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Simbolização e análise sociológica: fronteiras sociais, classificações e mobilidade a partir do longa-metragem Parasita

Simbolization and sociological analysis: social boundaries, classifications and mobility from the feature film Parasite

Resumo

Simbolizações são expressivas e orientadoras de condutas. A partir desta afirmação, buscamos analisar o longa-metragem Parasita, produção sul-coreana de 2019 e vencedora de diferentes prêmios internacionais, a partir do tema das fronteiras sociais, analisado mediante sua relação com duas categorias sociológicas fundamentais: classificação e mobilidade social. Buscamos compreender a aparente inflexibilidade das barreiras sociais e o modo como a estigmatização pela distinção entre cheiros corpóreos atribuídos a partir do recorte de pertencimento socioeconômico é acionado como recurso, complementando o debate sobre fronteiras sociais. Tomamos por referência a concepção de que as simbolizações têm seus significados constituídos na totalidade forma-conteúdo. Deste modo, concluímos o debate com a retomada do tema sobre as fronteiras sociais na observância da estratégia de seu diretor e roteirista, Bong Joon-ho, de ter sua obra não facilmente classificável em termos de um gênero específico.

Palavras-chave:
Fronteiras sociais; Classificação social; Mobilidade social; Cheiros; Parasita

Abstract

Symbolizations are expressive and they guide conducts. From this affirmation, we seek to analyze the feature film Parasite, a South Korean production of 2019 and winner of different international awards, based on the theme of social borders, analyzed through its relationship with two fundamental sociological categories: classification and social mobility. We seek to understand the apparent inflexibility of social barriers and the way in which the stigmatization by the distinction between bodily smells attributed from the cut of socioeconomic belonging is activated as a resource complementing the debate on social boundaries. We take as reference the conception that symbolizations have their meanings constituted in the form-content totality. In this way, we conclude the debate with the resumption of the theme of social boundaries in compliance with the strategy of its director and screenwriter, Bong Joon-ho of having his work not easily classifiable in terms of a specific genre.

Keywords:
Social boundaries; Social classification; Social mobility; Odors; Parasite

Introdução

O objetivo que norteia este trabalho é a discussão sobre fronteiras sociais na relação com os esquemas de classificação e a mobilidade social, a partir das sugestões trazidas pelo longa-metragem Gisaengchung (2019), do diretor sul-coreano Bong Joon-ho - intitulado Parasita, em sua versão para língua portuguesa. O filme recebeu diversas premiações, como no Festival de Cinema de Cannes, na Chunsa Film Art Awards, na International Cinephile Society Cannes Awards, no Oscar, dentre outros.

Apesar de as premiações evidenciarem aceitação, por um lado, e, por outro, a perspectiva de que o filme traz um inusitado, valorado positivamente, às produções cinematográficas, a intenção neste artigo não é perseguir os motes que levaram à sua aclamação, mas tratar de uma temática circunscrita, aquela já anunciada, no modo como seu comparecimento na obra poderia nos ajudar a pensá-la em sua existência para além da obra.

Assumimos, de partida, a afirmação de que as simbolizações, a exemplo das produções audiovisuais, são totalidades enquanto objetos discretos, mas, simultaneamente, tentativas de totalização de mundo que, como tais, contribuem no realce de aspectos do nós, portanto, de nossa existência; assim, servem-nos como referência para a compreensão do mundo e ao delineamento de nossas ações na vida cotidiana (Nery, 2020NERY, Salete. Sobrevivências como memória e as imagens: os Grenouilles e os perfumes. In: GUSMÃO, Milene; NERY, Salete (Orgs.). Memória e imagens: entre filmes, séries, fotografias e significações, p. 43-74. Jundiaí, SP: Paco, 2020.), ao mesmo tempo em que servem à tarefa sociológica de compreender as relações sociais.

Enquanto tentativas de totalização, entendemos a parcialidade das simbolizações duplamente: como o que nos impede de tomá-las como revelação de uma suposta verdade absoluta, mas, igualmente, como aquilo que fundamenta e constitui sua plasticidade e, portanto, sua adaptabilidade e possibilidade de sobrevivência em diversos contextos, mesmo que na forma de base para novas simbolizações, em um processo definidor constante de nossa existência enquanto seres sociais e históricos. Como participantes do mundo, enfim, as obras nos ajudam a dizer sobre o mundo de que participam no agora e no passado, mesmo que a verossimilhança seja comumente diferente para criador e interpretantes, e entre interpretantes entre si. Como afirma Luiz Costa Lima (1995LIMA, Luiz Costa. Vida e mimesis. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.: 307), “a obra não é recebida a partir da refeitura do quadro de verossimilhança que existiu para o autor, mas sim na medida em que permite a alocação doutra verossimilhança” . Por outro lado, cada um de nós funciona como um sismógrafo específico - imagem utilizada por Aby Warburg para falar a respeito de Burckhardt e Nietzsche (apud Didi-Huberman, 2013) -, ou seja, somos criaturas com diferentes experiências arraigadas e graus de abertura e preparação e, por isso, somos também diferentemente afetados pela força enérgica das simbolizações, cuja participação em nossa vida, enquanto herança, pode se dar, pois, por variados caminhos e intensidades. A vontade de rir, de chorar, o sentimento de repulsa, a inquietação intelectual, a indiferença, a discordância, o posicionamento crítico ou pouco crítico, a inspiração são apenas alguns desses caminhos que envolvem, em alguma medida, um possível aprendizado que se dá de modo não apenas mentalista (o sentido das interpretações aqui é ampliado), e que torna a observância das simbolizações em suas reticulações (as ligações simbólicas) sempre fecunda seara às investigações socioantropológicas - processos de constituição, trânsitos (espaciais e históricos), modos sociopsíquicos de recepção, mecanismos de sobrevivências em renovadas e, portanto, singulares obras e práticas, dentre outros.

É dessa forma que a produção audiovisual Parasita nos traz a possibilidade de discutir fronteiras sociais entre segmentos estandardizados e as condições e possibilidades de alteração dos lugares socialmente ocupados, mesmo tendo sido obra produzida na Coreia do Sul e que resulte, em grande medida, de sua específica história nos percalços das relações de dominação que viveu e vive e seus desdobramentos sociais, econômicos, culturais e educacionais - isso porque há, simultaneamente, diferenças e semelhanças com aquilo que é vivido em diferentes partes do mundo, em especial com o estreitamento das relações globais a partir do século XX1 1 Apesar de considerarmos a relevância de compreender o contexto sul-coreano e o cinema asiático para a abordagem mais ampla do filme, escapa-nos esta possibilidade neste texto pelo recorte estabelecido. .

Abordaremos, a partir dessa narrativa, os mecanismos de manutenção de tais fronteiras e de objetivação das classificações sociais delas derivados. No entanto, o que especialmente nos interessa é o simultâneo debate sobre transposição de fronteiras, afinal a obra se ergue a partir das tentativas de ascensão feitas pela família Kim (pobre) na relação com a família Park (rica), e tem seu clímax na explosão violenta de tensões quando estas chegam ao limite do insuportável. Como esse momento foi possível? Como compreendê-lo em um sistema regulado para sua autorreprodução?

Curiosamente, Parasita toma a ambivalência dos cheiros para tratar da questão. Os odores corporais são apresentados como evidência de determinado pertencimento social, uma marca classificatória, portanto, rastro em princípio inescapável. Ao mesmo tempo, tais cheiros não são domesticáveis e não consideram os limites impostos por lugares sociais de convivência. Os cheiros invadem os espaços socialmente proibidos, impõem-se e rebelam-se. Enquanto marcas, mantêm-se obedientes a um esquema classificatório que os enquadra e delimita, porém, simultaneamente, sua característica de evanescente os faz constantemente fugazes e móveis. Kim Ki-taek (Song Kang-ho) compreende as dinâmicas sociais em jogo quando é levado a refletir sobre o modo como os Park se relacionam com a família Kim e tudo que ela representa socioeconomicamente - a partir da ambivalência de seus odores corporais e do modo como os Park reagem a tais emanações.

