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Werner Sombart: um estrangeiro na tradição sociológica?i i . Este trabalho foi apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a agência nacional portuguesa para o financiamento da ciência, investigação e tecnologia, no âmbito do Projeto UIDB/04521/2020.

Werner Sombart: a stranger in sociological tradition?

Resumo

O nome de Werner Sombart possuía uma grande fama nos principais meios da sociologia à escala mundial há cerca de um século; mas tendeu depois a cair em uma penumbra de quase esquecimento, sendo habitualmente excluído do atual panteão sociológico. Isso ficou muito provavelmente a dever-se, entre outros fatores, à sua adesão tardia ao nazismo. Não obstante, foram celebérrimas, e são ainda hoje plenamente dignas de reflexão atenta as suas considerações sobre a relação do capitalismo com a guerra, o luxo e a ética religiosa, particularmente a judaica; a dualidade valorativa da mentalidade capitalista (com a antinomia burguês × empresário); a periodização do capitalismo e a sua trajetória futura; as singularidades da vida política norte-americana. Sombart deixou várias questões por resolver, mas que nos interpelam ainda hoje direta e vivamente. Apesar de se tratar de um autor meio olvidado na tradição sociológica, é, todavia, de mais do que um ponto de vista, plenamente nosso contemporâneo.

Palavras-chave:
Guerra, luxo e capitalismo; Religião e capitalismo; Burguês e empresário; Futuro do capitalismo; Estados Unidos e socialismo

Abstract

Enjoying a great fame in the main sociological milieus worldwide roughly a century ago, the name of Werner Sombart tended afterwards to fall into a penumbra of near-oblivion, being normally excluded from the current sociological pantheon. This was arguably due to, among other factors, his late support for Nazism. Nevertheless, his considerations on the relationship of capitalism with war, luxury and religious ethics, particularly the Jewish ethics, the value ambivalence of capitalist mentality (with the bourgeois × entrepreneur antinomy), the periodization and future trajectory of capitalism, the singularities of North-American political life, were all once very renowned, and are still more than worthy of a careful reflection. Sombart left several unresolved questions, which are still capable of addressing us directly and vividly today. Being a half-forgotten author of the sociological tradition, he is nevertheless, under more than one perspective, plentifully our contemporary.

Keywords:
War, luxury and capitalism; Religion and capitalism; Bourgeois and entrepreneur; Future of capitalism; The USA and socialism

Werner Sombart (1863-1941) gozou de uma enorme fama em princípios do século XX, mas a sua estrela académica veio depois a afundar-se algures entre o esquecimento e a infâmia, para só em tempos mais recentes a sua memória ter sido parcialmente resgatada. Isso terá ficado a dever-se em parte ao seu apoio ao nazismo nos anos 1930, mas o problema está longe de poder ficar confinado a esse aspeto. Sombart, esclareça-se, esteve próximo do marxismo nos começos da sua carreira, tendo sido então lesado em virtude da notoriedade de suas inclinações socialistas; e também elogiado por Engels, por ter conseguido compreender Marx bem melhor do que a generalidade da elite académica alemã sua contemporânea (Plotnik, 1937PLOTNIK, Mortin J. Werner Sombart and his type of economics. PhD Dissertation, New York, Faculty of Political Science, Columbia University, 1937.: 33; Villas Bôas, 2001: 173; Nogueira, 2004NOGUEIRA, António de Vasconcelos. Werner Sombart (1863-1941): apontamento biobibliográfico. Análise Social, v. 38, n. 169, p. 1125-1151, 2004.: 1128-1130; Gioia & Nardis, 2015GIOIA, Vitantonio; NARDIS, Fabio de. Sombart’s der Bourgeois: economy and politics in the Spätkapitalismus. DADA - Rivista di Antropologia Post-Globale, v. 1, p. 95-116, 2015.). Veio todavia a aderir depois aos entusiasmos da Kriegsideologie alemã de 1914-1918, que viu na guerra a defesa da Kultur e de um modo de vida “orgânico”, assente na “comunidade” e nos “ideais”, contra os traços “mecânicos” da Civilization (Losurdo, 1998______. Heidegger et l’idéologie de la guerre. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.). O desembocar subsequente no nazismo, embora incluindo outras componentes, deve ser considerado como traduzindo a acentuação desse outro grupo de inclinações. Na verdade, quer as razões para a aproximação de Sombart ao nazismo, quer o seu relativo apagamento posterior da memória oficial da sociologia constituem possíveis tópicos para investigações sociológicas mais detalhadas (Grundmann & Stehr, 2001GRUNDMANN, Reiner; STEHR, Nico. Why is Werner Sombart not part of the core of classical sociology? Journal of Classical Sociology, v. 1, n. 2, p. 257-287, 2001.). Trata-se aqui, porém, não de proceder a tais investigações, mas de sublinhar o relevo e a atualidade de um certo número de elementos do pensamento de Sombart, bem como a importância da recuperação de seu legado pelo que ele ainda pode contribuir quer para os debates presentes sobre o capitalismo, quer - mais amplamente - para a compreensão da ambivalência valorativa de nossa época.

Sombart na tradição sociológica e na do pensamento económico

Talcott Parsons (1902-1979) confere a Sombart uma posição de destaque em seus primeiros textos, colocando-o a par de Weber em um famosíssimo artigo de 1928 relativo à centralidade da categoria “capitalismo”. Entretanto, em A estrutura da acção social, de 1937, o lugar de Sombart é já muito sumido; e depois disso ele praticamente desaparece. Resumidamente, Parsons apresenta-o como representante do “historicismo alemão” da viragem de século, tendo como vícios teóricos o “empirismo” e o “idealismo”. Quanto ao “empirismo”, refere-se às suas reservas em face da economia marginalista, a cujos métodos dedutivos teria preferido à pesquisa historiográfica e indutiva. Alinhando pelos mesmos pontos de vista que reaparecem em Schumpeter (1964______. História da análise económica, 3 v. São Paulo: Fundo de Cultura, 1964.), Parsons condena essa atitude por alegada insuficiência teórica (fallacy of misplaced concreteness), à maneira dos juízos censórios a propósito dos institucionalistas norte-americanos. Quanto ao “idealismo”, duas teses são por Parsons fundidas: a de que Sombart teria exagerado na singularidade de cada “indivíduo histórico” e a de que teria desprezado as dimensões materiais a favor da precedência analítica da “cultura”.

Deve dizer-se que nem a acusação de “empirismo” nem a de idealismo são sustentáveis (cf. Graça, 1995______. Werner Sombart e o homem económico moderno. Lisboa: Universidade de Lisboa, Work Paper Socius, 1995.). As razões pelas quais Parsons opta por condenar Sombart nestas matérias, enquanto ao mesmo tempo decide recuperar Max Weber, relevam sobretudo das estratégias de promoção pessoais do próprio no ambiente universitário norte-americano em que veio a vingar, não de qualquer genuíno problema teórico. São pois mais um assunto de sociologia da vida académica do que de história das ideias em sentido estrito, analogamente ao ocorrido com o tratamento parsoniano dos autores “institucionalistas”, conforme destacado por Charles Camic (1992CAMIC, Charles. Reputation and predecessor selection: Parsons and the institutionalists. American Sociological Review, v. 57, n. 4, p. 421-445, 1992.). Em todo caso, os mal-entendidos a que Parsons ficou associado marcaram de forma indelével a subsequente consagração institucional da sociologia, designadamente os pretensos fundamentos de sua separação da economia, pelo que as suas teses foram em parte validadas, embora apenas em um sentido performativo (Graça, 2008).

Quanto à história do pensamento económico, Sombart é usualmente mapeado naquilo que Joseph Schumpeter (1964______. História da análise económica, 3 v. São Paulo: Fundo de Cultura, 1964.) designou como geração “novíssima” da “escola histórica alemã”, junto com Max Weber e Edgar Jaffé. Tendo sido discípulo de Adolph Wagner e de Gustav Schmoller (este último sendo o seu orientador de doutoramento), a sua inclinação ia pois, quanto à célebre Methodenstreit, para a fação indutiva e historiográfica, em oposição ao grupo encabeçado por Carl Menger, dedutivista e assumindo a validade universal das categorias da economics. Todavia, segundo Schumpeter, apesar de suas insuficiências teóricas (o análogo do suposto “empirismo” no requisitório de Parsons), Sombart teria sido um autor de grande fôlego, visão de conjunto e capacidade de captar o sentido geral das realidades estudadas, em tudo isso superando o mestre.

De facto, Sombart moveu-se inicialmente na vizinhança de Schmoller, ligando-se assim também ao projeto da Verein für Socialpolitik, almejando um grupo de reformas oficialmente destinadas a reforçar os aspetos éticos da economia. Esta “economia ética” traduzia-se mormente no apoio de formas de atividade tradicionais, sobretudo a pequena agricultura independente e o grupo de disposições culturais correspondentes, Gustav Schmoller ligando diretamente este propósito reformista à sua atividade científica. Perto da viragem de século, porém, quer Sombart quer Weber demarcaram-se deste grupo de atitudes, passando a argumentar de maneira enfática por uma clara separação entre ciência e valores (Lenger, 1997LENGER, Friedrich. Ethics and economics in the work of Werner Sombart. In: KOSLOWSKI, Peter (Ed.). Methodology of the social sciences, ethics, and economics in the Newer Historical School - from Max Weber and Rickert to Sombart and Rothacker, p. 147-163. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1997.: 156).

