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Os desafios contemporâneos para a democratização em países em desenvolvimento: a classe média autoritária

ROSENFELD, Bryn. The autocratic middle class: how state dependency reduces the demand for democracy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2021

Para as principais teorias sobre democratização (modernizante e redistributiva), a classe média cumpre um papel central. Por um lado, é considerada um ator modernizante e liberal; por outro, é vista como a força que facilita a mobilização de outras classes em favor da democracia. No entanto, nas últimas décadas, temos observado países onde a ascensão da classe média não tem se traduzido em democratização, transformando-se num fenômeno que impõe novos desafios para analistas da democracia. O trabalho mais recente da cientista política Bryn Rosenfeld, The autocratic middle class: how state dependency reduces the demand for democracy (2021ROSENFELD, Bryn. The autocratic middle class: how state dependency reduces the demand for democracy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2021., ainda sem tradução para o português), é um dos primeiros dedicados a buscar entender por que a nova classe média de países autocráticos em desenvolvimento não parece ser um ator democratizante.

Rosenfeld é professora de ciência política na Universidade de Cornell, o livro é o resultado de sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Princeton (2015), e estudos recentes ajudaram a complementar a análise. O livro faz parte da coleção “Princeton studies in political behavior”, dedicada a trabalhos focados nas tendências contemporâneas em comportamento político. Nosso objetivo é apresentar seu trabalho aos leitores brasileiros e estimular o debate sobre desenvolvimento e democratização no pós-Guerra Fria a partir das questões, dos conceitos e mecanismos indicados e observados pela autora. Apesar de seu estudo ser baseado em países pós-soviéticos, os fenômenos observados podem servir para nos fazer refletir sobre problemas semelhantes em países em desenvolvimento em outras regiões, como a própria América Latina.

O primeiro capítulo é a introdução ao trabalho. A questão central gira em torno de como a estrutura econômica e social de países autoritários afeta a formação da classe média, portanto, concerne às possibilidades de democratização. O argumento (hipótese) é o seguinte: quando o status, as expectativas e os planos de vida da classe média estão atrelados ao Estado, a tendência é de que a classe média não se torne liberalizante, pelo contrário, transforma-se em força política conservadora e antidemocrática. Nesse sentido, haveria uma grande diferença no comportamento político de uma classe média formada no setor privado e outra que depende do Estado para manter o seu status. Os países pós-soviéticos autocráticos são exemplos de lugares onde a classe média tem se consolidado em dependência do Estado, assim, faz sentido estudar esses países como casos representativos. Em termos metodológicos, a autora busca identificar os mecanismos que fazem com que, por meio da dependência estatal, a classe média se torne antidemocrática.

O segundo capítulo é destinado a aprofundar o argumento, apresentar os principais conceitos, bem como os mecanismos hipotéticos a serem testados nos estudos de caso. Dentre os principais conceitos utilizados pela autora, destacam-se sua definição de classe média e o emprego estatal. “Classe média” é definida com base em escolaridade, capital humano e status, e não em termos normativos, materialistas (como “proprietários dos meios de produção”), ou com base na renda (o que dificultaria muito a análise comparada, uma vez que a média e mediana da renda são muito diferentes entre os países analisados). Classe trabalhadora e não classe média são usados de forma intercambiável para se referir aos grupos que estão no trabalho informal ou cuja atividade é manual e pouco qualificada. Por sua vez, “emprego estatal” se refere ao funcionalismo público, empregos em empresas estatais, e profissionais pagos com recursos do estado, como médicos e professores. Os principais mecanismos a serem testados são: i. incentivos materiais; ii. falta de alternativas no setor privado; iii. inclinação profissional; iv. satisfação; v. socialização. A hipótese rival é a da seleção, ou seja, que o emprego estatal atrai indivíduos que aprovam o regime previamente.