Estrategicamente, tomaremos, na obra, os cheiros como caminho de acesso ao debate sobre fronteiras, classificações e trânsitos sociais (Bourdieu, 2007______. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Porto Alegre: Editora USP; Zouk, 2007.; 2020; Elias, 1994a______. O processo civilizador, v. 1: “Uma história dos costumes.” Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.). Enfim, as classificações a partir dos odores corporais são interpretadas, a partir do filme, como simbolizações sociais que nos permitem vislumbrar aspectos da relação fronteira-mobilidade no modo como tal relação foi apresentada. No entanto, se os cheiros são tornados eixo da trama, não podemos esquecer tratar-se de uma obra audiovisual. É larga a bibliografia que trata da desconsideração em relação a o olfativo, em comparação com os demais sentidos, na chamada história ocidental (Ackerman, 1996ACKERMAN, Diane. Uma história natural dos sentidos. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.; Classen, Howes & Synnot, 1996CLASSEN, Constance; HOWES, Davis; SYNNOT, Anthony. Aroma: a história cultural dos odores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.; Corbin, 1987CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.; Jaquet, 2014JAQUET, Chantal. Filosofia do odor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.; Le Breton, 2016; Malnic, 2008MALNIC, Bettina. O cheiro das coisas: o sentido do olfato: paladar, emoções e comportamentos. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2008.; dentre outros). Nossa atenção é razoavelmente precária às informações olfativas, o que certamente se acentua em uma narrativa audiovisual. Deste modo, a partir de uma breve discussão a respeito do simbólico e a relação entre estrutura social, desenho urbanístico e arquitetura no filme, partiremos para uma espécie de descrição da casa da família Kim, justamente a partir de suas pistas olfativas. Faremos isso atentando não apenas para os aspectos apresentados discursivamente, mas, também, imageticamente, para fins de uma nova leitura do filme em que a atenção ao olfativo seja posta desde o princípio, ao mesmo tempo em que apresentaremos a família Park, duplo simetricamente oposto à família Kim. Assumimos, para tanto, a relação entre atmosfera fílmica - pautada na associação entre ambiência e clima - e o sensório - aqui como efeito e tema, decisivo para o esforço empreendido (Santos & Mello, 2019SANTOS, Fernanda Sales Rocha; MELLO, Cecília Antakly de. Insegurança perceptual e atmosferas do medo: conexões entre realismo e horror no cinema contemporâneo. Revista Ícone, v. 17, n. 3, p. 319-334, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.34176/icone.v17i3.242262>. Acesso em: 20 Fev. 2022.
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). Na verdade, a trama obriga essa segunda visada, em especial a partir de uma cena em específico, a do menino Da-song (Jung Hyun-jun), ao revelar, em sua ingenuidade infantil, a importância dos cheiros como marca classificatória. A partir dessa cena, seguiremos as pegadas de Kim Ki-taek até o desfecho da trama e o retorno à temática do simbólico, tomada através da relação entre duas características fundamentais dos símbolos e que conformam a base do debate sociológico a respeito do tema: expressividade e orientação de condutas.

Fronteiras e símbolos

Como já indicado, em Parasita ganha visibilidade, como elemento estruturador da narrativa, a temática das fronteiras sociais e algumas de suas expressões simbólicas. De pronto, somos confrontados com a replicação da hierarquia social na distribuição espacial das habitações no contexto urbano: os de cima (ricos) habitam mansões na parte alta da cidade; os de baixo (pobres), por sua vez, habitam os lugares geograficamente mais baixos da cidade. Ricos e pobres são continuamente apresentados dentro de um jogo de espelhos através das famílias Park (pai, mãe, filha e filho) e Kim (pai, mãe, filha e filho) de modo a evidenciar simetria entre os opostos, continuamente agregando e separando, aproximando e distanciando as famílias.

Ao seguirmos a abordagem desenvolvida por Pierre Bourdieu (2009______. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.), falaríamos numa homologia entre estrutura social e configuração urbana. A mesma homologia é apresentada nos espaços demarcados e destinados a cada específico segmento social. A família Park (rica) habita uma mansão situada na parte alta da cidade, mas que inclui em na edificação um porão, uma espécie de bunker construído por seu antigo morador, mas que passou a ser motivo de sua vergonha - razão de os Park desconhecerem sua existência, apesar de serem os atuais proprietários da casa. Por sua vez, a família Kim (pobre) mora num apartamento que fica no subsolo de um prédio da parte baixa (zona pobre) da cidade. Ou seja, são moradores do porão dos pobres, constituindo-se, deste modo, como pertencentes a uma das camadas dos mais pobres dentre os pobres. Se retirarmos, portanto, o caráter de oposição estabelecido no par rico-pobre, o que resta como saldo é a similaridade estrutural entre os mundos, o que os aproxima apesar das diferenças.

Por outro lado, as hierarquias sociais não se simplificam na divisão ricos e pobres. O desenho da lógica hierárquica se propaga em hierarquias ao interior de hierarquias. Do mesmo modo que o porão dos ricos é lugar pouco acessado e esquecido - ou, no caso, sequer conhecido pelos Park -, não parece haver proximidade ou solidariedade entre os segmentos mais empobrecidos, afinal os moradores dos andares superiores do prédio da zona pobre da cidade não têm conhecimento aparente de que a família Kim utiliza seu sinal privado de Internet - ou mudaram a senha quando desconfiaram ou tomaram conhecimento disso. Em acréscimo, o esforço que a família Park faz para pertencer ao mundo norte-americano, através de objetos de consumo, expressões em inglês usadas no cotidiano, codinomes em inglês para alguns de seus funcionários, viagens, aulas de inglês e imitação de gostos (como o apreço pelas narrativas de faroeste) são uma evidência de que, em âmbito internacional, são ricos, mas não estariam nos andares mais superiores da estratificação, que, portanto, extrapola as fronteiras de uma cidade qualquer, posto que se trata de relações de dominação em cascata de escala global. Deste modo, mais que um desenho, as relações sociais reverberam uma lógica similar em suas diferentes ondas de propagação. E, deste modo, as simbolizações que apresentam estrutura homóloga às hierarquias arbitrariamente construídas contribuem ao processo de reafirmação da validade e legitimidade das divisões sociais no modo de estratificação em que se dão, tendo por consequência possível a desconsideração de que tal modo de organização que se replica nas obras é tributário de uma longa história de relações e disputas que implicam aproximações, distanciamentos e hierarquizações entre grupos.

E a distância entre ricos e pobres, na obra cinematográfica em questão, se faz com muitas escadas e ladeiras de distância, conformando experiências muito distintas em situações similares. De acordo com o designer de produção do filme, Lee Ha-jun, a elaboração cênica de tantas escadas foi desafiadora, mas elas são, juntamente com as janelas, elemento de grande importância. Ambas são objetos que, somados aos cantos, permitem a infiltração (ideia acionada por Bong), ou seja, a ligação, invasão de espaços e a possibilidade de estar sorrateiramente à espreita do outro (O’Falt, 2019).

A mesma chuva que inunda casas com água de esgoto, deixando várias pessoas pobres desabrigadas, proporciona a brincadeira do menino rico, de dormir no jardim numa barraca (trazida dos Estados Unidos), que permanece firme a noite toda, inabalada, apesar da chuva. Enquanto os pobres veem na chuva forte motivo de preocupação, os ricos agradecem a bênção da chuva. Enquanto os Kim buscam roupas em meio às doações feitas a uma multidão desabrigada por conta da inundação causada pela chuva, a Sra. Park (Cho Yeo-jeong) escolhe sua roupa do dia num imenso closet. Como afirma repetidas vezes ao longo da trama o jovem Kim Ki-Woo/Kevin (Choi Woo-shik), o filho da pobre família Kim, tudo é sempre muito metafórico, e é, nesta narrativa ambientada na Coreia do Sul, algo denunciado pelo fenótipo das personagens e pela língua original do filme, mas, ao mesmo tempo, muito familiar a quem assiste, mesmo que esteja geograficamente distante daquele país asiático. Os lugares apresentados, no modo como são apresentados, poderiam ser muitos lugares do mundo; do mesmo modo, os tipos de relações a que testemunhamos. Somos lançados continuamente do estranhamento à familiaridade ao longo da obra, igualmente como somos lançados do cômico ao terror, ao trágico, ao drama, ao suspense. As fronteiras que demarcam o mundo social apresentado na trama parecem, nestes momentos, desaparecerem em sua nitidez.