Do mesmo passo, reconhecendo o insuficiente suporte teórico da obra de Schmoller, Sombart considerou, quer a chamada “Escola austríaca”, quer o marxismo, como possíveis fontes de teoria, mas acabou por orientar-se no sentido de Marx, sendo atraído sobretudo pela noção de economia enquanto sistema e pela ideia de uma compulsão material, objetiva, assim induzida na conduta dos agentes. Isso foi vastamente responsável pela sua utilização pioneira da categoria de “capitalismo” (Braudel, 1983BRAUDEL, Fernand. Civilization and capitalism 15th-18th century, v. II: “The wheels of commerce”. London: Book Club Associates, 1983.: 237), que, em sua obra, se refere a uma variedade de aspetos: cultural, organizacional e técnico. No entanto, Sombart sempre tratou o legado de Marx de forma muito desenvolta, considerando o surgimento de um espírito capitalista mais importante do que o mero acumular de recursos materiais. Em outros termos, a gênese do capitalismo seria acima de tudo uma “psicogênese”. Uma abordagem “compreensiva” das realidades sociais, tomando em consideração os sentidos atribuídos pelos agentes às suas ações (e portanto uma componente psicológica), era assim considerada em parte uma correção, em parte um complemento às ideias de Marx: “Logo em 1896 Sombart tinha notado a falta de uma explicação psicológica em Marx, tendo-se proposto substituir a ultrapassada dialética por essas explicações psicológicas” (Lenger, 1997LENGER, Friedrich. Ethics and economics in the work of Werner Sombart. In: KOSLOWSKI, Peter (Ed.). Methodology of the social sciences, ethics, and economics in the Newer Historical School - from Max Weber and Rickert to Sombart and Rothacker, p. 147-163. Berlin; Heidelberg; New York: Springer, 1997.: 159). Em 1937, em um exame detalhado de sua obra, Mortin Plotnik basicamente confirma este retrato: “foi a adequação do método da Verstehen e a abordagem marxista (o pensamento em termos de sistema económico) que produziu uma obra como Der Moderne Kapitalismus” (Plotnik, 1937: 76)1 1 Em outra formulação deste grupo de problemas, Sombart terá procurado sobretudo uma terceira via entre as abordagens ditas “normativa” e “naturalista”, vindo a distinguir três modelos analíticos para a ciência económica: “normativo” (richtende), “ordenador” (ordnende) e “compreensivo” (verstehende), aceitando, evidentemente, combinações deles, mas explicitando a sua inclinação para o terceiro. Com isso tornou clara a sua pretensão de uma atitude oficialmente “livre de valores” (wertfrei), distanciando-se assim da acoplagem da ciência a um projeto de reforma social, mas pretendendo ao mesmo tempo ultrapassar o mero controlo de processos naturais, como na abordagem dita naturalista ou ordnende (Plotnik, 1937: 72; Peukert, 2012: 538). .

A ciência económica de Sombart, explicitamente considerada parte de sua sociologia (Plotnkik, 1937______. A new social philosophy [Deutscher Sozialismus]. London: Oxford University Press, 1937 [1934].: 65), é pois “compreensiva”, como o foi também a de Weber. Leva em conta o significado atribuído pelos agentes às suas práticas, logo à influência dos valores nas condutas sociais, mas visa ela própria uma forma de conhecimento científico livre de implicações valorativas. Também como Weber, Sombart recorre abundantemente à categoria de “capitalismo”, que utilizou de forma precursora, que em sua obra se refere a uma multiplicidade de aspetos e cuja periodização de longo prazo intenta no seu famoso Der Moderne Kapitalismus (ver infra). Tal como Weber, Sombart está convencido da importância de levar em consideração o passado da Europa para se compreender plenamente a dimensão e o significado daquilo que designou como “capitalismo moderno”, o correlato do “capitalismo racional” weberiano2 2 Pelo menos em parte isto pode, em ambos os casos, ser entendido como relevando de uma atitude do conservadorismo: a aparente novidade é-o bastante menos do que habitualmente se pensa. Argumento da “inanidade”, portanto, no âmbito da tipologia da “retórica reacionária” a que procedeu Albert Hirschman (1991). Traduz também um Zeitgeist eminentemente eurocêntrico e colonial-imperial: na Europa, e só nela, podiam ter emergido as formas sociais destinadas a dominar o mundo (cf. Blaut, 2000). .

A estética aristocrática e o espírito do capitalismo

Há todavia diferenças significativas entre Weber e Sombart. Podemos captar o núcleo mesmo da abordagem deste, pensando em termos de uma longa indagação sobre “a ética e a estética aristocráticas e o espírito do capitalismo”. Isso relaciona-se crucialmente com o seu valorizar de dois aspetos frequentemente desconsiderados: a guerra e o luxo. Se para Weber a origem do capitalismo moderno foi religiosa, já na análise de Sombart ela foi aristocrática: guerreira e cortesã. Certamente não por acaso, duas de suas mais importantes obras tiveram por título Guerra e capitalismo e Luxo e capitalismo. Entre estes três termos existem fundamentalmente concordâncias. Que o capitalismo é causador de guerras: eis algo de que Sombart (1943) nem por um momento duvida. Mais importante, porém, é, segundo ele, destacar a relação causal inversa: as guerras propiciam o capitalismo, seja lógica ou psicologicamente, voluntária ou involuntariamente:

  • i. pelo aumento dos gastos públicos, formadores decisivos de procura efetiva suficiente;

  • ii. através da educação e disciplina impostas pelos exércitos a largas massas de camponeses, fator crucial na formação de um proletariado industrial disciplinado e taylorizado;

  • iii. por promoverem o espírito inventivo e inovador, o caminho da invenção à inovação técnica sendo encurtado simultaneamente na guerra e nos processos produtivos.

Quanto a esse assunto, destaca nos exércitos europeus desde o século XVI: a unidade de comando, com racionalização e simplificação de procedimentos; uma quantificação crescentemente rigorosa; o ímpeto genérico para o crescimento ilimitado, correspondente quer à tendência de longo prazo dos exércitos, quer à lógica intrínseca do capital. Do mesmo modo quanto à necessidade de um proletariado disciplinado: as atividades de guerra podem ser consideradas o perfeito exercício propedêutico para a indústria racional dos tempos modernos. Por outro lado, as forças armadas foram, segundo Sombart, o primeiro setor social em que a necessidade de rigorosa divisão e coordenação do trabalho se impôs de forma massiva. Foram depois imitadas pelas indústrias civis suas fornecedoras. Da mesma forma, o crescimento dos aparelhos militares criou um consumidor-tipo suficientemente padronizado e em número total consideravelmente elevado, crucial na formação de uma quantidade de “procura efetiva” suficiente para desencadear a utilização dos recursos produtivos3 3 Registe-se que, para Sombart, as virtudes guerreiras (disciplina, diligência, persistência, mas também cálculo exato, visão global, comando unificado e sentido de timing) são praticamente um decalque das virtudes económicas, ou vice-versa. Expressam uma mistura de componentes ditas “burguesas” e “empresariais”, conforme a sua tipificação das virtudes económicas, na qual o elemento “burguês” predomina na base da hierarquia e o “empresarial” no topo. A sua atitude face à guerra, sublinhando a importância da procura, constitui um verdadeiro “keynesianismo militar” ante litteram: é uma abordagem demand side, mas destacando os aspetos relativos não a um welfare state, mas a um warfare state. É também singularizável porque se trata aqui de salientar e elogiar a componente competitiva ou agonística do consumo, elemento inseparável da desigualdade social, ao passo que o keynesianismo foi de pendor igualitário. .

Quanto à ênfase no tema do luxo, pode dizer-se que grosso modo corresponde à narrativa da história europeia na idade moderna que vê nela a transformação das nobrezas de guerreiros em cortesãos. Este facto, ao qual Norbert Elias (1987______. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1987.; 1989) viria depois a referir o “processo civilizacional”, está diretamente associado à génese do Estado moderno, traduzindo-se no aumento da importância e do peso social das realezas e dos grupos burgueses, bem como no declínio das nobrezas tradicionais, que assim perderam a sua existência independente, sendo reduzidas a “nobrezas de serviço”. Deste modo, o elemento expressando a hierarquia é transferido para o consumo de bens refinados. Isto corresponde genericamente à passagem de um “luxo subjetivo”, relativo à comunicação pessoal de cada nobre com os seus séquitos, àquilo que Sombart (1990______. Amor, luxo e capitalismo. Lisboa: Bertrand, 1990 [1912].) designa como “luxo objetivado”, onde as relações sociais ocorrem através da mediação de bens.

