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Quem se abstém no Brasil? Competição local e efeito da Covid-19 na participação do eleitor no primeiro turno da eleição municipal de 2020

Who abstains in Brazil? Local competition and Covid-19 effect on turnout in the 2020 municipal election

Resumo

O artigo se insere na linha de pesquisas sobre participação eleitoral em disputas políticas locais. A partir de um modelo multivariado, tem o objetivo de analisar os efeitos de variáveis políticas associadas ao efeito da pandemia da Covid-19 na abstenção eleitoral das eleições municipais de 2020 no Brasil. São consideradas as disputas para prefeito de todos os 5.568 municípios com eleições municipais para responder à pergunta: onde e quem mais se absteve nas eleições de 2020? Os resultados mostram que, do ponto de vista agregado, municípios com mais mortes por Covid-19 tenderam a ter maior abstenção. Porém, o número de candidatos, usado como indicador de competição eleitoral, exerceu forte efeito contrário. No nível individual, os dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) indicam que homens, com baixa escolaridade e idade acima de 40 anos tenderam a participar menos das eleições de 2020.

Palavras-chave:
Eleições municipais, 2020; Covid-19; Competição política; Abstenção

Abstract

In the present research we examines the electoral abstention. The paper is about the voter participation in political disputes. The objective is to analyze the effects of political variables associated with the effect of the Covid-19 pandemic on electoral abstention in the 2020 local elections in Brazil. The disputes of all 5,568 municipalities are considered to answer the question: who and where else abstained in the 2020 elections? The aggregate results show that municipalities with more deaths from Covid-19 tended to have higher abstention. However, the number of candidates, used as an indicator of electoral competition, exerted a strong opposite effect - in favor of turnout. At the individual level, the data indicate that men, low schooling and age over 40 years tended to participate less in the 2020 elections.

Keywords:
Municipal elections, 2020; Covid-19; Political competition; Abstention

Introdução

A participação política é tradicionalmente considerada um elemento crucial para o funcionamento da democracia. Eleitores dispõem de inúmeras modalidades de participação política, como assinar petições, filiar-se a partidos políticos, candidatar-se a cargos eletivos, contribuir com dinheiro para causas públicas ou aderir a boicotes, protestos e manifestações (Hooghe, 2014HOOGHE, Marc. Citizenship and participation. In: LEDUC, Lawrence; NIEMI, Richard; NORRIS, Pipa (Orgs.). Comparing democracies 4: elections and voting in a changing world. London: Sage, 2014.). Nos sistemas representativos modernos, como o brasileiro, o voto em eleições acaba sendo a modalidade de participação política mais difundida e fator crucial para a legitimidade dos governantes e dos sistemas democráticos.

O processo eleitoral de 2020, entretanto, foi marcado por alto nível de abstenção. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 23,14% dos eleitores brasileiros (32,2 de 147,9 milhões no total) não compareceram às urnas no primeiro turno, sendo o maior percentual verificado na última década. Nas duas eleições municipais anteriores, a abstenção no primeiro turno foi de 17,58% em 2016 e 16,41% em 2012. Este aumento do número de não votantes reacendeu o debate sobre os motivos da não participação eleitoral e, principalmente, sobre o perfil desse eleitor ausente.

O crescimento da abstenção era, de certo modo, esperado por efeito da pandemia da Covid-19 que, até o fim de outubro de 2020, véspera da eleição, havia infectado 4,8 milhões de brasileiros, com 144,6 mil vítimas fatais até então, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. O medo do contágio pelo novo coronavírus já havia sido responsável, via Emenda Constitucional n. 107/2020, pelo adiamento do primeiro e do segundo turnos para os dias 15 e 29 de novembros, pois se suspeitava que as aglomerações provocadas pelas atividades de campanha e pelos dias de votação pudessem disseminar ainda mais a doença. A expectativa, segundo argumentação do TSE, era que a pandemia contaminasse principalmente idosos, pessoas de grupos de risco e os mais pobres do processo eleitoral.

A abstenção em um sistema democrático é um problema que merece atenção. Mudanças no tamanho e na composição do eleitorado podem levar a desequilíbrios no sistema representativo, caso as abstenções não sejam uniformes em todo o território nacional ou caso as abstenções variarem pelas características sociais dos representados (Lutz & Marsh, 2007LUTZ, George; MARSH, Michael. Introduction: consequences of low turnout. Electoral Studies, v. 26, n. 3, p. 1-9, 2007.). No Brasil, apesar da crescente abstenção observada nas últimas eleições, o assunto não despertou uma agenda sólida de pesquisa. Há relativo interesse pelo tema a partir da década de 1970, mas escassa produção após o restabelecimento da democracia (Silva, 2016SILVA, Rafael. Comportamento eleitoral na América Latina e no Brasil: em busca dos determinantes das abstenções, votos brancos e votos nulos. Tese (Doutorado em Sociologia Política) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2016.). Apenas recentemente alguns pesquisadores retomaram o assunto em busca de compreender os determinantes do não comparecimento, o perfil desse eleitor ausente e as possíveis consequências da baixa participação eleitoral (Nicolau, 2004NICOLAU, Jairo. A participação eleitoral: evidências sobre o caso brasileiro. Trabalho apresentado no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coim­bra, 2004.; Borba, 2008BORBA, Julian. As bases sociais e atitudinais da alienação eleitoral no Brasil. Revista Debates, v. 2, n. 2, p. 134-157, 2008.; Silva, 2016; Souza, 2019SOUZA, Cíntia. Efeitos de competição, gastos de campanha e fragmentação eleitoral sobre comparecimento e votos válidos nas eleições municipais brasileiras em 2012. Revista Opinião Pública, v. 25, n. 2, p. 312-342, 2019.).

