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Afetos e sentidos no filme Girimunho (2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins

Affect and meanings in the film Swirl (2011), by Clarissa Campolina and Helvécio Marins

Resumo

O principal objetivo deste ensaio é analisar o filme Girimunho (2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins, como uma experiência em si mesma. O filme é analisado em diálogo com análises fílmicas recentes que relacionam afeto e linguagem. O foco recai sobre o roteiro do filme, assim como sobre a luz, o som, a cor, o plano, os movimentos de câmera e a montagem. O esforço analítico mobiliza uma bibliografia relacionada à filosofia, à sociologia, aos estudos do afeto, do cinema e da literatura. A análise mostra que o filme é uma experiência sensível que afeta o espectador/analista por meio de um trabalho com a linguagem cinematográfica que o instiga à leitura atenta e à criação de sentidos.

Palavras-chave:
Afeto; Linguagem; Filme; Criação; Sentido

Abstract

The main objective of this essay is to analyze the film Swirl (2011), by Clarissa Campolina and Helvécio Marins, as an experience in itself. The film is analyzed in dialogue with recent film analyzes that relate affect and language. The focus is on the film’s script, as well as on its light, sound, color, shot, camera movements, and montage. The analytical effort mobilizes a bibliography connected to philosophy, sociology, studies of affect, film, and literature. The analysis shows that the film is a sensitive experience that affects the spectator/analyst through a work with cinematographic language that instigates both the attentive reading and the creation of meanings.

Keywords:
Affect; Language; Film; Creation; Meaning

Introdução

Este ensaio faz parte de um percurso de pesquisa que tem como objetivo investigar modos de análise de expressões artísticas que as tomem não apenas como representações de contextos histórico-sociais ou modos de vida, mas também como experiências que devem ser analisadas em si mesmas. O filme Girimunho (2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins, cuja análise apresento neste ensaio, é uma das expressões artísticas examinadas nesse percurso. O ensaio é escrito em diálogo com análises fílmicas recentes informadas pela teoria do afeto produzida entre o final dos anos 1990 e as primeiras décadas dos anos 2000, no bojo do que foi chamado de a “virada afetiva”. Essa teoria retoma em especial a filosofia de Baruch Spinoza (2009SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.), que define afetos como “afecções do corpo pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Spinoza, 2009: 163). Ainda que múltipla e diversa, essa teoria tem em comum o entendimento do afeto como fenômeno que surge entre corpos e provoca mudanças sensíveis e cognoscíveis sutis. A partir desse entendimento, o afeto se torna um artefato analítico que possibilita perceber essas mudanças e suas consequências em diferentes circunstâncias e situações (Clough, 2007CLOUGH, Patricia. Introduction. In: CLOUGH, Patricia; HALLEY, J. (Orgs.). The affective turn: theorizing the social, p. 1-33. Durham, NC: Duke University Press, 2007.; Gregg & Seigworth, 2010GREGG, Melissa; SEIGWORTH, Gregory. An inventory of shimmers. In: ______. The affect theory reader, p. 1-28. Durham, NC: Duke University Press, 2010.; Hardt, 2007HARDT, Michael. Foreword: what affects are good for. In: CLOUCH, Patrícia. Affect turn: theorizing the social, p. iv-xiii. Durham, NC: Duke University, 2007.; Massumi, 2002MASSUMI, Brian. Parables for the virtual: movement, affect, sensation. Durham, NC; Duke University Press, 2002.).

O interesse pelo afeto como via para a análise fílmica não é novo. Nas primeiras tentativas de análise do cinema, já havia um interesse por observar como “suas imagens e sons [...] conseguem a mobilização poderosa dos afetos” (Xavier, 2018XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2018.: 10). O que as análises fílmicas recentes trazem de novo é a abordagem. No encalço da trilha deixada pela “virada cultural” dos anos 1980, na qual a experiência aparece como categoria central, essas análises buscam abordar o filme como uma experiência para os sentidos. Nesse sentido, a análise fílmica não busca desvendar o que está oculto no filme, em sua origem ou para além dele, mas a microfísica que o anima e afeta os sentidos do espectador/analista. Em análises como as de Steve Shaviro em The cinematic body, o filme é examinado como uma mídia vívida que enseja relações entre o corpo cinemático e o corpo espectador. Esse modo de análise parte do pressuposto enunciado por Patrícia Clough (2007CLOUGH, Patricia. Introduction. In: CLOUGH, Patricia; HALLEY, J. (Orgs.). The affective turn: theorizing the social, p. 1-33. Durham, NC: Duke University Press, 2007.) de que os afetos surgem não apenas entre corpos humanos, mas também entre corpos humanos e não humanos,

em relação às tecnologias que nos permitem tanto “olhar” o afeto como produzir capacidades afetivas incorporadas para além das restrições orgânico-fisiológicas do corpo [humano] (Clough, 2007CLOUGH, Patricia. Introduction. In: CLOUGH, Patricia; HALLEY, J. (Orgs.). The affective turn: theorizing the social, p. 1-33. Durham, NC: Duke University Press, 2007.: 2, tradução livre)1 1 “In relation to the technologies that are allowing us both to ‘‘see’’ affect and to produce affective bodily capacities beyond the body’s organic-physiological constraints.” .

Sob a influência da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari e das premissas pós-estruturalistas, análises fílmicas, como a realizada por Shaviro, buscam afastar a experiência fílmica do domínio do sujeito e aproximá-la do corpo, o que as aproximam de teorias feministas, antirracistas e pós-coloniais, nas quais o corpo aparece como heurística para a crítica cultural. Nessas análises fílmicas, o interesse se volta para as reações corpóreas ou “respostas pré-reflexivas”. A tarefa do espectador/analista é descrever os efeitos do filme no seu corpo ou a experiência sensível que advém de sua relação com o filme. A análise é justificada como um modo de se opor ao medo e à desconfiança em relação às imagens próprias ao pensamento ocidental. Como explica Shaviro (1993),

desde Platão, os filósofos nos advertem contra a sedução de reflexos e sombras. A metafísica prefere o verbal ao visual, o inteligível ao sensível, o texto à imagem e as articulações rigorosas da significação às ambiguidades da percepção não ensinada” (Shaviro, 1993______. The cinematic body. Minnesota, MN: University of Minnesota Press, 1993.: 14, tradução livre)2 2 “Ever since Plato, philosophers have warned us against being seduced by reflections and shadows. Metaphysics prefers the verbal to the visual, the intelligible to the sensible, the text to the picture, and the rigorous articulations of signification to the ambiguities of untutored perception.” .

Em análises como a de Shaviro (1993______. The cinematic body. Minnesota, MN: University of Minnesota Press, 1993.), o afeto é considerado como força plenamente autônoma que existe sem qualquer tipo de mediação. Isso fica explícito em frases como “um filme é inescapavelmente literal. Imagens confrontam o espectador diretamente, sem mediação”3 3 “[...] film is inescapably literal. Images confront the viewer directly, without mediation.” (Shaviro, 1993: 26, tradução livre). No extremo, o afeto aparece como uma espécie de ente selvagem, que escapa a qualquer tentativa de apreensão cognitiva. Em The cinematic body redux, Shaviro (2008) explica que, em seu primeiro texto, procurou rejeitar a suposição de que a experiência humana é original e fundamentalmente cognitiva. Nesse afã, ainda que implicitamente, ele acabou reproduzindo a dicotomia entre o sensível e o cognoscível que fundamenta as abordagens tradicionais que ele queria justamente criticar (Shaviro, 2008).

