferece ferramentas teórico-conceituais e metodológicas potentes para o feminismo negro na academia brasileira. Porém, como observa Collins, é preciso ter em mente que as experiências das mulheres negras estadunidenses não são universais; tampouco o conteúdo do livro se aplica automaticamente à realidade brasileira.

O Brasil não tem mammy, tem “mãe preta” - a quem Lélia Gonzalez (Rios & Lima, 2020RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.) atribui a “africanização” da cultura brasileira, contra os esforços de branqueamento/europeização por parte das elites nacionais. Não tem Jezebel, tem “mulata” - uma figura muito mais recorrente no imaginário brasileiro do que sua contraparte estadunidense. Não teve segregação racial ou luta por direitos civis, mas conta com um historicamente complexo e variado movimento negro (Pereira, 2019PEREIRA, Ana Claudia Jaquetto. Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos. Belo Horizonte: Letramento, 2019.; Rodrigues, 2020RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Editora Appris, 2020.). Os negros e as negras somam menos de 13% da população dos Estados Unidos; no Brasil, somos maioria. Eles são a maior potência mundial; nós, um “país em desenvolvimento”. Desse modo, a leitura da obra será tão mais frutífera quanto mais agregar uma perspectiva afro-diaspórica. Para tanto, é necessário integrar suas contribuições às características da sociedade brasileira, e ainda colocá-las em diálogo com as contribuições de autoras como Lélia Gonzalez (Rios & Lima, 2020), Sueli Carneiro (2018CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018.) e Beatriz Nascimento (Ratts, 2006RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial, 2006.), e com a produção de autoras brasileiras ainda desconhecidas, dadas as políticas de “supressão” (Collins, 2019: 37) do conhecimento produzido por mulheres negras.

Referências

  • CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
  • DU BOIS, W. E. B. The souls of Black folk. New York: Penguin Books, 1989.
  • HIGGINBOTHAM, Evelyn B. Righteous discontent: the women’s movement in the Black Baptist Church, 1880-1920. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1993.
  • PEREIRA, Ana Claudia Jaquetto. Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
  • RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial, 2006.
  • RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
  • RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Editora Appris, 2020.
  • 1
    A expressão “política de respeitabilidade” (politics of respectability) foi cunhada por Evelyn Higginbotham (1993) e descreve o esforço coletivo para adoção de comportamentos “dignos” por comunidades negras - sobretudo, por mulheres - como estratégia de subversão de estereótipos racistas.
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    Termo cunhado por W. E. B. Du Bois (1989) para descrever o conflito interno vivenciado por pessoas negras em sociedades racistas, tendo em vista a experiência de sempre olhar para si a partir dos olhos da sociedade branca. Collins reapropria o conceito e propõe que as mulheres negras, sobretudo as empregadas domésticas, ocupem a posição de outsider within (traduzido no livro como outsider interna), ou seja, que conseguem obter conhecimentos sobre o mundo dos brancos e sobre a comunidade negra - uma perspectiva singular.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2020
  • Aceito
    19 Mar 2021
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