O objetivo deste artigo é contribuir com a literatura sobre a participação do eleitor brasileiro, analisando como se distribuiu a abstenção eleitoral no primeiro turno das eleições municipais de 2020. A meta é analisar como a Covid-19 interagiu com as características dos municípios e dos eleitores e o grau de competição local para explicar as variações das abstenções eleitorais no primeiro turno de 2020. Para tanto, consideraremos os seguintes conjuntos de variáveis explicativas:

  • i. o número de mortos por Covid-19 registrados/mil habitantes até outubro de 2020;

  • ii. a competição eleitoral, medida pelo número de candidatos a prefeito/mil eleitores;

  • iii. o tamanho do município, medido em número de eleitores;

  • iv. a posição geográfica do município nas regiões do país; e, por fim,

  • v. a localização do município, se em área metropolitana ou não.

No segundo momento são descritas as características individuais, sexo, idade e escolaridade dos eleitores que mais se abstiveram em 2020.

O artigo segue dividido da seguinte maneira. A próxima seção resume os principais achados da literatura sobre os condicionantes da participação eleitoral e como esses achados ajudam a entender a abstenção eleitoral no contexto brasileiro. O debate da literatura é organizado segundo três conjuntos de macrofatores, a saber, o contexto político, as instituições eleitorais, o ambiente socioeconômico e as características individuais dos eleitores. Na seção seguinte, expomos o banco de dados, a metodologia usada para análise dos resultados e os resultados. Finalizamos com uma discussão sobre os principais achados.

As razões da abstenção eleitoral

A literatura identifica diferentes blocos de fatores que influenciam a participação eleitoral. Os quatro mais comuns são

  • i. as instituições políticas e as leis eleitorais;

  • ii. o contexto político;

  • iii. as características individuais dos eleitores; e/ou

  • iv. o ambiente socioeconômico (Blais e Dobrzynska, 1998BLAIS, André; DOBRZYNSKA, Agnieszka. Turnout in electoral democracies. European Journal of Political Research, v. 33, p. 239-261, 1998.; Geys, 2006GEYS, Benny. Explaining voter turnout: areview of aggregate-level research. Electo­ral Studies, v. 25, n. 4, p. 637-663, 2006.; Hooghe, 2014HOOGHE, Marc. Citizenship and participation. In: LEDUC, Lawrence; NIEMI, Richard; NORRIS, Pipa (Orgs.). Comparing democracies 4: elections and voting in a changing world. London: Sage, 2014.).

Medir o efeito isolado e conjunto de cada um desses fatores tem sido um desafio teórico e empírico enfrentado por cientistas políticos ao logo de inúmeras décadas e seus achados são importantes para ajudar a pensarmos o caso brasileiro.

Dentre as principais regras com impacto sobre a participação eleitoral, a obrigatoriedade do voto é sem dúvida a principal delas. Historicamente, países que adotam o voto obrigatório apresentam taxas de participação eleitoral superior aos países em que a decisão de votar é opcional. O voto compulsório estimula a participação pelas punições que prevê sobre os eleitores faltosos, mas também por desenvolver o hábito de comparecer às urnas (Franklin, 1999FRANKLIN, Mark. Electoral engineering and cross-national turnout differences: what role for compulsory voting? British Journal of Political Science, v. 29, n. 1, p. 205-216, 1999.; Birch, 2009BIRCH, Sarah. Full participation: a comparative study of compulsory voting. Manchester, UK: Manchester University Press, 2009.). Por outro lado, as sanções para a não participação são muitas vezes suaves ou a regulamentação é pouco precisa, fazendo com que, na prática, a obrigatoriedade do voto não impulsione tanto assim a participação (Solijonov, 2016SOLIJONOV, Abdurashid. Voter turnout trends around the world. International Idea, 2016.). Esse é o caso, por exemplo, do Brasil, onde o valor da multa pelo não comparecimento é de apenas R$ 3,50.

As exigências legais para o registro eleitoral são fatores comumente associados às variações da participação eleitoral. Segundo Benjamin Highton (1997HIGHTON, Benjamin. Easy registration and voter turnout. The Journal of Politics, v. 59, n. 2, p. 565-575, 1997.), quanto mais exigentes são os critérios adotados, menores são as taxas de participação, principalmente entre a população com menores recursos econômicos e cognitivos, já que o processo de alistamento inclui, muitas vezes, gastos de recursos financeiros ou de tempo. O registro automático ou o registro feito no dia das eleições são vistos como procedimentos alternativos eficientes para diminuir as barreiras do voto (Solijonov, 2016SOLIJONOV, Abdurashid. Voter turnout trends around the world. International Idea, 2016.).

O ato de votar e os procedimentos de identificação são variáveis com impacto sobre as taxas de participação. Os procedimentos variam de lugar para lugar e aumentam ou diminuem a participação por diferentes razões. Entre as principais: se as eleições acontecem em um ou mais dias, se realizadas em dias úteis ou não, se há disponibilidade de tecnologia como urna eletrônica, o tipo de cédula eleitoral, a facilidade de acesso aos locais de votação e até mesmo procedimentos alternativos como votação antecipada, votação pelo correio ou por procuração e os tipos de documentos exigidos para a identificação do eleitor (Hanmer, 2009HANMER, Michael. Discount voting: voter registration reform and their effects. New York: Cambridge University Press, 2009.).

No Brasil, a identificação na hora do voto tem sido tema de discussão e judicialização entre os partidos políticos. Em 2020, o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra a obrigatoriedade de o eleitor apresentar dois documentos na hora de votar, o título de eleitor e outra identificação com fotografia, conforme previsto no Artigo 91-A da Lei das Eleições (Lei 9.504/97). Segundo a ministra Rosa Weber, relatora da ação que acatou o pedido do PT, o mecanismo criou obstáculos desnecessários para o exercício do voto, impedindo a participação de eleitores regularmente registrados. Em seu despacho, a ministra frisou que o título tem utilidade no momento da votação para localização da seção eleitoral, “mas a ausência do mesmo não importa nenhuma interferência no exercício pleno dos direitos políticos do eleitorado”, bastando, portanto, ao eleitor apresentar algum documento de identidade oficial com fotografia1 1 Em 2020, a identificação biométrica foi suspensa como medida para evitar o contágio por coronavírus. A Justiça Eleitoral considerou que a identificação biométrica causaria mais filas e aglomerações. Com isso, outra possível barreira para o voto foi removida. .