Em The form of the affects, Eugenie Brinkema (2014BRINKEMA, Eugenie. The form of the affects. Durham, NC: Duke University Press, 2014.) apresenta uma crítica incisiva a análises fílmicas como a de Shaviro. Brinkema aponta que o problema com esse tipo de abordagem é que ela nos leva de volta a um significado transcendental, como se esquecêssemos tudo o que a “virada linguística” e, antes dela, o próprio estruturalismo nos ensinou. Em contraposição, a autora argumenta que o afeto precisa ser estudado em sua relação com a linguagem. O modo de análise fílmica que ela propõe nos lembra que não existe um reino puro do sentir acima dos códigos culturais, porque qualquer experiência é sempre mediada pela linguagem, entendida como produtora de afetos organizados como “sucessões da sintaxe”. Tomar o afeto assim é uma “tentativa de aproveitar a paixão dos estudos dos afetos para a interpretação textual e a leitura atentas”4 4 “[...] attempt to seize the passions of affects studies for textual interpretation and close readings.” (Brinkema, 2014: xiv e xvi, tradução livre).

Este ensaio é movido pelo interesse de analisar o filme Girimunho como um corpo cinemático que afeta o corpo espectador/analista, sem esquecer que a experiência sensível proporcionada por esse encontro se dá por meio da linguagem cinematográfica, que instiga a leitura atenta e a produção de sentidos. De fato, já em Spinoza (2009SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.) encontramos o entendimento de que o sensível e o cognoscível, o corpo e a mente são um continuum. Como nos conta Ismail Xavier (2018XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2018.), já há um bom tempo que encontramos nos estudos do cinema o entendimento de que “atualizando determinados processos e operações mentais, o cinema se torna experiência inteligível e, ao mesmo tempo, vai ao encontro de uma demanda afetiva que o espectador traz consigo” (Xavier, 2018: 10).

A leitura de um filme sempre mobiliza um referencial teórico-metodológico que informa e direciona a leitura. Contudo, a leitura de um filme à luz desse referencial deve ter o cuidado de não o transformar em mera ilustração daquele referencial. Como expressão artística, um filme é uma singularidade que não pode ser totalmente iluminada por um referencial teórico-metodológico. A leitura de um filme à luz de um referencial deve buscar não iluminar o filme completamente com esse referencial, mas propor diálogos entre o filme e o referencial e, a partir desses diálogos, ver tanto um como o outro com outros olhos. A partir dessa compreensão, a análise de Girimunho mobiliza referências teórico-metodológicas associadas à filosofia, à sociologia, aos estudos do cinema, do afeto e da literatura em uma abordagem interdisciplinar que se esforça por fazer da experiência fílmica um exercício de leitura dos afetos e de criação de sentidos.

Um filme opaco, distendido e dialógico

Deleuze e Guattari (2007______. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2007.) explicam que uma expressão artística é construída com afetos e percepções de seu autor, mas ela não apenas os reproduz. Mais do que comunicação, a arte é expressão. Ela não é tampouco somente um meio para veicular uma história ou uma ideia. A criação artística consiste justamente em trazer ao mundo o que não existia nele antes da obra. Essa é a ontologia artística. Como ato expressivo, a arte cria afetos e percepções novos, o que os autores chamam de “afectos” e “perceptos”. Esses afectos e perceptos compõem um “bloco de sensação”, “um ser em si mesmo” (Deleuze & Guattari, 2007). Em se tratando de um filme, esse “bloco de sensação” ou “ser em si mesmo” é construído com elementos da linguagem cinematográfica, como o roteiro, a luz, o som, a cor, os planos, os movimentos de câmera e a montagem. Os autores ressaltam que, embora seja feita para um público, a arte não depende dele para existir. Ela existe por ela mesma e o público somente a experiencia. Ainda que o espectador não se atente para isso, é a linguagem cinematográfica que cria as condições para a experiência fílmica.

Como define Xavier (2005______. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e terra, 2005.), um filme é uma janela. Girimunho oferece uma imagem cinematográfica para essa metáfora literária na sequência de cenas filmadas a partir da janela do ônibus que Bastú, protagonista do filme, pega para ir ao oftalmologista. Contudo, como enfatiza Xavier (2005), um filme não é uma janela transparente. Ainda que desenvolva uma narrativa ficcional com aspiração realista, o filme é uma construção de linguagem, e como tal, superfície opaca. Não por acaso, em Girimunho, à medida que o ônibus passa pela estrada de chão, a sua janela vai ficando cada vez mais coberta de poeira. Quanto mais nos envolvemos com o filme mais nos tornamos capazes de realizar uma leitura que permite a substituição de uma visão pragmática longitudinal por uma visão complexa e em profundidade, lançando um olhar que “extrai” da materialidade fílmica “excessos” significativos.

Clarissa Campolina e Helvécio Marins pertencem a uma nova geração de cineastas brasileiros que se caracteriza pela busca incessante de meios para fazer filmes autorais, tendo à sua disposição um orçamento limitado. Girimunho foi realizado com recursos financeiros advindos de leis de incentivo nacionais e parcerias com a iniciativa privada e com fundos internacionais5 5 O filme contou com recursos da quarta edição do Programa de Estímulo ao Audiovisual - Filme em Minas, promovido pelo Governo do Estado de Minas Gerais e pela Secretaria de Estado de Cultura, em parceria com a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). O filme contou ainda com incentivos da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do Programa Ibermedia; bem como apoios do Fundo Hubert Bals, do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, e do Fundo de Cinema Mundial do Festival Internacional de Cinema de Berlin. . Desde a retomada do cinema nacional, nos anos 1990, esses têm sido os principais recursos financeiros para a produção de filmes. Contudo, desde o início do milênio, esses recursos têm diminuído6 6 Um relatório de 2019 mostrou que os recursos financeiros para a produção de filmes têm diminuído em todo o mundo desde o início do milênio (Koljonen, 2019). No Brasil, os recursos diminuíram muito, principalmente a partir de 2019, com o governo Jair Bolsonaro. Entre outras ações, este governo extinguiu o Ministério da Cultura; promoveu reformas na Lei Rouanet, que prejudicaram a produção cinematográfica brasileira; não renovou o patrocínio da Petrobras a projetos relacionados ao cinema; suspendeu o repasse da Ancine, principal fonte de financiamento público do cinema no país e de verbas para a produção; e suspendeu o programa de exportação de filmes brasileiros pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). . Nessa conjuntura, podemos cogitar que a falta de recursos tem impulsionado a criação, ao se colocar como desafio a ser superado pela criatividade. Na contramão das estéticas do excesso, do exagero e do grotesco, que caracterizam os produtos audiovisuais que predominam na grande mídia e o cinema inserido na lógica de produção estandardizada, o filme de Campolina e Marins se caracteriza por uma estética da contenção, da sutileza e da delicadeza. Isso faz do filme um objeto privilegiado para a análise a partir da perspectiva afetiva, cujo foco é dirigido para mudanças mínimas.