O capítulo 3 é dedicado a tratar dos mecanismos que podem confundir a análise. Uma tendência das pesquisas sobre comportamento político é trabalhar a classe média como um grupo unitário, dificultando a observação das relações entre classe média e Estado. Para demonstrar as diferenças nas preferências políticas de diferentes grupos que formam a classe média nesses países, a autora se utilizou dos surveys Life in Transition desenvolvidos pelo Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento (Berd), entre 1989 e 2006, em países pós-comunistas democráticos e não democráticos. Esses surveys abordam questões sobre preferências políticas, escolaridade, carreira, satisfação material, percepção da desigualdade, entre outros temas. Os resultados são consistentes com o argumento da autora: em países não democráticos, as preferências políticas a favor da democracia são muito menores entre a classe média empregada pelo Estado do que a sua contraparte empregada no setor privado. Esse resultado se mantém mesmo controlando por tipo de carreira, período de socialização e escolarização, e aspectos étnicos, culturais e religiosos (p. 80-87).

Os capítulos seguintes são estudos de caso que ajudam a testar os mecanismos hipotéticos indicados no capítulo 2. O capítulo 4 é dedicado a entender os padrões de participação política da classe média dependente. O caso estudado se refere às manifestações ocorridas na Rússia, entre 2011 e 2012, após as eleições parlamentares. A autora busca estimar a prevalência de participação em protestos políticos para determinados grupos, permitindo comparar os níveis de participação entre diferentes tipos de classe média. A autora observa que a mobilização se reduz muito entre os grupos dependentes do Estado, especialmente na classe média. Numa análise mais refinada, percebe-se que mesmo quando indivíduos da classe média dependente participam desses protestos, eles não o fazem em defesa da democracia (p. 116). Nesse caso, dois mecanismos estão em cena, o primeiro é “negativo”, e se refere ao medo de perder o emprego no Estado ao participar dessas demonstrações; o segundo é “positivo” e se refere às vantagens que esses grupos usufruem no regime existentes. Esses resultados também ajudam a explicar por que vale a pena para um regime autocrático conceder benefícios à classe média, apesar de eles serem mais caros, do que aqueles concedidos à população em geral, muito embora a utilidade marginal de benefícios menores para a classe trabalhadora seja muito maior e mais barata. Isso tem a ver com a relevância das classes médias para o sucesso das mobilizações populares. Quando parte da classe média foi cooptada por incentivos diversos, mesmo esses acima descritos, a força e recorrência dessas demonstrações por esse grupo é reduzida. Essas observações podem ajudar a avançar os estudos sobre patronagem em outros países.

No capítulo 5, a autora explora o mecanismo hipotético rival: a seleção, ou seja, a ideia de que o emprego no serviço estatal seleciona pessoas que já aprovam o regime. A partir de um survey desenvolvido em colaboração com pesquisadores na Escola de Economia de Moscou, a autora coletou dados sobre os planos, as visões políticas, os valores e a personalidade de cerca de 1.400 estudantes de universidades russas de elite. Os resultados demonstram que tanto aqueles que intencionam empregos no setor privado quanto público preferem o autoritarismo (61% e 60%, respectivamente), indicando que o mecanismo de seleção pode não estar presente. Por outro lado, a proximidade com o setor público, seja por amigos ou família, tem uma influência maior na possibilidade de desejar o serviço estatal.

Além disso, aqueles que relataram perda de renda familiar com a transição política também demonstraram preferência pelo serviço estatal. É notável que itens como salários e benefícios em si não sejam os mais importantes nas decisões profissionais desses jovens que preferem o serviço estatal. Isso sugere que as pessoas escolhem o serviço estatal por diversas razões, que vão desde a insegurança até a influência familiar, mas não necessariamente pelos ganhos formais (salários). Nesse sentido, as diferentes preferências entre a classe média do setor privado em comparação com a classe média do setor público parecem ser o resultado dos incentivos materiais e da socialização, reforçando o argumento principal do trabalho.