O tipo de sistema eleitoral, a ocorrência de eleições simultâneas para diferentes cargos e os distritos eleitorais pequenos são desenhos institucionais que promovem incentivos que aumentam a participação eleitoral (Blais & Carty, 1990BLAIS, André; CARTY, Kenneth. Does proportional representation foster voter turnout? European Journal of Political Science, v. 18, n. 2, p. 167-181, 1990.; Anduzia, Cantijoch & Gallego, 2003; Blais, 2006; Barnes & Rangel, 2018BARNES, Tiffany; RANGEL, Gabriela. Subnational patterns of participation: compulsory voting and the conditional impact of institutional design. Political Research Quarterly, v. 71, n. 4, p. 826-841, 2018.). O primeiro turno das eleições brasileiras tem o mérito de reunir, de uma só vez, o sistema majoritário para os cargos executivos e o sistema proporcional para os cargos legislativos, promovendo assim o duplo incentivo das eleições simultâneas para os diferentes cargos e as vantagens dos dois tipos de sistemas eleitorais - o majoritário pela proximidade entre representantes e representados e o proporcional pelo estímulo aos eleitores dos pequenos partidos. Por outro lado, o número de eleitores e a magnitude dos distritos varia enormemente dentro do Brasil, indo desde cidades com três mil até municípios que superam milhões de eleitores. Desse modo, é de se esperar observarmos variações na participação eleitoral segundo o tamanho dos municípios e o número de eleitores.

A competitividade da eleição é o elemento mais analisado na literatura sobre comparecimento eleitoral. Em balanço da literatura, Benny Geys (2006GEYS, Benny. Explaining voter turnout: areview of aggregate-level research. Electo­ral Studies, v. 25, n. 4, p. 637-663, 2006.) relata que mais da metade dos estudos que revisou (52 em 83) incluiu alguma medida de competição (a maioria dos estudos operacionaliza a partir da margem de vitória). A competitividade da eleição seria um catalizador da participação por aumentar o grau de imprevisibilidade sobre o vencedor da disputa. Em contextos marcados pela incerteza sobre o vencedor, a utilidade do voto aumentaria, levando o eleitor a comparecer motivado pela percepção de que seu voto pode decidir o resultado final. A competitividade da eleição provocaria também maiores esforços de mobilização por parte da elite política e esses esforços de campanha pelo voto é o que aumentariam as taxas de participação eleitoral. Nesse caso, portanto, embora competitividade e participação eleitoral estejam positivamente relacionadas, o efeito observado seria apenas indireto, mediado pelos esforços de mobilização das campanhas (Cox & Munger, 1989COX, Gary; MUNGER, Michael. Closeness, expenditures, and turnout in the 1982 US house elections. The American Political Science Review, v. 83, n. 1, p. 217-231, 1989.; Holbrook & McClurg, 2005HOLBROOK, Thomas; MCCLURG, Scott. The mobilization of core supporters: campaigns, turnout, and electoral composition in United States presidential elections. American Journal of Political Science, v. 49, n. 4, p. 689-703, 2005.).

Uma questão importante relativa ao contexto político é o número de candidatos e a presença ou não de candidatos à reeleição, bem como os gastos de campanha. A quantidade de candidatos é, muitas vezes, operacionalizada na forma do número efetivo de partidos. Neste caso, há duas hipóteses divergentes. Uma aponta que a maior oferta está positivamente correlacionada à participação por aumentar o leque de opções para o eleitor; a outra sugere o oposto: uma maior oferta diminui a participação por adicionar custos para a decisão do eleitor (Geys, 2006GEYS, Benny. Explaining voter turnout: areview of aggregate-level research. Electo­ral Studies, v. 25, n. 4, p. 637-663, 2006.; Blais, 2010BLAIS, André. Political participation. In: LEDUC, Lawrence; NIEMI, Richard; NORRIS, Pipa (Orgs.). Comparing democracies 3: elections and voting in the 21st Century. London: Sage, 2010.). A presença de candidato à reeleição também aponta a direções opostas. Enquanto parte dos autores teoriza que diminui a participação pelas vantagens inerentes dos candidatos no exercício do poder, outra argumenta que mobiliza os eleitores que votam motivados para punir o mal governante (Caldeira, Patterson & Markko, 1985CALDEIRA, Gregory; PATTERSON, Samuel; MARKKO, Gregory. The mobilization of voters in congressional elections. The Journal of Politics, v. 47, n. 2, p. 490-509, 1985.). Os gastos de campanha são menos controversos e têm sido positivamente associados ao comparecimento eleitoral. Eles seriam uma espécie de proxy para as atividades das elites políticas: em contexto de alta competição, candidatos possuem maiores incentivos para arrecadar e financiadores para doar (Cox & Munger, 1989COX, Gary; MUNGER, Michael. Closeness, expenditures, and turnout in the 1982 US house elections. The American Political Science Review, v. 83, n. 1, p. 217-231, 1989.).

A literatura sobre participação política identifica diferentes variáveis socioeconômicas. O nível de desenvolvimento econômico, o tamanho da população, a densidade populacional e a homogeneidade da população são os principais fatores considerados. André Blais e Agnieszka Dobrzynska (1998BLAIS, André; DOBRZYNSKA, Agnieszka. Turnout in electoral democracies. European Journal of Political Research, v. 33, p. 239-261, 1998.) consideraram esses diferentes fatores conjuntamente em análise sobre 324 eleições disputadas em 91 países e encontram evidências de que a participação é maior em países pequenos, industrializados e densamente povoado. Por outro lado, Geys (2006GEYS, Benny. Explaining voter turnout: areview of aggregate-level research. Electo­ral Studies, v. 25, n. 4, p. 637-663, 2006.) não encontrou evidências do impacto da concentração e da homogeneidade populacional em metanálise da literatura, mas reforçou a importância do tamanho da população e da estabilidade da população devido à pressão social e dos menores custos de informação. Nas últimas eleições, conforme pontuado acima, a pandemia da Covid-19 acrescentou fator novo ao contexto social. Segundo relatório do Instituto Internacional pela Democracia e Assistência Eleitoral (Idea, na sigla em inglês), cerca de 63% das eleições realizadas no mundo registraram aumento na abstenção na comparação com pleitos anteriores2 2 Disponível em: <https://www.idea.int/news-media/multimedia-reports/global-overview-Covid-19-impact-elections>. .