Girimunho segue uma tendência estética contemporânea nomeada pela crítica “cinema de fluxo”. Essa tendência teria surgido no início do milênio, tendo conquistado maior atenção da crítica com a publicação e a repercussão de “Que plano é esse?”, de Jean-Marc Lalanne, na revista Cahiers du Cinéma, no início dos anos 2000. Como analisa o autor, essa tendência faz uso principalmente do plano cinematográfico para proporcionar ao espectador uma experiência de imersão. O plano longo faz com que cada plano tome a forma de “um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens” (Lalane, 2002LALANE, Jean-Marc. Que plano é esse? Cahiers du cinéma, n. 569, Jun. 2002. Disponível em: <https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=http%3A%2F%2Fwww.geocities.ws%2Fruygardnier%2Flalannequeplanoeesse.doc&wdOrigin=BROWSELINK>. Acesso em: 06 Mar. 2022.
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: 1). Observamos esse cinema do plano em Girimunho, que alia essa tendência à influência do cinema do pós-guerra, em especial do neorrealismo italiano e do cinema de Yasujiro Ozu. Nesse cinema, o plano longo, associado à câmera imóvel e à montagem lenta, constituem um olhar atento e demorado para a banalidade cotidiana. Desse modo, esse cinema se distancia da narrativa dramática clássica, cujo interesse é direcionado para os momentos decisivos para a trama do filme, que são destacados dos demais momentos por meio de um trabalho dinâmico com o plano e o contraplano realizado pela montagem. Em Girimunho, esse olhar atento e demorado para a banalidade cotidiana se volta para a vida sertaneja. O plano longo, a câmera imóvel e a montagem lenta proporcionam um olhar contemplativo da simplicidade e da beleza da vida cotidiana sertaneja, que se apresenta como o que deve ser olhado sem pressa, em seus detalhes, seus pormenores, em suas nuances, que poderiam passar despercebidos a olhares desatentos e apressados. Esse modo de olhar oportuniza um trabalho minucioso e delicado com elementos da linguagem cinematográfica, como a luz, o som e a cor, que vai na contramão da produção cinematográfica estandardizada.

Girimunho faz parte da seara de filmes brasileiros contemporâneos que tem apostado no retorno a um “Brasil profundo” como um movimento criativo que busca inspiração nas histórias do cinema e da literatura brasileiras, resgatando a tradição de fazer do sertão o mote para criações artísticas. O filme tem semelhanças tanto de roteiro como estéticas com outros filmes brasileiros que pertencem à essa mesma seara, como Histórias que só existem quando lembradas (2011), de Julia Murat, e A história da eternidade (2015), de Camilo Cavalcante, os quais também têm sido objetos do esforço analítico da pesquisa supracitada. Todavia, ainda que semelhante a esses filmes, Girimunho desenvolve um estilo próprio, advindo de sua capacidade de traduzir para a linguagem cinematográfica o imaginário sertanejo como ele aparece na obra literária de João Guimarães Rosa, especialmente em Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa, 1956) e também de sua capacidade de dialogar com elementos artísticos e culturais diversos. Além dos elementos já citados, cabe mencionar ainda os diálogos que o filme estabelece com o gênero documentário, o realismo mágico e a cultura popular.

O filme gira em torno de duas personagens protagonistas, Bastú e Maria. Os desenhos dessas personagens são traçados no tecido de suas vidas cotidianas, de seus encontros e de suas conversas com os netos, o sobrinho e os vizinhos, e seus momentos de solidão e reflexão sobre a vida. A partir do cotidiano dessas mulheres, o filme recorta certos aspectos da realidade sertaneja contemporânea, tais como a vida simples, o senso de comunidade, os relacionamentos próximos entre as pessoas e com a natureza, a aceitação da morte, a permanência da tradição e os traços de modernidade. O universo fílmico é fundado em tensões de significado e sentido, como aquelas estabelecidas entre vida e morte, natural e sobrenatural, tradicional e moderno, filme e espectador. Essas tensões são trabalhadas tanto por meio do roteiro como por meio de distensões significantes e formais, com destaque para os trabalhos com a luz, o som, a cor, a câmera, o plano e a montagem.

Um mundo feito de luz, silêncio e cor

Girimunho é construído com a luz. Isso pode passar despercebido aos olhos de um espectador desatento e apressado, mas, quando olhamos bem, a luz surge como um afeto que fascina o olhar e instiga a leitura do filme. Ao contrário de filmes expressionistas, que fazem uso da luz para reforçar a narrativa dramática que se desenrola por meio do roteiro, o filme faz uso da luz para criar um universo peculiar e fascinante, no qual somos convidados a entrar. Ao fazer esse uso da luz, o filme dialoga com o neorrealismo italiano, que se constituiu como reação radical ao expressionismo alemão pelo uso de uma luz “sem ângulos e pouco contrastada, segundo um estilo de jornal de atualidades, manifestando uma recusa total de qualquer dramatização artificial da luz” (Martin, 2013MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013.: 75). Girimunho não é tão radical. O filme se permite brincar com a luz, desenhando na tela um teatro de sombras que tem algo de espetacular, recriando a própria ambiência do cinema, descrita por Marcel Martin (2013) como uma ambiência de

[...] obscuridade, fascínio da luz, o universo fechado e protetor, um clima maravilhoso e infantil que constitui o domínio, essencialmente regressivo (quer dizer, voltado para o interior e para a contemplação) da hipnose fílmica (Martin, 2013MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013.: 75).

Em Girimunho, a luz é um afeto que nos envolve e nos faz querer ficar olhando para a tela. O fascínio começa já na primeira cena do filme, quando a tela escura dá lugar a um movimento de câmera lento e transversal na direção de silhuetas formadas das sombras de uma iluminação escassa. Nessa primeira cena, não somente a luz como também a sombra chama atenção. As silhuetas são formadas de sombras, mas só podem ser vistas porque existe luz. A sombra surge diante de nós não como o oposto da luz, mas aquilo que, com ela, compõe um universo intrigante. Luz e sombra criam a imagem de um mundo realista, que se prolonga na tela por meio do plano longo e da montagem lenta, como nos filmes associados ao neorrealismo italiano. Todavia, essa imagem transmite uma atmosfera mágica, como a que encontramos nos mundos criados por obras vinculadas ao realismo mágico e no mundo sertanejo, tal como criado em Grande sertão: veredas (1956). O plano longo que, como descreve Lalane (2002LALANE, Jean-Marc. Que plano é esse? Cahiers du cinéma, n. 569, Jun. 2002. Disponível em: <https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=http%3A%2F%2Fwww.geocities.ws%2Fruygardnier%2Flalannequeplanoeesse.doc&wdOrigin=BROWSELINK>. Acesso em: 06 Mar. 2022.
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), dá a esse tipo de filme uma forma esticada, contínua, um escorrer de imagens, bifurca-se, adquirindo uma forma alongada pendular, que nos remete ao modo de vida sertanejo descrito em Grande sertão. Nesse mundo realista e mágico, a vida oscila entre polos opostos e complementares. Bastú está sempre às voltas com sua máquina de costura, porque sabe que a vida é abertura, “rasgar-se”, e fechamento, “remendar-se”. Todavia, como Eduardo Coutinho (2003COUTINHO, Eduardo F. La desconstrucción de la mirada dicotómica en Grande sertão veredas. Cuadernos Literarios, v. 1, n. 2, p. 49-58, 2003. Disponível em: <https://ucss.edu.pe/images/fondo-editorial/revista-cuadernos-literarios-02/desconstruccion-mirada-dicotonica-eduardo-coutinho.pdf>. Acesso em: 06 Mar. 2022.
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) percebe no universo do livro de Rosa, o filme de Campolina e Marins não é fundado em uma lógica dicotômica. O plano longo dá ao filme uma forma alongada que se enrola sobre si mesma como um grande emaranhamento, daí a importância da imagem do redemoinho para o filme.