O tema do consumo e das necessidades é muito importante na argumentação sombartiana acerca do capitalismo e em sua periodização histórica. É crucial a inexistência aí de necessidades dadas de forma definitiva, por contraste com a mentalidade económica tradicional, que induz a proceder “pausadamente, sem pressas nem precipitações” (Sombart, 1982______. El burgués. Introducción a la historia espiritual del hombre económico moderno. Madrid: Alianza Editorial, 1982 [1913].: 20), adquirindo apenas em função de necessidades limitadas. O capitalismo é assim associado à artificialidade, ao desassossego e à compulsão de mudança, mas isso ainda não chega para captar adequadamente a noção de luxo. São também cruciais os traços de sobreabundância, ostentação e concupiscência: provocatoriamente, Sombart refere-se aliás à luxúria como “filha legítima do amor ilegítimo” (apud Grazia 1996GRAZIA, Victoria de. Introduction & Changing consumption regimes. In: ______ (Ed.). The sex of things: gender and consumption in historical perspective, p. 1-24. Berkeley, CA: University of California Press, 1996.: 20), a qual teria por sua vez dado à luz o capitalismo. O protagonismo social das mulheres é assim destacado, mas deve sublinhar-se que não se trata de as dignificar pelo labor ou pelo instinto parental, como sucede com Thorstein Veblen (1978VEBLEN, Thorstein. Théorie de la classe de loisir. Paris: Gallimard, 1978.) e outros autores de orientação progressista e/ou socialista, mas da forma oposta. Em nítido contraste com aqueles, Sombart opta precisamente por destacar a importância das favoritas e da cocottes. Se foi o luxo, não o trabalho e a poupança, a estimular os progressos do capitalismo, por outro lado o “triunfo da mulher”, como Sombart (1990: 105) o designa, correspondente a este “feminismo de antigo tipo”, advém por via da cortesã e de suas rivais/imitadoras.

Este traço deve ser registado, dado ter sido o chamado cultural turn dos estudos sociológicos, valorando mais o consumo do que a produção, bem como a emergência dos “estudos femininos”, a trazer o nome de Sombart de novo à ribalta em tempos mais recentes. Vale a pena, nesse contexto, referir os nomes de Chandra Mukerji (1993MUKERJI, Chandra. Reading and writing with nature: a materialist approach to French formal gardens. In: BREWER, John; PORTER, Roy (Eds.). Consumption and the world of goods, p. 439-461. London: Routledge, 1993.), Victoria de Grazia (1996GRAZIA, Victoria de. Introduction & Changing consumption regimes. In: ______ (Ed.). The sex of things: gender and consumption in historical perspective, p. 1-24. Berkeley, CA: University of California Press, 1996.), Kenneth Pomeranz (2000POMERANZ, Kenneth. The great divergence - China, Europe, and the making of the modern world economy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000.), Glaucia Villas Bôas (2001), John Armitage e Joanne Roberts (2016ARMITAGE, John; ROBERTS, Joanne. The spirit of luxury. Cultural Politics, v. 12, n. 1, p. 1-22, 2016.), importando sublinhar que vários desses autores consideraram a tese aparentemente misógina de Sombart como mais válida que a de Veblen. De qualquer forma, quer o pendor dos estudos seja “cultural” ou mais atinente à factualidade económica, o nome de Sombart reaparece uma e outra vez: sob a forma de ceticismo quanto ao tal estímulo do luxo à atividade capitalista, como acontece com Fernand Braudel (1981______. Civilization and capitalism 15th-18th century, v. I: “The structures of everyday life - the limits of the possible”. London: William Collins Sons & Co. Ltd., 1981.: 186) e Chandra Mukerji (1993: 439), ou pelo contrário destacando a importância da “objetivação do luxo” no desenvolvimento económico, como acontece com Pomeranz (2000: 114ss), ou ainda reconhecendo que ele focou aspetos da trajetória das sociedades até hoje muito dificilmente tratáveis, como a sua trajetória de inevitável dissolução, destruição e morte. O falhanço de Sombart, se podemos pensar nesses termos, seria portanto também o nosso falhanço, tornando-se necessário continuar o seu trabalho “acerca do espírito do capitalismo, através do mapeamento dessa terra incógnita que é o contemporâneo espírito da luxúria” (Armitage & Roberts, 2016: 20).

Modernismo reacionário e culto do empresário

Com esta ênfase na importância da guerra e do luxo, Sombart assinala uma trajetória herética relativamente às correntes de teoria social que, na esteira de Adam Smith, privilegiaram as afinidades do negócio com as tendências pacificadoras e a famosa ética working-saving-and-investing. Deve registar-se que “guerra” e “luxo” se unem, em seu esquema analítico, sob a forma de exaltação da hierarquia. Este traço merece ser destacado, dado que Sombart foi explicitamente associado ao chamado “modernismo reacionário” (Herf, 1984HERF, Jeffrey. Reactionary modernism: technology, culture, and politics in Weimar and the Third Reich. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1984.), categoria correspondente a um grupo de autores da Alemanha weimariana que, se por um lado assumiram a defesa da Kultur e da “comunidade popular” (Volksgemeinschaft) - ou seja, das tendências “orgânicas” contra a Civilization “mecânica” e materialista -, por outro lado representaram também uma forma de reconciliação do referido imaginário “comunitário” com as realidades da tecnologia moderna, à qual pretenderam “reencantar” (ou libertar do “desencantamento”).

A reconciliação de Sombart com a modernidade dá-se realmente através das referidas esperanças postas no reencantamento da tecnologia, tal como ele tem aliás a oportunidade de explicitar, esclarecendo que a sua não é pois uma posição de “pessimismo cultural” (Sombart: 145ss). Mas há um outro aspeto importante nesta história, merecedor de mais alguma atenção: trata-se do chamado elemento “empresarial” dos negócios e do que a ele vem associado. O “homem económico moderno”, ou bourgeois, comportaria duas componentes bem distinguíveis: a do cidadão, ou burguês propriamente dito (Bürger), e a do empresário (Unternehmer). A “mentalidade de burguês” corresponderia à “santa economicidade” (que tinha já na masserizia de Leon Battista Alberti, na Florença do século XV, basicamente os mesmos traços da industry-and-frugality de Benjamin Franklin), à moral dos negócios (previsibilidade, respeito pela palavra dada) e à mentalidade calculadora que tudo quantifica, assim abolindo as diferenças qualitativas. Ao “espírito de empresa”, por outro lado, pertenceria a vontade aquisitiva, bem como o espírito inventivo, conquistador e organizador. É assim que, entre as alegadas fontes do “espírito capitalista”, aparecem a campanha militar, a propriedade feudal e o corso. De facto, aquele deve ser concebido enquanto resultante de “empresa” em tudo o que se refira a rapina, sentido de oportunidade, engenho, inspiração, capacidade organizativa e inovadora, inclinação para a desobediência a quaisquer regras, ilimitado desejo de conhecimento (característico de uma suposta “alma fáustica”), ou pura e simples “vontade de poder” (Sombart, 1931). Tal como menciona Franklin a propósito da “mentalidade de burguês”, também a este outro respeito refere Goethe e Nietzsche4 4 Trata-se, em um certo sentido, de uma verdadeira caracterologia, isto é, da identificação de tipos psicológicos. O temperamento de empresário é “agudo”, “perspicaz”, “engenhoso”, “pletórico de ideias e de alvitres, dotado duma fantasia especial, a que Wundt chama combinatória”. Não liga com “o artesão, o prestamista, o esteta, o erudito, o vivedor, o moralista e similares” (Sombart, 1982: 209), antes com “conquistadores, organizadores e negociadores”. Outras marcas suas estão presentes também no jogador de xadrez e no médico genial: “A arte do diagnóstico capacita não só para curar doentes, mas também para ter êxitos nas especulações da Bolsa” (Sombart, 1982: 209). Quanto ao temperamento de burguês, corresponde à célebre antinomia de Bergson opondo o homme ouvert ao homme clos (Sombart, 1982: 210). Entre a luxuria e a avareza, tende obviamente para esta. É recetivo, não expansivo; e valorizando tudo não subjetivamente, mas objetivamente, nunca compreenderia Cícero quando o romano afirmava que “o que importa não é a utilidade de cada um, mas o que se é” (Sombart, 1982: 210). .

Como se compreende, é à psicologia do empresário que se referem os traços do bourgeois que o aproximam das aristocracias tradicionais europeias: guerreiros e cortesãos. Ainda assim, alguns dos traços usualmente referidos às atividades económicas podem ser de arrumação mais problemática. Por exemplo, o comerciante (Händler), para muitos efeitos mapeável do lado do elemento “burguês”, pode todavia ser considerado uma componente do espírito “empresarial”, na medida em que seja capaz de induzir os outros agentes à cooperação voluntária, com apelo mais aos sentimentos do que ao argumento: autoridade (Herrschaft), em vez de simples poder (Macht), adentro do quadro analítico weberiano; e provavelmente mesmo autoridade “carismática”. É o que permite ao homem de negócios tanto cativar pela simpatia os seus colaboradores, a cuja atuação ele fornece unidade e projeto, como persuadir o comprador potencial, induzindo neste novas necessidades. A análise de Sombart aproxima-se assim da tradição da “Escola Austríaca”, particularmente Friedrich von Wieser (Ebner, 2006EBNER, Alexander. Schumpeterian entrepreneurship revisited: historical specificity and the phases of capitalist development. Journal of the History of Economic Thought, v. 28, n. 3, p. 315-332, 2006.; Campagnolo & Vivel, 2011CAMPAGNOLO, Gilles; VIVEL, Christel. Power and entrepreneurship in German political economy: the cases of Werner Sombart and Friedrich Von Wieser. WP Series, International Centre for Economic Research, WP n. 11, 2011.).