O último bloco dos fatores são as características individuais dos eleitores. Desde as obras clássicas sobre comportamento eleitoral - como The people’s choice e The American voter -, sabe-se que as variações individuais dos eleitores importam para a participação eleitoral. A educação é, possivelmente, a principal determinante socioeconômica da abstenção, tendo as pessoas mais escolarizadas maior probabilidade de comparecer às urnas do que as pessoas menos escolarizadas (Blais, 2006______. What affects voter turnout? Annual Review of Political Science, v. 9, n. 1, p. 111-125, 2006.). A escolarização é vista como variável importante por ter relação direta com o interesse por política, acesso privilegiado a melhores postos de trabalho e, consequentemente, melhor poder aquisitivo (Leighley & Nagler, 1992LEIGHLEY, Jan; NAGLER, Jonathan. Individual and Systemic Influences on Turnout: Who Votes? 1984. The Journal of Politics, v. 54, n. 3, p. 718-740, 1992.). Além disso, a sofisticação intelectual proporcionada pela escolaridade ajuda a compreensão de questões intrincadas da política, estimula o senso do dever cívico e desenvolve a percepção de que a participação é importante para o desenvolvimento e consolidação da democracia. Pessoas com escolaridade baixa, por sua vez, apresentam dificuldades para a compreensão de aspectos próprios do debate político cujo custo de interação e informação são mais altos (LeDuc & Niemi, 2014).

A idade também aparece como importante preditor da participação política e eleitoral. A abstenção tende a ser, invariavelmente, maior entre os mais jovens (Wattenberg, 2012WATTENBERG, Martin. Is voting for young people? Boston, MA: Harvard University Press, 2012.). A não participação do público da faixa etária jovem normalmente é associada à apatia e à falta de interesse pelo processo político. Eleitores mais velhos, por outro lado, já enraizaram o hábito de votar, desenvolveram preferências políticas e partidárias estáveis, estão cientes das consequências da não participação eleitoral e demonstram maior interesse sobre os temas em debate (Goerres, 2007GOERRES, Achim. Why are older people more likely to vote? The impact of ageing on electoral turnout in Europe. British Journal of Politics & International Relations, v. 9, n. 1, p. 90-121, 2007.). Menos conclusivos são os achados relativos ao sexo do eleitor. Embora historicamente seja atribuído aos homens maior participação do que às mulheres, essa diferença é, muitas vezes causada pela menor escolaridade que caracteriza o público feminino. Quando o sexo é, portanto, controlado por outras características sociodemográficas, as diferenças entre homens e mulheres deixam de ser significativas (Leighley e Nagler, 1992LEIGHLEY, Jan; NAGLER, Jonathan. Individual and Systemic Influences on Turnout: Who Votes? 1984. The Journal of Politics, v. 54, n. 3, p. 718-740, 1992.).

Os achados na literatura internacional têm servido para iluminar as discussões sobre abstenção no Brasil. Os estudos têm se alternado entre análises que usam dados agregados e/ou dados individuais de pesquisas de opinião. Resumidamente, pode-se dizer que esses estudos encontraram evidências de que a participação do eleitor brasileiro é impactada positivamente pela urbanização e negativamente pela extensão territorial e pelo analfabetismo (Lima Jr., 1993LIMA JR., Olavo Brasil. Democracia e instituições políticas no brasil dos anos 80. São Paulo: Loyola, 1993.). Cíntia Souza (2019SOUZA, Cíntia. Efeitos de competição, gastos de campanha e fragmentação eleitoral sobre comparecimento e votos válidos nas eleições municipais brasileiras em 2012. Revista Opinião Pública, v. 25, n. 2, p. 312-342, 2019.) analisou variáveis conjunturais, especialmente a margem de vitória, os gastos de campanha e a fragmentação partidária. Os seus resultados confirmam a hipótese em relação à competição e aos gastos de campanha. Porém, os resultados apontam um efeito negativo da fragmentação. Em seu estudo sobre participação na eleição municipal de 2012, a reeleição não produziu nenhum efeito sobre o comparecimento. Individualmente, a abstenção se relaciona com baixa escolaridade e com sentimentos de indiferença e de ineficácia política (Silva, 2016SILVA, Rafael. Comportamento eleitoral na América Latina e no Brasil: em busca dos determinantes das abstenções, votos brancos e votos nulos. Tese (Doutorado em Sociologia Política) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2016.).

Neste estudo, buscamos contribuir com a literatura incorporando alguns elementos novos à análise. Do ponto de vista teórico, incorporamos o efeito do novo coronavírus entre os fatores sociais e contextuais com possíveis efeitos sobre a participação do eleitor. A pandemia da Covid-19 teve impactos fortes e diretos sobre o processo eleitoral de 2020. Primeiro, ela foi a razão para o adiamento das datas do primeiro e do segundo turnos para os dias 15 e 29 de novembro. Segundo, pelas medidas de isolamento social, a pandemia esfriou a temperatura da eleição, principalmente nos pequenos municípios, onde as atividades de campanha tendem a ter caráter mais intimista. Terceiro, o medo de contaminação pode ter levado inúmeros eleitores a decidirem permanecer em confinamento longe das urnas, sobretudo idosos e eleitores membros de grupos de risco, como já apontam diferentes estudos internacionais que mediram o efeito da pandemia da Covid-19 sobre a decisão de ir votar (Santana, Rama & Bértoa, 2020SANTANA, Andrés; RAMA, José; BÉRTOA, Fernando. The coronavirus pandemic and voter turnout: addressing the impact of Covid-19 on electoral participation. SocArXiv, 2020.; Vázquez-Carrero, Artés, García & Jimenéz, 2020; Fernandéz-Navia, Polo-Muro & Tercero-Lucas, 2021; Picchio & Santolini, 2021PICCHIO, Matteo; SANTOLINI, Raffaella. The Covid-19 pandemic’s effects on voter turnout. IZA Working Paper 14241, 2021.).