A luz suave, pouco contrastada, cria uma ambiência propícia ao olhar contemplativo. O rio é a principal paisagem para esse olhar. Por isso, os planos são estendidos nas cenas que mostram Bastú diante do rio. Como em Grande sertão, em Girimunho, o rio é a imagem de uma vida longa e fluida que, por sua extensão e no seu correr, permite a coexistência de opostos em tensão. Como na leitura que Coutinho (2003COUTINHO, Eduardo F. La desconstrucción de la mirada dicotómica en Grande sertão veredas. Cuadernos Literarios, v. 1, n. 2, p. 49-58, 2003. Disponível em: <https://ucss.edu.pe/images/fondo-editorial/revista-cuadernos-literarios-02/desconstruccion-mirada-dicotonica-eduardo-coutinho.pdf>. Acesso em: 06 Mar. 2022.
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) faz da obra de Rosa, nesse universo, posição alguma se sustenta como única e excludente das demais. Sua complexidade desconstrói qualquer tipo de visão monolítica e instaura em seu centro uma indagação profunda. Como Bastú, vemo-nos diante do rio, superfície vasta e recortada, macia e rugosa, que do fundo de sua ambiguidade nos interpela, nos desafia e nos faz questionar os nossos esquemas perceptivos, analíticos e teóricos. A luz suave permite que vejamos as águas correrem pelo rio; elas são vastas e macias, mas, se olhamos bem, percebemos que são atravessadas por sombras que as delimitam e fazem delas uma superfície rugosa. A vida é travessia que se forma entre uma margem e outra do rio, do sertão. É preciso atravessar, viver a vida, uma travessia perigosa, porque repleta de tensões e ambiguidades. A travessia não está lá, pronta, esperando para ser atravessada; ela só se forma no atravessar. Por isso, é preciso calma, para parar, para olhar. É assim que Bastú encara o fantasma do marido morto, em outro diálogo do filme com o realismo mágico.

Print do filme 1
Cena de Girimunho (2011)

Em Girimunho, passado e presente não são tempos separados, mas camadas da vida que se interconectam. Isso pode ser visto na seguinte sequência de cenas. Primeiro, Bastú conversa com o fantasma do marido morto. Depois, vemos e ouvimos o rio fluindo. Sobre ele, a incidência de uma luz solar forte cria uma margem sombreada. Na sequência, vemos, em plano aberto, uma mulher atravessar a tela puxando uma canoa pelo rio. Ela usa o mesmo corte de cabelo e se veste como Bastú, mas é mais nova. Seria Bastú no passado? A câmera, em primeiro plano, mostra as pernas da mulher imersas na água do rio. Em seguida, a mulher aparece de costas para câmera, diante do rio. Na cena subsequente, fogos de artifícios explodem na tela. Ao fundo, ouvimos Bastú dizer: “já andei em todo canto do mundo e não tenho medo, de nada”. A tela escura é seguida do reflexo dos fogos de artifício cintilando na água. Bastú aparece de costas para a câmera, diante do rio, na mesma posição que a mulher mais nova aparecera algumas cenas antes. Nesse jogo de cenas, o filme apresenta uma concepção de tempo na qual passado e presente se misturam em um mundo fluido. Como Deleuze e Guattari (2013DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013.) veem no cinema moderno, as imagens possibilitam explorar camadas do tempo que não se sucedem, mas coexistem. É como se essas imagens dissessem: ainda que pendular, a vida se desenrola em fluxos não lineares com grandes emaranhamentos, como os rios do sertão, especialmente o do norte de Minas Gerais, região onde o filme foi filmado, ou os redemoinhos de vento que se formam com frequência naquela região. Ainda que viver seja encarar contrastes, luz e sombra, vida e morte, natural e sobrenatural; a vida é longa, fluida e emaranhada e a gente nunca sabe o que vai encontrar na vida. Como ensina Bastú, nesses grandes emaranhamentos, “a gente não começa nem acaba, a gente não é nem véi nem novo, a gente vive”.

No filme, o rio aparece não somente como representação da vida, mas como espaço natural que se faz paisagem para um olhar que projeta, na vastidão do espaço aberto e no movimento da água corrente, suas lembranças passadas e seus devaneios futuros. O rio tem algo em comum com a ruína, imagem que também está presente no filme. Walter Benjamin (2009BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.) afirma que a ruína remete não apenas ao passado, mas ao elo que vincula o passado ao presente. A ruína é vestígio, traço, índice do que do passado permanece presente. Como o rio, a ruína faz do universo fílmico uma oportunidade para atualizar o que parecia abandonado, isolado, esquecido no passado, mas que ainda vive na virtualidade da lembrança. Depois de encontrar o marido morto na cama pela manhã, Bastú passa pelas ruínas a caminho de um encontro com o neto para contar-lhe que o avô havia morrido. A luz que incide sobre as fachadas dos velhos prédios em ruínas cria profundidade e perspectiva por meio do jogo com as sombras. Todo um mundo de portas, janelas, corredores e fundos se abre por trás do primeiro plano. Ao som do sino, Bastú caminha devagar como quem sabe que ainda há muito o que ser olhado. É essa calma para olhar, para voltar a olhar, que faz do filme um lugar de encontros entre corpos vivos e mortos, jovens e velhos, fílmicos e espectadores; de coexistência entre eles que ativa uma memória que se apresenta como oportunidade para imaginar. Bastú formula isso em palavras em uma sequência na qual, depois de conversar com o fantasma do marido morto, ela se senta na porta de casa, de onde escuta a neta perguntar: “vó, que que cê tá fazendo aí, pegando esse sereno?” e ela responde: “imaginando a vida”.

Girimunho é um filme silencioso. O silêncio que impregna o universo fílmico pode até causar certo desconforto aos ouvidos habituados à sonoridade gritante dos filmes estandardizados. A esses ouvidos pode parecer que falta som no filme. Todavia, se ouvimos bem, percebemos que o silêncio no filme não existe sob o signo da falta. Existe uma tensão entre o silêncio e o som. Nas cenas iniciais, olhamos para a tela escura e escutamos a cantoria taciturna dos grilos, que é logo substituída pela voz marcante de Maria a cantar. A tela ainda está escura quando uma profusão de palmas prepara, em meio às sombras, a passagem para a próxima cena. O batuque e o coro vêm acentuar a impressão de que estamos diante de um ritual de iniciação, que marca a entrada em um mundo onde, para falar, se cala. O som é a porta de entrada, mas o uso dele ao longo do filme é contido, porque é o silêncio que mais tem o que dizer.