Catolicismo, protestantismo, judaísmo

Deve notar-se também que a definição proposta por Sombart ziguezagueia entre a simples caracterização psicológica, a busca de pretensos fundamentos “étnicos” ou “biológicos” dos tipos referidos e a identificação dos grupos sociais correspondentes e suas mentalidades. Quanto a “forças morais” e a “circunstâncias sociais” na génese do capitalismo moderno, e por contraste com o estudo de Weber (2001______. The protestant ethic and the spirit of capitalism. New York: Routledge, 2001.) sobre a ética protestante, destacando um acontecimento alegadamente excecional, no caso de Sombart estamos perante a sugestão de um processo civilizacional cumulativo, enquanto crescente racionalização das condutas. Este processo uniria a filosofia estoica da Antiguidade a várias correntes de cristianismo e à masserizia da Florença renascentista, continuando em crescendo até à época de Sombart. Nos escritores da Antiguidade, sobretudo Xenofonte e Séneca, encontra tanto “a ideia de racionalização da conduta vital”, particularmente relacionada às conceções de lei natural dos estoicos, como a legitimação do enriquecimento, ou a noção de que o tempo é escasso e deve ser devidamente aproveitado, ou ainda aquilo a que pura e simplesmente designa como “virtudes burguesas, especialmente a aplicação e a poupança” (Sombart, 1982: 234).

Já do catolicismo, sobretudo o tomismo, sublinha a “racionalização da vida” (Sombart, 1982______. El burgués. Introducción a la historia espiritual del hombre económico moderno. Madrid: Alianza Editorial, 1982 [1913].: 246), vinculada à defesa da liberalitas, para os escolásticos a “virtude económica propriamente dita” (Sombart, 1982: 248), o justo meio que, em sua busca racionalizadora, deve sobretudo evitar o ócio. Bem assim, a riqueza seria para o tomismo tendencialmente boa, os escolásticos posteriores ao século XIII legitimando aliás o próprio enriquecimento individual. Até mesmo o conceito de capital (dinheiro fértil, que cresce) teria sido produzido pela escolástica dos séculos XIV-XV, chega Sombart a argumentar. A própria condenação da usura é interpretada como um incentivo ao investimento produtivo, e nesse sentido, um elemento propiciador do capitalismo (Sombart, 1982: 243-260). Vários destes argumentos são decerto discutíveis, mas deve sublinhar-se que Sombart veio depois a ser largamente invocado por Amintore Fanfani na obra onde este procurou demonstrar que o catolicismo não inibira os progressos da atividade económica, bem pelo contrário (Fanfani, 2003).

No protestantismo vê Sombart basicamente uma continuação da obra dos escolásticos, aprofundada em virtude da intensificação dos sentimentos religiosos. Para o comum dos crentes, a ética pós-luterana seria quase igual à que vinha de antes da Reforma, embora intensificada por exaltação religiosa: labor, ocupação com coisas úteis, temperança, poupança. Todavia, o reforço da contenção e das restrições teria acabado por resultar em uma importante perda da “sensibilidade artística” (Sombart, 1982: 269) que no catolicismo produzira a inclinação para a magnificência, o “desejo de fazer algo grandioso e esplêndido”. Assim, com tudo o que trouxe de restrições voluntárias ao consumo, o protestantismo atrasou o desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, se libertou a usura de restrições, que poderemos concluir daí em função do acima dito? Nem tampouco exaltou a ética puritana o enriquecimento ilimitado, mas apenas um outro, refreado pela noção de preço justo, de retribuição equilibrada dos esforços: quanto a isso, atitude coincidente com a do tomismo (Sombart, 1982: 271).

Em contrapartida, do judaísmo é esse um dos traços postos em destaque. A moral judaica mantém, para o povo eleito, os princípios do preço justo; mas, no respeitante às relações com os gentios, opta por princípios a que hoje nos habituamos na vida económicos, cada agente limitando-se a tentar proceder da forma que lhe for mais vantajosa. O argumento da desregulamentação moral diz igualmente respeito aos empréstimos, o judeu devendo emprestar sem juros a um dos seus, mas podendo cobrá-los tratando-se de gentios. Quanto ao mais, os princípios da ética judaica não se afastam do padrão antes identificado como mentalidade burguesa. Sombart sugere que a própria conceção de uma divindade abstrata e sem mistérios, bem como a variedade de julgamento moral que lhe está associada, a ideia de um cuidadoso pesar dos méritos e das falhas do crente individual teriam estimulado uma mentalidade quantificadora ou “contabilística”, e individualista (Sombart, 2001: 143ss). Daí, precisamente, a associação explícita do judaísmo à invenção da contabilidade de dupla entrada (Sombart, 2001: 146-147), porventura a mais conhecida das teses sombartianas. Em boa verdade, o sistema de aferição dos créditos e das dívidas morais do crente permitiria mesmo distinguir a componente análoga ao investimento, ou “principal”, do sector correspondente ao lucro, podendo pois dizer-se que nesse sentido a moral judaica teria intuído e prefigurado o próprio conceito de capital (Sombart, 2001: 147)5 5 Para além mesmo de sua ligação ou não ao judaísmo, a questão da importância maior ou menor da contabilidade de dupla entrada tem sido alvo de interessantes debates. Basil Yamey (2005), por exemplo, negando validade à posição de Sombart, e Braudel, referindo-se-lhe em tom de ceticismo (Braudel: 1983: 573-575), enquanto Bruce Carruthers & Wendy Espeland (1991) valorizam sobretudo o elemento retórico ou de racionalização associado à mesma: não tanto a promoção em sentido estrito da racionalidade das condutas, notemo-lo, mas o efeito de persuasão e de apaziguamento de reservas morais, através do “equilibrar” formal dos processos. Ao fazer o levantamento das várias posições pró e anti, Eve Chiapello (2007) e John Ryan (2014) têm sobretudo palavras de elogio para a tese sombartiana. . Entretanto, cada crente seria julgado por suas ações e por si mesmo, méritos e deméritos referindo-se a factos objetivos e sendo desconsideradas as diferenças qualitativas: por conseguinte, deparamo-nos aqui com uma “lei igual para todos”, em sentido religioso, muito antes da época moderna. Tudo no judaísmo parece, desta forma, suscitar a racionalidade; e em particular a racionalidade capitalista das condutas.

A importância da ética judaica na génese da mentalidade capitalista, e em particular a do referido “duplo padrão”, só pode ser apreciada se tivermos em conta que os judeus viveram quase sempre disseminados entre outros povos. Sombart admite que a generalidade das minorias étnicas tende a desempenhar um papel económico relevante, dado a maior parte das vias de promoção social lhes estar frequentemente vedada. Por outro lado, é compreensível que aos estrangeiros a realidade social surja “desertificada”, “vazia”, “morta” - e pronta portanto para a quantificação e a manipulação. Esta afirmação é reputada válida também para várias outras minorias religiosas e étnicas (Sombart, 1982: 303-318). Todavia, o judaísmo, enquanto mentalidade do “povo do deserto” por excelência, e depois disso da grande cidade, a qual não é ela mesma senão o prolongamento do deserto (Sombart, 2001: 233), observou por isso uma afinidade perfeita com a ética capitalista na sua variante “burguesa”. Empreende mesmo a deteção de analogias entre a mentalidade dos puritanos do século XVII, na Grã-Bretanha, e a dos judeus em geral: o protestantismo só teria assim contribuído para o capitalismo na medida em que, por vezes, se assemelhou ao judaísmo (Sombart, 2001: 174-176)6 6 A ênfase nesse aspeto é todavia circunstancial, mantendo Sombart uma conceção multicausal da génese do capitalismo moderno. Para além disso, notemos que as alegadas fontes do espírito capitalista o são direta e logicamente: a ética judaica propicia as práticas capitalistas porque abole a noção de preço justo e induz uma atitude quantitativista, a escolástica tardia passa a autorizar o enriquecimento individual etc. O tom geral da sua análise é simples e diretamente compreensível, nisso diversamente do que sucede com Weber, para quem o núcleo do problema estaria nas “consequências psicológicas” (e não “lógicas”) e os nexos causais seriam muito oblíquos, o capitalismo constituindo um resultado não desejado do protestantismo. .