Ao lado dessas fronteiras, a trama se desenrola a partir das contínuas tentativas de ascensão da família Kim, tensionando a rigidez das barreiras fortemente instituídas e buscando construir caminhos através da porosidade relativa que percebem à sua frente. Se o esquema de lutas acionado pela família, por um lado, busca “ferir” as delimitações de grupo, por outro, não parece questionar essas mesmas delimitações em sua legitimidade. Ainda assim, êxitos são obtidos. Como menciona Kim Ki-taek, “em uma época como a nossa, quando uma vaga para segurança atrai 500 universitários graduados, nossa família é contratada!” Em outros termos, a estratégia de ampliação do acesso às instituições de ensino superior não foram garantia suficiente de ascensão, pois não houve mecanismos de absorção dessas pessoas pelo mercado de trabalho. Como consequência, para além do sonho frustrado, gerou-se uma massa de pessoas altamente qualificadas a disputar vagas de baixos salários que, a rigor, não precisam de qualificação elevada para o desempenho das atividades. E talvez, na perspectiva dos Kim, o recurso que restaria, neste contexto, aos que, como eles, pertencem às camadas mais baixas dos estratos mais baixos seria a burla, o que exige grande capacidade perceptiva quanto às oportunidades e racionalizadora para a arquitetura dos planos de ascensão com menor risco de perda do controle da situação. A racionalidade teleológica deixa de ser pontual, pois é necessário seu uso mais frequente a fim de manter o monitoramento da situação para contornar os problemas que surgem. Tal astúcia, presente na família Kim, é frequentemente contraposta à chamada ingenuidade dos Park, de onde advém o tom cômico inicial da trama.

Os planos mirabolantes dos Kim surtem efeito, mas apenas na medida em que os Park podem ser ingênuos por terem a certeza do lugar social que ocupam como seguro. E é essa segurança que permite a necessária relação entre os grupos: a rigor, os Kim (e pessoas como eles) parecem não ameaçar os Park.A confiança é depositada no funcionamento eficiente de um sistema que tende à sua reprodução na proteção daqueles que já são os privilegiados. Ou seja, o esquecimento da arbitrariedade das fronteiras não parece ser atributo apenas dos Kim (de pessoas como os Kim), sendo fundamental ao modo como os Park (as pessoas como os Park) garantem sua tranquilidade cotidiana ou, poderíamos dizer, sua segurança ontológica. Nesses termos, a grande ingenuidade parece ser dos Kim, em acreditar na possibilidade de mudança de sua condição pelos ardis que tecem ou pela tentativa de acreditar que uma pedra mágica da fortuna poderá realmente mudar positivamente seu destino. Kim Ki-taek descobre ao final que não há planos possíveis, pois não há como controlar todas as variáveis de uma situação a fim de evitar consequências impremeditadas, mas seu filho permanece agarrado à pedra da fortuna que seu amigo universitário Min-hyuk (Park Seo-joon) lhe dá nos momentos iniciais da narrativa, ao mesmo tempo que afirma que é ela, a pedra, tornada fetiche, que não o deixa. Esquece-se Kim Ki-woo/Kevin, o jovem filho da família, que fortuna é sorte e sorte é instável. Do mesmo modo que o presente recebido marca o início de um processo de mudança, porque a crença na magia é também fonte de ação, é a pedra da fortuna que, ao cair dos braços de Kim Ki-woo/Kevin no topo das escadas do porão da mansão Park, permite que Geun-sae (Park Myung-hoon), que lá habita por anos por não ter onde morar, possa sair enquanto ocorre a festa pelo aniversário de Da-song, filho caçula da família Park.

Desde a concepção romântica, forjada entre os séculos XVIII e XIX, entendemos o simbólico como expressão de um “eu”, inicialmente do artista, e depois transposto a um “eu” fazedor em geral, seja ele individual ou coletivo. Em outras palavras, os símbolos constituídos funcionam como rastros e objetivações que permitem entrever características de quem os fez e, ao mesmo tempo, considerando que este fazedor participa de uma rede de relações historicamente tecida e que define, dentro de certos limites, as disposições e possibilidades contextuais de seu fazer, as simbolizações igualmente permitem dar conta dessa coletividade que os produziu e/ou se utiliza deles. Deste modo, o cientista social as usa, por seu caráter expressivo, como lentes a partir das quais pode realizar leituras de mundo em interpretações de segundo grau - as simbolizações se tornam meios de acesso a formas de vida. No entanto, símbolos não existem socialmente apenas como expressões, mas simultaneamente como orientadores de conduta (Bourdieu, 2006______. O poder simbólico. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.; Cassirer, 2001CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. Primeira parte: “A linguagem.” “Coleção tópicos.” São Paulo: Martins Fontes, 2001.; Elias, 1994a______. O processo civilizador, v. 1: “Uma história dos costumes.” Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.; 2002; Warburg, 2018WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos, v. 1. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2018.). Isto significa dizer que tomamos os símbolos como referência para ações - o que torna uma analítica centrada em uma expressividade insuficiente frente à complexidade simbólica.

Por outro lado, apesar de ser corrente a concepção de os símbolos serem totalidades sintéticas, devemos considerar que, por se tratar de objetivações interpretativas (materiais ou não) feitas em determinados contextos, tais símbolos são igualmente tentativas não necessariamente racionalizadas de totalização, portanto, esforço sintético não plenamente cumprido e que, por não alcançar o devido fechamento, mais se aproximaria de uma concepção de síncrise do que de uma síntese plenamente fechada e organizada. Tal abertura é o que permite a cadeia de ligações entre símbolos discretos em relações de contiguidade - portanto, metonímicas e processual-históricas -, ao mesmo tempo em que se dão os transportes de sentido metafóricos (ligações de similitude entre diferentes). A concepção de síncrise parece possibilitar melhor tratamento, pois, à questão da processualidade das simbolizações em uma rede histórica, em contraposição à ideia de estabilidade que, por muito tempo, caminhou ao lado da acepção de simbólico.

Elucidar interpretações é construir possibilidades à luz de contextos específicos. Se nossos símbolos são tentativas de totalização, do mesmo modo são nossas interpretações a respeito e a partir deles. É essa abertura - ou se se preferir, essa plasticidade - que permite sua permanência, mas às custas de renovação em significados e usos. Deste modo, aquilo que apreendemos e aprendemos, apesar de subjetivado, não é individual, conjugando-se - remodelando e sendo remodelado - às disposições pregressas em um habitus integrado (não apenas mental), mas dotado da plasticidade necessária ao ajustamento da ação às suas condições. Uma vez que as interpretações simbólicas, aliadas à faculdade da memória, estão na base das condutas, em seu sentido de referência, e mesmo da possibilidade de história social humana, definida pelas simbolizações de simbolizações, como trata Norbert Elias (2002ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Lisboa: Celta, 2002.), o controle da produção simbólica se torna importante mecanismo de dominação social (Bourdieu, 2006______. O poder simbólico. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.). Deste modo, a figura que se apresenta a partir do desenho urbano, da planta das casas e seu modo de ocupação não apresenta aquilo que simplesmente é, mas aquilo que é feito acontecer. É expressivo, mas é parcial, portanto não conforma uma perfeita miniatura de mundo - como no período romântico se chegou a compreender as simbolizações (Todorov, 1977TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. Campinas, SP: Papirus, 1977.). Nossas elaborações, mesmo não reflexivamente, estão relacionadas às nossas imagens de mundo, autoimagens, desejos e medos - aqui fazendo uso da provocativa interpretação de Elias (1994b) sobre a história da teoria social. Em contraponto, as simbolizações são usadas para orientação das condutas, mas isso não significa que, através delas, é possível obter pleno controle dos comportamentos, isso porque:

  • i. outras simbolizações coexistem, mesmo em condições diferenciadas na dinâmica das disputas, permitindo acessar outros prismas que desafiam a ideia de uma homogeneidade de interpretação, subjetivação e de ação no mundo;

  • ii. os modos de apreensão de um mesmo objeto são distintos, uma vez que se deve considerar que interpretação é um processo que envolve uma relação (não apenas mentalista) da qual o interpretante participa, com sua visão de mundo, seus interesses, desejos, medos, costumes; e,

  • iii. para além de tudo isso, há os graus de reflexividade mais ou menos crítica implicados no processo interpretativo; ou seja, sismógrafos têm sensibilidades distintas, pois reagem de formas diferentes à potência das imagens simbólicas.