Já no contexto da pandemia e seguindo o mesmo modelo analítico proposto neste trabalho, Noury et al. (2021) analisam a participação nas eleições municipais francesas, ocorridas em março de 2020 - no mês pós-decretação de pandemia mundial pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os autores analisam a participação eleitoral em relação à maior incidência de Covid-19, controlando pela densidade populacional do município e número de listas de candidatos. Os resultados apresentados por eles indicam que maior risco de contaminação por Covid-19 impacta sobre a participação eleitoral, porém, os efeitos são maiores quando há menos competidores ou lista única de candidatos (Noury et al., 2021). Com a utilização da metodologia de survey, Cletus Nwankwo (2021NWANKWO, Cletus F. Covid-19 pandemic and political participation in Lagos, Nigeria. SN Social Science, n. 1, p. 146-169, 2021.) pesquisou o efeito da Covid-19 sobre a participação eleitoral em três municípios do estado de Lagos, na Nigéria. Lagos foi o epicentro de casos nigerianos. Os questionários foram aplicados em domicílio, entre julho e setembro de 2020. Os resultados destoam do trabalho anterior. No caso analisado, os eleitores consideraram que as medidas de segurança contra o vírus não eram importantes. Ainda assim, a abstenção eleitoral cresceu por medo de entrar em contato com o vírus. As análises multivariadas a partir das respostas aos questionários mostraram que as conexões sociais explicaram mais as medidas de contenção da pandemia e a participação política (Nwankwo, 2021).

Do ponto de vista empírico, analisamos dados sobre o universo dos eleitores faltosos disponíveis pelo TSE, mas que têm sido pouco utilizados (Cepaluni & Hidalgo, 2016CEPALUNI, Gabriel; HIDALGO, Daniel. Compulsory voting can increase political inequality: evidence from Brazil. Political Analysis, v. 24, n. 2, p. 273-280, 2016.). Esses dados informam as características individuais como sexo, idade e escolaridade de todos os 34,2 milhões que se ausentaram no primeiro turno nas eleições municipais de 2020. Desse modo, pretendemos conjugar nesta análise o efeito da pandemia da Covid-19 com o nível de competição, o tamanho e a localização dos municípios e as características sociodemográficas dos eleitores. A seção seguinte apresenta e metodologia e os resultados.

Resultados e discussões

A partir daqui apresentamos um modelo analítico que leva em consideração a competição eleitoral e as mortes por Covid-19 como fatores explicativos com efeitos opostos para a abstenção no primeiro turno das eleições municipais de 2020. O modelo também inclui variáveis de controle dos municípios, que são a unidade de análise.

Nosso corpus empírico é formado por todos os 5.570 municípios brasileiros, dos quais, 5.568 tiveram eleições municipais. Usamos um banco de dados do TSE que contém o cadastro com o perfil socioeconômico (sexo, idade e escolaridade) de todos os eleitores ausentes no primeiro turno das eleições municipais de 2020. Os dados cadastrais do TSE oferecem algumas vantagens analíticas para conhecer o perfil dos eleitores absenteístas relativas aos estudos que priorizam surveys para o mesmo fim por duas razões básicas. Primeiro, os registros oficiais do TSE reúnem informações sobre o número total eleitores faltantes e não analisa apenas uma amostra da população - que na maior parte dos estudos eleitorais brasileiros não é probabilística. No caso da eleição municipal de 2020, os dados cadastrais reúnem informações de mais de 34,2 milhões de eleitores que deixaram de votar. Segundo, os registros do TSE contêm informações de pessoas que, de fato, não compareceram às urnas no dia das eleições, enquanto as estimativas geradas por pesquisas de opinião indagam sobre a expectativa de um comportamento futuro ou sobre comportamento passado, contendo problemas de confiabilidade. Em surveys, eleitores que pretendem se abster ou se abstiveram podem ajustar as suas respostas para serem socialmente aceitáveis ou podem errar as suas respostas porque realmente não lembram do que fizeram no dia da eleição.

Para a análise das variações de abstenção por município nas eleições de 2020 utilizamos cinco variáveis, entre independentes e de controle. As últimas são as geográficas, que incluem o tamanho do município, a região de localização e se o município faz parte ou não de uma região metropolitana. Além dessas, há outras duas variáveis explicativas. Uma delas é propriamente política e diz respeito à competição eleitoral, medida pelo número de candidatos a prefeito por mil eleitores no município. A outra é o número de óbitos registrados por Covid-19 até o final de outubro de 2020 por mil habitantes em cada município, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde.

Em 2020 foram registrados no TSE e chegaram ao final da campanha 18.795 candidatos a prefeito no Brasil, o que representa uma média de 3,38 candidatos/município.

Quando consideramos o número de candidatos a prefeito/mil eleitores, temos uma média geral de 0,405 candidato/mil eleitores em 2020. Em relação às mortes por Covid-19, até outubro de 2020 tinham sido registradas 0,0004 mortes por habitante (0,4/mil habitantes), em média, nos municípios brasileiros.

A Tabela 1 sumariza as médias de abstenção por categoria de cada uma das variáveis explicativas no modelo e os testes de independência das variações entre categorias das variáveis. As variáveis explicativas e de controle apresentadas a seguir são resultado de testes individuais de significância estatística. Em relação ao tamanho do município, as categorias foram definidas a partir dos quartis de quantidade de eleitores, excetuando os municípios com mais de 200 mil eleitores. Com isso, obtém-se cinco categorias de tamanho de município, sendo que as quatro primeiras representam aproximadamente 25% do total de municípios brasileiros. As médias de abstenção por tamanho mostram que há um crescimento constante entre as categorias. Os menores municípios, com até cinco mil eleitores, apresentam média de 12,38% de abstenção, contra 26,44% de abstenção na média de municípios com mais de 200 mil eleitores. O teste de independência de médias das categorias de Fisher para tamanho do município apresenta o maior coeficiente (855,999) quando comparado às variações de médias encontradas em outras variáveis. Isso indica forte capacidade de associação entre as variações de abstenção e o tamanho do município.