Se equivalente existe do que o protestantismo é para Weber, esse é pois o judaísmo, considerado em sintonia perfeita com as atividades capitalistas no que respeita ao traço “burguês” destas. Ora, para Sombart, como para a generalidade dos autores do referido “modernismo reacionário”, o predomínio do quantitativo e do impessoal vem a traduzir-se no “desencantamento do mundo”, na objetivação das relações sociais e na célebre “jaula de ferro”, vindo tudo isso frequentemente acoplado ao “judeu”. E apesar de Sombart basicamente se referir àquele do mesmo modo que Simmel (2004SIMMEL, Georg. O estrangeiro. In: ______. Fidelidade e gratidão e outros textos, p. 133-141. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2004.) se reporta ao “estrangeiro”, é compreensível que as preocupações relativas a judeofobia, ou mesmo ao antissemitismo, ocorram de forma pontual7 7 A idiossincrasia económica dos judeus tinha já sido destacada de modo enaltecedor na academia alemã, embora mais frequentemente isso ocorresse com intuitos maledicentes. Embora a posição de Sombart quanto a esse assunto tenha sofrido oscilações, as suas ideias devem ser avaliadas sobretudo pelo intrínseco mérito factual do destacar da especificidade judaica, não tanto por isso ter sido feito em registo de simpatia ou de antipatia. Quanto a esse aspeto o que fica da leitura do próprio é compatível sobretudo com a ideia de um povo judeu que, precisamente em virtude de sua condição de isolamento (fosse este imposto por outros ou autoimposto), reforçada pela ética particular que segregou (supostamente um facto cultural, embora as hipóteses biológicas-raciais não fossem pelo próprio nem absolutamente descartadas nem taxativamente aceites), se tornou particularmente inclinado para o polo “burguês”, quantitativo, racional e utilitário, na habitual antinomia sociológica “comunidade-sociedade”: o polo “societário”, obviamente gerador de racionalidade, mas também de desencantamento. Nada mais resulta necessariamente da análise de Sombart. As suas teses sobre o judaísmo continuam todavia a suscitar acirradas polémicas, constituindo decerto uma das razões pelas quais ele não é considerado parte do cânone sociológico oficial. Quanto ao mapeamento de posições de vários autores a respeito do tema dos judeus e do judaísmo na obra de Sombart, cf. Reiner Grundmann & Nico Stehr (2001: 270-271). Também a este respeito, e para uma visão muito crítica da sua obra, cf. Michal Bodemann (2014). .

Racismo e eurocentrismo

Deve talvez constituir um fator de reapreciação da obra de Sombart o facto de ele ter considerado a religião dos judeus muito importante para a génese do capitalismo moderno, ao passo que para Weber eles aparecem basicamente na condição de povo apátrida e produzindo pois um “capitalismo de párias”, o qual, ao lado do “capitalismo de piratas” e de outras variedades similares, é deixado decididamente do lado das correntes pré-modernas. A relevância destes na produção do “capitalismo racional” seria nula, ou pelo menos empalideceria em face da importância da ética protestante. Por conseguinte, sublinhemo-lo, para Weber a história da modernidade é gerada por uma variedade de religiosidade rigorosamente europeia norte-ocidental e apenas, ao passo que Sombart reconhece protagonismo e importância a muito mais aspetos, em uma paleta social, étnica e geográfica bem mais diversificada. A diferença principal, pode dizer-se, está assim na total irrelevância dos judeus para a emergência do moderno capitalismo racional, segundo Weber. De facto, na relação entre capitalismo, protestantismo e judaísmo podemos resumidamente dizer que Max Weber (2001), ao postular uma relação de “afinidade eletiva” entre capitalismo e protestantismo, procedeu à integração simbólica daquele na Kultur germânica, obtendo assim sua reconciliação com o imaginário da “comunidade popular” e com o “orgânico”.

Compreende-se pois que Weber relacione o protestantismo com o capitalismo nascente e o associe em simultâneo à ética do trabalho profissional, à “vocação” e a uma obra geral de “transfiguração de valores”. Atribui-lhe, em suma, um claro sentido heroico. Por contraste, para Sombart o judeu (tipicamente mercador ou financeiro) é predominantemente exterior aos processos produtivos propriamente ditos. Estando-lhe associado sobretudo um traço quantificador, fica limitado ao aspeto “burguês” e tende a ser mapeado do lado dos aspetos correlativos ao capitalismo tardio, com as mesmas características que Weber vê neste: desencantamento, “jaula de ferro” etc. Sombart também reconcilia o capitalismo com a Kultur, sim, mas da forma oposta, através da figura do “empresário”: inspirado, associado ao qualitativo e à transmutação dos valores (cf. Ebner, 2006EBNER, Alexander. Schumpeterian entrepreneurship revisited: historical specificity and the phases of capitalist development. Journal of the History of Economic Thought, v. 28, n. 3, p. 315-332, 2006.; Loader, 2001LOADER, Collin. Puritans and jews: Weber, Sombart and the transvaluators of modern society. Canadian Journal of Sociology, v. 26, n. 4, p. 635-653, 2001.; Reinert & Reinert, 2006REINERT, Hugo; REINERT, Erik S. Creative destruction in economics: Nietzsche, Sombart, Schumpeter. In: BACKHAUS, J. G.; DRECHSLER, W. (Eds.). Friedrich Nietzsche (1844-1900). The European heritage in economics and the social sciences, v. 3. Boston, MA: Springer, 2006.).

Enfim, quanto à deriva propriamente biológica, ou seja, estritamente antissemita e racista, deve mencionar-se pelo menos que, mesmo na última fase de sua evolução, tendo aderido formalmente ao nazismo, Sombart opinou publicamente que o “espírito judeu” era para si uma realidade sobretudo cultural, que já se teria aliás disseminado de maneira irreversível por todo o mundo, independentemente daquilo que viesse a ser o destino de uma minoria concreta, identificada como judaica, fosse qual fosse o critério usado para a definição desta: religioso ou biológico (Sombart, 1937: 176-179; Bodemann, 2014BODEMANN, Y. Michal. Coldly admiring the jews: Werner Sombart and classical german sociology on nationalism and race. In: STOETZLER, Marcel (Ed.). Antisemitism and the constitution of sociology, p. 110-134. Lincoln,NE; London: University of Nebraska Press, 2014.: 127-128). A questão central estaria em todo caso nos aspetos culturais, os traços biológicos sendo algo decerto a considerar, mas enquanto elemento secundário, conforme deixa patente também em uma tirada em O socialismo alemão, que nem por ser patética deixa de merecer consideração:

O espírito alemão em um negro está dentro dos limites das possibilidades, tal como o espírito negro em um alemão. A única coisa que pode ser provada é que homens com um espirito alemão são muito mais frequentes na gente alemã do que entre a gente negra, e vice-versa (Sombart, 1937______. A new social philosophy [Deutscher Sozialismus]. London: Oxford University Press, 1937 [1934].: 175).

Não se pode evidentemente saber se Sombart, ao escrever estas linhas, tinha em mente os imigrantes de proveniência alemã no Brasil, usados como mão de obra alternativa pelos setores económicos aos quais a abolição da escravatura tinha deixado com problemas de escassez daquele recurso. Em todo o caso, ele é, quanto a este grupo de assuntos, frequentemente julgado duma forma hostil ou, na melhor das hipóteses, equívoca, como é o caso designadamente com Rammstedt (1988), Grundman & Stehr (2001) e Bodemann (2014BODEMANN, Y. Michal. Coldly admiring the jews: Werner Sombart and classical german sociology on nationalism and race. In: STOETZLER, Marcel (Ed.). Antisemitism and the constitution of sociology, p. 110-134. Lincoln,NE; London: University of Nebraska Press, 2014.). É todavia completamente exonerado por Iannone (2015IANNONE, Roberta. Footsteps of man, traces of thought. Vom Menschen of Werner Sombart. DADA - Rivista di Antropologia Post-Globale, v. 1, p. 117-128, 2015.) e por Protti (2015PROTTI, Mauro. Sombart and the jews. DADA - Rivista di Antropologia Post-Globale, v. 1, p. 183-196, 2015.)8 8 Parece conveniente ganhar perspetiva na consideração deste assunto, notando outrossim que essas teses são divulgadas em um contexto cultural (europeu e norte-americano) em que as ideias racistas gozam de um enorme curso, sendo de facto ideias generalizadamente aceites (Gould, 1996). Recordemos que o próprio projeto nazi buscou explicitamente inspiração quer na experiência colonial europeia (sobretudo britânica), quer na “democracia racial” que os Estados Unidos teriam conseguido produzir (Losurdo, 2011; Whitman, 2017). Por outro lado, é sintomático que também na década de 1930 um autor como Amintore Fanfani (2003: 157), a respeito do maior ou menor propiciar do capitalismo, e depois de referir a vantagem, advogada pelo próprio Max Weber (2001: xliii), de considerar mais atentamente os pretensos fatores hereditários, discuta com seriedade e equanimidade as teses, sugerindo, por exemplo, que os povos “dolicocéfalos” e/ou “braquicéfalos” seriam mais ou menos inclinados àquele, e em que fases do mesmo. .