O batuque no quintal, a cantoria na porta de casa, o show no centro da cidade são rituais, momentos intercalares, nos quais o cotidiano erode com uma força sonora adormecida. Contudo, o cotidiano que o filme nos mostra é preenchido por aquele tipo de silêncio que experimentamos quando estamos diante de uma pintura. Segundo Maurice Merleau-Ponty (1960), o uso criativo da linguagem liberta o silêncio de uma existência sem sentido. Na cena inicial da festa, enquanto os corpos feitos de sombra dançam e cantam, vemos Bastú, sentada, imóvel, em silêncio. Ao seu modo, pelo olhar, ela participa da festa. Para parafrasear Merleau-Ponty (1960), esse fundo de silêncio ou fios de silêncio tecidos por Bastú se entremeiam com o som da festa e o sacodem, arrancando-lhe um som novo. O silêncio de Bastú é uma fala tácita que fala ao seu modo. Na cena seguinte, a vemos caminhar lentamente, em silêncio, com a neta. A câmera imóvel as acompanha fazendo uso da profundidade de campo. A mesma técnica é utilizada para mostrar avó e neta entrando na casa, cujo interior é visível graças à luz suave que se espalha à direita da tela, cortada à esquerda por um extenso quadro escuro. Poucas palavras são ditas, nem tudo precisa ou pode ser dito com palavras. Por meio do jogo entre câmera imóvel e profundidade de campo, o plano se estende permitindo a permanência do olhar. Como a sombra, o silêncio é um meio para que o filme fale e deixe falar. Ele enfatiza o que Merleau-Ponty (1960) descreve como os espaços vazios entre as palavras que existem em toda linguagem. Essas lacunas de silêncio abrem espaços para que outras falas se insiram no filme. São nesses espaços que o espectador/analista vem habitar.

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Cena de Girimunho (2011)

O trabalho com a cor é fundamental em Girimunho. Nesse sentido, o filme vai na contramão da tendência do espectador de dar pouca atenção às cores utilizadas em um filme. O uso da cor em Girimunho não é apenas um modo de aumentar o realismo das imagens, mas também de instaurar uma relação mais interessante com o espectador/analista. Especialmente nas imagens de paisagens naturais, como as do rio, a cor adquire um valor pictórico e fotográfico, o que é reforçado pelo trabalho com a luz e o ritmo lento do filme. Merleau-Ponty explica que a pintura “quer ser tão convincente como as coisas e não pensa poder atingir-nos a não ser como elas: impondo a nossos sentidos um espetáculo irrecusável” (Merleau-Ponty, 1960: 48). A paisagem do rio faz lembrar as paisagens do pintor Paul Cézanne. Essas paisagens tornam a coisa - o rio - presente por si mesma, o que reforça o vínculo do filme com a estética realista. Todavia, quanto mais nos embrenhamos no universo fílmico mais percebemos que o que temos diante de nós não é uma paisagem, mas uma imagem, ou seja, uma linguagem. A imagem do rio aparece não somente como elemento da narrativa dramática, o rio diante do qual Bastú reflete sobre a vida e a morte; o passado, o presente e o futuro; nem apenas como representação da vida da protagonista, longa, fluida, emaranhada; a imagem do rio é também aquilo mesmo que aparece como o que deve ser lido. A imagem do rio, com sua aparente imobilidade e homogeneidade, contém um movimento sutil, que faz com que muitos e diferentes tons de azuis se entrelacem. Esse movimento faz da imagem do rio um mundo de cor e forma dinâmico que vem compor a microfísica do universo fílmico.

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Cena de Girimunho (2011)

Girimunho usa uma paleta de cores na qual se destacam os tons pasteis. Essa paleta se diferencia das cores gritantes que caracterizam a produção audiovisual empreendida especialmente sob a influência da publicidade. Essa paleta de cores em tons pasteis é geralmente usada em filmes brasileiros sobre o sertão para criar uma aparência interiorana em contraste com o colorido das metrópoles. No filme, a tonalidade pastel se une ao plano longo, à luz suave e ao silêncio para criar uma sensação de quietude. Todavia, como a luz, que se compõe com a sombra, e o silêncio que fala, o tom pastel divide o espaço com cores vibrantes. Esse colorido aparece de maneira marcante na cena que mostra a explosão de fogos de artifício. Na sequência, o reflexo das luzes cintilando na água anima o rio com uma vida espectral. Essa vida vai tomando conta da tela na medida em que a câmera se movimenta lentamente de baixo para cima, subindo da terra para o céu. Vemos a vida cotidiana sertaneja em suas cores de tons pasteis ser interrompida pela festa dos círculos de luz coloridos piscando. De fato, a festa é um elemento que chama atenção no filme. Ela ganha espaço especialmente por meio de Maria, a personagem que divide o protagonismo do filme com Bastú. Seja no quintal da casa, onde Maria faz a festa, ou no centro da cidade, onde os netos e o sobrinho dançam e paqueram; a festa é um evento de luzes, som e cores vivas que interrompe a monotonia silenciosa do cotidiano. Contudo, a festa não se opõe ao cotidiano. Na verdade, ela é o cotidiano que interrompe a si mesmo para se mostrar em outra face. O cotidiano, em sua monotonia, é apolíneo; em sua faceta festiva, é dionisíaco. Com ela, o silêncio dá lugar ao batuque de Maria ou à banda pop brega, a quietude cede espaço para quem quer dançar sozinho ou a dois. A festa duplica o cotidiano, mostrando que Girimunho é um filme vasto e denso, que não cansa o olhar, movendo-o à leitura e à criação de sentidos.

Uma imagem vazia, atípica e circular

A câmera repousa por 18 segundos sobre o chão de terra batida, no qual sombras grandes vibram e folhas pequenininhas de árvore caem e rolam. A cena se soma a uma sequência de cenas construídas com a câmera imóvel e planos longos. A longa cena do rio que a antecede ajuda a criar a sensação de vazio, como a que Deleuze e Guattari (2007______. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2007.) percebem nos filmes de Ozu e nas pinturas de Cézanne. No filme, as cenas do chão e do rio são antecedidas por uma sequência na qual Bastú conta ao neto que o avô havia morrido na noite anterior. No primeiro momento podemos pensar que o vazio nas cenas do rio e do chão funciona como um pano de fundo para o drama das personagens ou como um símbolo da morte, o vazio que ela deixa, também de sentido, mas ele é mais do que isso. Como Deleuze e Guattari (2007) veem nas imagens de Ozu e de Cézanne, o espaço vazio no filme não é apenas uma paisagem ou um símbolo para os dramas humanos que se desenrolam no filme, ele se constitui como uma imagem em si mesma, um “bloco de sensação”, para lembrar a expressão de Deleuze e Guattari (2007). Vemos uma imagem vazia e sentimos que ela quer nos dizer algo, por isso a câmera parada e o plano prolongado, que se constituem como condições ideais para ouvir o que essa imagem tem a dizer.