Tabela 1
Estatísticas individuais para abstenção eleitoral em 2020. Dados para registro de abstenção no primeiro turno dos 5.568 municípios

A variável de localização geográfica utiliza as categorias oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e as categorias estão dispostas na Tabela 1 em ordem decrescente de média de abstenção. O Sudeste foi a região que apresentou a maior média, com 20,41% de abstenção nos municípios e a Região Sul ficou com a menor média, com 15%. A estatística de Fisher apresentou coeficiente de 224,166, indicando diferenças estatisticamente significativas de médias entre as regiões do país, embora tenha ficado abaixo do coeficiente da variável tamanho do município.

Outra característica de localização que indicou significância estatística para variações de abstenção foi o pertencimento ou não a uma região metropolitana. De acordo com as médias apresentadas na Tabela 1, se o município pertence a uma região metropolitana, a média de abstenção fica em 18,83%. Para os municípios do interior, a abstenção fica um pouco abaixo, com média de 17,22%. Apesar da proximidade dos valores, o teste de diferença de média para as categorias aponta significância estatística, com coeficiente t = -6,381.

A variável “número de candidatos a prefeito/mil eleitores” no município tem o objetivo de identificar se o grau de concorrência política está associado com a participação eleitoral, como sugere a literatura. Na Tabela 1, o número de candidato/mil eleitores é dividido em dois grupos, a partir da mediana, para identificação das médias e do teste de diferença de médias t de Student. Quando olhamos para as médias de cada grupo, percebemos uma diferença significativa. Para municípios que ficaram abaixo da mediana de concorrência às prefeituras, a média de abstenção foi de 20,26%, enquanto os municípios que tiveram maior concorrência, ficando acima da mediana de concorrentes, a média de abstenção foi 14,54% de abstenção. O coeficiente t de Student mostrou diferenças estatisticamente significativas entre as duas categorias, com coeficiente de 39,817.

Por fim, a característica única da eleição municipal de 2020 no Brasil foi ela ter ocorrido após seis meses do início da pandemia de Covid-19. Para testarmos o possível efeito dessa variável na participação eleitoral, consideramos os números oficiais de mortes por Covid-19 por município, segundo o Ministério da Saúde, até outubro de 2020. Consideramos o número de mortos por mil habitantes em cada município. Estabelecemos a mediana de mortes/mil habitantes para diferenciar as médias de abstenção. Nos municípios que ficaram abaixo da mediana de mortes/mil habitantes até outubro de 2020 a média de abstenção ficou em 16,65%, enquanto nos municípios com maiores taxas de óbito/mil habitantes, o percentual foi de 18,15% de média de abstenção. O coeficiente t de Student foi de 9,281, com significância estatística para a diferença entre os dois grupos. Isso indica que municípios com maiores mortalidades por Covid-19 tenderam a apresentar maiores percentuais de abstenção no primeiro turno de 2020.

As estatísticas descritivas individuais mostram que o tamanho, a localização geográfica, integrar ou não uma região metropolitana, assim como o volume de concorrência pelo cargo de prefeito e a proporção de óbitos por Covid-19 estão associadas com os percentuais de abstenção eleitoral em 2020. A partir disso são montados modelos explicativos para identificar quais variáveis apresentam maiores efeitos sobre a abstenção na eleição municipal, controlados pelas demais variáveis. São apresentados quatro modelos em ordem crescente de ajustamento, conforme os coeficientes r2 2 Disponível em: <https://www.idea.int/news-media/multimedia-reports/global-overview-Covid-19-impact-elections>. e critério de Akaike (AIC), e que incluem as variáveis apresentadas na Tabela 1. Como o objetivo é comparar os efeitos das variáveis explicativas, entre elas e entre os modelos, utilizamos o coeficiente Beta padronizado como principal indicador de efeito.

Nos Modelos 1 e 2 constam apenas as variáveis geográficas e os Modelos 3 e 4 incluem a concorrência eleitoral e o efeito das mortes por Covid-19 no período eleitoral. Em todos os modelos, todas as variáveis explicativas apresentam significância estatística, com p-value <= 0,001. O coeficiente de determinação r2 2 Disponível em: <https://www.idea.int/news-media/multimedia-reports/global-overview-Covid-19-impact-elections>. indica um crescimento na capacidade explicativa das variações de percentuais de abstenção entre os modelos, partindo de 2,5% (r2 2 Disponível em: <https://www.idea.int/news-media/multimedia-reports/global-overview-Covid-19-impact-elections>. = 0,025) no Modelo 1 para 27,7% (r2 2 Disponível em: <https://www.idea.int/news-media/multimedia-reports/global-overview-Covid-19-impact-elections>. = 0,277) de ajustamento no Modelo 4. Assim como o critério Akaike de ajustamento, que diminui do Modelo 1 ao 4, indicando melhor explicação das variações entre as unidades de análise.

No Modelo 1, onde consta apenas tamanho do município, o beta padronizado é 0,160, que é o maior coeficiente da variável entre os modelos. No Modelo 2, com a inclusão da região do país e situar-se em região metropolitana há uma redução no beta padronizado do tamanho para 0,151, que fica bem acima dos coeficientes das outras duas variáveis: região (beta padronizado de 0,040) e estar em região metropolitana (beta padronizado de 0,052). Isso significa que quando consideramos apenas as variáveis geográficas, embora o ajustamento do modelo seja muito baixo, tamanho do município é a variável que apresenta melhor explicação para as variações de abstenção. Como vimos antes, quanto menor o município e mais localizado no interior do país, não em regiões metropolitanas, principalmente nas Regiões Nordeste e Sul, maior a participação eleitoral. O percentual de abstenção tende a crescer em municípios maiores, localizados em regiões metropolitanas das Regiões Sudeste e Centro-Oeste.