Apesar de existir uma diversidade de visões e simbolizações, do mesmo modo que há uma diversidade de habitus e de condições para ação, estamos longe de afirmar qualquer estabilidade ou equilíbrio em termos de produções simbólicas, pois os pesos de tais produções em quantidade e legitimidade são diversos e seu lugar enquanto referência de conduta depende diretamente de seu lugar na rede interdependente de figuras/simbolizações. Ou seja, é parcial também na medida em que modelos de casas e cidades são construídos a partir de visões de mundo de grupo e como simbolizações que se replicam em um espaço geográfico relativamente grande, podemos pensar no peso diferenciado que simbolizações podem ter enquanto possíveis referências na constituição de visões de mundo do mesmo e de outros grupos. Em suma, se, por um lado, não coadunamos com a ideia de passividade que negaria a existência de interpretantes e da possibilidade de múltiplas interpretações, formas de subjetivação e exteriorização dos habitus, por outro não negamos que as simbolizações participam dos recursos de poder utilizados em processos de dominação, tanto no amparo dos próprios esquemas de dominação, como na condição de recurso de enfrentamento a eles. Mas, o que pensar a respeito das fronteiras no modo como são tematizadas na narrativa fílmica?

À promessa liberal de ascensão socioeconômica a partir dos esforços particulares, observamos o contraponto de simbolizações aparentemente rígidas em suas demarcações: há o mundo dos de cima e o mundo dos de baixo. A família Kim parece pouco acreditar no caminho dos esforços pelas vias legitimadas: Kim Chung-sook (Jang Hye-jin) (mãe) recebeu medalha de prata em atividade esportiva; Kim Ki-jung/Jessica (Park So-dam) tem talento artístico; Kim Ki-woo/Kevin sabe inglês. Tanto Ki-jung como Ki-woo estão fora da universidade, que seria o caminho ascensional legitimado. A medalha de Kim Chung-sook não lhe trouxe vida confortável. O grupo familiar, então, se articula no uso da astúcia no aproveitamento das brechas relacionais percebidas nos momentos de virada da sorte. Metaforicamente, como diria Ki-woo/Kevin, a oportunidade chega pelas mãos do conhecido Min-hyuk no dia em que lhe presenteia com a pedra da fortuna. Mas emblematicamente percebemos que as brechas se abrem porque as relações entre diferentes são necessárias, afinal os ricos dependem dos serviços que os pobres lhes prestam, uma vez que aqueles se recusam a desempenhar determinadas atividades. É assim que eles, como Min-hyuk, descem para se relacionarem com quem está mais abaixo. Min-hyuk é um estudante universitário e que estava se preparando para estudar no exterior. Ele confia a Ki-woo/Kevin a tarefa de ministrar, em seu lugar, quando viajasse, aulas de inglês a Da-hye (Jung Ji-so), filha da família Park. Apesar de estar visivelmente em melhor condição socioeconômica do que Ki-woo, Min-hyuk tem plano semelhante àquele que embalará Ki-woo: o de se casar com Da-hye. “Por que está pedindo isso a um perdedor feito eu?”, pergunta Ki-woo a Min-hyuk, que responde: “Se você for [ministrar as aulas], eu posso ir em paz [à viagem de estudos no exterior].”

Não se trata de confiança na pessoa, e sim, mais uma vez, na rigidez das fronteiras e/ou em seus mecanismos de controle. Ki-woo é um desqualificado, portanto, não constituiria ameaça efetiva. O que logicamente caberia a Ki-woo e a seus familiares seria forjar a qualidade que não têm, o que é feito pela falsificação de documentos (sua irmã forja diploma universitário), mudança de roupas e de cabelo, controle de fala e de gestos. É montada uma espécie de cena teatral em que os elementos da aparência da família pobre, dentro dos limites do possível, são ajustados para corresponderem a algo que seria aceitável à família Park. Não cabe à família Kim passar-se por rica, mas sim fingirem estar em condição superior em relação àquela na qual realmente se encontra. E é perceptível que a facilidade/dificuldade em manejar o jogo de manutenção de face difere para cada um de seus membros. Ki-woo questiona, especialmente em dois momentos, a esse respeito. Ele percebe em sua irmã alguém que se ajusta com maior facilidade: ela internalizou importantes senhas de acesso e consegue manipulá-las com maior espontaneidade. Ele a olha tomar banho de espuma na banheira enquanto simultaneamente assiste TV. Em outra cena, ele pergunta a Park Da-hye se ele se encaixa naquele mundo que observa de fora. Neste momento, ele está na janela admirando a festa a Park Da-song e como as pessoas estavam bonitas e espontâneas mesmo em uma festa improvisada. Nos dois momentos, ele é um observador externo e que se reconhece como alguém de fora. O que Ki-woo percebe é que existe um modo de existência particular, um habitus, que demarca o mundo dos ricos e envolve o relacionamento entre diferentes elementos que se retroalimentam. Não se trata apenas de quantidade de dinheiro, mas é fundamentalmente um modo de dispor das coisas, de se relacionar com os outros, com as situações e consigo próprio, um estilo de vida e que é vivido sem esforço, com sprezzatura (Castiglione, 1997CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997.)2 2 Segundo Baldassare Castiglione (1997: 42), “[o cortesão deve] evitar ao máximo, e como áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez […] usar em cada coisa uma certa sprezzatura [indiferença] que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar”. , por aqueles que dele efetivamente participam, em especial quando crescem nesse meio, dispensando a preparação para estar bonito, porque simplesmente se é bonito. O que inquieta Ki-woo é a distância (fronteira) de difícil transposição entre aqueles que nasceram nessa condição e os aspirantes, como ele. A distância física, modo de evidenciar a diferença social, é conjugada a outros mecanismos simbólicos de manutenção de fronteira, que mantêm os distanciamentos sociais, mesmo com a proximidade física e as tentativas de aproximações simbólicas a partir de recursos que se limitam à superficialidade das aparências. Mais do que serem julgados falsos pelos outros, os portadores dos recursos falseadores se percebem como enganadores, reforçando a ideia, para eles próprios, de que aquele não é o seu lugar. Poderíamos perguntar: como manter a face diante de tamanha espontaneidade e segurança de sua condição de superioridade social?

Toda a família Kim obtém emprego na mansão da família Park. Uma relação de afeto evidentemente se estabelece na direção daqueles para com estes. O apreço aos Park é evidenciado nas ideias de que são legais, gentis e mesmo ingênuos. O laço que se estabelece parece rebaixar ainda mais a família Kim que, no anverso, seria de astutos, aproveitadores, enganadores. Como percebido através da obra, a afetividade parece estruturar a relação familiar dos Kim, mas não a dos Park - ou não do mesmo modo. O mundo dos ricos é apresentado como de maior frieza. A concepção de civilidade, no modo como foi sendo historicamente gestado, nos expõe Elias (1994a______. O processo civilizador, v. 1: “Uma história dos costumes.” Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.; 2001), está na relação direta com o autocontrole dos afetos, portanto, com a criação de mecanismos de regulação das expressões emotivas e dos gestos a partir da internalização de técnicas corporais específicas na direção da recusa ao toque e supervalorização da distância entre os corpos e, consequentemente, do sentido da visão em detrimento do tátil e do olfativo. Da-hye se queixa de não ter a atenção dos pais, enquanto o Sr. Park (Lee Sun-kyun) (pai) demostra inquietação quando o Sr. Kim, em dois momentos distintos, fala em amor na relação entre ele (Sr. Park) e sua esposa. Ou seja, o controle dos afetos parece ir além de suas possibilidades de expressão, podendo culminar propriamente em seu recalque, em um retraimento quanto à experimentação de afetos propriamente dita. Ao mesmo tempo, não é percebida grande solidariedade entre grupos pobres. A cena no porão da mansão dos Park é emblemática. Requisita-se solidariedade apenas em proveito próprio e o que domina é a concorrência - o que se justificaria pela grande quantidade de desejosos por acesso e a diminuta quantidade de vagas disponíveis. Em suma, os pobres precisam lutar, mesmo entre si, por espaço e, enquanto lutam entre si, mantêm protegido o lugar daqueles que estão socialmente acima (Elias, 2001). Em um momento, na sala da mansão, o Sr. Kim chega a perguntar sobre o destino de Yoon (Park Keun-rok), o antigo motorista da casa, demitido em função de manobras executadas por Kim Ki-jung. Esta responde: “Foda-se. Nós precisamos de ajuda. Vamos pensar em nós, está bem?”