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Cena de Girimunho (2011)

Deleuze e Guatarri (2007______. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2007.) explicam que Cézanne fez da pintura de paisagem um meio para o estudo da sensação. Os estudos e as pinturas que realizou no final do século XIX influenciaram movimentos de vanguarda, como o cubismo. As pinturas de Cézanne mostram que mesmo imagens consideradas banais, como a de uma maça, podem provocar sensações. Para “arrancar” a sensação dessas imagens, o pintor trabalha a cor e a forma de maneira a pintar não a maçã, mas a sensação que provoca. Em seus estudos, Cézanne enfatiza que sempre buscou perceber a paisagem a partir de outro lugar que não aquele criado pela relação convencional entre um sujeito e um objeto. O pintor busca estabelecer uma nova relação com a paisagem que pinta, uma relação movida não apenas pelo interesse de conhecer a paisagem, mas também pelo desejo de ser transformado por essa relação. O pintor quer não apenas conhecer a paisagem, mas ser a paisagem, por isso Cézanne diz que “há um minuto do mundo que passa, não o conservaremos sem nos transformamos nele” (Deleuze & Guatarri, 2007: 219). As paisagens se tornam assim devires. Ser paisagem é ser capaz não apenas de reproduzir a paisagem percebida, mas de expressar uma experiência com a paisagem. Por isso, as paisagens têm um caráter visionário, porque tornam visível o invisível.

A imagem do chão de terra batida de Girimunho oferece-nos uma experiência do tempo diferente daquela que vivemos nas cidades grandes, onde o tempo é mais uma das moedas de troca constantemente mensuradas por seu potencial de ganho e perda de capital. Aos corpos acostumados ao ritmo acelerado dos filmes estandardizados, essa imagem pode parecer sem sentido. Dezoito segundos podem ser sentidos como tempo demais para uma imagem aparentemente tão banal. Ao olhar para o chão de terra batida, por 18 segundos, sentimos que perdemos tempo. A sensação de perda gera angústia e ansiedade, o que revela o hábito do corpo de se submeter ao fluxo do tempo acelerado.

Ainda que antecedida de um conteúdo importante da narrativa dramática, o anúncio da morte do avô, a imagem do chão de terra batida não se comunica ou se vincula diretamente a esse conteúdo. Então, como justificar sua existência? A imagem é atípica, como definem Deleuze e Guattari (2007______. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2007.). Uma imagem atípica interrompe o fluxo cotidiano dos sentidos e é, por isso, sentida como incômodo. No dia a dia, o corpo recorre ao hábito como forma de se defender do incômodo causado por expressões atípicas (Deleuze & Guattari, 2007). O ritmo lento da cena na qual vemos a imagem do chão de terra batida pode ser sentido como incômodo; temos a sensação de um tempo que demora a passar. Desse modo, o filme não apenas retrata a vida cotidiana do sertão mineiro em ruínas, onde a modernidade é apenas um traço em um cotidiano organizado ainda pelo modo de vida tradicional. Por meio do plano longo e da câmera imóvel, o filme converte esse modo de vida em experiência sensível. Olhamos um tempo que se estende e se desdobra sobre si mesmo, criando muitas camadas de sentido. Um tempo que passa, mas que também se prolonga e permanece, como a cidade que fica como ruína e o morto que sobrevive como fantasma.

Mesmo que evoque as paisagens de Ozu e Cézanne, a imagem do chão de terra batida não as reproduz. Ela tem mais a dizer. Antes dela, na cena da conversa de Bastú com o neto, os dois estão sentados debaixo da árvore e olham para o rio, enquanto conversam sobre a morte do avô. A conversa é intercalada por muitos silêncios. O neto chora. A avó tenta dizer-lhe que a morte não é para ser chorada. Bastú fez um trato com o marido de não chorar quando ele morresse. Ao invés de chorar, daria a ele uma garrafa de cachaça para alegrar7 7 Essa relação com a morte é comum em outros países da América Latina, como o México, onde o dia dos mortos é celebrado com alegria, sendo um momento para celebrar tanto a vida como a morte. . Depois de um longo silêncio, vemos um barquinho longe no rio e ouvimos Bastú dizer: “o tempo não para quem para somos nós”. Na cena seguinte vemos o chão de terra batida que contrasta com a imagem anterior do rio de águas fluidas. A junção dos planos pela montagem sugere associações entre o rio e a vida, o chão e a morte. O plano é estendido para que o olhar se detenha, primeiro, no rio, o que muda, depois, no chão, o que permanece. Enquanto olhamos para o chão de terra batida, o som de Maria preparando o café invade a cena. Como o café, a morte faz parte da vida. O que interrompe o fluxo da vida não é a morte, mas a ilusão de eternidade que o ritmo de vida acelerado cria ao não nos permitir parar e olhar8 8 Desde pelo menos Cícero - e disso nos lembra Montaigne -, a filosofia é uma forma de aprender a morrer. .

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Cena de Girimunho (2011)

Evento circular, a imagem do chão de terra batida volta a aparecer quase no final do filme, como se insistisse em ser olhada e lida. Mas o que mais há para olhar e ler em uma imagem tão banal? Em sua segunda aparição, a imagem está diferente. É manhã e Maria varre o chão. Bastú, no canto direito, caminha em sua direção. O uso da profundidade de campo cria uma imagem labiríntica, com muitas vias de apreensão e criação de sentido. As mulheres se cumprimentam. O corte do plano é seco. Na sequência, as mesmas folhas pequenininhas de árvore que vimos algumas cenas atrás voltam à tela, mas agora sem sombras e em maior quantidade. Uma vassoura tenta varrê-las para o canto da tela, mas a câmera se movimenta em direção a elas. Uma fumaça fina as encobre. A vassoura é batida no chão e retirada da cena. Em tela, vemos, por dez segundos, somente as folhinhas amontoadas que cobrem parte do chão de terra batida de cor amarela. Depois de varrer o chão, Maria conversa com Bastú, quem está de partida. Ela vai se desfazer das roupas e das ferramentas do marido morto que não quer ir embora. Se o chão, o lugar, a lembrança é o que fica; o rio, o tempo, a imaginação não param.

A imagem do chão de terra batida excede qualquer justificativa, narrativa ou pragmática. Como imagem vazia, como percebem Deleuze e Guattari, ela “vale antes de mais nada pela ausência de conteúdo possível” (Deleuze & Guattari, 2013: 27). A imagem é vazia não tanto porque representa um lugar desabitado, uma zona morta, uma ausência de conteúdo e de pessoas, mas porque ela enseja “uma relação onírica, por intermédio dos órgãos dos sentidos, libertos” (Deleuze & Guattari, 2013: 13). A função dessa imagem é suspender a presença humana, permitindo a passagem do humano ao inanimado e à plenitude da imagem. Na ausência das personagens, o que nos resta é a imagem, uma imagem atípica e que, como tal, força o corpo a pensar.

Às vezes, olhamos para o chão ou para um rio para pensar, organizar as ideias, refletir sobre a vida. Ao olhar para essas superfícies planas, aparentemente estáticas, mas vivas, lembramos o que vivemos e imaginamos a vida. Em Girimunho, a imagem do chão de terra batida e o seu duplo, a imagem do rio de águas fluidas, abrem um buraco na narrativa dramática, fazendo com que suas personagens vivam e falem com vagueza. Essa fratura é sentida em especial nas cenas posteriores às do rio e do chão. Se nas cenas anteriores Bastú e o neto estão engajados em uma conversa importante para a narrativa dramática do filme - a morte do avô -, nas cenas posteriores Maria e o sobrinho recitam versos cantados um para o outro, evocando a tradição de trovas própria do sertão. A conversa parece vazia porque não se vincula à narrativa dramática do filme, tal como observam Deleuze e Guattari (2013DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013.), quando, nos filmes de Ozu, o drama é substituído por conversas banais que mostram o cotidiano da família tradicional japonesa. Em Girimunho, a conversa entre Maria e o sobrinho parece mais um pretexto para que a imagem vazia continue trabalhando em outro nível que não aquele no qual se passa a narrativa dramática. É como se as ações e as palavras das personagens se perdessem no vazio à medida que o filme nos convida a prestar atenção em uma imagem vazia, atípica e circular.