Quando o modelo inclui a variável de concorrência eleitoral - número de candidatos a prefeito por mil eleitores - o ajustamento do modelo cresce bastante. O beta padronizado do número de candidatos/mil eleitores fica muito acima dos demais, em -0,512, ou seja, quanto maior a proporção de candidatos a prefeito, menor o percentual de abstenção. Além disso, tamanho do município e estar em região metropolitana apresentam queda no beta padronizado, enquanto região do país ganha coeficiente. No Modelo 4 é inserida a variável mortes por Covid-19/mil habitantes. Há um pequeno aumento no ajuste do modelo. Os efeitos das variáveis geográficas se mantêm estáveis, com pequenas variações para cima ou para baixo. Também há uma pequena queda no coeficiente padronizado da concorrência política, embora ainda fique muito acima dos demais. O coeficiente padronizado de mortes por Covid-19 é positivo, ou seja, em municípios onde a proporção de mortes por Covid-19 aumenta, também cresce o percentual de abstenção.

Os modelos mostram que a principal explicação para as variações das abstenções entre os municípios é a concorrência eleitoral. Quanto maior a proporção de candidatos/mil eleitores, menor a abstenção. Além disso, a proporção de mortes por Covid-19 apresentou um efeito complementar ao da concorrência eleitoral, ou seja, mesmo em municípios com alta concorrência, quando há grande proporção de mortes por Covid-19, tende a existir um aumento na abstenção e isso independe do tamanho ou região de localização do município.

Uma vez identificada a explicação para variação da abstenção entre os municípios em 2020, o próximo passo é descrever a dinâmica da ausência eleitoral dentro dos municípios, no primeiro turno das eleições. Para isso, usamos as características individuais dos eleitores que se abstiveram em 2020. São três variáveis de perfil do eleitorado. Sexo, se homem ou mulher. Escolaridade, dividida entre até fundamental, médio e superior. E idade, dividida em seis faixas, começando por 16 e 17 anos e indo até mais de 70 anos. O primeiro objetivo aqui é identificar que características apresentam maiores percentuais de abstenção. Depois, serão associadas as abstenções por características individuais às categorias das variáveis explicativas que constam nos modelos de regressão (Tabela 2).

Tabela 2
Modelos de regressão para percentual de abstenção - 1º turno de 2020

A Tabela 3 mostra os percentuais médios e o desvio padrão de abstenção por categoria individual, além do teste t de Student para diferenças de médias. Em todos os casos os coeficientes t de Student são estatisticamente significativos, o que indica existência de grande variação dos percentuais em todas as características apresentadas na tabela. Em relação ao sexo, os homens tenderam a apresentar maior abstenção (18,02%) do que mulheres (16,78%). Quanto à escolaridade, a abstenção média diminui conforme cresce o nível de escolaridade do eleitor, passando de 20,48% entre eleitores com ensino até o fundamental, para 12,22% para eleitores com escolaridade superior. Sobre a faixa etária, os percentuais de abstenção não seguem uma gradação contínua. Entre os eleitores mais velhos, acima de 70 anos, o percentual de abstenção chega a 53,77%. Essa faixa etária não tem mais o voto obrigatório. No entanto, na faixa dos mais jovens, entre 16 e 17 anos, também sem voto compulsório, há uma das médias mais baixas de abstenção, ficando em 13,24%. Porém, a mais baixa média de abstenção é de 10,59%, para eleitores com idade entre 40 e 54 anos.

Tabela 3
Estatísticas descritivas de abstenção por categoria individual

Como todas as categorias individuais apresentam variações estatisticamente significativas, é possível que pelo menos em algumas dessas características as variações de abstenção apresentem correlação com as características dos municípios. No Quadro 1 constam as variações de percentuais bivariados, entre categorias individuais dos eleitores e dos municípios, ponderadas pelos resíduos do Modelo 4 de regressão apresentado anteriormente. Para melhor visualização, os valores abaixo da média das relações estão marcados em azul e os que estão acima da média de abstenção em vermelho. Quanto mais intensa a cor vermelha ou azul, mais distante da média. Como a categoria “idade acima de 70 anos” apresenta percentuais muito acima das demais, optamos por excluí-la do cálculo de média para a distribuição das cores. Os valores constantes no quadro não equivalem às médias da tabela anterior, pois aqui eles estão ponderados pelos resíduos da regressão pelo Modelo 4. Para as variáveis candidatos/eleitores e óbitos por Covid/habitantes foram incluídas as associações para os municípios que ficam acima da mediana dos valores populacionais.

Quadro 1
Relação bivariada entre características individuais e variáveis agregadas

Em relação ao sexo do eleitor, a relação entre homens e mulheres apresenta o mesmo comportamento em todos os tipos de município, com mulheres ficando sempre abaixo dos valores dos homens. O menor valor para homens e mulheres está em municípios com até cinco mil eleitores, seguido de municípios que ficam acima da mediana de candidatos/eleitores. Os maiores valores ficam em municípios acima de 200 mil eleitores, que também é a característica em que homens e mulheres apresentam percentuais mais próximos entre si.

Quanto à escolaridade, o Quadro 1 deixa claro que eleitores até com ensino fundamental apresentam os maiores percentuais relativos (mais cor vermelha), notadamente em municípios com mais de 200 mil eleitores (35,21). No outro extremo, a escolaridade superior tende a estar abaixo da média geral (cor azul), com destaque para baixa abstenção de eleitores com escolaridade superior na Região Nordeste (10,99).

Ao considerar a exclusão da faixa etária de 70 anos ou mais, em relação às demais faixas etárias, a que apresenta os maiores percentuais de abstenção é entre 18 e 24 anos. O único percentual abaixo da média nesta faixa etária é em municípios com até cinco mil eleitores (20,24). No outro extremo está a faixa etária de 40 a 54 anos, com todos os valores abaixo da média, com destaque para os micromunicípios, onde o percentual de abstenção é o mais baixo.