As iniciativas de tensionamento das fronteiras acabam por se tornar ações de pessoas e grupos pontuais - na verdade, restritas às famílias nucleares -, lutando fragmentariamente para derrubar o muro simbólico de um grupo restrito, mas que se protege como grupo. Importante observar que o momento trágico do filme se instala a partir da disputa entre as duas famílias pobres, que lutam entre si pela manutenção do lugar degradado em que se encontram. As pessoas que participam da condição de pobreza guerreiam entre si desde as artimanhas dos Kim na busca por aproximação com os Park, mediante a demissão do motorista e da governanta anteriores da família. No entanto, as lutas eram invisíveis aos Park. E mesmo quando a disputa que ocorre no porão da mansão transborda para a área externa da casa, subindo pelas escadas e tornando-se visível aos Park, ainda se tratava de uma luta restrita à ala pobre da narrativa. O Sr. Kim se volta ao Sr. Park apenas quando este, para pegar as chaves do carro, ignorando o estado de Ki-jung/Jessica, ferida por Geun-sae, vê o Sr. Park torcer o nariz evidenciando estar incomodado com o cheiro de Geun-sae. É neste momento da trama que o Sr. Kim completa o esquema interpretativo que se desenha a partir do pequeno Da-song.

Classificações e cheiros

Não à toa é Park Da-song quem tem esse papel. O Sr. Park, na cozinha da mansão, chama o filho para receber presentes. Estão na cozinha o senhor e a senhora Park, o motorista Kim Ki-taek e a nova governanta Sra. Kim Chung-sook, esposa do Sr. Kim. A família Park desconhece os laços familiares dos Kim. O pequeno Da-song, ao entrar na cozinha, enfia o nariz, sem qualquer pudor, nas roupas do senhor e da senhora Kim e dispara: “É o mesmo cheiro! Eles cheiram iguais!” A Sra. Park então diz: “Do que está falando? Vá lá pra cima com a Jessica.” Ele retruca: “Jessica cheira igual também.” E sai. Da-song é apresentado na narrativa como um menino de difícil controle, o que é normalizado pelos pais a partir da ideia de que ele seria um gênio artístico. Aliado ao temperamento particular de Da-song estaria sua condição mesmo de criança, cuja regulação das possibilidades de ação é ainda mais externa do que propriamente interna, estando ele a passar ainda pelo aprendizado de como se comportar socialmente do modo esperado. Dessa maneira, trata-se de alguém que está aprendendo as normas de conduta, mas não as domina plenamente, o que lhe faculta a possibilidade da gafe de explicitar abertamente uma importante senha de acesso ao reconhecimento de classificações sociais: o cheiro. As menores travas de Da-song permitem a ele a aproximação física com os demais para testar a sua percepção de que se trata de cheiros similares. Ele não chega a expressar valoração a respeito do cheiro que sente, pois os valores associados aos cheiros também são tributários de um aprendizado, que, talvez, Da-song ainda não tenha obtido, afinal ele encosta o nariz nas roupas dos Kim sem o receio de quem sabe que o odor pode não ser agradável. Como criança ainda, portanto, a meio caminho entre o selvagem e o civilizado, ele cheira tudo e não mantém a distância de corpos esperada de seu grupo social.

Por exemplo, não é facultado aos Kim tocar os Park. Distância social e distância física não se conjugam apenas na segmentação do espaço urbano. Conforme foi anunciado a partir de Elias, há limites estabelecidos entre os corpos, ainda que tais linhas sejam invisíveis. Apenas as tentativas de aproximação dos Kim (em sua condição de grupo dominado, o que significaria serem os menos civilizados) leva a que momentaneamente avanços sejam feitos na direção dos corpos dos Park, o que é especialmente percebido pela mãe, a Sra. Park, que, em seu papel de guardiã da família, por conseguinte, da moral, já que os dois elementos se confundem, está especialmente atenta à questão. São ela e a filha, as duas mulheres, que acabam sendo o objeto dos avanços, muito pontuais, do Sr. Kim e de Ki-woo. Eles avançam no gesto de Ki-woo de medir o pulso de Da-hye, e do Sr. Kim, um aperto de mão com a Sra. Park, afinal, por sua condição de gênero, o acesso a elas seria mais fácil aos homens da família Kim, mesmo que tais ações não tenham resultado de qualquer orquestração reflexiva. A reação da Sra. Park em ambos os momentos foi de grande espanto, evidenciando que algo inusitado e indesejado estava a ocorrer. A fronteira havia sido ultrapassada em ambos os momentos na direção de uma ameaçadora maior intimidade. O gesto do Sr. Kim era de agradecimento, mas também expressão de cumplicidade quanto ao caso da antiga governanta, a Sra. Gook Moon-gwang (Lee Jung-eun); o gesto de Ki-woo avançaria na direção de uma relação amorosa com Da-hye.

Mais do que evidenciar a existência de fronteiras tão sutis, como por meio de cheiros corpóreos específicos, a cena de Da-song sublinha que o aprendizado das classificações sociais se dá muito cedo, estando já parcialmente internalizado no garoto, uma vez que ele consegue reconhecer as diferenças. Eles não cheiram igual a nós é o passo inicial. O segundo passo é o de definir que eles têm o mesmo cheiro, portanto, pertencem a um mesmo grupo, que não é o nosso. Por fim, o nosso cheiro é bom e o deles, ruim; logo/porque somos melhores do que eles. Assim, a mudança de cabelos, de roupas, de linguagem falada e mesmo o difícil controle dos gestos parece ser insuficiente diante daquilo que se apresenta. Pergunta o Sr. Kim: “Então teremos que usar sabonetes diferentes agora?” Ki-woo/Kevin acrescenta: “Pai, precisaremos usar sabão em pó diferente também. E amaciante.” Por fim, diz Ki-jung/Jessica: “É o cheiro deste porão. Precisamos sair desta casa para perder esse cheiro.” No entanto, qual cheiro? Há uma potente insinuação pelos Kim: seu cheiro é similar porque compartilham dos mesmos produtos de higiene e limpeza e da mesma habitação. Mas como dar conta do cheiro da família Kim a partir de uma produção audiovisual? É certo que a tentativa de descrição feita pelo Sr. Park é importante, mas não é completa.

Claude-Laurence Lacassagne e Neil Davie, a partir da narrativa de ficção Os mistérios de Londres, de Paul Féval, publicada em 1848, acompanham os registros olfativos do cego Tyrrell em seus passeios na Londres do século XIX:

Se os bairros nobres têm quase o mesmo odor civilizado e neutro em Londres e em Paris, os bairros comerciais e, principalmente, os bairros populares não poderiam ser confundidos (Lacassagne & Davie, 1993LACASSAGNE, Claude-Laurence; DAVIE, Neil. Luxo, algazarra e mau cheiro. In: CHARLOT, Monica; MARX, Roland (Orgs.). Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo das desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.: 49).

Tyrrel esquadrinha as demarcações de bairros de Londres a partir das diferenças em seus odores. Os cheiros das ruas evidenciam os modos e as condições de vida de seus habitantes, permitindo identificar no ar a distribuição socioeconômica dos bairros. E a Londres profunda é marcada por sua pestilência, “parece que o ar está ‘envenenado com os miasmas da sujeira’ (Gissing)” (Lacassagne & Davie, 1993LACASSAGNE, Claude-Laurence; DAVIE, Neil. Luxo, algazarra e mau cheiro. In: CHARLOT, Monica; MARX, Roland (Orgs.). Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo das desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.: 51). Se não podemos fechar os olhos para aspirar o que seriam os cheiros presentes na rua, na casa e nas roupas da família Kim... nossa sugestão é abrir os olhos em busca das pistas discursivas e visuais apresentadas pelo diretor Bong Joon-ho e sua equipe. As cenas iniciais do filme são especialmente elucidativas.