O empresário e a dinâmica do capitalismo

As teses de Sombart relativas à dinâmica do capitalismo levaram-no à periodização desta em sua obra maior, O capitalismo moderno: protocapitalismo, caracterizado pelo predomínio do artesanato e da produção económica autossuficiente (aproximadamente até ao Renascimento), capitalismo nascente (daí até ao final do século XVIII) e alto capitalismo (até ao começo do século XX). Ao perspetivar o futuro, conclui pelo tendencial reaparecimento, no âmbito de um emergente “capitalismo tardio”, de traços característicos de épocas anteriores. As estruturas económicas deveriam evoluir em um sentido neotradicionalista e de “reagrarização”, sob a ameaça cruzada da acumulação excessiva de capitais e da escassez de recursos naturais, por bloqueio ecológico. Passar-se-ia assim para uma economia neopatriarcal e corporativa, com crescimento da parte da população ativa empregue no sector agrícola e reforço da classe média rural, conjugado com uma intervenção pública garantidora dos princípios de propriedade privada, autoridade e hierarquia, mas tendo sempre como critério norteador a prevalência das considerações de índole política. Paralelamente seriam reforçadas as tendências autárcicas, em parte como consequência da fundamental natureza de “política de poder” das relações internacionais, onde a guerra é uma ameaça constante (cf. Sombart, 1946, v. II: 488ss; 2014, v. III, cap. 60; Chaloupek, 1995CHALOUPEK, Günther. Long-term economic perspectives compared: Joseph Schumpeter and Werner Sombart. The European Journal of the History of Economic Thought, v. 2, n. 1, p. 127-149, 1995.: 139). Vários desses traços sugerem evidentemente as economias dos regimes fascistas ou aparentados, característicos do período entreguerras: corporativismo, Führerprinzip, autarcia, culto do campesinato independente, inclinação de fundo neoagrarista, todavia refreada pelas considerações belicistas em política internacional. É precisamente por isso que, sem embargo de suas diferenças de atitude para com a análise económica, se torna interessante sublinhar várias afinidades das ideias de Sombart com as de Joseph Schumpeter. Fica o registo das principais similitudes.

Temos, antes de mais, a importância da ideia do empresário enquanto inovador9 9 A emergência da figura do empresário na história das ideias económicas ocorre através da obra de Jean-Baptiste Say, que combina fatores produtivos diversos (terra, trabalho e capital), fazendo acrescer nessa ação unificadora um elemento distinto de valor (Say, 1972: 348-358). Podemos dizer que o empresário unificador é o correlato económico do “poder moderador”, contemporaneamen-te acrescentado por Benjamin Constant à clássica conceção tripartida da soberania. Say inovou assim em teoria económica, importando da filosofia política um elemento “decisionista”, ou “bonapartista”. E a tradição posterior sublinhou também que este fator de combinação introduz algo de “vital”, gerando capacidade de conviver com a novidade e o imprevisto. No caso de Sombart, como no de Schumpeter, e dado que o empresário agora é sobretudo um inovador, os traços de excecionalidade saem reforçados, embora expondo também um traço potencialmente agressivo e predatório, que na versão de Say permanece recalcado. . A inovação refere-se a todos os aspetos da vida económica: padrões de consumo, novas técnicas, novos produtos. O motor de tais mudanças reside, via procura, em última análise no desejo de reconhecimento social através do consumo, o qual comporta inevitavelmente uma dimensão de conflito: a famosa “heterogonia de objetivos”. Para além das referências comuns à obra de Wundt, do qual Schumpeter (1984SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.: 172) recolhe a designação, deve notar-se também a provável inspiração no modelo de conduta correspondente à “sociedade de duelistas”, satisfaktionsfähige Gesellschaft, ao qual Norbert Elias (1996ELIAS, Norbert. The germans. Cambridge, UK: Polity Press, 1996.: 51ss) reporta os traços mais distintivos da versão alemã do processo civilizacional. Trata-se de se assumir o imperativo de resposta a um desafio fixado por outrem, sob pena de se perder a respeitabilidade social. Impelida pelo jogo cego das interações sociais, a inovação é pois considerada o resultado de uma inspiração primordialmente não racional, antes pulsional, inspirada e fantasiosa.

O empresário é em tudo um fator de primordial importância, dadas as suas capacidades para unir, coordenar, persuadir, regenerar. De facto, ele constitui o perfeito análogo do dirigente carismático de Weber, evocando também inconfundivelmente o Übermensch nietzschiano, criador de valores novos e operando pois através de uma dionisíaca “destruição criadora”. Este outro traço, que Schumpeter associou depois ao empresário, é perfeitamente identificável já na obra de Sombart com os mesmos lineamentos, podendo mesmo dizer-se que, em boa medida, Schumpeter ocultou o quanto a sua tese ficou a dever à daquele (Ebner, 2006EBNER, Alexander. Schumpeterian entrepreneurship revisited: historical specificity and the phases of capitalist development. Journal of the History of Economic Thought, v. 28, n. 3, p. 315-332, 2006.; Loader, 2001LOADER, Collin. Puritans and jews: Weber, Sombart and the transvaluators of modern society. Canadian Journal of Sociology, v. 26, n. 4, p. 635-653, 2001.; Reinert & Reinert, 2006REINERT, Hugo; REINERT, Erik S. Creative destruction in economics: Nietzsche, Sombart, Schumpeter. In: BACKHAUS, J. G.; DRECHSLER, W. (Eds.). Friedrich Nietzsche (1844-1900). The European heritage in economics and the social sciences, v. 3. Boston, MA: Springer, 2006.).

Se as considerações de Schumpeter acerca do carácter criativo e inovador do capitalismo são pois facilmente identificáveis, já na obra de Sombart, este último ter-se-á entretanto persuadido de que, estando o capitalismo ameaçado pelas tendências democratizadoras, a busca da distinção deveria abrandar, o consumo de massa sendo insuficiente, pelo que a economia tenderia para uma situação de insuficiência de procura efetiva (Sombart, 1946, v. II: 78-83, 87ss; 2014: v. III, cap. 60). Por conseguinte, em seu retrato do “capitalismo tardio” o anterior tropo da insatisfação permanente e do movimento perpétuo acaba por ceder o passo ao tema exatamente oposto: rotinização, objetivação, mediania etc. Mais amplamente, Sombart cogitou outrossim, em tom de aprovação (e já depois da chegada dos nazis ao poder), sobre uma eventual ultrapassagem da “Idade económica” (Sombart, 1937: 22-25) na história das sociedades, associada à presumível renovação espiritual das mesmas, a desaceleração do ritmo de crescimento podendo corresponder a vantagens de várias ordens, um pouco como nas mais recentes teorias sobre o “crescimento-zero” e/ou o “decrescimento” (Iannuzi, 2019). Acima de tudo, porém, o crescimento económico dos países europeus estaria comprometido por razões de bloqueio ecológico (esgotamento de recursos naturais) e pelo fim do domínio do conjunto do mundo pela Europa, a emergência de rivais nas “periferias” ameaçando assim a posição dos países do “centro” de um sistema-mundo que Sombart, em uma atitude bem menos eurocêntrica do que o usual em sua época, considera inequivocamente estar fundada em dominação e em exploração/predação (Sert, 2018SERT, Mesu. Werner Sombart and his analysis of “the future of capitalism”. In: WIRTH, Eszter; ŞIMŞEK, Orhan; APAYDIN, Şükrü (Eds.). Economic and management issues in retrospect and prospect, p. 9-21. London; Istambul: Ijopec Publication Ltd., 2018.; Roșca, 2018ROȘCA, Vlad I. Theoretical Considerations on the evolution of Sombart’s center-periphery model. Review of International Comparative Management, v. 19, n. 1, p. 77-87, March 2018.).

Sublinhemos enfim o quanto é marcante, no diagnóstico sombartiano, a componente propriamente retórica. Tão ou mais relevante do que a enumeração dos supostos fatores da perda do dinamismo capitalista é decerto o pathos de incerteza e indeterminação na conclusão do seu argumento: o capitalismo tenderá a amolecer, “rendido de cansaço”, cedendo à pressão conjunta dos “prestamistas”, da “crescente burocratização das empresas” e da queda da natalidade, evolução da qual “nenhum entusiasmo nacional ou religioso” poderá desviá-lo. O que faz Sombart rematar, nas últimas linhas de Der Bourgeois: “Talvez o gigante, já cego, seja condenado então a puxar pela carroça democrática da cultura. Mas talvez seja também a hora do ocaso dos deuses. Chegado esse momento, o ouro voltará às águas do Reno. Quem sabe?” (Sombart, 1982: 368).

Os Estados Unidos e o socialismo

Na obra de Raymond Boudon (1979BOUDON, Raymond. La logique du social. Paris: Hachette, 1979.) podemos encontrar outra referência importante aos escritos de Sombart em literatura assumidamente sociológica. Segundo argumenta, poderia retirar-se de seu trabalho sobre os Estados Unidos:

  • i. um exemplo do método “generalizante” da sociologia, em oposição à perspetiva “individualizante” da história; e

  • ii. uma ilustração de “individualismo metodológico”, isto é, uma tentativa de explicar as configurações sociais com base na suposição da existência de escolhas racionais por cada indivíduo.