Ozu costumava dizer que os espaços desdramatizados que criava eram uma forma de oferecer ao público um sabor diferente daquele oferecido pelo drama (Inoue, 1983INOUE, Kazuo. Eu vivi, mas... Uma biografia de Yasujiro Ozu. Tokyo: IMDB, 1983.). Degustar um espaço desdramatizado liberta os sentidos do hábito. Benjamin (1987______. Pequena história da fotografia. In: ______. Obras escolhidas, v. 1. “Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura”. São Paulo: Brasiliense, 1987.) diz algo parecido ao analisar fotografias de espaços vazios de Eugène Atget, que viveu em Paris entre o final do século XIX e o início do século XX, período em que os fotógrafos se ocupavam principalmente de retratos. Atget inovou ao dirigir a câmera para os espaços vazios da cidade. O caráter documental de suas fotografias de espaços vazios não impediu que elas influenciassem artistas surrealistas, que as consideravam altamente sugestivas. Como observa Benjamin (1987), nessas fotografias, a imagem vazia “liberta para o olhar [...] o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores” (Benjamin,1987: 102). Uma paisagem vazia não requer que nos identifiquemos com ela como quer uma personagem; essa imagem enseja outra forma de relação com o espectador/analista. Benjamin (1987) percebe que, diferentemente do retrato, no qual o rosto humano aparece como o último refúgio da aura, nas fotografias de paisagens vazias a imagem começa a se libertar da aura. Embora contemplar essas paisagens nos leve a respirar a sua aura, a imagem já não estabelece uma distância, como faz a pintura; ela se aproxima de nós, permitindo que a analisemos em sua microfísica.

Nas duas vezes em que aparece, a sensação é que a imagem do chão de terra batida observa as personagens. Temos a mesma sensação todas as vezes que o rio aparece. Ao discorrer sobre a aura, Benjamin (apud Buck-Morss, 2012) diz que vivenciar a aura de um fenômeno “significa investi-lo da capacidade de retribuir o olhar” (Buck-Morss, 2012: 213). Todavia, a imagem fílmica não encerra a aura que a pintura e o retrato possuem. Essa imagem não quer restaurar a totalidade de um mundo fraturado, desencantado, como define Max Weber (2005WEBER, Max. A ciência como vocação: In: ______. Três tipos de poder e outros escritos. Lisboa: Tribuna da História, 2005.). Podemos até lê-la como tentativa de restabelecer a ordem perturbada pelas tensões entre tradicional e moderno, vida e morte, natural e sobrenatural, filme e espectador. A paisagem natural lembra a ordem com seu aspecto imutável e regular. Contudo, ao trabalhar essas tensões não somente por meio do roteiro, mas também por meio da câmera imóvel e do plano longo, o filme nos oferece outras vias de leitura. Benjamin (apud Hansen, 2012HANSEN, Miriam. Benjamin, cinema e experiência: a flor azul na terra da tecnologia. In: BENJAMIN, Walter [et al.]. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção, p. 205-255. Organização de Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.) prevê a possibilidade de uma experiência aurática no cinema. Isso seria possível se essa experiência fosse convertida em uma modalidade cognitiva que preservasse seu “sedimento utópico”, “redimindo-a do culto religioso”. Para isso, seria preciso não buscar restaurar uma experiencia anterior à modernidade, mas ser capaz de “ler o que nunca foi escrito, rememorando o passado a partir de uma situação presente que abre um porvir” (Hansen, 2012: 217 e 240).

Considerações finais

Este ensaio é o resultado de uma busca por analisar o filme Girimunho como uma experiência em si mesma, que não pode ser tomada apenas como representação de um contexto histórico-social ou um modo de vida. Essa busca levou o ensaio a estabelecer um diálogo com análises fílmicas recentes informadas pela teoria do afeto, nas quais o filme é analisado a partir de um interesse pela relação entre afeto e linguagem. A partir dessa perspectiva, a análise focou nos elementos de linguagem que levam o filme a afetar o espectador/analista, instigando-o à leitura atenta e à busca de sentidos. O enfoque recaiu sobre o roteiro e outros elementos de linguagem, como a luz, o som, a cor, o plano, os movimentos de câmera e a montagem, que foram lidos à luz de uma bibliografia relacionada à filosofia, à sociologia, aos estudos do afeto, do cinema e da literatura.

Na “Introdução”, o ensaio apresenta uma revisão da discussão teórica recente sobre a relação entre afeto e linguagem, mostrando suas implicações para a análise fílmica. A primeira seção do ensaio - “Um filme opaco, distendido e dialógico” - traz um panorama do filme que prepara o terreno para a sua análise. Na segunda parte - “Um mundo feito de luz, silêncio e cor” -, o ensaio se profunda na análise se atentando para como o filme é construído como um universo singular por meio de um trabalho criativo realizado principalmente com o roteiro, a luz, o silêncio e a cor. Nessa seção, o ensaio apresenta uma leitura das distensões formais ou significantes entre luz e sombra, som e silêncio, cores em tons pasteis e vivas, associando-as a tensões de significado e sentidos entre tradicional e moderno, vida e morte, natural e sobrenatural, filme e espectador. Na terceira parte, nomeada “Uma imagem vazia, atípica e circular”, o ensaio se aprofunda ainda mais no filme, limitando a análise a uma imagem particular. Nessa parte, o texto se concentra na leitura dessa imagem em especial se atentando para como o roteiro se alia principalmente ao plano longo e à câmera imóvel na criação de uma imagem vazia, atípica e circular que fascina o olhar e instiga a leitura atenta e a criação de sentidos.

A análise apresentada neste ensaio mostrou que Girimunho empreende um retorno singular ao sertão brasileiro. O filme cria imagens cinematográficas originais ao dialogar com elementos artísticos e culturais diversos, como as tendências cinematográficas contemporâneas, em especial o cinema de fluxo; o cinema do pós-guerra, especialmente o neorrealismo italiano e o cinema de Ozu; o imaginário sertanejo, como ele aparece em Grande sertão: veredas; o gênero documentário; o realismo mágico; e a cultura popular. Por sua singularidade, o filme se impôs como uma materialidade complexa que desafia os nossos esquemas perceptivos, teóricos e analíticos. A análise não buscou compreender completamente o filme, mas se atentar para alguns de seus elementos e algumas de suas imagens. O esforço analítico se deu no sentido de descrever essas imagens e colocá-las em diálogo com outras imagens fílmicas, fotográficas, pictóricas e literárias que encontramos na bibliografia utilizada.