A primeira cena é um exercício de como se traduz ser um membro da família Kim, ser morador de um porão em bairro pobre de uma dentre tantas possíveis cidades similares espalhadas pelo mundo. O espectador é levado a olhar a rua em um dia claro, ensolarado. Há gente passando, há sacos de lixo pelo chão. Mas, para isso, o espectador é obrigado a ver a partir de um lugar. Ele olha através de uma pequena janela retangular que está a rés do chão da rua. Ou se está deitado na calçada mirando a partir de uma janela que está a rés do chão ou se está em um porão (na verdade, um porão intermediário) e aquilo que se avista na rua está à altura de sua cabeça e perto de suas narinas. O espectador olha a partir da perspectiva de quem está no porão onde reside a família Kim. O lugar está escuro, em contraste com a rua clara. A fim de que o olhar alcance a rua, o espectador enfrenta alguns obstáculos ainda: um conjunto de meias penduradas em um pequeno varal preso ao teto perto da janela; a escuridão que emoldura a janela; as divisões da janela que a fatiam em quatro pedaços; o vidro da janela; e, por fim, as grades. As fronteiras estão postas. Elementos adicionais vão sendo oferecidos para a composição do quadro. A casa é escura, não tem ventilação, pois aquela parece ser a única janela (ao menos é a única que nos é apresentada em todo o filme), e que é pequena e está no alto. Há muitos objetos pela casa e destaca-se o vaso sanitário, que fica perto do teto de um dos cômodos, degraus acima do nível do chão, como o grande trono da casa, o que significa que o cheiro que vem do vaso sanitário emana na altura dos narizes dos moradores, o que facilita sua percepção olfativa. A casa tem muitos insetos, como afirmam o senhor e a senhora Kim. Por isso a janela é deixada aberta quando desinsetizam a rua. Ou seja, o problema com os insetos diz respeito a toda rua, mas certamente se agrava nas condições de um porão. A habitação é tomada pela névoa da desinsetização com seu odor peculiar. Eles tossem. “Deus, esse cheiro!”, brada Kim Chung-sook. O Sr. Kim permanece impassível em sua tarefa de dobrar caixas de pizza, com seu rosto sempre avermelhado, talvez por conta do calor de sua moradia. Em outro momento, a família está reunida comendo e bebendo na sala, quando um homem bêbado urina no chão perto da janela do porão dos Kim. “Por que não colocam um aviso de ‘Não urinar’?” “Eles fariam ainda mais.” Ou seja, trata-se de situação rotineira, que causa indignação, mas não reação. Cheiros que emanam de vaso sanitário fixado em lugar alto dentro da casa se misturam aos cheiros das meias na janela, da desinsetização, da urina do bêbado e do lixo na calçada nessa espécie de estufa quente, escura, infestada de insetos e sem ventilação suficiente para dissipar o cheiro.

No caso da cena do homem urinando junto à janela dos Kim, é o elemento externo e superior quem assume o papel da reação - no caso, Min-hyuk, que havia chegado para propor a Kim-woo ministrar as aulas de inglês a Dae-hye em seu lugar. Ele expulsa o homem. Há uma aceitação relativa do que se vive e uma espécie de acomodação. Quando Geun-sae, que mora no porão da mansão da família Park é descoberto, o Sr. Kim pergunta a ele: “Como consegue viver aqui?.” Geun-sae responde: “Muita gente vive no subsolo. Principalmente, em porões intermediários.” A condição de vida do Sr. Kim não era, em verdade, muito diferente em comparação com a de Geun-sae: ambos estavam no porão. Apesar do evidente desconforto, também há uma acomodação olfativa aos cheiros rotineiros. Os Kim não percebem o cheiro que exalam, mas ele não passa desapercebido aos Park. As condições de vida levam àquele odor, junto com o sabonete, o sabão em pó e o amaciante a que esses cheiros se misturam. Por isso, Ki-jung/Jessica menciona a necessidade de sair do porão. Produtos usados em comum pela família não justificariam um cheiro compartilhado por todos.

Em oposição, temos a mansão da família Park. Em lugar alto, a casa é cercada por grama, árvores e arbustos, é ampla e visivelmente iluminada e arejada. Organizada e limpa, está em compasso com sua senhoria, que, em sua primeira aparição, veste branco, segura um cachorro branco e vai ao encontro de sua filha, vestida com uma roupa branca. A casa dos Park usa uma paleta com poucas cores e junto com a madeira escura dos móveis e a luz interna amarela criam contraste com o ambiente externo da casa, tomado pelo verde das plantas, que vislumbramos através da imensa parede de vidro (sua janela), através da qual penetra a luz do sol que, em suas diferentes gradações, embala as cenas domésticas, algo que foi cuidadosamente pensado para o filme (O’Falt, 2019). Em contraposição, a casa dos Kim, é marcada pela restrição de espaço, amontoamento de coisas e heterogeneidade cromática, ainda que sem um tom prevalecente. Luz, pouca heterogeneidade e amplitude definem a sensação de organização, limpeza e conforto sofisticado da casa dos Park. O branco, as características da casa, a ausência de dobras, como mencionam o senhor e a senhora Kim a respeito de os ricos parecerem sempre gentis e sem ressentimentos, a pretensa ingenuidade dos Park, tudo isso se combina na montagem de uma imagem de pureza quase celestial, mas certamente moral, e que seria manchada pela presença imunda moralmente, malcheirosa e maliciosa da família Kim, saída das profundezas da miséria para invadir um espaço que não seria o seu, como fazem ao usufruir da mansão quando os Park saem para acampar, mas, na verdade, como tentam fazer continuamente, conduzidos pelo sonho de mudar de vida. Como disse Geun-sae: “O Sr. Park dá comida e moradia. Respeito!” Ou seja, deve-se ainda gratidão e afeto aos superiores.

No entanto, a questão vai além. E isso se explicita a partir do Sr. Park. Ele racionaliza a relação entre odores corporais e fronteiras sociais, enquanto conversa com a esposa, ignorando o fato de os Kim estarem escondidos ouvindo a conversa. Neste momento, a chuva já havia iniciado e o pequeno Da-song está acampado no jardim da mansão, enquanto seus pais estão deitados no sofá da sala a vigiá-lo. É nesse instante que o Sr. Park afirma estar sentindo o cheiro do Sr. Kim, enquanto este está escondido, com seu filho e sua filha, embaixo da mesa que está junto ao sofá: “Aquele cheiro que flutua no carro”, “um [cheiro de] rabanete velho. Sabe quando você cozinha um pano? É como isso.” O Sr. Kim puxa a camisa que veste para tentar sentir o cheiro. Continua o Sr. Park: “Enfim, mesmo que ele sempre pareça cruzar o limite, ele nunca cruza. Isso é bom. Tenho que dar crédito a ele. Mas esse cheiro cruza o limite. Consegue chegar até o banco de trás.” A Sra. Park pergunta: “Que ruim pode ser?” Ele responde que é difícil descrever, “mas às vezes sentimos esse cheiro no metrô.” A Sra. Park responde: “Faz anos desde que eu andei de metrô.” O Sr. Park então prossegue: “As pessoas que andam de metrô têm um cheiro especial.” É quando o Sr. Park começa a acariciar a esposa no sofá. Prossegue: “Não parece o banco de trás do carro? [...] Você ainda tem aquela calcinha barata? Aquela que a garota do Yoon esqueceu? Se você a usar, me deixará mais excitado.” Ela responde: “Mesmo? Então, me compre drogas. Eu quero drogas!” Enquanto isso, Da-song permanece em seu acampamento no gramado da casa.

Uma série de associações mnêmicas são realizadas aqui pelo Sr. Park. Falar do cheiro do Sr. Kim aciona sua memória a respeito da ação de outro provável usuário de metrô, Sr. Yoon, o antigo motorista. Em seu plano de empregar o pai como motorista da família Park, Kim Ki-jung/Jessica deixa sua calcinha próxima ao banco de trás do carro na tentativa - bem-sucedida, diga-se de passagem - de que o Sr. Park a encontrasse com facilidade e imaginasse que o motorista, Sr. Yoon, tivesse feito sexo com alguma mulher no banco de trás do carro, o que seria justificativa para uma demissão imediata e sem maiores possibilidades de discussão. O plano obteve êxito, e o motorista foi demitido. Na ocasião, em conversa com a esposa, após encontrar a calcinha, o Sr. Park questiona: “Mas por que no meu carro? E por que não no banco dele? Por que ir tão longe? [...] Pingar esperma dele no meu banco o excita?” No jogo de espelhos, o outro e o si próprio se confundem. O problema acionado pelo Sr. Park é o da fronteira. Ele mede a qualidade de seus funcionários a partir do respeito que eles têm na existência de uma distância que não poderia ser transposta e que, portanto, deve ser de conhecimento de todos e de aceitação consensual como realidade não passível de questionamentos. É assim com o antigo motorista, com o Sr. Kim e com a antiga governanta: “Ela mantinha a casa em ordem e nunca cruzava o limite. Não suporto pessoas que cruzam o limite.” E cruzar o limite significa invadir o espaço que pertenceria a outro. Não se trata apenas do reconhecimento da diferença, mas de aceitação da legitimidade hierárquica que faz com que a classificação do outro seja mecanismo de autoclassificação (Bourdieu, 2020BOURDIEU, Pierre. Sociologia geral. v. 1: “Lutas de classificação: curso no Collège de France (1981-1982).” Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.). Fazer sexo no carro do patrão é cruzar o limite. Usar o banco do patrão para o sexo é cruzar ainda mais o limite - um limite social, mas cujo desenho aparece em diversas situações e formatos. E ultrapassar o limite seria uma transgressão prazerosa passível de ser confundida com o prazer do próprio sexo, ou mesmo potencializando-o.