Em seu ensaio Por que o socialismo não existe nos Estados Unidos? a realidade social norte-americana teria sido considerada por Sombart de forma tal que, do ponto de vista de cada agente, seria geralmente mais racional prosseguir uma estratégia individual do que em grupos. A tendência seria pois a da aposta na mobilidade social vertical individual, mais do que no protesto político, assente na “ação coletiva” organizada dos grupos desfavorecidos. Ainda assim, Boudon reconhece que existe ação coletiva nos Estados Unidos, mas correspondendo mais a grupos étnicos do que a classes sociais. Tais factos traduzir-se-iam na quase inexistência de ideário socialista, no que o seu diagnóstico coincidiria com o de Sombart10 10 Deve registar-se que a adoção de perspetivas mais “individualizantes” ou mais “generalizantes” pode caracterizar, em graus variáveis, quer pesquisas historiográficas quer sociológicas. Essa separação disciplinar resulta mais da inércia de instituições académicas diversas do que de qualquer diferença processual essencial, lógica. Relativamente às alegadas tendências “individualistas” dos norte-americanos, Boudon parte na verdade de uma tese mais radical (a pertinência de considerar a lógica da ação humana como suscetível de ser reduzida a um modelo de inspiração económica, o do célebre “agente racional”), para sub-repticiamente vir a abandonar este terreno a favor de uma tese bem mais limitada: a da aplicabilidade do mencionado modelo ao caso dos Estados Unidos, mas tomando isso como manifestação de uma excecionalidade americana, o que é obviamente diverso da tese inicialmente proposta. Ainda assim, mesmo para os Estados Unidos, quer Sombart, quer Boudon reconhecem a importância de uma variedade específica de ação coletiva, embora assente mais em afinidades étnicas e religiosas do que de natureza económica. . A discussão das pretensas especificidades da experiência norte-americana remonta evidentemente muito atrás - pelo menos a Tocqueville -, prolongando-se até aos célebres estudos de Hirschman (1970______. Exit, voice, and loyalty: responses to decline in firms, organizations, and States. Cambridge, MA; London: Harvard University Press, 1970.: 106-117) e de Lipset (1997LIPSET, Seymour Martin. American exceptionalism: a double-edged sword. New York; London: W. W. Norton & Company Inc., 1997.). As questões da proliferação dos grupos e dos critérios presidindo à sua organização, a diversidade dos mesmos, a importância da ascensão económica individual, ou pelo menos da sua expectativa em face do esforço de promoção conjugado - eis inegavelmente fatores a considerar no estudo da sociedade norte-americana, sendo o trabalho de Sombart um marco indiscutível nesta tradição académica. Quanto a isso, a iniciativa de Raymond Boudon afigura-se merecedora de elogio.

A sua posição deve todavia ser contrastada com a de Robin Archer (2016ARCHER, Robin. Labour politics in the new world: Werner Sombart and the United States. Journal of Industrial Relations, v. 49, n. 4, p. 459-482, 2016.), apoiado na comparação dos Estados Unidos com a Austrália. Segundo este, haveria todo um grupo de traços comuns às experiencias sociopolíticas norte-americana e australiana. Não obstante, a verdade é que na Austrália veio a implantar-se um Partido Trabalhista reclamando-se dos ideais socialistas, tal como o seu análogo britânico, pelo que faria sentido regressar às questões do famoso estudo de Sombart. No seu balanço global, Archer rejeita por exemplo as ideias sombartianas relativas à pretensa especificidade das relações industriais nos Estados Unidos (a alegada generosidade superficial dos empregadores norte-americanos), mas admite, por contraste, a existência aí de um maior igualitarismo e de uma maior mobilidade social que na Europa11 11 Ideia a confrontar com o diagnóstico apresentado por Walter Michaels (2008), para quem a noção dos Estados Unidos como “terra da oportunidade” seria há muito um mero mito sem suporte factual. Para o cidadão norte-americano nascido em Chicago, sobretudo se afro-americano, Berlim constituiria no princípio do século XXI, por comparação, uma verdadeira “terra da oportunidade”. . Todavia, acrescenta, o caso australiano é em quase tudo isso similar ao norte-americano, incluindo o igualitarismo e a existência de uma frontier, isto é, de terras disponíveis para lotear por colonos brancos.

Por que então a significativa diferença das trajetórias? Das teses avançadas por Sombart, só a importância das máquinas políticas e os elevados níveis de lealdade partidária, com a transformação dos partidos em verdadeiras “igrejas políticas” lhe parecem aceitáveis. A explicação central, segundo Archer, residiria alhures, sendo necessário levar em conta:

  • i. o importante aspeto da diversidade cultural (étnica, religiosa etc.), induzida pelas sucessivas vagas de imigração e muito maior nos Estados Unidos, fazendo assim inibir a solidariedade laboral a favor de outras formas de ação coletiva;

  • ii. a repressão policial, que também teria sido muito mais acentuada no caso dos Estados Unidos, matando os possíveis germes de ideias socialistas na origem e assim “salgando o solo” norte-americano (talvez definitivamente) para o socialismo. Em vez de razões socioculturais de fundo, a explicação da trajetória dos Estados Unidos remeteria assim para aspetos mais epidérmicos, sugerindo a pertinência de uma “explicação da política pela política”.

Observações finais

Parece inegável que Sombart se manteve largamente como presença “estrangeira” (no sentido simmeliano) na tradição sociológica: em parte no interior desta, em parte no seu exterior. Todavia, pode dizer-se que permanece também em simultâneo alguém plenamente nosso contemporâneo, capaz de nos colocar questões e nos fazer considerar problemas espinhosos. Seja acerca das relações entre guerra, luxo e capitalismo, sobre as origens religiosas deste, ou acerca de Estados Unidos e socialismo, os seus textos continuam estimulantes e provocatórios. Isso é visível quer pelas várias concordâncias manifestadas, quer nos múltiplos propósitos declarados de os refutar: decerto a melhor homenagem que, a um século de distância, se pode fazer a um autor. Mais importante, assim, do que dar razão a Boudon ou a Archer, resulta o próprio facto, merecedor de sublinhado, de eles serem interpelados por Sombart, aliás de formas muito diferenciadas.

O mesmo é válido para a consciência de que a realidade designada como “capitalismo” tem dimensões muito profundas, incluindo a famosa inclinação “fáustica” para a ambição desmedida, a qual pode talvez ser controlada, mas decerto não completamente suprimida. Que esse reconhecimento implica escolhas, incluindo escolhas políticas, algumas delas talvez trágicas: eis algo que os escritos de Sombart nos permitem obter facilmente e com abundância. Em outros termos, na sua obra espelha-se o reconhecimento amplo e pleno dessa realidade cultural importante que é, conforme sublinhado por Glaucia Villas Bôas (2001: 190, 193), o próprio conflito de valores, aliás por vezes um conflito insanável. Em suma, através da leitura de Sombart somos recordados acerca de nosso “politeísmo” cultural coletivo, como Max Weber (2005WEBER, Max. “A ciência como vocação. In: ______. Três tipos de poder e outros escritos, p. 117-144. Lisboa: Tribuna da História, 2005.: 136), seguindo John Stuart Mill, certa vez o designou.

Autor multifacetado e mesmo algo sobreabundante, munido de um discurso predominantemente arborescente, muito mais do que linear, a riqueza e as tensões da obra de Sombart estão outrossim presentes na própria ambivalência constitutiva de sua categoria de capitalismo. Largamente apoiado nela, Fernand Braudel (1983BRAUDEL, Fernand. Civilization and capitalism 15th-18th century, v. II: “The wheels of commerce”. London: Book Club Associates, 1983.: 573) chega a propor a fórmula segundo a qual “um elemento maior no desenvolvimento capitalista foi a tomada de risco e um gosto pela especulação”, mas acrescenta de imediato que a “teoria de jogos” seria, ainda assim, uma fórmula insuficiente para captar a referida realidade, tal a diversidade de formas em que os referidos “jogos” se podem desdobrar: o que acaba por constituir uma magnífica vénia a Sombart, relativa à enorme riqueza semântica de sua oposição burguês × empresário. Os conflitos de valores constitutivos da nossa época não se resumem decerto àquela oposição. Todavia, em que medida poderão ser considerados uma expressão das possibilidades abertas por seu desdobramento indefinido?