O capítulo 6 é focado justamente nos mecanismos de reforço das atitudes e preferências políticas. A autora parte de outro caso representativo, a Ucrânia. Nesse capítulo, Rosenfeld se utiliza das pesquisas de opinião pública que consistem em três ondas que seguem as mesmas pessoas por um certo período. Os dados foram coletados entre 2003 e 2007. Ao se concentrar nos novos membros do mercado de trabalho, a autora consegue testar os mecanismos de reforço, como incentivos e socialização (p. 174).

Os resultados ajudam a confirmar o argumento de que a inserção no setor estatal tem efeito causal nas preferências políticas da classe média. Mais interessante é observar como essa diferenciação ocorre rapidamente - um padrão que seria inconsistente com o mecanismo de socialização e mais associado ao mecanismo dos ganhos (incentivos) materiais e do status; ou seja, uma vez empregados, esses indivíduos temem muito a perda de sua posição e de seus rendimentos (formais e informais). Como reforço a esse mecanismo, nesses países o mercado de trabalho privado é pouco desenvolvido e marcado pela informalidade, oferecendo poucas oportunidades de saída para profissionais mais escolarizados e reforçando a dependência.

No último capítulo empírico, o mais qualitativo do trabalho, a autora explora o discurso político e as estratégias de desenvolvimento econômico e de criação de uma classe média dependente. Aqui, o caso estudado é o Cazaquistão. Embora nesse país a classe média continue sendo minoria (cerca de 20% da população), houve sucesso no projeto do regime em criar, por meio do serviço estatal, uma classe média coesa e dependente. Para esses grupos, a mudança de regime implicaria em possíveis perdas de benefícios formais e informais, assim como perda de status e insegurança. Tudo isso, por sua vez, reforça um sentimento antidemocrático e conservador, conforme as pesquisas de opinião apresentadas no livro demonstram. Os mecanismos observados pela autora para a criação da classe média dependente são o engajamento do Estado na economia e os incentivos materiais. Novamente, o mecanismo de seleção não parece ter tido efeito causal significativo. O capítulo 8 é uma compilação dos resultados apresentados no livro.

O trabalho de Rosenfeld nos apresenta inovações metodológicas para os estudos sobre democratização e questões normativas importantes. Em termos metodológicos, a hipótese avançada no livro é testada a partir da investigação dos mecanismos numa perspectiva micro pelos quais o Estado autoritário consegue promover o desenvolvimento econômico e constituir uma classe média avessa aos princípios liberais; trata-se de uma abordagem que abre caminhos para outros estudos sobre democratização e consolidação democrática, estimulando analistas a buscarem entender as consequências políticas para a democracia de uma classe média dependente, e não apenas em países pós-comunistas. Expandir essa abordagem para outras regiões onde a democracia não se consolida apesar de o desenvolvimento ser importante, nos ajudaria a descobrir outros mecanismos pelos quais o Estado autoritário ou quase-autoritário influencia a opinião pública em seu favor. Além disso, a autora avança nos estudos sobre patronagem e clientelismo no século XXI, uma vez que os incentivos para distribuir benefícios são diferentes daqueles abordados em estudos clássicos, sobre sociedades rurais e pouco desenvolvidas em termos econômicos, o que exige uma releitura desses processos à luz da nova conjuntura econômica e internacional.

Rosenfeld nos oferece uma abordagem cuidadosa e inovadora que certamente contribuirá muito para os estudos sobre democratização, além de fornecer uma explicação para uma importante questão contemporânea: por que, em países autocráticos, o desenvolvimento e a ascensão da classe média não promoveram a democratização? No limite, essa questão se insere no desafio da consolidação dos regimes democráticos em qualquer que seja a região: se, por um lado, a democratização exige do Estado instituições capazes de corresponder às expectativas e demandas da sociedade, por outro, é necessário haver apoio aos valores liberais que sustentam os aspectos normativos da democracia: pluralismo, liberdade individual, liberdade de associação e de expressão, bem como proteção aos direitos das minorias.

  • ROSENFELD, Bryn. The autocratic middle class: how state dependency reduces the demand for democracy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2021
  • Aceito
    23 Ago 2021
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