Ao analisar linha a linha as características dos municípios, fica claro que os municípios com até cinco mil eleitores são os que apresentam os menores índices de abstenção, quando consideradas todas as características individuais. Já os municípios com mais de 200 mil eleitores são os que apresentam os maiores percentuais de abstenção. Se considerarmos a localização geográfica, a Região Nordeste é a que apresenta os percentuais de abstenção mais baixos, enquanto o Centro-Oeste apresenta as maiores abstenções.

As eleições municipais no Brasil ocorreram menos de um ano após a primeira morte por Covid-19 no país. Toda a campanha eleitoral se deu em ambiente de incertezas em relação à saúde pública. Além disso, como agravante, houve uma disputa de narrativas políticas entre dois grupos: os que defendiam medidas de segurança para conter a propagação do vírus e os que defendiam a pouca efetividade dessas medidas. O fato é que em 2020 o eleitor brasileiro preferiu participar menos do que em disputas anteriores. Ao considerar a associação entre a maior abstenção e o tamanho do município, é possível pensar em uma relação entre os dois fatores. Da mesma forma, a participação cresceu em municípios menores, onde o impacto da Covid-19 demorou mais para ser notado. Além disso, em menores municípios as disputas locais tendem a ser mais acirradas, com candidatos e eleitores mais próximos entre si, o que aumenta os estímulos à participação. De qualquer maneira, é preciso esperar as primeiras eleições municipais pós-pandemia (espera-se que sejam as de 2024) para compararmos as abstenções e sabermos quão duradouros serão os efeitos da Covid-19 sobre o engajamento eleitoral do brasileiro.

Conclusões

Em 2020, a sociedade brasileira já tinha sido profundamente afetada pela pandemia da Covid-19. Para além da tragédia que vitimou milhares de brasileiros, a pandemia impactou diretamente a realização das eleições municipais. Pela primeira vez em nossa história política, as datas reservadas ao primeiro e segundo turnos das eleições tiveram que ser adiadas como medida para conter o avanço da doença. Neste contexto, uma das perguntas que permeou a dinâmica das eleições foi justamente saber se a pandemia da Covid-19 teria sido uma das responsáveis pelo aumento observado da abstenção eleitoral nas eleições municipais de 2020.

Para compreender o crescimento da abstenção e medir o efeito da pandemia do coronavírus nas eleições municipais de 2020, usamos um banco de dados do TSE que contém as informações sobre o sexo, a idade e a escolaridade do eleitor faltoso e, a partir dele, incluímos outras variáveis sociais e políticas que costumam estar associadas à participação eleitoral, entre elas o tamanho e a localização do município, a competição eleitoral e, por óbvio, a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes até um mês antes da realização do primeiro turno.

Os resultados mostram que a variável agregada que conseguiu explicar melhor as variações da abstenção foi a competição eleitoral. Em municípios onde há mais candidatos a prefeito/mil eleitores na disputa, observa-se a tendência a uma menor abstenção. Esse resultado era esperado e encontra apoio em ampla literatura sobre o assunto. Quando o eleitor racionaliza que o seu voto pode impactar no resultado final, maiores são os incentivos para sair de casa e ir votar, mesmo em países onde o voto é obrigatório, como no Brasil.

A abstenção eleitoral, pelo menos nas eleições municipais de 2020, apresenta também um componente agregado que está relacionado ao tamanho do município e à região do país. As maiores abstenções em 2020 tenderam a estar em municípios grandes, com mais de 200 mil eleitores, e nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. As menores abstenções ficaram nos micromunicípios, com até cinco mil eleitores, e da Região Nordeste. Neste ponto, é preciso atenção para o fato de que as maiores competições estão em municípios menores. Nos municípios com até cinco mil eleitores, a média em 2020 foi de 0,78 candidato a prefeito/mil eleitores. Já nos municípios com mais de 200 mil eleitores a média ficou em apenas 0,03 candidato a prefeito/mil eleitores.

Apesar de a variável “competição” oferecer a melhor explicação para as variações de abstenção, a proporção de mortos por Covid-19 até o final da campanha eleitoral teve impacto positivo sobre a abstenção. Quanto maior a proporção de mortos até a eleição, menos eleitores participaram do primeiro turno. Novamente, esse resultado vai ao encontro das expectativas iniciais que serviram para balizar a decisão do TSE em adiar o primeiro e o segundo turnos das eleições. A expansão da doença, a falta de vacinas e seus efeitos ainda pouco conhecidos por especialistas e pela comunidade médica arrefeceram o ânimo das campanhas e provavelmente levaram as pessoas permanecerem em confinamento em suas residenciais para evitar o risco de contaminação.

Por fim, sobre as características individuais dos eleitores que se abstêm, os resultados de 2020 corroboram os achados em trabalho anterior, sobre a disputa nacional de 2018 (Cervi & Borba, 2019CERVI, Emerson; BORBA, Felipe. Quem se abstém no Brasil? Uma descrição do perfil socioeconômico dos eleitores ausentes no primeiro turno das eleições de 2018. Trabalho apresentado no XLIII Encontro Nacional da Anpocs, 2019.). As mulheres tendem a participar mais do que os homens na votação. Ao mesmo tempo, nota-se o forte efeito da escolaridade. Eleitores com escolaridade fundamental são os que mais se abstiveram na eleição. Em relação às faixas etárias, entre 40 e 54 anos houve a menor abstenção no primeiro turno de 2020.

Em resumo, como base nos resultados deste artigo, podemos dizer que os eleitores com ensino fundamental, do sexo masculino, moradores de municípios com mais de 200 mil eleitores e localizados nas regiões metropolitanas do Sudeste e Centro-Oeste são os que mais contribuíram para a abstenção em 2018. Ao mesmo tempo, a competição eleitoral (medida pelo número de competidores) e a taxa de mortalidade da Covid-19 contribuíram para a abstenção de maneiras diferentes para as taxas de participação. Enquanto a competição estimulou positivamente a participação, nos municípios onde a Covid-19 mais matou a participação foi menor.

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  • 2
    Disponível em: <https://www.idea.int/news-media/multimedia-reports/global-overview-Covid-19-impact-elections>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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