A experiência com o filme, o modo de análise que ela enseja, aproxima-se da definição de contemporâneo elaborada por Giorgio Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.), para quem ser contemporâneo é ser capaz de “olhar para o que se tem diante dos olhos e ver mais do que é dado a ver” (Agamben, 2009: 60). Benjamin (1969______. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: GRÜNNEWALD, José. A ideia do cinema, p. 55-95. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.) percebe na experiência fílmica o potencial para novas formas de olhar, perceber e pensar. Para ele, essa experiência oferece um novo olhar na medida em que sublinha “detalhes ocultos nos acessórios familiares [...] perscrutando as ambiências banais” (Benjamin, 1969: 28). Se, por um lado, o cinema sintetiza o declínio da capacidade de retribuir o olhar, se com ele há a perda definitiva da aura “dada a temporalidade compulsória do código do movimento” (Benjamin, 1987: 94), por outro, o cinema “enriqueceu a nossa atenção [...] alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido visual como no auditivo, [acarretando] um aprofundamento da percepção” (Benjamin, 1969: 29). Este ensaio mostrou como essa potencialidade da experiência fílmica pode ser explorada em um exercício analítico.

A análise buscou valorizar a dimensão sensível envolvida no processo de produção do conhecimento, o que não significou negligenciar o aspecto cognoscível envolvido nesse processo. O enfoque no sensível partiu do pressuposto recorrente na teoria do afeto de que as ciências humanas e sociais têm preterido esse aspecto em favor de um culto à razão, entendida como desvinculada de um corpo sensível9 9 As formulações acerca do saber incorporado têm muitos desdobramentos na filosofia com Henri Bergson e Edmund Husserl, por exemplo. Na sociologia, essas formulações aparecem nos esquemas teórico-analíticos de Pierre Bourdieu e Norbert Elias, por exemplo. , e que as abordagens tradicionais costumam isolar seus objetos de estudo, estabelecendo uma base para a análise hermenêutica que exclui a resposta afetiva a eles (Ahern, 2019AHERN, Stephen. Introduction: a fell for the text. In: ______. Affect theory and literary critical practice: a feel for the text. Wolfville, CA: Acadia University, 2019.). Essa compreensão pode parecer generalizante e, por isso mesmo, arriscada quanto ao alcance da sua proposição. Todavia, ela se espelha no exemplo de Weber, que, segundo Gabriel Cohn (1995), em sua formulação do tipo­ ideal, lança mão do exagero para destacar certos aspectos do fenômeno em estudo.

As questões epistemológicas levantadas neste ensaio o colocam em diálogo com desenvolvimentos recentes da sociologia da arte, que têm procurado construir outro ponto de vista para o estudo sociológico da arte. Uma sociologia que seja capaz de lidar com a arte como criação. Nesse sentido, seguindo os passos de Friedrich Nietzsche, Georg Simmel e Wilhelm Dilthey, este ensaio buscou escapar da obsessão das ciências sociais pela neutralidade axiológica, transformando a necessidade de controle dos objetos em um interesse pelos efeitos da experiência sensível na produção intelectual. A sociologia de Simmel já aponta para isso, especialmente em seus ensaios em que ele apresenta análises de obras de arte que buscam lê-las como experiências criadoras que provocam efeitos sensíveis em seu público10 10 Ver especialmente a análise que Simmel realiza da escultura de Rodin. .

Este ensaio aponta caminhos alternativos às análises que predominam na sociologia da arte. Orientadas pelo paradigma representativo, essas análises tendem a tomar a arte como mera representação do social. Nessas análises, o social aparece como o significado último, ao qual elas buscam remeter significantes diversos, como a arte. O predomínio do paradigma representativo na sociologia da arte transforma a arte em mero significante, representação ou alegoria de uma realidade social. É como se o social fosse uma espécie de ente transcendente, ao qual se busca alcançar por meio de objetos empíricos diversos, como a arte. O social se aproxima assim do que Platão chamou de Ideia, a qual pode ser alcançada na medida em que nos libertamos do teatro de sombras do mundo empírico. Na contramão dessa tendência, este ensaio mostrou como o filme Girimunho é um universo singular, que nos fascina com sua luz, seu silêncio e sua cor, e no qual o plano longo e a montagem lenta criam uma imagem vazia, atípica e circular, que desafia nossos referenciais e nos impele a analisá-la como experiência em si mesma.

Este ensaio foi escrito a partir do interesse de investigar modos de analisar expressões artísticas, como o filme Girimunho, que se atentem para o seu caráter de experiência sensível e criativa, que tanto restitua a ontologia artística dessas expressões como se inspire nela em seu próprio fazer. A análise não seguiu um modelo teórico-metodológico previamente definido, mas foi sendo traçada a partir da experiência com o filme e do esforço por analisá-la, o que caracteriza este ensaio como um exercício analítico experimental. De fato, Deleuze e Guattari (2007______. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2007.) ensinam que, como na filosofia e na arte, na ciência a produção de conhecimento também é uma prática criativa que envolve um trabalho com o sensível. Análises fílmicas informadas pela teoria do afeto demonstram que o interesse pelas relações entre afeto e linguagem possibilita uma análise sensível e criativa de filmes com implicações para a teoria e a análise sociais. Este ensaio é uma contribuição nesse sentido.

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  • 1
    “In relation to the technologies that are allowing us both to ‘‘see’’ affect and to produce affective bodily capacities beyond the body’s organic-physiological constraints.”
  • 2
    Ever since Plato, philosophers have warned us against being seduced by reflections and shadows. Metaphysics prefers the verbal to the visual, the intelligible to the sensible, the text to the picture, and the rigorous articulations of signification to the ambiguities of untutored perception.”
  • 3
    [...] film is inescapably literal. Images confront the viewer directly, without mediation.”
  • 4
    [...] attempt to seize the passions of affects studies for textual interpretation and close readings.
  • 5
    O filme contou com recursos da quarta edição do Programa de Estímulo ao Audiovisual - Filme em Minas, promovido pelo Governo do Estado de Minas Gerais e pela Secretaria de Estado de Cultura, em parceria com a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). O filme contou ainda com incentivos da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do Programa Ibermedia; bem como apoios do Fundo Hubert Bals, do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, e do Fundo de Cinema Mundial do Festival Internacional de Cinema de Berlin.
  • 6
    Um relatório de 2019 mostrou que os recursos financeiros para a produção de filmes têm diminuído em todo o mundo desde o início do milênio (Koljonen, 2019). No Brasil, os recursos diminuíram muito, principalmente a partir de 2019, com o governo Jair Bolsonaro. Entre outras ações, este governo extinguiu o Ministério da Cultura; promoveu reformas na Lei Rouanet, que prejudicaram a produção cinematográfica brasileira; não renovou o patrocínio da Petrobras a projetos relacionados ao cinema; suspendeu o repasse da Ancine, principal fonte de financiamento público do cinema no país e de verbas para a produção; e suspendeu o programa de exportação de filmes brasileiros pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex).
  • 7
    Essa relação com a morte é comum em outros países da América Latina, como o México, onde o dia dos mortos é celebrado com alegria, sendo um momento para celebrar tanto a vida como a morte.
  • 8
    Desde pelo menos Cícero - e disso nos lembra Montaigne -, a filosofia é uma forma de aprender a morrer.
  • 9
    As formulações acerca do saber incorporado têm muitos desdobramentos na filosofia com Henri Bergson e Edmund Husserl, por exemplo. Na sociologia, essas formulações aparecem nos esquemas teórico-analíticos de Pierre Bourdieu e Norbert Elias, por exemplo.
  • 10
    Ver especialmente a análise que Simmel realiza da escultura de Rodin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2022
  • Aceito
    25 Fev 2022
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