O Sr. Kim começa a perceber agora: não se trata apenas de cheiro de produtos de limpeza e higiene compartilhados pela família, não se trata apenas, ou em adição, das específicas condições de vida de sua família naquele porão específico daquela rua específica. É o cheiro das pessoas que usam o metrô que é tratado como similar. É de cheiro de pobre que se trata aqui, de um grupo classificado como diferente e inferior e que torna o julgador diferente por superioridade. E o cheiro de pobre faz torcer o nariz, é incômodo, é repugnante - como expressa o modo como a Sra. Park pega a calcinha barata deixada no carro e põe em um saco plástico. É cheiro de diferença, de inferioridade, um cheiro que vai além dos corpos individuais, um cheiro que diz respeito a condições de existência, já que pobreza/riqueza são questões sociais, mas que se tornam questão sensorial. O nojo social converte-se em sensação física de nojo e parece, com isso, ganhar mais força e materialidade. Como sensação física, não dependente de julgamento de valor, ao contrário, tem-se uma inversão: é como se a sensação física levasse à valoração negativa do cheiro.

Em outros termos, a valoração social do odor, como coisa boa ou ruim, é naturalizada, esquecida de sua condição social e histórica, e tornada uma inescapável (ou quase inescapável) essência humana, a anunciar e a denunciar o seu portador: como denuncia a presença do Sr. Kim ao Sr. Park, quando aquele estava escondido embaixo da mesa com a filha e o filho. É nesse sentido que é marca classificatória. O cheiro valorado socialmente classifica, ou ajuda a classificar, o bom e o ruim, o superior e o inferior; e é marca, pois não há como apagar o cheiro próprio - no máximo, ele pode apenas ser artificialmente mascarado. Cheiro de pobre, cheiro de trabalhador, cheiro de negro são instrumentos de estigmatização relatados em diferentes estudos (Classen, Howes & Synnot, 1996CLASSEN, Constance; HOWES, Davis; SYNNOT, Anthony. Aroma: a história cultural dos odores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.; Le Breton, 2016; Reinarz, 2014REINARZ, Jonathan. Past scents: historical perspectives on smell. Chicago, IL: University of Illinois Press, 2014.) e que buscam ferir a própria condição humana de determinados grupos, pois o social naturalizado redunda em uma hierarquização social disfarçada em diferença biológica, usada como justificativa para a existência em condição subalterna, em especial quando o traço da diferença está na superfície dos corpos, ao alcance cristalino dos olhos ou, no caso, dos narizes (Goffman, 2008GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.; Elias & Scotson, 2000ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L.. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.). Mais uma vez, moralidade, corpo, classificações hierarquizadas e simbolizações se confundem. Isso porque o inferior não é apenas o sujo por questões de higiene, mas também porque seria sujo moralmente (Vigarello, 1985VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade Média. Lisboa: Fragmentos, 1985.). Lembremos da ingenuidade dos Park contraposta à astúcia e falsidade dos Kim.

É deste modo que as associações feitas pelo Sr. Park ganham sentido e coerência. As fronteiras são coisa social, assim os limites só permanecem garantidos enquanto forem devidamente administrados por aqueles que deles se beneficiam. Portanto, não são rígidos em si, posto que não se trata de qualquer essência. Eles são acreditados e tornados enrijecidos por uma série de ações, apenas em alguns momentos reflexivos, de defesa de sua existência. Aos Kim é permitido sonhar ou mesmo se agarrar a uma pedra da fortuna que só faz sentido em seu apelo mágico a partir da crença na quase impossibilidade de ultrapassar barreiras tão fortes. O momento oportuno e a interpretação de que o presente recebido (a pedra da fortuna) eram um anúncio metafórico da possibilidade de mudança os fazem sair da condição de aceitação e os levam a agir, evidenciando as tensões de fronteira. Ver cotidianamente as hierarquias sociais representadas de diferentes maneiras é uma repetida lembrança de que as fronteiras existem e estão por todos os lugares, porque são pretensamente naturais, porque “as coisas são assim”, e isso é fundamental à compreensão das (in)ações.

O diálogo se dá entre o Sr. e a Sra. Park em um momento de intimidade que não deveria ser compartilhado com o Sr. Kim, que estaria ali, infiltrado e escondido à espreita, indevidamente escutando a conversa. A fofoca e a maledicência são potentes estratégias de classificação e estabelecimento de fronteiras. Com elas, cria-se senso de compartilhamento e cumplicidade, ao mesmo tempo em que o julgador evita ser julgado por aquele a quem está julgando, por não haver confronto direto de ideias, como em um insulto feito verbalmente pelo Sr. Park ao Sr. Kim se aquele o interpelasse como pessoa suja ou malcheirosa. O sugestivo no contexto do filme é que, pelo fato de se tratar de conversa indevidamente escutada, a reação do Sr. Kim é tentar verificar a validade do dito, buscando cheirar a própria roupa. O mesmo ocorre quando ele percebe o incômodo da Sra. Park com seu cheiro dentro do carro. Igualmente, ela não se dirige diretamente ao Sr. Kim. Displicentemente, ao decorrer de uma conversa ao celular, ela expressa o nojo no gesto de tapar o nariz e de, na sequência, abrir a janela do carro, enquanto o Sr. Kim dirige. O insulto direto abre espaço à resposta imediata que pode promover a inversão de lugar. O modo aparentemente espontâneo do comentário entre casais e do gesto displicente aparece como discurso de uma verdadeira percepção por parte de quem o profere, abalando mais fortemente a estima de quem é seu alvo, que, acreditando na verdade do discurso, pode sentir vergonha de si e, acreditando em sua condição humana inferior, aceitar o lugar social que ocupa como coisa legítima - o que diminuiria as possibilidades de tentar abalar as fronteiras estabelecidas.

Por sua vez, é o respeito às fronteiras o critério de avaliação do Sr. Park. Ele sabe o quanto é atrativo ultrapassá-la: opostos simétricos se atraem. Do cheiro do Sr. Kim até a associação generalizante de que se trata do cheiro de uma determinada categoria social entendida como inferior, não desejada, repugnante, à lembrança do antigo motorista, pertencente à mesma categoria social do Sr. Kim, em seu desejo de gente inferior de fazer sexo no carro do patrão, especificamente no banco do patrão, assumindo fantasiosamente seu lugar de poder para maximização de seu prazer sexual, banco este associado, por contiguidade, ao sofá no qual ele, o Sr. Park, e a sua esposa estão agora deitados, vem sua vontade de fantasiosamente se abrir a um desejo sexual que ele entende ser dos inferiores, menos controlados e mais animalescos, fantasia que seria melhor alimentada se sua esposa, a Sra. Park, usasse a calcinha barata (a adjetivação sublinhada pelo Sr. Park é importante) da parceira do motorista precedente, o Sr. Yoon, enquanto a esposa pede por drogas também na direção da tentativa de maior explosão sexual a partir da aproximação com o universo daqueles que eles qualificam como inferiores, afinal eles cogitaram que o motorista e a parceira teriam feito uso de drogas no carro. A reconstituição do que teria acontecido no veículo se confunde, portanto, com as fantasias eróticas de ambos, reforçando seu lugar de gente emocionalmente mais distante, em oposição àquilo que seria da ordem do modo de vida dos subalternos, mais afetivo, quente, sexual. A partir da ação sexual-erótica, o casal Park também ultrapassa a fronteira, mesmo que apenas na fantasia. Enquanto isso, o pequeno Da-song tem ação similar: fantasia, no seguro jardim da mansão, um mundo de aventuras não reservado a ele. Em suma, a fronteira é respeitada; e o é quando Ki-woo sonha em estudar, ganhar muito dinheiro e comprar a mansão dos Park para libertar seu pai de sua prisão no porão.