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  • i
    . Este trabalho foi apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a agência nacional portuguesa para o financiamento da ciência, investigação e tecnologia, no âmbito do Projeto UIDB/04521/2020.
  • 1
    Em outra formulação deste grupo de problemas, Sombart terá procurado sobretudo uma terceira via entre as abordagens ditas “normativa” e “naturalista”, vindo a distinguir três modelos analíticos para a ciência económica: “normativo” (richtende), “ordenador” (ordnende) e “compreensivo” (verstehende), aceitando, evidentemente, combinações deles, mas explicitando a sua inclinação para o terceiro. Com isso tornou clara a sua pretensão de uma atitude oficialmente “livre de valores” (wertfrei), distanciando-se assim da acoplagem da ciência a um projeto de reforma social, mas pretendendo ao mesmo tempo ultrapassar o mero controlo de processos naturais, como na abordagem dita naturalista ou ordnende (Plotnik, 1937: 72; Peukert, 2012: 538).
  • 2
    Pelo menos em parte isto pode, em ambos os casos, ser entendido como relevando de uma atitude do conservadorismo: a aparente novidade é-o bastante menos do que habitualmente se pensa. Argumento da “inanidade”, portanto, no âmbito da tipologia da “retórica reacionária” a que procedeu Albert Hirschman (1991). Traduz também um Zeitgeist eminentemente eurocêntrico e colonial-imperial: na Europa, e só nela, podiam ter emergido as formas sociais destinadas a dominar o mundo (cf. Blaut, 2000).
  • 3
    Registe-se que, para Sombart, as virtudes guerreiras (disciplina, diligência, persistência, mas também cálculo exato, visão global, comando unificado e sentido de timing) são praticamente um decalque das virtudes económicas, ou vice-versa. Expressam uma mistura de componentes ditas “burguesas” e “empresariais”, conforme a sua tipificação das virtudes económicas, na qual o elemento “burguês” predomina na base da hierarquia e o “empresarial” no topo. A sua atitude face à guerra, sublinhando a importância da procura, constitui um verdadeiro “keynesianismo militar” ante litteram: é uma abordagem demand side, mas destacando os aspetos relativos não a um welfare state, mas a um warfare state. É também singularizável porque se trata aqui de salientar e elogiar a componente competitiva ou agonística do consumo, elemento inseparável da desigualdade social, ao passo que o keynesianismo foi de pendor igualitário.
  • 4
    Trata-se, em um certo sentido, de uma verdadeira caracterologia, isto é, da identificação de tipos psicológicos. O temperamento de empresário é “agudo”, “perspicaz”, “engenhoso”, “pletórico de ideias e de alvitres, dotado duma fantasia especial, a que Wundt chama combinatória”. Não liga com “o artesão, o prestamista, o esteta, o erudito, o vivedor, o moralista e similares” (Sombart, 1982: 209), antes com “conquistadores, organizadores e negociadores”. Outras marcas suas estão presentes também no jogador de xadrez e no médico genial: “A arte do diagnóstico capacita não só para curar doentes, mas também para ter êxitos nas especulações da Bolsa” (Sombart, 1982: 209). Quanto ao temperamento de burguês, corresponde à célebre antinomia de Bergson opondo o homme ouvert ao homme clos (Sombart, 1982: 210). Entre a luxuria e a avareza, tende obviamente para esta. É recetivo, não expansivo; e valorizando tudo não subjetivamente, mas objetivamente, nunca compreenderia Cícero quando o romano afirmava que “o que importa não é a utilidade de cada um, mas o que se é” (Sombart, 1982: 210).
  • 5
    Para além mesmo de sua ligação ou não ao judaísmo, a questão da importância maior ou menor da contabilidade de dupla entrada tem sido alvo de interessantes debates. Basil Yamey (2005), por exemplo, negando validade à posição de Sombart, e Braudel, referindo-se-lhe em tom de ceticismo (Braudel: 1983: 573-575), enquanto Bruce Carruthers & Wendy Espeland (1991) valorizam sobretudo o elemento retórico ou de racionalização associado à mesma: não tanto a promoção em sentido estrito da racionalidade das condutas, notemo-lo, mas o efeito de persuasão e de apaziguamento de reservas morais, através do “equilibrar” formal dos processos. Ao fazer o levantamento das várias posições pró e anti, Eve Chiapello (2007) e John Ryan (2014) têm sobretudo palavras de elogio para a tese sombartiana.
  • 6
    A ênfase nesse aspeto é todavia circunstancial, mantendo Sombart uma conceção multicausal da génese do capitalismo moderno. Para além disso, notemos que as alegadas fontes do espírito capitalista o são direta e logicamente: a ética judaica propicia as práticas capitalistas porque abole a noção de preço justo e induz uma atitude quantitativista, a escolástica tardia passa a autorizar o enriquecimento individual etc. O tom geral da sua análise é simples e diretamente compreensível, nisso diversamente do que sucede com Weber, para quem o núcleo do problema estaria nas “consequências psicológicas” (e não “lógicas”) e os nexos causais seriam muito oblíquos, o capitalismo constituindo um resultado não desejado do protestantismo.
  • 7
    A idiossincrasia económica dos judeus tinha já sido destacada de modo enaltecedor na academia alemã, embora mais frequentemente isso ocorresse com intuitos maledicentes. Embora a posição de Sombart quanto a esse assunto tenha sofrido oscilações, as suas ideias devem ser avaliadas sobretudo pelo intrínseco mérito factual do destacar da especificidade judaica, não tanto por isso ter sido feito em registo de simpatia ou de antipatia. Quanto a esse aspeto o que fica da leitura do próprio é compatível sobretudo com a ideia de um povo judeu que, precisamente em virtude de sua condição de isolamento (fosse este imposto por outros ou autoimposto), reforçada pela ética particular que segregou (supostamente um facto cultural, embora as hipóteses biológicas-raciais não fossem pelo próprio nem absolutamente descartadas nem taxativamente aceites), se tornou particularmente inclinado para o polo “burguês”, quantitativo, racional e utilitário, na habitual antinomia sociológica “comunidade-sociedade”: o polo “societário”, obviamente gerador de racionalidade, mas também de desencantamento. Nada mais resulta necessariamente da análise de Sombart. As suas teses sobre o judaísmo continuam todavia a suscitar acirradas polémicas, constituindo decerto uma das razões pelas quais ele não é considerado parte do cânone sociológico oficial. Quanto ao mapeamento de posições de vários autores a respeito do tema dos judeus e do judaísmo na obra de Sombart, cf. Reiner Grundmann & Nico Stehr (2001: 270-271). Também a este respeito, e para uma visão muito crítica da sua obra, cf. Michal Bodemann (2014).
  • 8
    Parece conveniente ganhar perspetiva na consideração deste assunto, notando outrossim que essas teses são divulgadas em um contexto cultural (europeu e norte-americano) em que as ideias racistas gozam de um enorme curso, sendo de facto ideias generalizadamente aceites (Gould, 1996). Recordemos que o próprio projeto nazi buscou explicitamente inspiração quer na experiência colonial europeia (sobretudo britânica), quer na “democracia racial” que os Estados Unidos teriam conseguido produzir (Losurdo, 2011; Whitman, 2017). Por outro lado, é sintomático que também na década de 1930 um autor como Amintore Fanfani (2003: 157), a respeito do maior ou menor propiciar do capitalismo, e depois de referir a vantagem, advogada pelo próprio Max Weber (2001: xliii), de considerar mais atentamente os pretensos fatores hereditários, discuta com seriedade e equanimidade as teses, sugerindo, por exemplo, que os povos “dolicocéfalos” e/ou “braquicéfalos” seriam mais ou menos inclinados àquele, e em que fases do mesmo.
  • 9
    A emergência da figura do empresário na história das ideias económicas ocorre através da obra de Jean-Baptiste Say, que combina fatores produtivos diversos (terra, trabalho e capital), fazendo acrescer nessa ação unificadora um elemento distinto de valor (Say, 1972: 348-358). Podemos dizer que o empresário unificador é o correlato económico do “poder moderador”, contemporaneamen-te acrescentado por Benjamin Constant à clássica conceção tripartida da soberania. Say inovou assim em teoria económica, importando da filosofia política um elemento “decisionista”, ou “bonapartista”. E a tradição posterior sublinhou também que este fator de combinação introduz algo de “vital”, gerando capacidade de conviver com a novidade e o imprevisto. No caso de Sombart, como no de Schumpeter, e dado que o empresário agora é sobretudo um inovador, os traços de excecionalidade saem reforçados, embora expondo também um traço potencialmente agressivo e predatório, que na versão de Say permanece recalcado.
  • 10
    Deve registar-se que a adoção de perspetivas mais “individualizantes” ou mais “generalizantes” pode caracterizar, em graus variáveis, quer pesquisas historiográficas quer sociológicas. Essa separação disciplinar resulta mais da inércia de instituições académicas diversas do que de qualquer diferença processual essencial, lógica. Relativamente às alegadas tendências “individualistas” dos norte-americanos, Boudon parte na verdade de uma tese mais radical (a pertinência de considerar a lógica da ação humana como suscetível de ser reduzida a um modelo de inspiração económica, o do célebre “agente racional”), para sub-repticiamente vir a abandonar este terreno a favor de uma tese bem mais limitada: a da aplicabilidade do mencionado modelo ao caso dos Estados Unidos, mas tomando isso como manifestação de uma excecionalidade americana, o que é obviamente diverso da tese inicialmente proposta. Ainda assim, mesmo para os Estados Unidos, quer Sombart, quer Boudon reconhecem a importância de uma variedade específica de ação coletiva, embora assente mais em afinidades étnicas e religiosas do que de natureza económica.
  • 11
    Ideia a confrontar com o diagnóstico apresentado por Walter Michaels (2008), para quem a noção dos Estados Unidos como “terra da oportunidade” seria há muito um mero mito sem suporte factual. Para o cidadão norte-americano nascido em Chicago, sobretudo se afro-americano, Berlim constituiria no princípio do século XXI, por comparação, uma verdadeira “terra da oportunidade”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2021
  • Aceito
    08 Nov 2021
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