Considerações finais

Quando o Sr. Kim, com sua filha ferida nos braços, percebe que a única preocupação do Sr. Park é salvar seu filho desmaiado, mesmo assim ele joga a chave do carro na direção do patrão. O nojo dos Park já era evidente, bem como o sentido da disfarçada gentileza que, camuflada em sorrisos e bônus salariais, impede a recusa de Kim Ki-jung/Jessica em participar da festa e do Sr. Kim em se fantasiar de índio e participar da encenação infantil para agrado de Da-song, sua família e convidados. A preocupação do Sr. Park com o filho desacordado é compreensível da parte de outro pai, que está com a filha desacordada. O problema é que a chave do carro acaba ficando embaixo do corpo de Geun-sae, ferido. Quando o Sr. Park vai buscar a chave, mais uma vez ele torce o nariz e vira o rosto, evidenciando todo o seu nojo. Um nojo que não diz respeito apenas a Geun-sae, mas também ao Sr. Kim e toda sua família, a todos aqueles que participam de sua mesma condição. A reação do Sr. Kim, que, aos poucos, vai percebendo, sem uma busca crítica ou dom especial, a degradação das relações, é emocional e isolada: ele mata o Sr. Park. Se, por um lado, o resultado disso é ele retornar a um porão, descendo as escadas de sua condição social, e lá ficar enclausurado, ciente de seu lugar e degradação, por outro lado o filme busca apresentar a perspectiva de que o sistema de dominação não é perfeito. O que o filme não traz é a perfeita solução ao enigma. Ele não traz o final feliz, que dificilmente seria possível a partir da ação isolada de uma pessoa. Por outro lado, se a reação do Sr. Kim é violenta por um transbordamento emocional dos fortes abalos que ele vinha sofrendo, também não é possível afirmar que o filme traga a perspectiva de que a luta física seja a solução às lutas simbólicas e nem que a guinada de Ki-woo na tentativa de ascensão pela via legitimada do trabalho e do estudo seja o caso.

Contudo, há uma importante questão no filme, que aqui foi apenas insinuada, e que precisa ser novamente trazida para reflexão mais cuidadosa. Conforme pontuamos no início deste percurso, interessava-nos discutir a questão das fronteiras sociais, classificações e possibilidades de mobilidade (trânsitos) a partir da obra audiovisual Parasita enquanto simbolização. Apesar de usarmos em diferentes momentos a palavra símbolo, a utilização mais frequente da categoria simbolização advém do desejo e intenção de lidarmos com a parcialidade e processualidade do fazer simbólico. Não entendemos que as produções simbólicas revelem a realidade tal como é em sua totalidade; do mesmo modo, não compactuamos com a concepção de que se trata de construções sociais apartadas do mundo - apenas uma perspectiva dentre outras. Refigurar o mundo - isto é, apresentá-lo em nova figura - significa, de qualquer modo, apresentá-lo. Nesse sentido, o caráter expressivo do simbólico é aqui reafirmado, apesar de sublinharmos sua plasticidade, condição, em nosso entender, da processualidade do fazer simbólico em uma rede histórica e maleável de fazeres.

Todavia, os símbolos não se prestam a serem apenas expressivos. Uma vez que apresentam, de alguma forma, possibilidades de existência e fazeres, há um duplo movimento de externalização-internalização. Refiguramos possibilidades humanas em obras. De igual modo, aprendemos, através de nosso contato com as obras, a respeito dessas possibilidades. O resultado desse movimento não é a mecânica reprodução de ações, nem na externalização, que negaria o caráter criativo do fazer; nem na internalização, uma vez que internalizar significa reter e organizar imagens de memória que se relacionam a outras hierárquica e valorativamente e que contribuiriam à constituição de disposições de conduta, que serão filtradas e ajustadas às condições de ação (habitus). Não repetimos o que vemos, e sim aprendemos, em diferentes caminhos e intensidades. Desse modo, os fazeres humanos se interligam reticular e historicamente. Nossa especificidade, enquanto seres sociais e históricos, está na direta relação com nossa faculdade simbólica, possível pelo desenvolvimento em certa direção de nossos recursos e potencialidades biológicas, como diria Elias (2002ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Lisboa: Celta, 2002.). Os símbolos constituídos são, portanto, importante fonte de compreensão dos modos de vida humanos por seu duplo caráter de expressivos e de orientadores de condutas. Seu entendimento deve se dar pela inserção dos mesmos nas malhas relacionais interdependentes humanas, nas quais são feitos e utilizados. No entanto, para fazer jus à complexidade simbólica, eles precisam ser tomados na totalidade forma-conteúdo (Ricœur, 2000RICŒUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 2000.).

Acionar os cheiros como elemento deflagrador do reposicionamento do Sr. Kim na relação com os Park é significativo, uma vez que o olfato é entendido como parte ainda misteriosa do funcionamento do organismo humano (Malnic, 2008MALNIC, Bettina. O cheiro das coisas: o sentido do olfato: paladar, emoções e comportamentos. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2008.). A valorização da visão e a associação do olfato como um sentido mais primitivo e inferior levaram a uma menor parcela de estudos quanto ao tema. No entanto, segundo Philippe Perrot (1996PERROT, Philippe. Fashioning the bourgeoisie: a history of clothing in the nineteenth century. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1996.), outra questão se coloca como inquietante quanto aos cheiros: seu caráter evanescente. Do mesmo modo que não podemos parar de sentir cheiros, a não ser por uma condição orgânica específica, por não podemos parar de respirar, não podemos controlá-lo plenamente. Isso torna a estigmatização potente ao acionar o mau odor corporal como argumento, como faz a família Park, mas, ao mesmo tempo, torna incontornável que a família Park sinta o cheiro dos Kim e seja obrigada a se relacionar com isso de alguma forma, mesmo que através de caretas e maledicências. Não importa o quanto o Sr. Kim respeite a fronteira da distância física e relacional, o seu cheiro, portanto, a sua existência e condição ultrapassam a linha demarcatória e se impõem, invadindo o suposto espaço da família Park. Mas, se o cheiro ultrapassa o limite é porque ele é, de algum modo, ultrapassável - e, então, tornam-se ainda mais incômodos.

Paralelamente, a escolha do formato do filme atravessando diferentes gêneros em uma mesma composição - ao apresentar elementos de comédia, tragédia, drama, suspense, terror - parece coadunar-se com essa impertinência dos odores. Parasita tem difícil enquadramento nos sistemas classificatórios mais convencionais. Não se trata do enquadramento em um gênero particular apenas, posto que o filme também não se apresenta como mosaico de gêneros. Talvez seja mais próximo dizer que seu funcionamento se dá em camadas que, ao longo da narrativa, vão se apresentando com maior nitidez em certos momentos, mas cada uma delas já estaria presente, ou sendo anunciada, desde o início da obra, como em um continuum. A nossa surpresa vem de nossa acomodação a um formato tornado convencional. Se, novamente, tomarmos a cena inicial do filme, observaremos que seus aspectos dramáticos já estão desde lá. Assim, a estrutura do filme, juntamente com a narrativa que apresenta, nos ajuda a assumir que a tônica posta a respeito das fronteiras classificatórias talvez deva ser mais pertinentemente posta em sua arbitrariedade e, portanto, flexibilidade. Deste modo, a questão posta não diz respeito à mobilidade social, enquanto trânsito entre compartimentos que mantêm erguidas as fronteiras das classificação atuais. Tomar o arbitrário das fronteiras é ter em mira de que sua existência e modo de existência dependem do que fazemos com elas, o que não significa ausência de lutas em seu processo de transformação.

Referências

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  • 1
    Apesar de considerarmos a relevância de compreender o contexto sul-coreano e o cinema asiático para a abordagem mais ampla do filme, escapa-nos esta possibilidade neste texto pelo recorte estabelecido.
  • 2
    Segundo Baldassare Castiglione (1997: 42), “[o cortesão deve] evitar ao máximo, e como áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez […] usar em cada coisa uma certa sprezzatura [indiferença] que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2022
  • Aceito
    24 Fev 2022
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